O Futuro da NATO

Transcrição

O Futuro da NATO
Outono | Inverno
2010
53
05
Transatlantic Trends 2010
Crise afecta 78 por cento dos portugueses
Pentágono
Preocupado com alterações climáticas
O Futuro
da NATO
António de Almeida Santos
Carlos Gaspar
Helena Carreiras
José Medeiros Ferreira
Embaixador americano na NATO
quer mais cooperação com a UE
Fundação Luso­‑Americana
Conselho Directivo:
Teodora Cardoso (Presidente)
Embaixador dos Estados Unidos da América
Jorge Figueiredo Dias
Jorge Torgal
Luís Braga da Cruz
Luís Valente de Oliveira
Michael de Mello
Vasco Pereira da Costa
Vasco Graça Moura
“Belo céu azul [aqui em Nova Iorque]
que me leva a pensar que nós estamos
na mesma latitude de Lisboa,
o que tenho dificuldade em imaginar.”
 Albert Camus, Cahier V (1946)
Conselho Executivo:
Maria de Lurdes Rodrigues (Presidente)
Charles Allen Buchanan, Jr
Mário Mesquita
Secretário­‑Geral: Fernando Durão
DIRECTORes: Fátima Fonseca, Paulo Zagalo
e Melo, Miguel Vaz
subdIRECTORes: António Vicente, Rui Vallêra
Responsável pelos Serviços Financeiros:
Maria Fernanda David
Responsável pelos Serviços Administrativos:
Luiza Gomes
Assessores: João Silvério, Paula Vicente
Rua do Sacramento à Lapa, 21
1249­‑090 Lisboa | Portugal
Tel.: (+351) 21 393 5800 • Fax: (+351) 21 396 3358
Email: [email protected] • www.flad.pt
Paralelo
DIRECTORa: Maria de Lurdes Rodrigues
EDITORA: Sara Pina
coordenadora: Paula Vicente
Colaboram neste número: Álvaro Rosendo,
António de Almeida Santos, Ana Marques
Gastão, António Vicente, Carla Baptista, Carla
Martins, Carlos Gaspar, Clara Pinto Caldeira,
Filipa Melo, Guilherme Waldemar d’Oliveira
Martins, Helena Carreiras, Inês Sousa, Isabel
Marques da Silva, Joana Azevedo Viana, Joana
Carvalho Fernandes, Joana Gorjão Henriques,
João de Vallera, João Silvério, José Loureiro dos
Santos, José Manuel Ribeiro, José Medeiros
Ferreira, Kathleen Gomes, Manuel Anta, Marco
Leitão Silva, Maria de Lurdes Rodrigues, Michael
Werz, Patrícia Fonseca, Paula Vicente, Paulo
Pena, Pedro Caldeira Rodrigues, Rui Boavista
Marques, Rui Ochôa, Rui Zink, Sara Antónia
Matos, Sara Pina, Simão Martins, Tiago Moreira
de Sá, Vítor Gonçalves
Design: José Brandão | Susana Brito [Atelier B2]
Revisão: António Martins
Impressão: www.textype.pt
tiragem: 3000 exemplares
NIF: 501 526 307
Nº de Registo na ERC: 125
Periodicidade: semestral
563
[email protected]
Depósito legal: 269 114/07
ISSN 1646­‑883X
© Copyright: Fundação Luso­‑Americana
para o Desenvolvimento
Todos os direitos reservados
2
Caro leitor
N
este número especial NATO é analisado o futuro da organi­
zação por vários articulistas como António de Almeida S­ antos,
Carlos Gaspar, Helena Carreiras e José Medeiros Ferreira e
discutido em entrevista com o embaixador americano na NATO, Ivo H.
Daalder, que defende uma maior cooperação entre a Aliança Atlântica e
a União Europeia. Entrevistado, também, o novo embaixador americano
em Lisboa, Allan J. Katz.
A sondagem anual Transatlantic Trends, apoiada em Portugal pela FLAD,
revelou este ano o que a opinião pública americana e a europeia pensam,
entre outros assuntos, sobre a intervenção militar no Afeganistão (mais
apoiada por americanos do que por europeus), a aprovação do Presidente
Obama (mais bem-visto deste lado do Atlântico), as consequências da crise
económica (78 por cento dos portugueses sentem-se directamente afecta­
dos) e a cada vez menos desejada adesão da Turquia à UE. A nova presidente
do Conselho Executivo da Fundação Luso-Americana, Maria de Lurdes
Rodrigues, comenta estes resultados no Editorial, “O sonho europeu”.
Desde a conversa com o neto do Presidente Roosevelt, na ilha Terceira,
até ao novo Museu do Côa, esta nova edição da Paralelo divulga programas,
bolsas e acontecimentos de incentivo ao desenvolvimento e com relevo
nas relações transatlânticas. Sara Pina
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
Outono | Inverno
índice
53
05
Transatlantic Trends 2010
Crise afecta 78 por cento dos portugueses
Pentágono
Preocupado com alterações climáticas
OFERTA
COMPLIMENTARY
António de Almeida Santos
Carlos Gaspar
capa
Editorial de
Maria de Lurdes Rodrigues
COPY
O Futuro
da NATO
DO EDITOR
05 |
2010
Especial NATO
O sonho europeu
Helena Carreiras
José Medeiros Ferreira
Embaixador americano na NATO
quer mais cooperação com a UE
[POLÍTICA]
21-23 | Eleições americanas
A hora do chá
24-25 | Transatlantic Trends 2010
Inquérito à opinião pública
europeia e americana
por Vítor Gonçalves
por Carla Baptista
Obama: perder as eleições,
ganhar a História
por Kathleen Gomes
“77 por cento de americanos acreditam
que o poder militar é mais importante
que o poder económico”
30-45 | Especial NATO
30 | Novas alianças para combater
novas ameaças
Entrevista a Ivo H. Daalder,
embaixador americano na NATO
por Sara Pina e Simão Martins
34 | As parcerias internacionais
da Aliança Atlântica
por Carlos Gaspar
38 | Do tratado aos conceitos
por José Medeiros Ferreira
40 | Presidentes americanos em Portugal
por Carla Baptista
44 | A NATO e a dimensão de géneros
nos conflitos armados
por Helena Carreiras
46 | A NATO, que futuro?
[POLÍTICA]
48-51 | “Somos uma espécie
de primos”
Entrevista a Allan J. Katz
por Sara Pina e Simão Martins
por António de Almeida Santos
contracapa
Silverstein Properties, Inc.
www.wtc.com
Ground Zero Project
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| OUTONO | INVERNO 2010
3
BREVES
Faça-se justiça
É um projecto inovador em Portugal, base­
ado num modelo americano. A Fundação
Luso-Americana associou-se a esta iniciativa
que conta com o Alto Patrocínio da
Presidência da República Portuguesa e é
liderada pelo Fórum Estudante, em parceria
com o Ministério da Educação, a Universidade
Católica Portuguesa, a Sociedade Abreu
Advogados, a Escola Superior de Educação
Paula Frassinetti e a Associação Portuguesa
de Apoio à Vítima.
Este programa de educação cívica preten­
de reunir professores e alunos numa expe­
riência que os levará pelos meandros da
justiça, do direito e das decisões legais,
sensibilizando os jovens para questões que
se prendem, por exemplo, com o funcio­
namento dos tribunais, a aplicação das
penas ou o sistema jurídico.
Inspirado num modelo americano a fun­
cionar desde 1972, o “Faça-se Justiça” é
constituído por jogos de simulação, com
julgamentos e outros casos práticos.
O programa “Faça-se Justiça” entrou em
vigor já no presente ano lectivo de
2010­‑2011 e tem granjeado o interesse
de muitas escolas. Actualmente, participam
no projecto 82 escolas secundárias de
várias zonas do País, envolvendo 112 pro­
fessores e cerca de quatro mil alunos.
Com a duração inicial de três anos e
sujeito a uma avaliação anual, está pre­
visto incluir este programa no projecto
educativo das escolas de todo o país.
projectos de promoção do ensino de por­
tuguês a vários níveis. Os organizadores
atribuíram ainda um conjunto de pré­
mios às pessoas e instituições que nos
últimos anos se têm destacado neste
domínio. A Fundação Luso-Americana foi
uma das agraciadas.
Promovido em 2010 pelo Centro Português
de Fundações (Portugal), Fundação Roberto
Marinho e GIFE (Brasil), esta edição do
congresso, que reúne anualmente várias
fundações lusófonas com países organiza­
dores rotativos, decorreu em São Paulo e
no Rio de Janeiro, onde se discutiu o papel
do sector no desenvolvimento social. Maria
de Lurdes Rodrigues, presidente do
Conselho Executivo da FLAD, interveio na
mesa subordinada ao tema “A relação entre
fundações, governo e comunidade no
investimento social”.
Paula Vicente
‘
O programa
“Faça-se Justiça”
entrou em vigor
já no presente ano lectivo
de 2010­‑2011 e tem
granjeado o interesse
de muitas escolas.
’
Celebrar a língua portuguesa
A Universidade dos Açores e a Lesley
University, organizaram no final de
Agosto de 2010 a “Celebração da Língua
Portuguesa na América do Norte”, que
reuniu em Fall River um alargado con­
junto de professores e líderes associativos
interessados em questões educativas.
O evento assinalou também o centenário
da primeira escola a oferecer o ensino
integrado de língua portuguesa nos EUA,
a Escola do Espírito Santo. Houve opor­
tunidade de discutir vários assuntos rela­
cionados com a temática e propor
4
AV
VII Encontro
de Fundações Lusófonas
A FLAD esteve presente no VII Encontro
de Fundações da CPLP, realizado entre os
dias 12 e 16 de Setembro, no Brasil.
CPC
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editorial
O sonho europeu
maria de lurdes rodrigues
Os resultados da edição de 2010 do inquérito
Transatlantic Trends são esclarecedores tanto sobre
a vitalidade do sonho europeu, como sobre os
dilemas da construção e alargamento da União.
Em particular, os dados parecem indicar que a
Turquia está a abandonar o seu sonho europeu.
E nós?
A avaliar pela opinião dos cidadãos inquiridos,
cresce o número de europeus que recusam a pos­
sibilidade de adesão da Turquia à União Europeia
(UE) e diminui o número de turcos que se iden­
tificam como europeus. Pelo menos na opinião
pública, Europa e Turquia estão hoje mais afastadas
do que no ínicio do processo de adesão.
A adesão da
Turquia à UE
O problema da pressão sobre os limites nunca foi pacífi­
ca, e menos ainda
externos da UE está a ser resolvido
fácil. Desde sem­
por erosão e desgaste.
pre que muitos
discordaram da
possibilidade de
um alargamento
das fronteiras da UE que incluísse territórios pre­
dominantemente muçulmanos. Outros, pelo con­
trário, viram nesse alargamento a oportunidade
para transcender velhas clivagens civilizacionais,
pois, como sublinha Amin Maalouf1, o processo
de construção da UE representa a primeira tenta­
tiva bem­‑sucedida de progressiva construção de
uma “pátria ética” a partir das numerosas “pátrias
étnicas”, de uma unidade que transcende “a diver­
sidade das culturas sem nunca procurar aboli­‑las”.
Ou, para citar Tony Judt2, no mundo da globali­
zação “o rompimento de fronteiras e a criação de
comunidades é algo que os europeus estão a fazer
melhor do que ninguém”.
Na prática, porém, a adesão da Turquia encontra­
‑se hoje adormecida. O problema da pressão
sobre os limites externos da UE está a ser resol­
vido por erosão e desgaste, correndo­‑se o sério
risco de se alienar, nesse processo, o poder de
atracção da União que constitui um dos pilares
do sonho – e do exemplo – europeu.
Entretanto, a crise económica com que se deba­
tem os países da UE não apenas retirou da agen­
da política imediata questões como a da adesão
‘
’
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| OUTONO | INVERNO 2010
da Turquia, como constitui um teste à solidez e à
capacidade de sobrevivência e de atracção da
União. No inquérito já citado, tanto os cidadãos
norte­‑americanos como os europeus partilham a
percepção de que o futuro da UE requer mais UE,
mais organização comum das nossas vidas políti­
cas, económicas e sociais. A crise económica, sendo
uma ameaça real à União, constitui­‑se assim,
simultaneamente, em oportunidade para o refor­
ço da sua construção. Esperemos que, pelo menos
no domínio do aprofundamento da construção
europeia, prevaleça o sentido de decisão sobre as
hesitações e as não decisões que marcam o enfren­
tamento das pressões para o seu alargamento.
No momento em que se prepara a Cimeira da
Nato, em Lisboa, estas questões ganham nova
pertinência. Pois é no quadro das convergências
de valores transatlânticos que é necessário res­
ponder aos desafios da construção da unidade
da Europa.
Post scriptum. A FLAD, a cujo Conselho Executivo
presido desde Maio, tem um passado de inter­
venção e de apoio ao desenvolvimento econó­
mico, científico e tecnológico do País, em geral,
e dos Açores, em particular. São inúmeros os
projectos em curso e diversos os parceiros da
FLAD: promoção da língua e da cultura portu­
guesa nas universidades e na sociedade norte­
‑americana, o apoio a projectos e unidades de
investigação científica e tecnológica, a atribuição
de bolsas de estudo e de estágios, o apoio à par­
ticipação e organização de congressos interna­
cionais, a promoção de iniciativas para o
desenvolvimento do conhecimento e das políti­
cas públicas em diferentes sectores, bem como
o apoio às artes e à cultura. Comum a todas estas
áreas de intervenção é a cooperação entre Portugal
e os EUA, tendo a FLAD contribuído para a cons­
trução de uma vasta rede de colaborações entre
instituições dos dois países. Importa, hoje, dar
continuidade a um percurso que, ao longo dos
últimos vinte e cinco anos, acompanhou e par­
ticipou no progresso do País.
1. Amin Maalouf, Um Mundo sem Regras, Lisboa. Difel, 2010, p. 276.
2. Tony Judt, O Século XX Esquecido, Lisboa, Edições 70, 2010, p. 413.
5
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REVISTA DE IMPRENSA
Uma pequena mudança
A sala de aula do século XXI
“Às quatro e meia da tarde de segunda­‑feira, 1 de Fevereiro
de 1960, quatro estudantes universitários sentaram-se ao bal­
cão da cafetaria do Woolworth’s, na baixa de Greensboro, na
Carolina do Norte. Eram caloiros da North Carolina A. & T.,
uma universidade para negros que ficava a cerca de quilómetro
e meio de distância.
‘Quero um café, se faz favor’, disse um dos quatro, Ezell Blair, à
empregada.
‘Aqui não servimos negros’, respondeu ela.
O balcão da cafetaria do Woolworth’s era comprido, em forma
de L, tinha espaço para sessenta e seis pessoas e tinha um snack
bar sem lugares sentados numa das extremidades. Os assentos
eram para brancos. O snack bar era para pretos. Uma outra empre­
gada, uma mulher negra que estava de serviço na bancada de
cubas de banho­‑maria aproximou­‑se dos estudantes e tentou
convencê­‑los a irem­‑se embora. ‘Estão a ser estúpidos, seus igno­
rantes!’ disse ela. Os estudantes não se mexeram. Finalmente,
acabaram por sair por uma porta lateral. Na rua, formara­‑se um
pequeno ajuntamento no qual se incluía um fotógrafo do Record
de Greensboro. ‘Amanhã volto com a universidade em peso’,
disse um dos estudantes.
