Cisto Esplênico
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Cisto Esplênico
Cisto Esplênico Introdução JOSÉ GALV ÃO ALVES Professor adjunto de Clínica Médica da Universidade Gama Fl7ho. Professor assistente de Clínica Médica da FTE Souza Marques. Chefe do Instituto de Gastrenterologia do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. DENISE LOTUFO ESTEVAM Médica da 188 Enfermaria do Hospital Geral da Santa Casa da Misericordie do RÚJde Janeiro. JOÃO LOBATO DOS SANTOS Patologista do Inscituto de Patologia da Santa Casa. CLEUZA MARIA SCHINKE GENN Médios da 188 Enfermaria da Santa Casa da MIsericórdia Rio de Janeiro. . I do O cisto esplênico é uma entidade clínica e patológica rara, principalmente em contraste com cistos envolvendo outras vísceras. Foi descoberto por Andral em 1829, em achado de necropsia, embora deva-se a Berthelot, já em 1790, a descrição do primeiro cisto esplênico de etiologia hidática. Desde então poucas têm sido as publicações a respeito. Custer, em revisão de 5 mil necropsias, encontrou somente cinco casos e Fowler (1953), após exaustiva revisão da literatura mundial, constatou apenas 265 casos de cistos não-parasitários. A última revisão da literatura para cistos não-parasitários, publicada em 1958 por Doalas, colecionava 651 casos. A primeira esplenectomia com sucesso para tratamento dos cistos esplênicos foi praticada por Pean, em 1867 . Por ser esta uma entidade pouco freqüente, e por isso fascinante, serão relatados um caso de cisto esplênico particularmente não-parasitário e uma revisão da literatura mundial acerca da epidemiologia, classificação, etiologia, quadro clínico, diagnóstico e tratamento, com posterior discussão. Relato do caso D.C.F.R., 18 anos, sexo feminino, branca, solteira, estudante, natural do Rio de Janeiro. Data da internação: 01/06/89. Queixa principal: "dor na barriga". História da doença atual: início dos sintomas 30 dias antes da internação, com dor em hipocôndno esquerdo tipo pontada, que melhorava espontaneamente. Após esforço físico iniciou quadro álgico na região referida, melhorando com repouso em decúbito lateral direito. Antecedentes patológicos: doenças comun~ da infância, história de traumatismo abdominal na mais ou menos 11 anos. Cisto Esplênico História fisiológica: nasceu de parto normal em hospital, desenvolvimento psicomotor sem alterações, menarca aos 13 anos, ciclos menstruais regulares de 28 dias. História social: nega etilismo e tabagismo; mora em casa de alvenaria com esgoto e água encanada; alimentação qualitativa e quantitativa mente boa; bebe água filtrada; nepa banhos de rio. História familiar: pais saudáveis, nega diabetes, hipertensão arterial ou câncer na família. Exame físico: lúcida, orientada no tempo e no espaço, hidratada, corada, anictérica, eupnéica, apirética, acianótica, ausência de edema. Cabeça e pescoço sem alterações. Aparelho respiratório: expansibilidade normal, frêmito toracovocal e percussão sem alterações. Murmúrio vesicular universalmente audível sem ruídos adventícios.' Aparelho cardiovascular: icto invisível e impalpável. Ritmo cardíaco regular em dois tempos, bulhas normofonéticas, ausência de sopro ou extra-sístoles. Abdome: assimétrico, abaulamento em hipocôndrio esquerdo, frêmito à palpação superficial do hipocôndrio esquerdo. À palpação profunda, o hemiabdome esquerdo encontrava-se doloroso, com presença de massa endurecida ocupando o hipocôndrio esquerdo, ultrapassando a linha mediana e estendendo-se ao flanco esquerdo. Não apresentava hematomegalia. Traube ocupado, peristalse presente. Membros inferiores: pulsos presentes sem alterações, ausência de edemas. Exames complementares - hemograma: normal; EAS: sem alterações; bioquímica do sangue: normal; parasitológico de fezes: negativo; hepatograma: normal. Radiografia do tórax em PA e perfil: presença de elevação de hemicúpula diafragmática esquerda. Radiografia simples do abdome em AP: velamento de hipocôndrio esquerdo com rebaixamento da flexura esplênica do cólon por possível aumento do baço (Fig. 1). Ultra-sonografia abdominal: volumosa lesão expansiva em hipocôndrio esquerdo, bem delimitada, repleta de ecos