Na manhã seguinte, a manifestação de protesto já contava com a
participação de vinte e sete homens e quatro mulheres, na sua
maioria da mesma residência universitária que os quatro estudan­
tes iniciais. Os homens estavam de fato e gravata. Os estudantes
haviam trazido o seu trabalho de casa e sentaram­‑se ao balcão a
estudar. Na quarta­‑feira, alunos da escola secundária para ‘negros’
de Greensboro, Dudley High, juntaram­‑se a eles, aumentando o
número de contestatários para oitenta. Na quinta­‑feira, já eram
trezentos, incluindo três mulheres brancas do campus de Greensboro
da Universidade da Carolina do Norte. No sábado, o número de
manifestantes já era de seiscentos. As pessoas espalharam­‑se pela
rua. Adolescentes brancos acenavam com bandeiras dos confede­
rados. Alguém atirou uma bombinha. Ao meio­‑dia, chegou a
equipa de futebol do A. & T College. ‘Aqui vem a equipa de demo­
lição’, gritou um dos estudantes brancos.
Na segunda­‑feira seguinte, as manifestações de protesto haviam­‑se
estendido a Winston­‑Salem, a 40 quilómetros de distância, e a
Durham, a 80 quilómetros. No dia seguinte, juntaram­‑se à mani­
festação estudantes do Fayetteville State Teachers College e do
Johnson C. Smith College, em Charlotte, seguindo­‑se na quarta­
‑feira estudantes do St. Augustine’s College e da Shaw University,
em Raleigh. Na quinta e na sexta­‑feira, o movimento de protesto
atravessou as fronteiras do estado, surgindo em Hampton, em
Portsmouth, na Virgínia, em Rock Hill, na Carolina do Sul, e em
Chattanooga, no Tennessee. No final do mês, havia manifestações
em todo o Sul, que se estendiam para oeste até ao Texas. ‘Perguntei
a todos os estudantes com que me cruzei como tinha sido o
primeiro dia das manifestações no seu campus’, escreveu Michael
Walzer, teórico da política, na revista Dissent. ‘A resposta foi quase
sempre a mesma: «Foi como uma febre. Toda a gente queria par­
ticipar»’. O número de participantes atingiu os sete mil. Milhares
de estudantes foram detidos e muitos mais radicalizaram­‑se. Estes
acontecimentos do princípio dos anos sessenta transformaram­‑se
numa guerra pelos direitos civis que envolveu o Sul durante o
resto da década – e tudo isto aconteceu sem correio electrónico,
sem mensagens de texto, sem Facebook e sem Twitter.”
[ Malcolm Gladwell, 4 de Outubro de 2010 ]
“As salas de aula americanas estão ultrapassadas. Uma das principais
razões prende­‑se com questões de dinheiro. Os grandes edifícios
comerciais são geralmente construídos com paredes exteriores resis­
tentes que permitem que o interior seja modificado à vontade. Isso
é caro, portanto as escolas são construídas com pilares e paredes.
As grandes decisões são da competência das direcções escolares
regionais, entidades bem conhecidas pela sua resistência à mudan­
ça. Isto não significa que alguns distritos não tenham financiado
projectos de construção extravagantes; o investimento recente de
578 milhões de dólares na construção de uma escola oficial em Los
Angeles, um distrito escolar praticamente falido, é um exemplo que
nos deixa de boca aberta.
Outra razão é que ninguém conseguiu ainda provar que melhores
espaços significam uma melhor educação. Por mais entusiastica­
mente que Cheryl Hines anuncie os resultados dos exames depois
do seu programa School Pride, não há nenhuns trabalhos de
investigação sólidos que provem que o aproveitamento dos alunos
seja afectado pelo meio físico que os rodeia. Muitas das escolas do
nosso país que têm um melhor desempenho fazem o seu trabalho
em rectângulos cheios de mesas. As salas de aula na Coreia do Sul,
que nos está a bater à grande nas classificações internacionais, são
semelhantes às nossas, só que têm mais crianças lá dentro.”
[ Linda Perlstein,20 de Outubro de 2010 ]
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
A tirania das metáforas
“Há três mitos históricos que têm levado os principais presidentes
americanos a cometer loucuras há quase um século. Será Obama
suficientemente sensato para evitar a mesma sorte?
Há sem dúvida muitos aspectos da conduta dos Estados Unidos no
mundo no século XX que merecem ser louvados: a vitória na
II Guerra Mundial, a Doutrina Truman, o Plano Marshall, a diplo­
macia de JFK durante a crise dos mísseis cubana, os acordos de paz
de Camp David, o Tratado do Canal do Panamá, a abertura em
relação à China promovida por Richard Nixon, e a distensão em
relação à União Soviética, para referir apenas os casos mais óbvios.
Mas uma visão mais completa teria de incluir os seus muitos tro­
peções. Três ilusões de longa data – uma fé desavisada no univer­
salismo, ou no poder da América para transformar o mundo
substituindo a comunidade de países hostis onde reina a ilegalida­
de por Estados esclarecidos dedicados à cooperação pacífica; a neces­
sidade de rejeitar o apaziguamento de todos os adversários ou
condenar sugestões de conversações conciliatórias com os mesmos
como uma atitude insensata de fraqueza; e a crença na eficácia
infalível do poderio militar como meio de travar adversários, qual­
quer que seja a sua capacidade para ameaçar os Estados Unidos – têm
praticamente impossibilitado os americanos de pensar novamente
em formas mais produtivas de resolver os seus problemas externos.
Chamemos­‑lhe a tirania das metáforas: apesar de todas as suas pre­
tensões de moldar a história, os presidentes americanos são mais
frequentemente seus prisioneiros.”
[ Robert Dallek, Novembro de 2010 ]
* Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
7
POLÍTICA
Curtis Roosevelt,
a obsessão de um legado
O II Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt, em Angra do Heroísmo e na Praia da Vitória,
ilha Terceira, registou uma presença emblemática. Curtis Roosevelt, neto do antigo
Presidente dos Estados Unidos, presidiu à Comissão de Honra da iniciativa organizada
pela Fundação Luso­‑Americana para o Desenvolvimento (FLAD)
e pelo Governo Regional dos Açores.
rui ochôa
Por Pedro Caldeira Rodrigues*
Curtis Roosevelt cresceu à sombra dos avós Franklin e Eleanor.
8
A presença de Curtis Roosevelt nos Açores,
pela primeira vez, fez todo o sentido. Uma
visita que decorreu noventa e dois anos
após a passagem de seu avô e futuro
Presidente dos EUA por estas ilhas, no final
da I Guerra Mundial, e que então deixaram
boas memórias a Franklin Delano Roosevelt
(FDR, como ficou conhecido).
Durante uma conferência de imprensa em
19 de Fevereiro de 1945, menos de dois
meses antes da sua morte, FDR ainda se
recordava com nostalgia dos Açores. Revelou
então um desejo que sabia de difícil con­
cretização: “Arranjar um edifício do tipo
do Empire State Building, de Al Smith, ape­
nas para os arquivos (das Nações Unidas)
e respectivo pessoal e, em seguida, fazer
com que muitas das conferências se reali­
zem numa das ilhas dos Açores. Já lá estive
uma vez. Em frente da minha casa cresciam,
lado a lado, palmeiras e abetos. Têm um
clima maravilhoso.”1
O neto do 32.º Presidente dos EUA tam­
bém resguarda como um tesouro a memó­
ria da infância e adolescência que partilhou
com o único homem que por quatro vezes
consecutivas, entre 4 de Março de 1933
até à sua morte, em 12 de Abril de 1945,
ocupou o Gabinete Oval para liderar os
Estados Unidos no período mais contur­
bado, e perigoso, do século XX.
Curtis Roosevelt (Curtis R.), hoje com 80
anos, assume que esses tempos o marcaram
de forma decisiva. Sabe que foi educado
em berço de ouro, outro factor determi­
nante para a formação da sua personalida­
de. Cresceu “demasiado perto do Sol” e “à
sombra dos avós Franklin e Eleanor”, afinal
o título do livro que publicou em finais de
2008, uma espécie de catarse, de redenção
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
rui ochôa
POLÍTICA
(Too Close to the Sun: Growing Up in the Shadow of
my Grandparents, Franklin and Eleanor).
Mas terá Curtis R. transportado esse pesa­
do mas confortável fardo durante toda a
sua vida? Terão sido esses anos iniciáticos
decisivos para lhe impor um rumo ao qual
nunca pôde escapar? O “fantasma” de FDR,
afinal, perseguiu­‑o para sempre?
‘
A “observação
das atitudes” é a “chave”
para obter resultados
políticos desejáveis.
’
Em grande medida, sim. Sabe que, desde
então, o anonimato deixou de existir.
Optou com a sua quarta mulher Marina,
de origem belga, por se fixar na Europa,
numa pacata região do Sul da França, não
longe de Avinhão.
Tornou­‑se então um paladino da memó­
ria familiar, do estilo político e da perso­
nalidade do seu avô, sem que tivesse
perdido o sentido da crítica. Considera que
os actuais políticos “perderam o coração”
e denuncia sem pejo a máquina do marke­
ting, da publicidade, os construtores de
imagens, de perfis, de personalidades, que
se assemelham a robots quase perfeitos para
acumular votos e ocupar a ribalta do poder.
E Curtis R. pode mesmo prescindir de notar
que os conceitos de opinião pública, de
propaganda, de publicidade, são afinal um
produto dos Estados Unidos, que se come­
çaram a teorizar e a aperfeiçoar ainda antes
da chegada de seu avô à Casa Branca.
Exemplo de força
e determinação
Buzzy, assim lhe chamavam em pequeno,
nasceu em 19 de Abril de 1930, seis meses
após o Big Crash em Outubro de 1929 que
antecedeu a Grande Depressão e originou
a maior crise económica de um sistema
que até então respirava confiança.
Um contexto que motivou o início de
uma arrojada política social com o New Deal,
patrocinada por seu avô e onde ficou con­
sagrado o direito à Segurança Social.
Aos três anos, após o divórcio da mãe
Anna Roosevelt, Curtis e sua irmã Eleanor
(Sistie), acompanham­‑na pela primeira vez
até à Casa Branca, onde se recolheu na
sombra protectora do Presidente­‑pai.
Em tempos de crise, frequentou a escola
pública. Louro, fotogénico, era o “menino
bonito” da Casa Branca e alvo frequente
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
Da esquerda para a direita: Curtis Roosevelt e a mulher com João Silvério (Curador/FLAD)
e Mário Mesquita (Administrador/FLAD).
da curiosidade mediática. Um príncipe sem
trono, que aos oito anos abandona a gran­
de mansão de Washington para acompa­
nhar a mãe no seu segundo casamento.
Voltam a instalar­‑se na Casa Branca poucos
anos depois, para acompanhar um FDR já
muito debilitado. O Presidente, que tinha
participado em Fevereiro na decisiva
Cimeira de Ialta, Sudeste da Crimeia, morre
em 12 de Abril de 1945. Não assistirá à
rendição da Alemanha ou às bombas ató­
micas de Hiroxima e Nagasáqui, com a
consequente capitulação do arqui­‑rival
império do Japão.
Do seu avô, Curtis R. respeita a determi­
nação, a força de vontade, a persistência de
“um deficiente” que nunca desistiu de lutar,
de defender aquilo em que acreditava.
Durante vinte anos exerceu funções
administrativas na ONU, onde chefiou o
departamento de Organizações Não Gover­‑
namentais. Uma longa experiência diplo­
mática que lhe permite uma abordagem
atenta, cautelosa, equilibrada, crítica, das
principais questões mundiais. Sempre
acompanhada por uma dose considerável
de pragmatismo e de sentido ético.
Afirmou­‑se como um incisivo crítico da
Administração Bush. Com naturalidade,
apoia Barack Obama.
FDR, o paladino
da “cooperação global”
O neto de FDR define­‑se como um opti­
mista, mas realista. O livro que escreveu
parece tê­‑lo libertado dos fantasmas que
se acumularam na sua personalidade.
Porque sempre se sentiu um privilegiado,
um “menino­‑família” a quem eram con­
cedidas todas as benesses.
Aos 80 anos sente­‑se mais reconciliado
consigo e com a vida. Pretende continu­
ar a escrever a saga dos Roosevelt, um
testamento que também quer deixar à
sua filha Julianna, e ao seu neto Nicholas
B. Roosevelt. A sua missão, o seu empe­
nho, consiste numa reabilitação da ima­
gem da América perante o mundo mas
assente no exemplo já distante do seu
principal legado.
A conferência de abertura no II Fórum
Roosevelt, intitulada “O Estilo do Presidente
Roosevelt”, reflectiu a preocupação de
manter viva essa memória, onde a utiliza­
ção das ferramentas da História não evitam
inevitáveis subjectividades.
Aliás, o empenho de FDR na formação
de uma nova organização sucessora da
Sociedade das Nações, mas mais interve­
niente, revelou­‑se um dos aspectos mais
enfatizados na sua palestra2.
9
POLÍTICA
rui ochôa
Curtis recordou que a “morte prematura”
do popular Presidente dos EUA antecedeu
a conferência inaugural das Nações Unidas
de São Francisco, em 25 de Abril de 1945.
Mas não tem dúvida em referir que, dos
Big Tree (os Três Grandes, EUA, Reino Unido
e URSS), não tinha apenas como intenção
“manter a paz” mas “ajudar a construir a
paz” num mundo do pós­‑guerra.
Não receia intrometer­‑se por terrenos
mais especulativos, que denunciam o espí­
rito de missão do autor de Demasiado Perto
do Sol. E se FDR tivesse vivido mais tempo?
A sua forte liderança política ter­‑lhe­‑ia per­
mitido desempenhar uma função crucial
no mundo do pós­‑guerra? Teria sido capaz
de “silenciar” a Guerra Fria e moderar o
seu “efeito destrutivo”?
Curtis R. crê que sim. Mas vai mais
longe. Considera que FDR era o único dos
Big Tree “que considerava essencial a coo­
peração global”.
O pragmatismo e realismo do Presidente­
‑avô justificam a “relação relativamente
boa” com Estaline. O Uncle Joe (Tio Joe),
como na altura os media norte­‑americanos
designavam o ditador soviético, era um
aliado que não se podia menosprezar, nem
acusar, nem renegar.
Reconhece que, em 1945, muitos fun­
cionários do Departamento de Estado não
entendiam a aproximação pessoal de FDR
a Estaline. Não observavam o “lado prag­
mático” e alguns consideravam­‑na mesmo
uma manifestação de “fraqueza”.
Harry Truman, recorda Curtis R., também
não entendeu essa atitude e promoveu uma
viragem que vai desde então determinar as
relações internacionais. E ressalva que a
dicotomia maniqueísta “Ou estão connos­ sublinha Curtis R., existiu a tendência de
co ou estão contra nós” não é uma atitude muitos responsáveis para “ampliar esta
americana inventada pelo Presidente George situação”. Desde então, esta “atitude de
W. Bush… Infelizmente, disse na palestra, arrogância” passa a caracterizar a política
é “uma atitude da América desde que o externa e militar dos Estados Unidos. Mas
mundo foi dividido nas esferas comunista uma atitude de arrogância que se torna
e anticomunista”. Uma atitude que nasceu
disfuncional porque “não ajuda a ultra­
com a “era Truman”, que assinalará o triun­ passar as diferenças entre nações”, que
fo da arrogância sobre o diálogo.
também se diferenciam pelo seu potencial
Por tudo o que aprendeu, afirma com económico.
segurança que a
“observação das ati­
tudes” é a “chave”
para obter resulta­
Curtis R. valoriza este género
dos políticos dese­
jáveis. E exemplifica
de conferências, e as que decerto
com um facto mais
se seguirão, por estar sinceramente
recente: quando
George W. Bush se
convencido que “podem ser
referiu à invasão do
uma oportunidade de ouro para indicar
Iraque como uma
“cruzada”, não esta­
caminhos alternativos em termos
va a apresentar uma
de condução de política externa”.
ideia política “mas
antes a exprimir
uma atitude”. Pelo
contrário, está convencido que o discurso
Mesmo que estivesse consciente que os
de Barack Obama no Cairo em 2009 e diri­
responsáveis pelas políticas externas das
gido ao “mundo islâmico” foi na generali­
principais potências mundiais “não iriam
dade bem recebido por se ter reflectido “a
alterar de forma repentina as suas atitudes,
atitude manifesta do Presidente face ao islão, ou os objectivos dos seus governos”, FDR
e que teve a coragem de exprimir”.
insistiu até ao fim.
Neste sentido, o seu principal legado terá
sido o empenhamento em terminar com
O desejo da “paz duradoura”
os conflitos armados, dando primazia total
O rescaldo da II Guerra Mundial, e das ao diálogo.
presidências de FDR, permitiu que os EUA
Curtis R. valoriza este género de confe­
se tornassem de forma incontestável a rências, e as que decerto se seguirão, por
mais poderosa nação do mundo. Mas, estar sinceramente convencido que “podem
ser uma oportunidade de ouro para indicar
caminhos alternativos em termos de con­
dução de política externa”.
Uma forma de manter presente o legado
de Franklin Roosevelt. Assente no primado
da “cooperação global”, no desejo da “paz
duradoura”, de “acabar com a origem de
todas as guerras” e assistir ao regresso
de uma política e de políticos “com uma
visão mais ampla que os seus estreitos inte­
resses nacionais”.
‘
’
* Jornalista da LUSA
Do seu avô, Curtis Roosevelt. respeita a determinação, a força de vontade e a persistência.
10
1. Ver, a propósito, Mário Mesquita, A Escala de Roosevelt nos
Açores durante a Primeira Guerra Mundial, separata do Boletim
Histórico a Ilha Terceira, vol. XLIV, 1986. Um opúsculo que
relata a presença de FDR nos Açores (Faial e São Miguel)
a bordo do USS Dyer em 1918 a caminho da Europa, na
qualidade de subsecretário de Estado da Marinha, onde
visitou as tropas norte­‑americanas destacadas na frente.
2. No último dia do Fórum foi inaugurada a exposição
intitulada “Roosevelt e os Açores na I e II Guerra Mundial”
organizada por Carlos Riley, director da Biblioteca Pública
e Arquivo Regional de Ponta Delgada.
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
POLÍTICA
Relações transatlânticas e novas
potências emergentes
Os novos desafios da Europa e dos Estados Unidos após a eleição de Barack Obama,
em Novembro de 2008, e a função das potências emergentes no Atlântico Sul
e no Pacífico, foram temas em destaque no II Fórum Roosevelt. Uma iniciativa
que proporcionou ampla diversidade de opiniões sobre assuntos determinantes
para o futuro de um Ocidente confrontado com um mundo complexo e multipolar.
Os vizinhos
do atlântico norte
“As relações transatlânticas e
os equilíbrios internacionais
emergentes”, tema genérico
do Fórum, mobilizou parte
considerável das intervenções,
que decorreram em Angra no
nobre edifício do Palácio dos
Capitães Generais. O balanço
do consulado de George W.
Bush e os seus “efeitos cola­
terais” nas relações transatlân­
ticas foi outro assunto que
não escapou a este “espaço
de reflexão”, quando se
abrem novas perspectivas
motivadas pela “emergência
de recentes fenómenos e ali­
nhamentos internacionais”,
como sublinhou na interven­
ção de abertura Carlos César,
presidente do Governo
Regional açoriano.
Um fórum que decorreu
num espaço geográfico
muito particular, definido
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
pelo presidente do Governo açoriano
como aquele “em que se alicerça de
forma mais directa e diária a sólida par­
ceria transatlântica entre Portugal e os
EUA”, e que “aconselha a promover as
pontes de uma cooperação estrategica­
mente relevante”. Carlos César reafirmou
assim a importância geoestratégica da
região, defendendo a ideia de que “as
ilhas são um núcleo de encontro e inter­
secção necessária entre continentes e
entre o Norte e o Sul”.
Avelino Meneses, reitor da Universidade
dos Açores, também esteve presente na mesa
de abertura, antecedendo o discurso do pre­
sidente do Governo Regional dos Açores.
O sentido dos debates foi apontado na
sessão inaugural por Mário Mesquita, admi­
nistrador da FLAD, que sublinhou a com­
plexidade dos temas em discussão.
O propósito consistia em “articular as
dimensões regional, nacional, comunitária
e internacional”, com a preocupação em
“não aceitar como uma inevitabilidade as
visões catastróficas que, no início do século
XXI, se sucederam aos diagnósticos preci­
pitados do fim da história após a queda do
Muro de Berlim e da União Soviética”.
designaraújo
Organizado pela Fundação Luso­‑Americana
para o Desenvolvimento (FLAD), em cola­
boração com o Governo Regional dos
Açores, o II Fórum Açoriano Franklin D.
Roosevelt decorreu entre 14 e 16 de Abril
na ilha Terceira, Açores, com um balanço
sem dúvida positivo.
A iniciativa garantiu a presença de mais de
50 conferencistas e 130 participantes, onde
se incluíam cerca de meia centena de estu­
dantes de oito universidades do continen­
te e dos Açores, acompanhados pelos
professores que leccionam em áreas rela­
cionadas com os temas em debate.
Avelino Meneses, reitor da Universidade dos Açores, Carlos César, presidente do Governo Regional açoriano,
e Mário Mesquita, membro do Conselho Executivo da FLAD, na sessão inaugural do Fórum (da esquerda para a direita).
11
designaraújo
POLÍTICA
“As relações transatlânticas e os equilíbrios internacionais emergentes”, tema genérico do Fórum, mobilizou parte considerável das intervenções, em Angra.
Numa referência às questões centrais em
discussão, Mário Mesquita optou por
sublinhar que “a operacionalidade e a efi­
cácia das organizações internacionais cria­
das após a II Guerra Mundial – ONU e
NATO – dependerão da redefinição dos
seus objectivos e da sua capacidade de
auto­‑reforma”.
As problemáticas agendadas proporcio­
naram ampla discussão que nem sempre
foi consensual, para além da nova dimen­
são introduzida na iniciativa e “relaciona­
da com a comunidade luso­‑descendente”,
como também notou Mário Mesquita.
Assim, o fenómeno da emigração nos
seus diversos vectores foi abordado em
seminários paralelos, justificados pelo facto
de 70 por cento da comunidade portugue­
sa nos Estados Unidos serem de origem
açoriana ou descendentes de açorianos.
Um tema abordado por Cynthia Koch,
directora da Biblioteca Presidencial
Roosevelt) que integrou o seminário para­
lelo “Portugal e os Açores – De Roosevelt
aos Nossos Dias”, presidido por Vasco
Cordeiro, secretário de Estado do Governo
Regional, e onde também participaram
Luís Nuno Rodrigues (IPRI) e Carlos
Cordeiro (Universidade dos Açores),
Quanto às relações transatlânticas,
perspectivou­‑se a cimeira da NATO pre­
12
vista para Novembro em Lisboa, onde
deverão ser aprovadas alterações ao “con­
ceito estratégico” da Aliança.
O analista norte­‑americano Stanley
Sloan abordou precisamente esse tema no
painel apresentado por António Vicente,
da FLAD, e relacionou­‑o com as novas
potências emergentes (o grupo do BRIC
– Brasil, Rússia, Índia e China). E numa
referência ao próximo conclave da
Aliança, considerou que o que estará em
causa na Cimeira de Lisboa será a capa­
cidade de a NATO funcionar em “bene­
fício dos interesses” dos Estados­‑membros.
Porque a “eficácia” da Aliança “é uma
dúvida que paira no ar”.
A percepção da NATO nas opiniões
públicas europeias e norte­‑americana este­
ve em foco na intervenção de Zsolt Nyiri,
director do Transatlantic Trends, que inte­
gra o The German Marshall Fund dos
Estados Unidos.
Nesta sessão plenária apresentada por
Maria Carrilho do Instituto Universitário
de Lisboa, o investigador analisou o estu­
do de opinião divulgado em meados de
2009, que abrangeu 12 países europeus
e os EUA. E concluiu­‑se que a opinião dos
europeus face à NATO “pouco mudou”,
apesar do “significativo decréscimo duran­
te os anos Bush”.
Zsolt Nyiri notou contudo que, após o
entusiasmo inicial, a posição de muitos
países de Leste face à NATO também está
a mudar, um fenómeno designado “fadi­
ga”, também associado à adesão à União
Europeia (UE). “Quando aderem a uma
organização como a NATO ou a UE, o
entusiasmo desaparece durante algum
tempo, porque se confrontam com a rea­
lidade. É difícil de manter”, notou.
A conclusão do estudo revelou ainda que
a eleição de Barack Obama gerou “uma
enorme boa vontade da Europa em relação
à política norte­‑americana”, permitindo
“criar um novo capítulo”.
O seminário paralelo “Os Açores entre
a Europa e a América” contou com as par­
ticipações de Medeiros Ferreira, professor
universitário e ex­‑ministro dos Negócios
Estrangeiros, Gavin Sundwall, cônsul dos
EUA nos Açores, e do general Loureiro
dos Santos, antigo ministro da Defesa.
O general, especialista em geoestratégia,
recordou a importância da zona económi­
ca exclusiva açoriana, “55 por cento da
zona económica exclusiva nacional”. E con­
siderou que esta região poderá desempe­
nhar uma função decisiva para os EUA, a
partir da qual será possível “projectar força”
para o Médio Oriente, Iraque e
Afeganistão.
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
POLÍTICA
Previu ainda uma eventual “articulação”
com a zona do Atlântico Sul através de arqui­
pélagos lusófonos, como Cabo Verde e São
Tomé, ou a ilha de Ascensão para “projectar
força no golfo da Guiné e África Austral”.
Disse ainda que a defesa e segurança euro­
peias necessitam de “capacidade efectiva”
que passa pelo investimento sério dos euro­
peus na área da defesa.
“de forma bem realista” como uma ver­ afectar as relações entre a Europa e os
dadeira “hiper­‑impotência”.
Estados Unidos.
Em paralelo, existem ainda “vários olhares
Carlos Gaspar, director do Instituto
europeus” face à Rússia, num contexto em Português de Relações Internacionais
que Washington pretende resolver de forma
(IPRI) destacou as três principais fases da
bilateral “o seu problema” russo. Outro pre­ NATO desde 1989: a parceria estruturada
texto para a Europa permanecer órfã.
em 1991, entre a queda do Muro de
Apesar de não ocorrer um afastamento de
Berlim e o fim da URSS, e expressa no
interesses à escala global, Seixas da Costa
Conselho de Parceria do Atlântico Norte.
assinalou “sinais de
O segundo momento surge com o ino­
divergências transa­ vador conceito estratégico da NATO após
tlânticas no quadro o 11 de Setembro de 2001: o Grande
Os EUA encaram a sua política externa global”, em particular Médio Oriente, apesar de notar que “a par­
a Turquia, Balcãs, Irão, ceria com países do Mediterrâneo e Golfo
em termos morais, quase religiosos,
Médio Oriente à Não Pérsico foram um falhanço”. E um tercei­
em termos “do bem” em oposição
Proliferação Nuclear.
ro momento, que decorre no debate do
Sobre a questão da Conselho do Atlântico Norte em Riga, em
“ao mal”. Mas já a Europa
adesão da Turquia, 2006, onde surge o conceito de “expansão
não tem a “certeza messiânica”
disse ser necessário global” da NATO (Global NATO).
tempo para “ponde­
Teses que suscitam divergências de abor­
de estar do lado do “bem”.
rar”, também pelo dagem. Enquanto alguns estrategos da
facto de a densidade Aliança admitem a “aproximação à Índia,
Seixas da Costa
d e m o g r á fi c a d a Brasil e Japão” – factor que em termos de
Turquia tornar este critério pode comprometer “a homogenei­
Velhas e novas potências
país decisivo no novo equilíbrio de forças dade política e cultural” da Aliança –, sur­
O segundo dia dos trabalhos iniciou­‑se interno da UE pós­‑Tratado de Lisboa.
giu em oposição a tese da “NATO regional”,
com uma visita e briefings na Base das Lajes,
Uma relação entre os Estados Unidos e
centrada nos problemas europeus (em par­
com as sessões a decorrerem durante a a Europa “cada vez mais condicionada pela
ticular na Rússia e Ucrânia).
tarde no belíssimo Salão Nobre da Câmara
evolução do Brasil, Rússia, Índia ou China”
O director do IPRI sublinhou estar­‑se
Municipal da Praia da Vitória.
(BIRC), foi o aspecto sublinhado pelo perante duas abordagens incompatíveis: a
O embaixador Francisco Seixas da Costa professor Philippe Schmitter, do Instituto NATO global e a NATO regional “não
privilegiou como tema “A Europa e a Política
Universitário Europeu, que presidiu a uma podem coexistir”, porque os EUA “não
Externa da Administração Obama”.
das sessões mais aguardadas do Fórum: estão interessados na segunda hipótese”
Ao centrar a sua alocução nas recentes
“Potências emergentes na perspectiva da
atendendo ao seu envolvimento global,
alterações políticas nos EUA, o actual NATO: Brasil, China, Índia”.
“sobretudo no Afeganistão”.
representante diplomático em Paris subli­
Sem se arriscar em futurologias, admitiu
Para Carlos Gaspar, surge como necessá­
nhou o “alívio da Europa” após o fim do que ainda não é possível saber em que ria uma “terceira via”, que poderá privi­
consulado de George W. Bush, notando extensão os novos poderes emergentes vão legiar a institucionalização de
que após a eleição de Obama “grande
parte do mundo” se reconciliou com os
Estados Unidos.
Relações complexas, porque a Europa é
um “continente complexo”, como frisou.
Assim, cada país europeu tem uma “visão
diversa” e ainda prevalece uma “percepção
equivocada” sobre a forma como os EUA
olham para o velho continente e para o
mundo em geral.
Por tradição histórica, ressalvou Seixas da
Costa, os EUA encaram a sua política exter­
na em termos morais, quase religiosos, em
termos do “bem” em oposição ao “mal”.
Mas já a Europa não tem a “certeza mes­
siânica” de estar do lado do “bem”.