no seu interior, medindo 18 x 14 centímetros, envolvida pelo baço anterior, lateral e posteriormente. Presença de pequena calcificação na parede lateral. Rim esquerdo rechaçado caudal e lateralmente. Aorta abdominal desviada para a direita (Fig. 2). Cintigrafia hepatesplênica: baço de tamanho aumentado, estendendo-se até a fossa ilíaca esquerda e o hipogástrio, com área lacunar evidenciando acúmulo de rádio colóide na borda lateral e pólo inferior (Fig. 3). Fluxograma regional. área com severa hiporradioatividade no pólo inferior, sugestivo de massa hipovascularizada (Fig. Figura 1 - Radiografia simples de abdome, vendo-se grande' área hipotrensperente, de limites precisos, ocupando hipocôndrio esquerdo. 3). Tomografia computadorizada do abdome: volumoso aumento do baço, com conteúdo líquido no seu interior de alta densidade. Pequenas calcificações na parede da cavidade cística contida no baço. Rim esquerdo rechaçado pela massa. Pâncreas com cauda e corpo sofrendo compressão media I (Fig. 4). Exame histopatológico - Exame macroscópico: baço enviado a fresco medindo 22 x 18 x 11 centímetros e pesando 3.420 gramas. Acha-se revestido por cápsula em área espessada, rugosa e, em outra, lisa, acinzentada. Aos cortes, em relação à cápsula rugosa, observa-se parênquima, esplênico vermelho-vinhoso, firme, e em relação a cápsula, nota-se grande formação cística de par~de interna lisa, brilhante, brancacenta, com cavitaçOes e preenchida por líquido castanho-esverdeado (Figs. 5 e 6), Exame microscópico cortes do baÇa apresentando estrutura cística de parede fibrosa revestida internamente por epitélio pavimentoSO Cisto Esplênico Figura 3 - Cimigrafia com acúmulo de rádio coláide em borda lateral e inferior do baço. Figura 2 - Ultra-sonografia abdominal mostrando área econegativa no baço, compatível com massa de natureza cística. estratificado, típico, de espessura irregular. Nas porções restantes o tecido esplênico exibe arquitetura preservada, com discreta atrofia da POupabranca e moderada dilatação dos seios esplênicos. Diagnóstico: cisto esplênico epidermóide essenta por cento dos cistos esplênicos ocorrem em mulheres, mais treqüentemente na segunda, terceira e quarta décadas, sendo que 75% ocorrem entre 10 e 50 anos de idade Figura 4 - Tomografia computadorizada volumoso cisto esplênico. OUTUBRO, 1991 !Iij VOL. 61 • N° 4 demonstrando Cisto Esplênico pseudocistos) . Na literatura mundial os cistos hidáticos representam 2/3 dos casos. No entanto, tal estatística não é confirmada em estudos norte-americanos, pelos quais há predominância de pseudocistos. Classificação Várias classificações de cisto esplênico foram propostas, sendo a primeira elaborada por Fowler em 1940 (Quadro 1). Entretanto, críticas quanto à natureza complexa desta levaram à utilização do sistema de Martin (1958) (18) atualmente (Quadro 2) Figura 5 cirúrgica. Cisto esplénico volumoso - detalhe da peça Quadro 1 Classificação 1940 de Fowler i. Cistos parasitários para tumores císticos (cistos hidáticos) 11. Cistos primários não-parasitários, (componente endotélio) com camada celular Congênito Traumático Inflamatório Infoliações císticas Dilatações císticas, linfangiectásicas, policísticos Nebplásicos (também congênitos) Epidermóide Dermóide Linfangioma Benignos, cavernas e hemangiomas IH Secundário, capilares sem camada celular Degenerativo (liquefação) Inflamatório Necrótico Tuberculose Epidemiologia OUTUBRO, 1991 cistos não-parasitários, distúrbios Traumático Hemorrágico Seroso Figura 6 - Corte do baço apresemando grande formação cistice, onde visualizamos parede Interna brancacema com cavitações. A incidência é maior no sexo feminino - 60% dos cistos esplênicos ocorrem em mulheres, mais freqüentemente na segunda, terceira e quarta décadas, sendo que 75% ocorrem entre 10 e 50 anos de idade. O caso mais precoce na literatura foi relatado em uma criança de seis meses de . idade. Os cistos uniloculares grandes representam 80% de todos os cistos esplênicos; cistos múltiplos são raros e estão associados a doença policística (fígado e rim) Sessenta a 75% localizam-se no pólo inferior do baço e 10% são calcificados (maior freqüência