Com Obama, e para além de o seu objec­
tivo consistir em “inverter” o legado Bush,
a América não alterou esta visão mas tem
interesse em “ter o mundo consigo”.
Ao verificar a “fraqueza” da UE, estru­
tura “meramente declaratória”, o diplo­
mata concluiu que, no quadro global, a
Europa permanece refém dos EUA. Assim,
Stanley Sloan fala sobre a NATO e o grupo do BRIC. Na foto (à direita) com António Vicente (FLAD).
Washington continua a considerar a UE e
‘
Paralelo n.o 5
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13
designaraújo
’
POLÍTICA
parceiro comercial do Brasil, ultrapassando
os EUA. Assegurou ainda que as relações
económicas com Irão ou Cuba não serão
afectadas com a eventual eleição de um
Presidente de “direita” no Brasil.
A exposição sobre a China esteve a cargo
do coronel Tiago Vasconcelos, que assina­
lou o facto de a NATO não possuir actu­
almente “uma estratégia para a China, e
não deverá tê­‑la num futuro próximo”.
Recordou que a China é uma “potência
de direito”, membro permanente do
Conselho de Segurança da ONU, que será
a “maior economia do mundo dentro de
duas décadas”, apesar de um PIB per capita
que ainda o coloca na condição de país
relativamente pobre.
A ascensão da China a superpotência no
âmbito de um sistema internacional mul­
designaraújo
designaraújo
“parcerias bilaterais” com as principais
potências democráticas não­‑europeias. “E
as principais potências democráticas não­
‑europeias, para além do Japão, são o
Brasil e a Índia”.
Na sua intervenção focou a crescente afir­
mação do Brasil no cenário internacional,
Jair Rattner, correspondente do diário Estado
de São Paulo em Lisboa, ressalvou a nova abor­
dagem do país do Presidente Lula da Silva.
A ambição da potência sul­‑americana em
garantir um lugar de membro permanen­
te do Conselho de Segurança da ONU, e
uma política externa cada vez mais autó­
noma. “Lula foi o primeiro líder ocidental
a encontrar­‑se com Ahmadinejad após as
conturbadas eleições no Irão”, recordou.
Para além das decisivas questões económi­
cas, com a China a tornar­‑se no primeiro
Seminário “Os Açores entre a Europa e a América” com Loureiro dos Santos, Medeiros Ferreira,
Andreia Cardoso e Gavin Sundwall (na foto de cima, da esquerda para a direita)
e Zsolt Nyiri com Maria Carrilho (foto de baixo).
14
tipolar, e a formação de uma nova bipo­
laridade China/EUA poderá ser um dos
cenários que emergirão num futuro pró­
ximo, vaticinou.
A Índia, palestra da responsabilidade de
Constantino Xavier, investigador da Johns
Hopkins University, já coloca outro géne­
ro de desafios para o Ocidente em geral
e a NATO em particular.
O especialista referiu­‑se à necessidade de
“encontrar um meio caminho entre hos­
tilizar e integrar as potências emergentes”,
mas com uma premissa: “Avoiding Full
Contact” (Evitar o Contacto Directo).
Para Nova Deli, notou o investigador,
o não­‑alinhamento permanece uma “opção
estruturante da sua política externa”. Para
além de uma “alergia às alianças estratégi­
cas, e o desejo de autonomia estratégica”.
Uma enorme península onde existem 4500
quilómetros de fronteira China/Índia e três
mil quilómetros de fronteira China/Rússia,
“factor que tem de ser considerado”.
A Índia é ainda um país que aposta na
diversificação. Israel mantém­‑se o “segun­
do fornecedor militar”, a Rússia reassume
uma “crescente importância” em termos
de relações bilaterais, enquanto Nova Deli
não prescinde em manter um “intenso
comércio” com o Japão.
Neste xadrez complexo, referiu
Constantino Xavier, poderá existir uma ter­
ceira via: integrar a Índia numa “parceria
semi­‑institucionalizada”, que poderá dar
origem a uma “nação amiga” sem hostili­
dade da opinião pública indiana.
Uma opção estratégica que poderia garan­
tir, a médio e longo prazo (não apenas no
oceano Índico), uma Índia que pelo menos
manteria uma “cooperação mínima com
os interesses da NATO”. Uma parceria,
assinalou Constantino Xavier, “fixada nas
questões técnicas e de cooperação para
manter o essencial, uma Índia amiga”.
“O lugar das comunidades luso­
‑descendentes nas relações entre a Europa
e os EUA” foi outro tema debatido duran­
te a sessão plenária de quinta­‑feira.
Olhar para Sul
No último dia, 16 de Abril, as sessões ple­
nárias regressaram ao auditório do Palácio
dos Capitães Generais.
Pela manhã, dois seminários paralelos:
“Africom, que perspectivas?” no Auditório,
e “A dimensão científica da relação tran­
satlântica”, que decorreu no Claustro.
A primeira sessão, presidida por Manuela
Franco, do IPRI, contou com a participação
de Miguel Monjardino, da Universidade
Católica Portuguesa, a diplomata Carolina
Cordeiro, fixada em Dacar, a investigadora
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
da Universidade Católica Janete Cravino, e
o coronel Carlos Coutinho Rodrigues,
assessor do Instituto de Defesa Nacional.
À margem do colóquio, Miguel Monjardino
revelou que o Air Mobility Command
(AMC), organização que actua no âmbito
do Pentágono, elaborou em Março de 2009
um documento (White Paper) que analisa as
várias rotas disponíveis e as funções das
bases militares dos EUA no mundo. Nesse
documento, o complexo das Lajes é colo­
cado num nível de prioridade estratégica
“mais baixo do normalmente referido publi­
camente” em Portugal.
O professor da Universidade Católica e
especialista em relações internacionais con­
sidera que esta avaliação constitui “um
problema político­‑militar” para Portugal
que “devermos tentar gerir e resolver”.
No entanto, Miguel Monjardino também
ressalva algumas vantagens que podem ser
potencializadas. “O mar vai continuar a
ser muito importante e o Atlântico é fun­
damental para a globalização, que assenta
sobretudo em plataforma marítimas. Uma
vantagem para Portugal e a região dos
Açores”, indicou.
As perspectivas da Missão Africom, num
contexto de crime organizado na África
Ocidental e das actividades na região da
Al­‑Qaeda do Magrebe Islâmico (AQMI)
foi o tema destacado pela diplomata
Carolina Cordeiro.
Assim a missão da Africom, ainda em
fase embrionária, consistirá no “combate
ao terrorismo islâmico aliado às redes de
criminalidade organizada”. A diplomata
sublinhou que uma das principais activi­
dades da AQMI consiste na “segurança
privada” que oferecem às redes de tráfico
que operam na região e que consiste na
sua principal fonte de financiamento. Uma
aliança que se verifica noutras regiões,
incluindo no Corno de África.
Os Estados Unidos, impulsionadores do
Africom, pretendem fomentar uma “estra­
tégia abrangente e completa” para enfren­
tar esta ameaça. Uma tarefa que, no
entanto, e como ressalvou, se afigura
“muito complexa”.
Uma das dificuldades desta missão,
como sublinhou Janete Cravino na sua
intervenção, reside no facto de o Africom
ser encarado pela generalidade dos países
africanos como uma “tentativa de reco­
lonizar o território”.
No final da manhã, o administrador da
FLAD Charles Buchanan presidiu à sessão
plenária com o tema “Perspectivas dos
Estados Unidos sobre as relações transa­
tlânticas”. Uma intervenção da responsa­
bilidade de David Ballard, conselheiro da
Embaixada dos EUA em Lisboa em final
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| OUTONO | INVERNO 2010
designaraújo
POLÍTICA
Gavin Sundwall, o cônsul dos EUA nos Açores, no seminário que debateu o papel do arquipélago
nas relações transatlânticas com Andreia Cardoso, presidente da Câmara de Angra.
de missão, que assinalou o “emergente
equilíbrio de poder no mundo”, referiu­‑se
ao “desafio de garantir que funcione o
acordo nuclear com a Rússia” e à “iden­
tificação de áreas de cooperação”.
consistir na liderança do flanco sul da União
Europeia (e da NATO), com crescentes res­
ponsabilidades do país “na segurança marí­
tima e o alargamento da plataforma
continental”. Aspectos que “vão continuar
a fornecer uma
função central ao
arquipélago dos
A cimeira de Lisboa está desta forma
Açores”.
a ser encarada como uma oportunidade única No actual con­
texto das relações
para a NATO “repensar a sua visão”.
transatlânticas,
Santos Silva defi­
Quanto aos países emergentes, interrogou­
niu ainda como “eixos fundamentais da
‑se sobre a possibilidade de melhor abor­ contribuição portuguesa para a revisão do
dagem, “através dos EUA ou da NATO”, com conceito estratégico, o “momento­‑chave”
a “perspectiva de parceiras”.
da parceria NATO, onde se inclui o Tratado
A sessão de encerramento foi dirigida por de Lisboa, a “parceria estratégica com a
Rui Machete, presidente da FLAD e em final
Rússia” e a imperiosa necessidade de “dia­
de mandato, acompanhado por André
logar e saber dialogar” com o Sul. “Por
Bradford, secretário regional da presidência sermos uma organização do Atlântico
do Governo dos Açores, e José António Norte devemos olhar para o Sul”.
Mesquita, representante da República na
Para além da vocação e da capacidade que
região autónoma. As suas intervenções ante­ pode oferecer no “diálogo com o Sul” e em
cederam a palestra final do ministro da contribuir com “janelas abertas sobre os
Defesa, Augusto Santos Silva.
outros espaços”, o ministro assegurou em
“As relações transatlânticas: vectores per­ paralelo que Portugal pode “ajudar a NATO
manentes, novas perspectivas” foi o tema da a olhar para o Grande Médio Oriente”.
intervenção de encerramento. E o ministro
A Cimeira de Lisboa está desta forma a
da Defesa aproveitou a oportunidade para ser encarada como uma oportunidade
sublinhar que a cimeira da NATO em Lisboa, única para a NATO “repensar a sua visão”
que vai decorrer a 19 e 20 de Novembro, e quando a revisão do conceito estratégi­
deverá aprovar um novo conceito estratégi­ co “conforta as nossas posições”. Mas
co da Aliança, que deverá moldar a actuação
“devemos ser práticos, concisos e ambi­
da Aliança na próxima década.
ciosos na definição do novo conceito
Neste contexto, sublinhou a “colabora­ estratégico”, concluiu Santos Silva.
ção portuguesa” para a elaboração de um
No final dos trabalhos, a promessa de
novo documento “que não tem de ser prosseguir com esta iniciativa bianual,
inteiramente novo”. O ministro da Defesa e de novo na região autónoma dos Açores.
PCR
considerou que a função de Portugal pode
‘
’
15
POLÍTICA
Portugal:
ponte entre a América e a África
O Access Africa Forum juntou em Lisboa entidades oficiais e empresas de Portugal,
Estados Unidos, Angola, Cabo Verde e Moçambique. O nosso país foi o lugar do encontro
por ser a ponte possível entre estes dois continentes.
Por Joana Carvalho Fernandes
O Access Africa Forum juntou em Lisboa EUA em Portugal, Allan J. Katz, lembrou que
entidades oficiais e empresas de Portugal, este país “possui uma posição única para
Estados Unidos, Angola, Cabo Verde e desempenhar o papel de  porta para a África
Moçambique para que, sentados à mesma a todas as empresas que pretendam aumen­
mesa, os diversos interlocutores trocassem tar os seus negócios nestes mercados”.
ideias e ajustassem parcerias
para aproveitar oportunida­
des de investimento.
Alguém vai fazer dinheiro em Angola.
Portugal foi o lugar do
encontro por ser a ponte
Talvez pudesse ser a vossa empresa,
possível entre estes dois con­
talvez deva ser.
tinentes. Na abertura do
fórum, o embaixador dos
Dan Mozena, Embaixador dos Estados Unidos em Angola
‘
’
Jorge Arcanjo
A África lusófona cresce no contraciclo da
economia mundial, precisa de investimen­
tos em infra­‑estruturas e de limar arestas
no campo do respeito pelos direitos huma­
nos e do combate à corrupção; os Estados
Unidos precisam de virar­‑se para fora para
recuperar da crise económica, aumentar o
investimento externo e as exportações.
Portugal fica a meio caminho entre os dois
e conhece a história, partilha a língua, per­
cebe a cultura africana. A solução parece
simples, mas os desafios são tão grandes
quanto as oportunidades.
O embaixador americano, Allan J. Katz (na primeira fila à esquerda) lembrou a importância de Portugal na ligação entre os EUA e África.
16
Paralelo n.o 5
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Jorge Arcanjo
POLÍTICA
que Angola é uma aposta de crescimento
incontornável: “As empresas norte­
‑americanas podem competir, podem
ganhar dinheiro. É preciso paciência e
bons parceiros. E quem melhor que as
empresas portuguesas?”, terminou.
Em Moçambique, “a pobreza, a iliteracia
e os Objetivos de Desenvolvimento do
Milénio continuam a ser desafios mas os
Estados Unidos acreditam no país”, disse
a embaixadora Helen Reed­‑Rowe, subli­
nhando que “os dois governos são coope­
rantes e os investimentos norte­‑americanos
são muito bem acolhidos”.
O potencial do país, defendeu, é imen­
so. Agora, acrescentou, “é preciso que haja
investidores entusiasmados”: “Moçambique
tem muitas oportunidades para oferecer
ao nível dos recursos hídricos, de carvão
e gás natural, precisa de investimento em
Da esquerda para a direita: Leslie Rowe, embaixadora dos EUA em Moçambique, Marianne M. Myles,
infra­‑estruturas e tem muito potencial
embaixadora dos EUA em Cabo Verde, António Neto da Silva, presidente da Associação Amizade Portugal/
turístico por desenvolver”, disse.
EUA, Allan Katz, embaixador dos EUA em Portugal, Dan Mozena, embaixador dos EUA em Angola.
Na perspectiva da embaixadora, Portugal
pode ter nesta parceria um papel determi­
nante porque “partilha a língua e o background
“Portugal mantém uma relação muito
“Angola está aberta aos negócios com
cultural do país, e esta percepção é essencial
próxima com a África lusófona – Angola, os Estados Unidos, que já são o maior para que os moçambicanos sejam envolvi­
Moçambique e Cabo Verde – através de investidor estrangeiro no país. As relações
dos nos projectos de investimento”.
uma língua comum, de ligações aéreas entre os dois países atravessam a sua
Rowe deixou ainda dois pedidos aos
directas, da partilha de uma mesma mol­
melhor fase. E com a ajuda de Portugal, investidores: “Dizer que é uma oportuni­
dura legislativa e legal e de fortes laços as empresas norte­‑americanas terão muito dade investir em Moçambique é também
comerciais. É também um intérprete da
mais portas abertas”, argumentou.
dizer que é importante que as empresas
cultura africana”, afirmou.
tenham em mente que para além
O embaixador sublinhou ainda que “à
de criarem postos de trabalho no
medida que estas economias continuam
país – sobretudo nos sectores das
Moçambique
tem
muitas
a crescer – e sempre acima da média do
classes média e baixa –, devem
oportunidades para oferecer
crescimento da economia mundial – acon­
olhar para o desenvolvimento da
tece o mesmo com a procura de bens e ao nível dos recursos hídricos,
comunidade e perspectivar formas
serviços de qualidade nos diversos secto­
de transferir para os nativos conhe­
res, desde as infra­‑estruturas, passando de carvão e gás natural.
cimentos e posteriormente com­
pelos equipamentos de energia, tecnologia
petências”, afirmou.
Dan Mozena, Embaixador dos Estados Unidos em Angola
médica, até aos serviços jurídicos”.
Marianne Myles, embaixadora dos
Katz olhou para os três países em questão:
Estados Unidos em Cabo Verde,
“Angola absorve hoje uma quantidade
Mozena lembrou ainda que “em Angola destacou os laços familiares entre os dois
imensa de produtos dos EUA, tira elevados
há oportunidades de investimento para países e os bons resultados que a coopera­
dividendos da exploração petrolífera e tem
além do petróleo” e que “o país tem agora
ção entre os dois países tem tido no que
uma crescente necessidade de investimen­ dinheiro, paz, estabilidade e muitas neces­
respeita à defesa de águas atlânticas e ao
tos na área da construção de habitação e
sidades”: “É preciso construir habitação, combate ao crime e ao tráfico de droga.
de estradas; Moçambique, um país pobre estradas, investir na transmissão e distri­
“Cabo Verde é um país muito pequeno
mas onde se têm verificado um crescimen­ buição de energia e na oferta de serviços mas tem uma posição geoestratégica de
to e um desenvolvimento significativos, tem
financeiros, não existe nenhum banco grande relevo para a segurança, quer
muito por explorar; Cabo Verde tem uma norte­‑americano no país”, afirmou.
de americanos quer de europeus.
democracia bem consolidada e uma posição
“É urgente que se olhe para Angola. O A questão­‑chave aqui é location, location, loca­
geoestratégica de grande relevância”.
inglês está a ser ensinado nas escolas – e
tion. Cabo Verde está a três horas do Brasil,
isso é a chave –, a reforma fiscal estará a três horas e meia de Lisboa e a seis horas
Angola, Moçambique,
concluída no final de 2010 e em breve a e meia dos Estados Unidos. E é o único
Cabo Verde e os EUA
Delta Airlines vai estabelecer ligações aére­
país africano a voar directamente para os
Dan Mozena, embaixador dos Estados as directas entre as duas capitais”, acres­
EUA”, argumentou.
Unidos em Angola, foi directo na interven­ centou o diplomata.
A opor­‑se à falta de recursos naturais, con­
ção que dirigiu aos empresários na sala:
Embora reconhecendo que a corrupção siderou a diplomata, está “a boa governação
“Alguém vai fazer dinheiro em Angola. e as fragilidades do país no respeito pelos – transparência e baixa corrupção – e o capi­
Talvez pudesse ser a vossa empresa, talvez direitos humanos são desafios considerá­ tal humano: a morabeza está nas pessoas e
deva ser”, disse.
veis, o embaixador não tem dúvidas de estende­‑se à economia”, acrescentou.
‘
’
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
17
POLÍTICA
Dexter Filkins
A guerra na primeira fila
Já passaram doze anos desde que o jornalista Dexter Filkins testemunhou, pela primeira vez,
a brutalidade dos mujahidines em solo afegão. Desde essa altura, os acontecimentos
do 11 de Setembro abriram caminho às guerras no Iraque e no Afeganistão.
Dexter assistiu a tudo: como correspondente de guerra, em ambos os países, para o jornal
norte­‑americano The New York Times, assistiu à guerra a partir da primeira fila.
Com ele trouxe histórias para contar: o seu último livro, Guerra sem Fim,
foi agora publicado em Portugal.
Rui Ochôa
Por Marco Leitão Silva
Dexter Filkins: “Queria apenas transmitir a experiência de alguém que está dentro da guerra”.
18
[Paralelo] No livro Guerra sem Fim, não apon‑
ta responsabilidades pelo que se passou no Iraque
e no Afeganistão. Qual foi então o seu objectivo
quando o escreveu?
[Dexter Filkins] O meu objectivo não era, de
todo, apontar responsabilidades. Nos
Estados Unidos, o assunto da guerra tornou­
‑se tão controverso, com tantas discussões
internas, que a verdadeira guerra, aquilo
que nela se sente, a forma como se mani­
festa, de certa forma perdeu­‑se. Portanto,
eu queria apenas transmitir a experiência
de alguém que está dentro da guerra.
[P] Recorda a batalha de Fallujah de forma apro‑
fundada no seu livro. Teve especial importância
para si?
[DF] Sim, em termos pessoais. Fui respon­
sável pela morte de um soldado americano
e foi horrível. Houve um combate rua a
rua, casa a casa. Estava acompanhado por
150 soldados e, depois de oito dias de
combate, um quarto deles estava morto ou
ferido. Foi um combate muito sangrento,
mas parecia já ter terminado. O fotógrafo
com quem estava queria voltar para trás e
tirar uma foto a um insurgente morto no
topo de um minarete de uma mesquita.
No último segundo, um jovem soldado
norte­‑americano pôs­‑se à nossa frente e
disse: “Eu vou em primeiro lugar. Venham
atrás de mim.” Subimos as escadas e lá
estava o insurgente morto no topo do
minarete. Mas também lá estava um outro
insurgente. Vivo. Baleou e matou o jovem
soldado. Estávamos mesmo atrás dele.
[P] Refere­‑se com frequência aos jovens soldados
aos quais se juntou em diferentes ocasiões. Como
se sentiu ao depender deles no terreno?
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
Rui Ochôa
POLÍTICA
para praticamente todos os
que lá têm estado. Creio
que vai levar ainda muito
O problema no Afeganistão
tempo até as pessoas come­
não tem tanto que ver com os talibãs, çarem a esquecer isso.
Quando lá estive da última
mas sim com a falta de qualquer tipo
vez, fui até Sadr City, em
de Estado afegão.
Bagdade. Já era noite, está­
vamos no meio da rua e eu
perguntei ao meu intérpre­
te: “O que me teria acon­
[DF] Ver que a política externa dos Estados tecido se vocês não estivessem aqui e eu
Unidos é aplicada por rapazes com 21 anos estivesse por minha conta e risco?”. Eles
de idade com espingardas nas mãos, muitos
responderam: “Estarias morto em 20 minu­
deles vindos de pequenas aldeias, é muito tos” (risos).
estranho. É­‑lhes permitido matar pessoas, [P] Antes de tudo isso, esteve no Afeganistão em
mas são basicamente miúdos. Eu tenho a 1998. Podia imaginar, na altura, que os talibãs
idade de um coronel. E quando um grupo
seriam capazes de organizar os ataques do 11 de
de jornalistas aparece para se juntar às tro­
Setembro?
pas, a principal preocupação dos soldados
[DF] Foi um tempo muito estranho, quan­
é a possibilidade de nós os atrasarmos, do os talibãs estavam no poder no
podendo ser mortos por causa disso.
Afeganistão. Todos os jornalistas que lá esta­
[P] Passou boa parte da última década no Iraque. vam olhavam uns para os outros e diziam:
É plausível afirmar que o país se está a desenvol‑ “Meu Deus, o que está a acontecer aqui?”.
ver de uma forma positiva?
Eu liguei para a minha redacção nos Estados
[DF] Voltei ao Iraque em 2008 e as condições Unidos e disse: “Tenho um mau pressen­
no terreno eram dramaticamente melhores. timento em relação a isto… Algo mau vai
Se tiver em conta os anos realmente maus acontecer”. Ainda assim, nunca pensaria
no Iraque (2005–2006), nessa altura, é que a Al­‑Qaeda fosse atacar os Estados
como se fosse o fim do mundo. Toda a socie­ Unidos. Pensava que seria algo diferente:
dade se estava a desintegrar, as pessoas talvez a Al­‑Qaeda ocupasse o Governo, no
matavam­‑se umas às outras e havia um Paquistão, tendo assim acesso às suas armas
autêntico banho de sangue. Pensava que o
nucleares (o que eu continuo a achar que
país estava acabado. Mas recuperou dessa é um receio muito credível).
situação, ainda que o statu quo esteja ainda [P] Depois de uma década de guerra no Afeganistão,
muito frágil. Se isso justifica a invasão e os
quais são as principais diferenças que tem sentido
custos humanos… É outra questão.
no terreno?
[P] Depois de todos estes anos, com a retirada em [DF] O Afeganistão tem estado em guerra
curso, continua a haver um sentimento antiame‑ nos últimos trinta e um anos. É um pesa­
ricano acentuado entre os iraquianos?
delo ser­‑se afegão, mas o país é lindo. Mas,
[DF] Sim, creio que sim. Foi um período
respondendo à sua pergunta: creio que não
extraordinariamente difícil para o país e
é diferente o suficiente. Os norte­‑americanos
‘
’
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
estiveram por lá nos últimos nove anos e
continuam a dizer: “Talvez para o ano as
coisas resultem”, mas estamos a ficar sem
tempo. Gastaram muito dinheiro, treinaram
soldados, mas não funcionou. O problema
no Afeganistão não tem tanto que ver com
os talibãs, mas sim com a falta de qualquer
tipo de Estado afegão.
[P] É razoável apontar uma retirada das tropas da
coligação já no próximo ano?
[DF] Se olharmos para o Iraque, ainda que
seja um país muito debilitado, é na verda­
de um país rico, com uma população
maioritariamente alfabetizada. A sua classe
média é urbanizada, sofisticada e compre­
endem tudo. Não há nada disso no
Afeganistão. É um Estado analfabeto, pobre
e falido. Ainda continuam a tentar construir
alguma coisa.
‘
Fui responsável pela morte
de um soldado americano
e foi horrível.
’
[P] Este livro vem ajudar os leitores ocidentais a
perceber que as guerras no Médio Oriente têm
importância para as suas próprias vidas?
[DF] Espero que sim. É difícil explicar às
pessoas, até mesmo nos Estados Unidos,
que estes assuntos são importantes. Mas é
difícil ignorá­‑los ­− e não se pode pôr a
cabeça na areia e fingir que o resto do
mundo não está lá. Mas creio que o livro
é apenas um apelo à Humanidade comum.
Estas são pessoas reais, quer sejam afegãs,
iraquianos ou o que quer que seja. Querem
as mesmas coisas que nós queremos, e têm
as mesmas esperanças, sonhos e medos que
nós temos.
19
POLÍTICA
Guerra sem Fim, um livro forte
Por José Alberto Loureiro dos Santos*
O livro Guerra sem Fim é quase um murro
no estômago. Relata aquilo que se passou
em dois dos acontecimentos com que, pelas
notícias, convivemos há muitos anos – as
guerras do Afeganistão e do Iraque.
A percepção que (longe e fora da confu­
são) fazemos destas guerras, dá­‑nos a ideia
de que são uma coisa limpa, capaz de ser
desenhada em ecrãs e em mapas, com
vários eixos de progressão, atacando por
ali e defendendo por acolá.
Neste livro, o autor diz­‑nos que não foi
assim e não é assim. Há uma coisa dife­
rente que, à distância, normalmente nos
escapa. É isso que nos mostra –­ a face pior
da guerra.
Concluímos que, pelas notícias, apenas
temos conhecimento dos gran­
des actores, mas quase não
ouvimos falar dos soldados e
capitães a combater. Ouvimos
falar de Chalabi, de Maliki e
outros figurantes. Mas há
milhares de outros protagonis­
tas que também contam e
sofrem ­
– a real dimensão
humana da guerra.
Vemos Chalabi, rodeado de
segurança e pronto para conven­
cer os iraquianos de que é o
homem indispensável, como
convenceu a CIA e os neocon­
servadores norte­‑americanos de
que os EUA seriam aclamados
como salvadores em Bagdade. E
os horrores a que o autor assis­
tiu no estádio de futebol de
Cabul, com os carrascos talibã a
cortarem a mão de um cartei­
rista, uma das muitas cenas de
um espectáculo que um dos
participantes diz ter o mesmo
efeito que a televisão tem nos
países ocidentais – entreter.
Com muitas crianças – os
órfãos, multidões de órfãos dos
muitos pais que a guerra per­
manente matou – na plateia,
assistindo ao assassinato de um
assassino, ouvindo um altifalan­
te a repetir com insistência –
“Isto é a sharia; é legítima a
vingança dos que a aplicam”.
Os episódios são muitos e
20
todos impressionantes. Mostrando sempre
Misturados com elas, os terroristas aprovei­
os pontos de vista das pessoas, especialmen­ tavam para assaltarem as barragens militares
te daquelas que não estão no comando e montadas nas estradas pelos norte­
apenas executam ordens ou são envolvidas, ‑americanos. Uma carrinha com uma famí­
independentemente da sua vontade.
lia numerosa de oito ou dez pessoas
Um episódio cho­
cante retrata as con­
sequências trágicas
Um livro que nos mostra aquilo que
da barreira da lín­
os políticos não querem que se saiba.
gua. Anos depois da
invasão, quando a
guerra civil sectária
devastava Bagdade, as famílias fugiam em
aproxima­‑se de uma destas barragens. Os
pânico da capital, com medo de morrerem marines que a guarneciam mandam­‑na parar.
em qualquer dos frequentes atentados ter­ Em inglês, língua que o motorista e os pas­
roristas que dizimavam, por vezes, mais de
sageiros desconhecem. A carrinha continua.
uma centena de pessoas por ataque. “Stop! Stop!” grita um marine. A carrinha
avança. Várias rajadas de metralha­
dora. Dos numerosos irmãos, só um
ou dois ficaram vivos. Consumada
a tragédia, quando os soldados se
aperceberam do seu terrível engano,
um deles, talvez um miúdo como
o da fotografia que ilustra a capa do
livro, não resistiu à cena e rebentou
em choro convulsivo.
Há muitos episódios tão chocan­
tes como este. Fortes, que mostram
a barbárie e o sofrimento. Todos
narrados de forma surpreendente­
mente talentosa, como se estivés­
semos a vê­‑los, mesmo como se
estivéssemos a vivê­‑los.
Encontramo­‑nos perante um
livro verdadeiramente excepcional
que nos mostra aquilo que nor­
malmente não temos a possibili­
dade de ver e que os políticos não
querem que se saiba.
O autor revela talento e inspira­
ção. Também coragem. Coragem
de quem corre os riscos de suces­
sivos combates, sem nunca usar
uma arma, apenas com a finalida­
de de desempenhar com profis­
sionalismo os seus deveres de
jornalista. Como militar, fiquei
sobremaneira impressionado. De
tal modo que, se ele fosse portu­
guês e eu tivesse autoridade para
o fazer, não deixaria de o conde­
corar com a cruz de guerra, por
feitos em combate.
‘
’
* General (R)
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
POLÍTICA
A hora do chá
É a grande novidade da política americana. O Tea Party começou por ser olhado
como um pequeno grupo de fanáticos que se recusava a aceitar a eleição
do Presidente Barack Obama.
EPA/JIM LO SCALZO
Por Vítor Gonçalves*
Main Street (símbolo dos pequenos negó­ considera que a fiscalidade e a economia
cios e da classe média) que vai florescer são a cola que mantém o grupo unido.
o Tea Party.