nos cistos parasitários e esplênicos, Quadro 2 Classificação de Martin, 195A --------------------------------------------i. Primário, cistos verdadeiros epitelial com revestimento (camada) Parasitário (hidático) Não-parasitário Congênito Neoplásico li. Secundário, pseudocisto celular) verdadeiro sem revestimento epitelial (camada ------------------------------------------- m VOL. 61 • N° 4 Cisto Esplênico m cisto verdadeiro pode ser interplfltlKlo, de maneira tHTÔnea, como pslHldOCÍ$to ou vic9-vBrsa. Isto se deve li! '. fato de que o IfIvestim9llto ep;te/ial pode SBr pau/llti". ou comp/fltamente destruido por altefWÇ6es sBCundárias, como uma press40 de expansão dos componentes lumi".IfIS do cisto apresentar revestimento epitelial a partir da proliferação de inclusões mesoteliais devido à ruptura traumática da cápsula fibrosa. A causa mais comum de cisto esplênico parasitário é dada pelo cisto hidático, que tem como agente etiológico a Taenia echinococus. Dos cistos verdadeiros, o hemangioma é o mai comum e o dermóide, o mais raro. A primeira descrição de hemangioma do baço foi de Virchov em 1863. Um tipo freqüente histopatoloqicarnenn é o cisto epidermóide ou epitelial, que ocorre numa incidência de 10%; estes cistos possuem camadas de epitélio escamoso estratificado, o que pode apresentar pontos de queratinização e calcificação. Vários elementos têm sido descritos como componentes do conteúdo cístico, como glóbulos de gordura e colesterol. Figura 7 - Parede cística. Faixa fibrosa com foco linfocitário . revestida intemamente por epitélio pavimentoso estratificado. H. E. Obj. - 70x Ocul. 70x. Etiologia Figura 8 - Epitélio de revestimento com camada granulosa e queratinização parcial na superficie. H.E. Obj. - 20x Ocul. 70x. Verifica-se que a base para o sistema classificatório de Martin é justamente a presença ou ausência de revestimento epitelial. O cisto verdadeiro apresenta revestimento celular e o pseudocisto não, possuindo apenas camada de tecido fibroso. Torna-se indispensável ressaltar, no entanto, que um cisto verdadeiro pode ser interpretado, de maneira errônea, como pseudocisto ou vice-versa. Isto se deve ao fato de que o revestimento epitelial pode ser paulatina ou completamente destruído por alterações secundárias, como uma pressão de expansão dos componentes luminares do cisto. Isto é confundido histologicamente pela presença de partes desnudas de epitélio na parede dos cistos primários, poís à microscopia a aparência dessas partes é exatamente igual aos cistos secundários e esses, por sua vez, podem 56 OUTUBRO, 1991 É desconhecida a exata etiologia dos cistos esplênicos não-parasitários. Vários autores sugeren que estes cistos sejam derivados de inclusão de células epiteliaisembrionárias. São cinco os tipos de inclusão propostos: ectoderma, mesoderma, endoderma, células mesonéfricas e totipotente. Em contraste, tem sido sugerido que a primitiva cavidade celômica migre para o interior do baço primitivo e as células mesoteliais sofreriam uma . metaplasia escamosa. Essa sugestão de Bstick fOI baseada em achados de microscopia óptica. ; Achados mais recentes de microscopia eletrônica j evidenciaram na camada celular de cistos esplênicos epitélio estratificado como resultado de mudança metaplásica do mesotélio. Essa metaplasia escamosa do mesotélio tem sido também reportada como proveniente de outroS .. sítios do peritônio, porém é raro. Metaplasia escamosa do mesotélio pode também ser formada como resultado de uma irritação crônica da superfície interna do clsto , . esplênico. Dentro do cisto a superfície de epltello, estratificado é freqüentemente misturada com E VOl. 61 • N° 4 Cisto Esplênico verdadeiras células rnesoteliais diferenciadas. Esse · fenômeno pode servir como futuro exemplo do · potencial das célu,las mesoteliais em gerar inúmeras caractensticas benignas como lesões , malignas. Todavia a história de trauma foi vista na maioria dos casos reportados, os efeitos causais dos · eventos traumáticos têm sido questionados por alguns autores. A rotura da cápsula esplênica, a e profusão do tecido esplênico e depósito de hemossiderina nos dão a evidência do