O Tea Party é uma “chávena” onde cabem
Tal como as donas de casa da Pensilvânia, interesses e preocupações muito diferentes.
há gente comum que toma a iniciativa, Há um sector que defende políticas que
contacta os vizinhos, os amigos formando conduzam a orçamentos limitados, impos­
núcleos que, aos poucos, assumem uma
tos baixos e défices controlados. Há pesso­
dimensão nacional.
as normalmente identificadas com a
O movimento não tem uma estrutura direita evangélica que têm posições con­
formal ou uma liderança mas a espontanei­ servadoras em matérias sociais. Há os liber­
dade inicial vai diluindo­‑se à medida que
tários que propõem uma redução
estes grupos crescem e se multiplicam. significativa do papel do estado federal e a
Recebe o apoio de personalidades da polí­ saída dos Estados Unidos de organizações
tica, como a ex­‑candidata à vice­‑presidência, internacionais, e muitos outros.
Sarah Palin, e dos
media, como Glenn
Beck ou Sean Hannity,
O Tea Party veio introduzir uma energia
dois dos rostos mais
inesperada ao debate político.
carismáticos da Fox
News, o canal de tele­
No entanto, há o receio de que, puxando
visão que vai ter um
os republicanos para a direita, possa deixar
papel crucial na visi­
bilidade do Tea Party.
espaço aberto para o Partido Democrata
Entretanto, nos bas­
conquistar o centro político.
tidores, poderosos
grupos conservadores
passam a apoiar o movimento fornecendo
Finalmente, há as franjas radicais. Não há
recursos financeiros e aconselhamento. manifestações do Tea Party em que não
O American for Prosperity, do multimilio­
surjam cartazes em que Barack Obama é
nário David Koch, avançou com 30 milhões
comparado a Hitler, Lenine e Osama Bin
de dólares para as campanhas contra a Laden. Há elementos racistas e outros que
reforma da saúde. O FreedomWorks, lide­ acreditam em teorias conspirativas − a mais
rado por um antigo líder republicano da popular é a que postula que Barack Obama
House of Representatives, gastou 10 é secretamente muçulmano e está ao ser­
milhões de dólares no apoio aos candida­
viço de forças ocultas que pretendem con­
tos do Tea Party.
trolar e transformar os Estados Unidos.
O Tea Party veio introduzir uma energia
inesperada ao debate político. No entanto,
A PLATAFORMA POLÍTICA
há o receio de que, puxando os republica­
Há uma palavra que caracteriza o Tea Party: nos para a direita, possa deixar espaço
“menos”. O Tea Party quer “menos” gover­ aberto para o Partido Democrata conquis­
no, “menos” impostos e “menos” défice.
tar o centro político.
Existe um debate interno sobre se o Tea
O futuro dirá de que modo irão os eleitos
Party deve ficar apenas pelos assuntos eco­ do Tea Party exercer o poder. Até que ponto
nómicos ou se deve assumir posições públi­ poderá transformar­‑se num terceiro partido.
cas comuns noutro tipo de matérias. Amy
E finalmente, que papel vai ter na escolha
Kremer, o rosto do Tea Party Express, um
do candidato presidencial em 2012.
dos grupos mais fortes do movimento, * Correspondente da RTP em Washington
‘
A antiga governadora do Alasca e dinamizadora
do Tea Party acenando depois de discursar
nos degraus do Memorial a Lincoln no National
Mall, num comício do Tea Party chamado
“Restoring Honor”.
Mas as primárias para as eleições de
Novembro revelaram que se trata de um
movimento mais vasto com peso suficien­
te para decidir os candidatos do Partido
Republicano.
Em Abril de 2009, em Bucks County, no
estado da Pensilvânia, duas donas de casa
organizaram um dos primeiros grupos Tea
Party do país. Estas mulheres não aceitavam
que a Administração Obama se preparasse
para gastar 814 mil milhões de dólares,
provenientes do bolso dos contribuintes, no
resgate da banca, companhias financeiras e
grandes empresas de automóveis que, nessa
altura, se encontravam à beira do colapso.
Desse encontro, na Pensilvânia, surgiu a ideia
de criar um movimento de oposição ao
rumo que o país estava a tomar.
É a partir do contraste entre aquilo que
é percebido como a opção preferencial da
Administração por Wall Street (coração dos
grandes interesses financeiros) em vez de
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
’
21
POLÍTICA
Obama: perder as eleições,
ganhar a História?
Em quase dois anos, Obama tem vindo a cumprir as promessas de campanha
e conseguiu vitórias legislativas consideradas extraordinárias.
Será que o resultado eleitoral de 2 de Novembro seria diferente
se Obama tivesse agido de outra forma?
EPA/MIKE THEILER
Por Kathleen Gomes*
O Presidente norte­‑americano discursa enquanto o Vice­‑Presidente escuta em “Moving America Forward”,
num comício num parque em Germantown, perto de Filadélfia, Pensilvânia.
22
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
POLÍTICA
A 20 de Setembro, a estação NBC organi­
zou um frente­‑a­‑frente entre Barack
Obama e cidadãos americanos em
Washington DC.
Obama riu­‑se, como uma reacção ner­
vosa.
Ela também estava nervosa. “Julguei que
tinha votado num homem que disse
que ia mudar as coisas de
forma significativa para a clas­
se média. Eu sou uma dessas
Era difícil imaginar que Obama
pessoas. E estou à espera, sir.
tivesse dificuldades de comunicação Não sinto nada ainda.”
‘
com os seus eleitores.
’
1. O Presidente dos Estados Unidos esta­
va visivelmente mais grisalho. Mas a sua
aura parecia intacta debaixo de uma bar­
ragem de aplausos, indicando que as notí­
cias da sua morte (política) tinham sido
exageradas.
Subitamente no Verão passado, tornou­‑se
cool ser anti­‑Obama. Ele foi acusado de dar
dinheiro a Wall Street e não fazer nada para
estancar o desemprego e ajudar a classe
média. Foi criticado pela forma como lidou
com o derrame de petróleo no golfo do
México – que continuava por vedar. As son­
dagens mostraram que um em cada cinco
americanos acredita que Obama é secreta­
mente muçulmano. Uma América zangada,
a do Tea Party, marchou até Washington
para pedir a cabeça do Presidente. Como
podia ele tirar férias, breves ou não? (O
que explica as imagens de Obama a traba­
lhar durante as férias.) Obama podia esque­
cer a reeleição em 2012.
Mas a verdade é que a rua ainda não
tinha falado. Pelo menos, até 20 de
Setembro. O jornalista que moderou o
encontro, filmado em directo, quis ouvir
a versão do Presidente. Porque é que o
grande comunicador da campanha de
2008 estava a ter sérias dificuldades em
2010? “Eu estou a pensar na próxima
geração e há muita gente por aí que está
a pensar na próxima eleição. Se eu esti­
vesse a tomar decisões pensando em
Novembro, não teria feito algumas das
coisas que fiz porque sabia que não eram
populares.”
Aplausos. Talvez a assembleia de cidadãos
tivesse sido seleccionada de forma a não
incomodar Obama. O Presidente que está
mais interessado em ganhar a História do
que ganhar eleições concluiu: “Mas eram
as coisas certas a fazer.”
Primeira pergunta do público: “Boa­
‑tarde, Presidente Obama. É uma grande
honra estar aqui.” A mulher, uma afro­
‑americana de casaco branco, apresentou­
‑se: directora financeira de uma
organização de veteranos, mãe de família,
ex­‑militar. “Muito francamente, estou
exausta. Estou exausta de o defender e de
defender a sua administração.”
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
extraordinárias, como a aprovação do
pacote de estímulo à economia e a refor­
ma do sistema de saúde. O paradoxo é
que tudo isso tem sido recebido pelo
público americano com um “não, obri­
gado”. Olhando para a sua campanha
eleitoral em 2008, era difícil imaginar que
Obama tivesse dificuldades de comunica­
ção com os seus eleitores.
Mas é isso que parece estar a acontecer
em 2010: ele pode estar convicto de que
está no bom caminho, mas não tem con­
seguido explicar ao resto do país porquê.
A resposta do grande orador à mulher que
disse estar “desiludida” e “exausta” foi
balbuciante. Em vez de mostrar confiança
na economia e de explicar porque é que
o país estava na direcção certa, Obama
perdeu­‑se nos pormenores.
Será que o resultado eleitoral de 2 de
Novembro seria diferente se Obama tives­
se agido de outra forma? Nem todos os
analistas políticos estão convencidos disso.
No dia seguinte às eleições começará a
campanha (não­‑oficial) para 2012. Se
umas eleições presidenciais podem prever
o resultado de umas eleições intercalares,
será que as eleições intercalares podem
prever o resultado das próximas eleições
presidenciais? Reagan e Clinton viram os
seus partidos sofrer pesadas derrotas nas
eleições intercalares (em 1982 e 1994,
respectivamente) durante os primeiros
mandatos na Casa Branca, o que não impe­
diu a sua reeleição.
2. Ninguém estava a pensar nisso
em 2008, mas a vitória de Barack
Obama foi uma má notícia para os demo­
cratas – tradicionalmente, quando um novo
presidente entra na Casa Branca, o seu par­
tido costuma sofrer perdas nas eleições
seguintes. É um traço da cultura política
americana, um momento de check and balance.
Os americanos não gostam de concentrar
todo o poder numa só entidade.
Um perito em sondagens que trabalhou
para os republicanos quando Reagan era
presidente, nos anos 1980, nunca mais se
esqueceu do que lhe disse uma mulher ao
telefone: oh, ela adorava Reagan. “Nesse
caso”, perguntou o perito em sondagens,
“vai ajudá­‑lo a obter uma maioria republi­
cana no Congresso?” A mulher respondeu:
“Não quero dar­‑lhe tanto poder assim.”
Os democratas ganharam maiorias tão
confortáveis no Congresso em 2006 e 2008
que é inevitável serem quem mais tem a
perder nas eleições intercalares de 2 de
Novembro. Que são eleições locais – cada
estado escolhe os seus congressistas – mas,
no fundo, funcionam
como um referendo
sobre a administra­
Nos dois próximos anos, tudo vai depender
ção em funções.
É por isso que
de três factores decisivos: economia,
pouco importa que
economia, economia.
a popularidade dos
republicanos nas
sondagens tenha
atingido um dos
valores mais baixos de todos os tempos.
Nos dois próximos anos, tudo vai depen­
A boa notícia é que não são eles que estão der de três factores decisivos: economia,
em causa nestas eleições.
economia, economia. Thomas Mann, do
E, para o caso de estarem a pensar: onde think tank Brookings, em Washington, não
estão os 15 a 20 milhões de novos eleitores acredita que as eleições de 2 de Novembro
que Obama levou às urnas em 2008? O sejam um mau presságio para a reeleição
eleitor das presidenciais e o eleitor das inter­ de Obama em 2012. “Se o crescimento [da
calares é diferente, nota Michael P. McDonald, economia] atingir os três por cento ou mais
professor de Ciência Política da George e começarmos a ter uma subida real do
Mason University. “A ironia nestas eleições
emprego, se o desemprego baixar para oito
é que as pessoas que foram mais afectadas por cento [a média actual do país é 9,5
pela crise económica não são as pessoas que
por cento], é bastante provável que Obama
vão aparecer para votar. Os desempregados
seja reeleito. Se entrarmos num período de
não vão aparecer para votar.”
estagnação terrível, nem Franklin Roosevelt
conseguia ser reeleito.” E isso é o mais
3. Em quase dois anos, Obama tem vindo
longe que um presidente consegue ir em
a cumprir as promessas de campanha e popularidade.
conseguiu vitórias legislativas consideradas * Correspondente do jornal Público em Washington DC
‘
’
23
POLÍTICA
Transatlantic Trends 2010
NATO é uma aliança estável
O Transatlantic Trends Survey é um dos inquéritos de opinião pública
mais discutidos pelas elites da Europa e dos EUA. Até porque não há muitos,
disse Pedro Magalhães, politólogo (ICS­– UL), um dos especialistas convidados para comentar
os resultados da sondagem de 2010, juntamente com Carlos Gaspar (IPRI­– UNL),
Bruno Cardoso Reis (IPRI­– UNL) e as jornalistas Luísa Meireles (Expresso)
e Teresa de Sousa (Público).
Por Carla Baptista
24
atitudes reais partilhadas pela generalida­
de das opiniões públicas de um ou outro
lado do Atlântico”.
As diferenças também são estáveis: os
resultados do Transatlantic Trends corrobo­
ram a ideia de que os americanos são mais
“falcões” e os europeus mais “pombas”,
isto é, 77 por cento de americanos acredi­
tam que o poder militar é mais importan­
te que o poder económico e que a guerra
Rachel Cooke, Public Affairs Section, U.S. Embassy Kabul
As percepções das pessoas sobre assuntos
de segurança internacional e política exter­
na são desvalorizadas pelos decisores, que
as consideram voláteis, moldadas pelas
posições das elites e assentes numa base
cognitiva frágil. Mas o Transatlantic Trends
Survey, que se realiza já há nove anos nos
EUA, na Turquia e em 11 países da UE
(incluindo Portugal desde 2003, graças ao
apoio da FLAD) demonstra que “os temas
de política internacional têm mais impor­
tância para os eleitores do que se julgava
e as atitudes em relação à política externa
são mais estáveis do que se presumia”,
segundo Pedro Magalhães.
A sondagem, quando olhada em continui­
dade, identifica padrões nas opiniões públi­
cas europeias e americanas, com as ressalvas
de pensarmos que não existe uma opinião
pública europeia mas sim realidades nacio­
nais distintas, e que ainda passou pouco
tempo para podermos enraizar estas dife­
renças. Mas há traços comuns nestes nove
anos: os americanos e os europeus são bons
amigos, encorajam lideranças mútuas fortes,
apoiam a NATO (embora menos do que em
2009) e concordam inclusivamente que a
Aliança Atlântica possa actuar fora da Europa
para defender os membros de ataques à sua
segurança (opinião de 77 por cento de ame­
ricanos e 62 por cento de europeus).
Pedro Magalhães conclui que o “antia­
mericanismo” europeu e o “isolacionis­
mo” americano “estão mais perto de
serem invenções de comentadores do que
Acção diplomática dos Estados Unidos na provincia de Badghis no Afeganistão. 41 por cento dos
americanos (mais 11 por cento que no ano passado) defendem a redução e retirada de tropas deste país.
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
POLÍTICA
é por vezes necessária para obter justiça no
sistema internacional. Apenas 27 por cento
de europeus partilham esta crença.
Na mesma linha, e embora a “fadiga de
guerra” também atinja os Estados Unidos,
este país continua a apoiar maioritariamen­
te (52 por cento) o aumento ou manuten­
ção do número de tropas no Afeganistão
(embora 41 por cento tenham preferido a
redução e retirada de tropas, mais 11 por
cento do que em 2009), enquanto esta posi­
ção é minoritária na Europa (uma maioria
de 64 por cento prefere a retirada).
O “pacifismo” europeu, em crescimento
até mesmo no Reino Unido, tradicional­
mente o mais “bélico” aliado na UE dos
EUA, levou Teresa de Sousa a assinalar a
diminuição “do que restava da capacidade
militar da Europa”.
O Irão é outro pólo de divergência entre
os dois lados do Atlântico. Embora todos
os países (com excepção da Turquia) este­
jam “muito preocupados” com a possibi­
lidade de o Irão adquirir armas nucleares,
preconizam soluções diversas: os ameri­
canos preferem as sanções económicas (40
por cento), apoiar a oposição (25 por
cento) e, em último recurso, “usar a
força”; os europeus elegem os incentivos
económicos (35 por cento), desvalorizam
o apoio à oposição (apenas 13 por cento)
e recusam o recurso à força.
No cenário hipotético das medidas polí­
ticas e económicas se esgotarem e ser
necessário escolher entre aceitar um Irão
com poder nuclear ou recorrer à acção
militar, 64 por cento dos americanos e 43
por cento de europeus admitem a acção
militar. Apenas dois países são maioritaria­
mente favoráveis à opção de aceitar um
Irão nuclear: o Reino Unido (57 por cento)
e a Turquia (53 por cento).
Bruno Cardoso Reis sublinhou a dificul­
dade em implementar “boas soluções para
o Irão”: a guerra é indesejável, as sanções
não funcionam “e certamente não resulta­
rão as medidas de incentivo económico,
pelo menos com o actual regime liderado
pelo Presidente Mahmoud Ahmadinejad”.
Os resultados do inquérito de 2010
acentuam o distanciamento entre a maio­
ria dos valores e opiniões partilhados pela
Turquia, UE e EUA. Apenas 38 por cento
dos turcos consideram positiva a adesão
à UE (esse valor era de 74 por cento em
2004), mais 10 por cento do que em
2009 acham que a Turquia deve cooperar
estreitamente com os países do Médio
Oriente em questões internacionais (20
por cento) e menos nove por cento con­
sideram a cooperação com a UE prioritá­
ria (13 por cento). As relações com os
EUA são escolhidas apenas por seis por
cento e 34 por cento opinam que a Turquia
‘
O “anti­americanismo” europeu e o “isolacionismo”
americano estão mais perto de serem invenções
de comentadores.
’
100
A adesão à UE foi/
seria boa para a economia
90
A utilização do euro tem sido/
seria boa para a economia
80
75
75
Percentagem
70
69
69
68
60
64
67
63
62
61
54
52
50
63
45
40
47
44
40
45
40
38
33
32
30
28
20
(€) Países da Zona Euro.
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Po
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0
ria
14
10
Q29, 30
‘
77 por cento de americanos
acreditam que
o poder militar
é mais importante
que o poder económico.
’
deve agir por conta própria em assuntos
internacionais.
Considerando que a maioria dos inquiridos
em todos os países considera que a Turquia
“não tem suficientes valores em comum para
fazer parte do Ocidente”, Carlos Gaspar
disse, meio a sério, meio a brincar, que
“estamos perante uma construção recíproca
de identidades: nós dizemos aos turcos que
não são europeus e eles respondem que não
querem ser europeus”.
Portugal em crise apoia
Obama, a NATO
e o reforço da UE
Portugal é o país europeu com as mais
altas taxas de aprovação da actuação do
Presidente Obama no plano internacional,
seja relativamente à política do Afeganistão,
na gestão das relações com a Rússia ou
das tensões no Médio Oriente.
A opinião pública portuguesa também é uma
das mais alinhadas com os Estados Unidos
em alguns temas de segurança, nomeada‑
mente o apoio ao reforço do papel da NATO,
a disponibilidade para aumentar ou manter
o nível de tropas no Afeganistão e para
recorrer à força no caso do Irão.
No plano económico, os resultados do
Transatlantic Trends sugerem que a crise
chegou tarde mas chegou feia a Portugal
(teremos de aguardar pelo inquérito de
2011 para vermos como se fecha este ciclo,
já que as respostas de 2010 antecedem
as medidas de austeridade accionadas
pelo Governo de José Sócrates). Os por‑
tugueses são dos respondentes mais direc‑
tamente afectados pela crise económica
(78 por cento), apenas abaixo da Roménia
e da Bulgária. Em 2009, 47 por cento (uma
das percentagens mais baixas da média
europeia) de portugueses respondiam da
mesma forma. Apesar da percepção nega‑
tiva sobre o euro, Portugal é dos países
onde mais cidadãos defendem que a res‑
posta à crise exige a construção de uma
União Europeia mais forte.
Adesão à União Europeia vs euro.
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
25
POLÍTICA
Perigosas aventuras
do novo super­‑herói americano
No princípio foi a incredulidade: se alguns sonhavam que era possível, outros deixavam
assomar o cinismo porque os EUA e o mundo ainda não estavam preparados para o novo
super­‑herói. Mas na eleição presidencial de Novembro de 2008, uma outra versão
da divisa de uma célebre banda desenhada poderá ter passado pela cabeça de muitos:
“É um político? É um Presidente? Não, é Barack Obama!”.
Uma conferência internacional organizada pela Fundação Res Publica
e pela Fundação Friedrich Ebert discutiu “o efeito Obama”.
Por ISabel Marques da Silva*
Na intervenção que fez sob o mote
“Salvemos o soldado Obama”, o ensaísta
Eduardo Lourenço classifica a eleição do
primeiro Presidente negro dos EUA como
um “milagre fantástico e uma grande sur­
presa, que grande parte da humanidade
recebeu como um momento de entusias­
mo, sobretudo na Europa”. O director da
revista Finisterra, publicação da Fundação Res
Publica, que organizou com a Fundação
Friedrich Ebert a conferência internacional
“O Efeito Obama e o Futuro da Democracia
Planetária”, em Maio passado, no Instituto
Alemão, em Lisboa, disse que se tratava de
um acontecimento comparável ao da elei­
ção de Nelson Mandela na África do Sul,
“mas não é exactamente a mesma coisa,
porque a África era percebida pela opinião
pública ocidental como um continente de
condição racial negra”.
A subida ao poder de Obama é, assim,
para Lourenço “um acontecimento da
História universal de tipo novo”, não fora
a pior crise mundial desde a Grande
Depressão (EUA, anos 30 do século XX)
ter desde logo toldado esse tempo que se
adivinhava luminoso. Recordando que o
maior pecado da civilização ocidental foi
a escravatura, o ensaísta considera que a
“legitimidade e dignidade que a popula­
ção negra sentiu não apagou séculos de
opressão” já que as actuais circunstâncias
geopolíticas e económicas fizeram com
que os imperativos práticos rapidamente
se sobrepusessem aos devaneios humanis­
tas e filosóficos.
26
“Ocidente de alcance mundial”
Tal como Lourenço, outros oradores real­
çaram o facto de Obama ter protagoniza­
do um momento seminal face às barreiras
políticas e ideológicas que se erguiam,
granjeando um estado de graça que a sua
condição algo “messiânica” fazia prever
mais longo do que o habitual. Mas a crise
económica e as guerras que os EUA travam
no Iraque e no Afeganistão constituem
uma frente difícil de trabalho para Obama,
que terá de gerir a dicotomia internacio­
nalismo/isolacionismo na política externa
da livemente por “Ocidente de alcance
mundial”, num trocadilho com o concei­
to “wold wide web” (rede de alcance
mundial proporcionada pelas novas tec­
nologias de comunicação de que a Internet
é paradigmática).
A resposta poderá ser uma “NATO
Global” em competição com a ONU por­
que “os EUA estão preocupados com as
ameaças dos Estados emergentes em falên­
cia e com organizações apátridas como a
Al­‑Qaeda e não com quezílias inter­
‑Estados”, considera Braml. O “soldado
‘
Do soldado, o messias, o super­‑herói
mostrou moderação ideológica e contenção da força
num novo século duramente marcado pela resposta
ao terrorismo do 11 de Setembro de 2001.
que divide os norte­‑americanos. “Obama
defende uma abordagem multilateralista,
mas nos EUA isso significa partilhar o
fardo. Contudo, os EUA consideram que
os instrumentos actuais (FMI, Banco
Mundial, NATO) estão ultrapassados e que
precisam de ser reformados”, defendeu
Josef Braml, do think tank Conselho Alemão
de Relações Externas (Berlim). Braml for­
matou a sua intervenção sobre a eleição
de Obama com base no conceito “the
world wide west”, que pode ser traduzi­
’
Obama”, como lhe chamou Lourenço,
poderá estar mais predisposto para con­
vencer os aliados da necessidade de uma
“soberania condicionada” em que a comu­
nidade internacional, numa “aliança glo­
bal de democracias” pode intervir nos
Estados que não “cumprem as suas fun­
ções soberanas”, na visão do analista do
Conselho Alemão de Relações Externas.
Braml deu como exemplo a acção da
NATO na Jugoslávia, nos anos 90, face à
hesitação da ONU no primeiro conflito
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
POLÍTICA
Nobel antes do tempo
Carlos Gaspar também reconhece uma
“mudança radical na visão do mundo
sobre os EUA” que ficou bem patente na
sua algo extraordinária
selecção para Prémio Nobel
da Paz, em 2009. O analis­
ta do Instituto Português de
Relações Internacionais
(Lisboa) crê, contudo, que
os norte­‑americanos não
deixarão de exigir que o
Presidente “garanta a hege­
monia e credibilidade
necessárias para manter a
ordem à escala internacio­
nal”. Gaspar aludiu a uma
redescoberta confiança nos
EUA pela Europa e pela
África, mas Obama herdou
fardos pesados da década
republicana: as guerras no
Iraque e Afeganistão no
contexto da acção terrorista
da Al­‑Qaeda e do jihadismo
talibã; o isolamento da
revolução iraniana para
controlar a nuclearização e
o fundamentalismo islâmi­
co no golfo Pérsico e Médio
Oriente; e lidar com o “dra­
gão” político e económico
que é a China.
O professor de Jornalismo
e administrador da Fundação
Luso­‑Americana, Mário
Mesquita, explica a “entrega
desconcertante do Prémio
Nobel” a Obama com a
“descompressão” criada
pelos apelos deste ao bipar­
tidarismo, na frente domés­
tica, e pela apologia do
multilateralismo, na frente
externa. O soldado, o mes­
sias, o super­‑herói mostrou
moderação ideológica e
contenção da força num
novo século duramente
marcado pela resposta ao
terrorismo do 11 de
Setembro de 2001. “Mas a
questão das guerras religio­
sas não esgota as problemá­
ticas geoestratégicas do
Barack Obama
nosso tempo pois há um
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
potencial de crescimento económico e
geopolítico da China, da Índia e do Brasil
enquanto novas potências”, advertiu Mário
Mesquita. “Vivemos numa época em que
o caos se impõe como o estado normal
das coisas”, e a eleição de Obama não
pode alterar “magicamente” esse “domí­
nio da instabilidade”, acrescentou. O “Tea
Party” dos republicanos (em que partici­
param democratas mais conservadores),
as cedências para aprovar a nova legislação
do serviço nacional de saúde ou a polé­
mica manutenção da prisão de Guantánamo
mostram uma “ambiguidade que não cola
com um mundo binário como os EUA o
gostam de ver”, refere Mesquita.
Um mundo perigoso, que não se reco­
menda nem para os heróis, mesmo que
tão inacreditáveis e necessários como o
super­‑homem ou Obama.
* Jornalista da SIC
EPA/ LISE ASERUD NORWAY OUT
aberto no seio da Europa pós­‑Guerra Fria.
No que ao futuro da democracia planetá­
ria diz respeito, os EUA não estão interes­
sados em organizações abrangentes que
albergam países totalitários, “como é o
caso da ONU”, disse.
e a mulher Michelle à chegada ao banquete em Oslo por ocasião da entrega do Nobel da Paz 2009.
27
POLÍTICA
Preocupação climática
já chegou aos militares
Por Michael Werz*
‘
Em 2010, o maior consumidor de energia do mundo
começou, pela primeira vez, a levar em conta as
alterações climáticas nas suas estratégias a longo
prazo. O Departamento de Defesa americano apre­
sentou ao Congresso o seu relatório Quadrennial Defense
Review, ou QDR, um documento de estratégia em que
o Pentágono descreve a sua visão das suas missões
e da sua estrutura de forças perante as ameaças pre­
vistas. Mais claramente do que jamais o fez, o rela­
tório deste ano identifica as alterações climáticas
como um factor de desestabilização, examinando a
forma como as operações militares devem responder
a catástrofes causadas pelo clima e a forma como as
alterações climáticas poderão afectar as operações
militares. Por último, o Pentágono avalia o custo do
seu enorme consumo de energia, não só em termos
de dólares mas também como desvantagem estraté­
gica – qualifica a eficiência energética como um
“multiplicador de força”. Existe uma boa razão para
isso: o abastecimento fiável de energia é extrema­
mente importante em missões militares, razão pela
qual as tropas protegem as rotas de abastecimento
de energia e os comboios de apoio são frequente­
mente alvo de ataques. Além disso, os custos dos
combustíveis representam aproximadamente um
terço do custo anual de manter um militar no ter­
reno, no Afeganistão.
O Pentágono identifica as alterações climáticas
como um factor de desestabilização.
’
A maior atenção dedicada pelo Pentágono à efici­
ência não é surpreendente dada a sua importância,
mas o relatório reconhece que as Forças Armadas
americanas têm participado progressivamente na
resposta a catástrofes, o que alarga o âmbito das
responsabilidades dos militares para além das ope­
rações tradicionais. Em 2006, o Center for Naval
Analysis convocou um conselho de oficiais que con­
cluiu que as alterações climáticas são “um multipli­
cador de ameaças”, contribuindo para um aumento
28
da instabilidade política em várias regiões. O novo
QDR leva estes argumentos um pouco mais longe,
reconhecendo a necessidade de se adoptar uma abor­
dagem abrangente em relação à segurança energé­
tica, à estabilidade climática e mesmo ao reforço de
governos debilitados em zonas particularmente vul­
neráveis aos efeitos das alterações climáticas.
Os autores do QDR mencionam também o “impac­
to geopolítico significativo” que as alterações climá­
ticas terão no mundo inteiro, “contribuindo para a
pobreza e a degradação ambiental e enfraquecendo
ainda mais governos já de si frágeis”. O reconheci­
mento deste facto constitui um passo importante no
sentido de se abordar os desafios complexos das
próximas décadas nos domínios da segurança e
humanitário. E prepara também o terreno para um
outro passo na direcção certa: a noção de que não
existe uma resposta militar para todas as ameaças à
segurança.
O relatório afirma claramente que “as alterações
climáticas contribuirão para a escassez de alimentos
e de água, aumentarão a propagação de doenças e
poderão incentivar ou exacerbar a migração em
massa”. Os climatologistas têm apresentado muitas
projecções que prevêem a intensificação das tem­
pestades, furacões mais devastadores e o agravamen­
to das secas e da escassez de água que irão afectar a
capacidade e a produção agrícolas no mundo intei­
ro, bem como o acesso aos alimentos e aos recursos
hídricos, pondo em risco a subsistência económica
de milhões de pessoas. Os peritos calculam que, até
2050, 200 milhões de pessoas poderão tornar­‑se
“migrantes climáticos” em casos extremos e que o
mundo inteiro, desde o Bangladesh à zona do Sahel
em África, será afectado.