antecedente traumático. O rompimento traumático da cápsula fibrosa do baço pode gerar uma' proliferação de mesotélio que formaria o cisto, e dentro deste, o mesotélio sofreria uma metaplasia escamosa focal, provavelmente junto com uma irritação crônica (1) Há ainda uma outra teoria a ser aqui aventada, que os cistos esplênicos epiteliais seriam formados por congestão vascular relacionada ao ciclo menstrual. Essa teoria tenta explicar o fato de que, segundo alguns autores, o cisto esplênico é mais comum em mulheres (5). Cistos esplênicos têm eventualmente alcançado · um considerado tamanho quando diagnosticados; os fatores que influenciam seu crescimento ainda · não estão esclarecidos. Todavia pelo menos três teorias podem ser aqui citadas. Primeiramente, que a expansão cística seria resultado de hemorragias -intracísticas dos vasos venosos da parede. A segunda, que o balanço osmótico poderia igualmente gerar o crescimento do cisto, porém não há nenhum dado considerável com relação à análise bioquímica do fluido cístico, mas uma alta concentração de colesterol pode servir como indicação de um aumento do gradiente osmótico no interior do cisto. A terceira seria a presença de estômata em algumas regiões da superfície interna do cisto, visto através da microscopia eletrônica e óptica. Estes estômatas funcionariam como um canal direto entre o tecido esplê-nico e o interior do 'cisto, contribuindo para a acumulação de líquidos e o balanço osmótico do conteúdo cístico. > 9uadro clínico Os cistos esplênicos possuem crescimento nsidioso, podendo apresentar-se clinicamente llssintomáticos (30 a 60%) ou mesmo terem o ãbdome agudo como manifestação inicial. A Sl~tomatologia dos cistos esplênicos depende de ~anosfatores, como volume do cisto, idade do aCiente, compressão de órgãos vizinhos e ,obilidade própria do cisto. Às vezes mesmo um ~sto volumoso pode apresentar-se silencioso. Uando há sintoma, a dor é o mais comum, OCorrendono quadrante superior esquerdo, do tipo randa ou "surda", contínua ou intermitente, mas Ilodeser referida no epigástrio, no hemitórax OUTUBRO. 1991 ~ esquerdo, no ângulo costovertebral esquerdo, ou ainda suprapúbica. Muitas vezes o cisto causa sintomatologia, dependendo da compressão de órgãos vizinhos. Se houver compressão gástrica, há relato de plenitude, náuseas, vômitos, anorexia, perda de peso e até refluxo esofagiano. A compressão do hemidiafragma esquerdo causa dispnéia, dor pleurítica, atelectasia do lobo inferior e infecção respiratória. Pode haver 'ainda arritmia cardíaca por compressão do ventrículo, como também compressão do rim esquerdo. Os pacientes podem se tornar sintomáticos após um trauma-menor, que seja suficiente para causar aumento do tamanho do cisto pela hemorragia no interior deste. Os sintomas ainda podem ser exacerbados por certas mudanças de posição, se houver mobilidade esplênica. A palpação abdominal comumente evidencia massa doquadrante superior esquerdo, porém nem sempre. Dentre as complicações, a rotura espontânea do' cisto esplênico - que ocorre em 25% dos casos - pode provocar uma catástrofe intra-abdominal, com hemorragia maciça ou gerando peritonite química, geralmente ocorrendo após trauma secundário, com dor intensa no abdome, sinais de irritação peritoneal, que pode ser acompanhado de náuseas, vômitos e diarréia. A rotura do cisto requer tratamento imediato, devido ao grande riscc de vida. Por isso é aconselhável remover o cisto esplênico assim que diagnosticado, mesmo 'em pacientes assintomáticos. Outras complicações podem ocorrer - infecção, perfuração transdiatraçrnática com derrame pleural ou empiema e abscedação. Nesta última ambos os organismos Gram-positivos e Gram-negativos podem ser isolados - Bacteroides, Pseudomonas. Serratia e Stephvtococcus aureus são os mais comuns. Diagnóstico O diagnóstico pode ser suspeitado pela sintomatologia, quando houver, e pelos achados ao exame físico de massa no quadrante superior .J7fff ~"'OI s cistos esplênicos possuem ~~t;) crescimento insidioso, podendo apresentar-se clinicamente assintomáticos f~;r (30 a 60%) ou mesmo terem o abdome t~i agudo como manifestação inicial 1~4 ªr VOL 61 • N° 4