Segundo um relatório recente do director dos
Serviços de Informações Nacionais dos Estados
Unidos, os impactos das alterações climáticas nas
Caraíbas e na América Central podem fomentar a
migração para o México e para os Estados Unidos,
e os movimentos migratórios crescentes no Sudeste
Asiático estão a “aumentar as fricções entre diversos
grupos sociais que já estão a sofrer as pressões dos
efeitos das alterações climáticas”. O referido relató­
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
POLÍTICA
social ou governamental e crises humani­
tárias. As alterações climáticas irão prova­
velmente aumentar a migração já
substancial de habitantes do Norte de África
para a Europa. A região tornar­‑se­‑á também
uma rota de transmigração para os habi­
tantes da África Subsariana que procurarem
fugir ao stress climático extremo.”
Um relatório recente do Potomac
Institute for Policy Studies conclui também
que o trânsito de migrantes através do
Magrebe – Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia
e Mauritânia – com destino a outros locais
contribui para a desestabilização das socie­
dades do Norte de África. Esta instabili­
UN Photo/Evan Schneider
rio considera que as perspectivas na região
são especialmente preocupantes:
“Os efeitos das alterações climáticas no
Norte de África irão provavelmente exacer­
bar os riscos que já estão a ameaçar os
recursos alimentares e hídricos da região,
bem como as suas economias, infra­
‑estruturas urbanas e sistemas sociopolíti­
cos. As cidades terão provavelmente de
enfrentar uma deterioração das condições
de vida, níveis elevados de desemprego e
tensões civis frequentes. O stress climático,
aliado a crises socioeconómicas e a respos­
tas ineficazes por parte dos governos, pode­
rá gerar situações localizadas de ruptura
A destruição do tsunami de 2004, no Sri Lanka. Na cidade de Galle foram encontrados 7275 cadáveres
durante a limpeza e remoção dos escombros.
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
dade, por sua vez, cria um ambiente
propício às operações do ramo regional
em rápido crescimento da Al­‑Qaeda, que
desenvolve operações na Argélia, Marrocos,
Tunísia, Líbia, Mauritânia, Mali, Chade e
Níger. “Desde o seu ponto mais baixo a
seguir aos ataques de 11 de Setembro, os
incidentes terroristas no Magrebe e no
Sahel atingiram um nível impressionante
– 204 incidentes em 2009, um novo nível
de intensidade. Esta escalada representa um
aumento de 558 por cento nas operações
terroristas, que mataram mais de 1500
pessoas e deixaram feridas outras 6000”,
escreve Yonah Alexander no relatório.
Mas o Magrebe não é o único local onde
a migração causada pelo menos em parte
por alterações ambientais se dá em regiões
caracterizadas pela volatilidade e instabili­
dade, onde movimentos substanciais de
pessoas podem dar origem a conflitos. Por
conseguinte, é essencial introduzir estes
efeitos mais subtis das alterações climáticas,
como a migração, na equação da seguran­
ça nacional e reconhecer a realidade de que
muitas das suas consequências só poderão
ser resolvidas através de abordagens inova­
doras, assentes numa estratégia de segu­
rança sustentável que conjugue a
segurança nacional, a segurança humana
e a segurança colectiva.
A análise do Pentágono sobre as alterações
climáticas contida no QDR representa um
primeiro passo significativo. A Administração
americana está actualmente a tentar con­
jugar os processos de análise existentes no
Pentágono, no Departamento de Estado, na
USAID e noutros organismos com vista a
desenvolver esforços abrangentes entre
organismos, sob uma liderança civil.
* Senior Fellow do Center for American Progress em Washington
DC e professor adjunto na School of Foreign Service da
Universidade de Georgetown.
29
Embaixador americano na NATO em entrevista antecipa
Novas alianças para combater
novas ameaças
Investigador de política externa na Brookings Institution em Washington,
até ao ano passado, Ivo H. Daalder foi nomeado embaixador americano na NATO
(North Atlantic Treaty Organization) pela Administração Obama.
Rui Ochôa
Por Sara Pina e Simão Martins
Ivo H. Daalder: “As parcerias e o reforço das alianças estão no centro da política de guerra de Obama”.
30
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
Rui Ochôa
Por ele passou parte da responsabilidade
da organização da Cimeira da NATO, em
conjunto com o novo embaixador ameri­
cano em Portugal, Allan J. Katz (também
em entrevista nesta edição da Paralelo).
Assim, por várias vezes, Daalder deixou o
seu gabinete em Bruxelas e trabalhou por
alguns dias em Lisboa. “Com esta luz, bem
podíamos pensar em mudar os escritórios
para aqui”, ironizou o embaixador termi­
nado o nosso encontro na Lapa, pouco
passava das oito horas da manhã.
‘
Para se estar seguro
em Madrid, Londres
ou Lisboa
tem que se combater
no Afeganistão.
’
[Paralelo] Escreveu pouco antes da eleição de
Obama que “o mundo precisa de um novo tipo de
liderança − em que seja claro como, quando e com
quem a América lidera”. Com quem é que a América
quer exercer liderança? Devemos esperar novas par‑
cerias com a deslocação de poder para outros con‑
tinentes e outros países?
[Ivo H. Daalder] Eis como o Presidente Obama
olha para o mundo: ele vê um mundo que
é muito mais complicado do que era, em
que a interconectividade e a globalização
permitem que alguém, em qualquer parte
do mundo, cause impacto quase imediata­
mente noutro local do globo, incluindo
nos Estados Unidos. E, nesse mundo, é
importante compreender que nenhum país,
nem sequer uma aliança, por si só, conse­
gue resolver todos os problemas. É neces­
sário trabalhar com outros. Dessa forma,
as parcerias e o reforço das alianças estão
no centro da política de guerra de Obama.
De que parceiros estamos à procura?
1
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
Sobretudo países que foram, desde sempre,
nossos parceiros e que estiveram sempre
ao nosso lado: as sólidas democracias na
Europa e na Ásia. A Europa é um parceiro
central. Está com os Estados Unidos desde
os anos 40. No futuro, continuará ao lado
dos Estados Unidos. Mas não é suficiente
ter apenas os Estados Unidos e a Europa a
cooperar. […] A grande diferença, nos últi­
mos 18 meses, é a decisão da Administração
Obama em cooperar com a NATO e de o
fazer de uma forma bastante aberta e con­
sultiva. Com uma estratégia comum…
[P] … Um exemplo dessa estratégia comum?
[IHD] Devo dizer Afeganistão. Antes de o
Presidente ter decidido enviar mais tropas,
em Março de 2009, encarregou o Vice­
‑Presidente de falar com os embaixadores
da NATO e perguntar: “Como encaram esta
situação, o que acham ser necessário?".
A Administração fez a sua revisão estraté­
gica no fim do Verão de 2009, recorrendo
consistentemente ao envio de várias pes­
soas de Washington, com bastante experi­
ência, para se reunirem com membros da
NATO para saber como viam a situação e
para onde se encaminhava, perceber se
enviariam mais tropas se nós enviássemos
mais tropas…
[P] A intervenção no Afeganistão, apoiada nos esta‑
tutos, teve consequências na instituição NATO pro‑
priamente dita?
[IHD] Sim, teve que ter. Esta é a maior ope­
ração militar que a NATO alguma vez enca­
beçou, com o maior número de tropas dos
EUA e de fora dos EUA sob o comando da
organização, a cinco mil quilómetros de
Bruxelas, por isso a NATO teve de mudar
a sua visão dos acontecimentos. Mais
importante, é necessário um entendimen­
to no seio de toda a NATO de que a segu­
rança na Europa, EUA e Canadá já não tem
simplesmente que ver com o que se passa
dentro da Organização do Tratado do
Atlântico Norte, mas também com o exte­
rior. Portanto, para que estejamos seguros
em casa, por vezes é necessário combater
a cinco mil quilómetros de distância a par­
tir do exterior. […] A Europa deve aperceber­
‑se de que para se estar seguro em Madrid,
Londres ou Lisboa tem que se combater
no Afeganistão.
[P] Uma força europeia de segurança e defesa é
compatível com a NATO?
[IHD] Eu não vejo a Europa a preparar uma
força militar que é europeia, como se fosse
portuguesa, espanhola ou belga. Cada país
tem apenas um exército, uma marinha e
uma força aérea. Por vezes, usá­‑las­‑ão no
âmbito do compromisso com a União
Europeia, outras vezes com a NATO. O que
precisamos de tornar claro é que, quando
decidirmos iniciar operações militares, esta­
remos coordenados e que cooperaremos.
E, além disso, como cada organização requer
recursos, não duplicaremos aquilo que já
existe. Que não precisamos, por exemplo,
que a União Europeia possua grandes recur­
sos aéreos se esses meios já existirem na
NATO. Vinte e um países europeus são mem­
bros da NATO, 21 países da NATO são mem­
bros da União Europeia, e mesmo assim
possuem apenas um exército, que podem
usar de uma ou de outra forma.
[P] Mas acha então que não pode haver uma polí‑
tica de defesa e segurança europeia que seja diver‑
gente da norte­‑americana?
[IHD] É bastante improvável. Gostava de ver
uma cooperação muito mais próxima entre
a NATO e a UE, intensos diálogos para que
possam estar juntos e discutir não só a
Bósnia, o que fazemos hoje, mas o
Afeganistão e o resto do mundo. Mas a
realidade é que ainda estamos a falar sobre
os mesmos países, os mesmos 21 países
que terão de tomar as suas decisões em
ambas as organizações que sejam compa­
tíveis com os seus interesses.
31
[P] Por que razão a cooperação União Europeia­
‑NATO não é a melhor?
[IHD] A razão principal é política. Há
membros numa organização que não reco­
nhecem membros na outra organização.
E como lidamos com consensos, tanto na
UE como na NATO, por vezes é difícil
abordar essas dificuldades. Uma coisa é a
política outra é a realidade. Nos bastidores,
actualmente, a cooperação é muito melhor.
No Afeganistão, é a NATO quem protege,
caso necessário, as polícias da UE; coope­
ramos juntos e activamente no Kosovo,
onde se encontra uma grande operação
de ambos. Portanto, no terreno, corre tudo
bem. Na prática é óptimo. Em teoria não
está a funcionar.
‘
Gostava de ver uma cooperação
muito mais próxima
entre a NATO
e a União Europeia.
[P] Quais serão as maiores mudanças do conceito
estratégico?
[IHD] O mais importante é perceber que
será “todos por todos”, em que atacar um
deles será como atacar todos os outros. Os
tipos de ameaças que enfrentamos são difí­
ceis. Não estamos preocupados, acima de
tudo, com exércitos a atravessar fronteiras.
Preocupamo­‑nos com milícias, cibercódigos
a entrar pelos nossos computadores, para­
lisando infra­‑estruturas civis ou até militares.
Estamos preocupados com os mísseis balís­
ticos e com a proliferação de armas de des­
truição maciça, em que o terror nos chega
através dos céus. Preocupamo­‑nos com ter­
roristas que podem ou não possuir essas
armas mas que mesmo com armas de fogo
conseguem causar um dano terrível.
’
Portanto, essas são as ameaças que agora
enfrentamos e contra as quais temos que
possuir a capacidade de reagir. Por isso, a
NATO, no século XXI, terá que reconhecer
os novos tipos de ameaças e desafios que
enfrenta. Será uma NATO diferente.
Do meu ponto de vista, a NATO tem duas
tarefas fundamentais no encontro de Lisboa.
A primeira é compreender que os perigos
mudaram e que agora temos novas formas
de nos defendermos. A segunda é perceber
que não é possível fazê­‑lo sozinha. A NATO
não consegue lidar com essas ameaças ape­
nas através de 28 países. Precisa de parcei­
ros, precisa de aliados para trabalhar em
conjunto. Assim, a segunda coisa que tere­
mos que decidir é fortalecer as nossas par­
cerias com a Rússia, mas também com
@ NATO
[P] Como será o alargamento da NATO?
[IHD] O artigo 10.º é muito claro. Qualquer
país europeu que preencha os padrões da
adesão à NATO pode ser convidado. Por isso,
em teoria, o mapa da NATO poderia ser o
mapa da Europa. Na prática, isso depende­
rá, sobretudo, de se os países que não são
membros gostariam de ser membros.
Há vários países na Europa que se quisessem
aderir à organização amanhã,
seriam membros. Há outros que
não têm esse interesse sob qual­
quer circunstância. A Ucrânia, por
exemplo, não pretende fazer parte
de qualquer aliança. Portanto, no
fim de contas, depende muito do
que os países desejam.
Reunião Informal dos ministros da Defesa da NATO. Da esquerda para a direita: o secretário­‑geral da NATO, general Anders Fogh Rasmussen,
o embaixador americano da NATO, Ivo H. Daalder, e o secretário da Defesa, Robert Gates.
32
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
Rui Ochôa
outros países em todo o mundo. Alguns
desses serão os mesmos que participam nas
relações bilaterais com os EUA, ou seja,
uma relação com a Rússia, Austrália e Japão.
Mas pensamos que a NATO precisa de par­
ceiros em todo o globo, não só nos países
vizinhos, não só no Mediterrâneo (que é
importante), não só na Europa Central, de
Leste e na Ásia Central, mas em todo o
mundo, para lidar com as ameaças e desa­
fios que enfrentamos.
[P] Como serão as relações com a Rússia?
[IHD] Creio que a Rússia ainda está a tentar
perceber o que pretende exactamente da
sua relação com a NATO. Por um lado, per­
cebe que os tipos de desafios que enfrenta
são semelhantes aos da NATO. Por outro,
claro, há uma longa história de antagonis­
mo e oposição com a NATO e deverá levar
algum tempo a construir a confiança e a
convicção necessárias para fazer desta par­
ceria não apenas algo sobre o qual falamos
mas para pôr em prática. Esperamos que
os líderes dos 29 países da NATO/Rússia
compareçam em Lisboa e que estabeleçam
uma ponte onde consigam lançar a sua
nova parceria, direccionada para a frente.
Não que os desentendimentos não sejam
importantes, a NATO e a Rússia discordam
sobre a Geórgia e noutros assuntos. Mas
essas divergências não podem impedir­‑nos
de cooperar no futuro.
‘
A NATO, no século XXI,
terá que reconhecer
os novos tipos de ameaças
e desafios que enfrenta.
Será uma NATO diferente.
’
[P] As conversações entre os EUA e o Irão poderiam
ser feitas através da NATO?
[IHD] Não, não será através da NATO.
O Presidente deixou muito claro, desde o
momento em que foi eleito, que preten­
de lidar directamente com o Irão, no sen­
tido de abordar as diferenças que são
muito reais e outros problemas. Ele sem­
pre disse: “O Irão tem uma escolha.”
Poderá cooperar com a comunidade inter­
nacional, sentar­‑se com a comunidade
internacional e aderir aos seus padrões.
E tudo é possível. Ou poderá escolher não
cooperar e ficará cada vez mais isolado do
resto do mundo. Essa escolha já foi repe­
tida nas Nações Unidas e o Presidente
repeti­‑la­‑á até que, numa determinada
altura, o Irão fará a sua escolha.
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
Ivo H. Daalder: “Estamos preocupados com os mísseis balísticos e com a proliferação
de armas de destruição maciça”.
[P] Mas porque é que a NATO não pode
mediar?
[IHD] Em parte, o Presidente quis realmen­
te que a China e a Rússia fizessem parte
das conversações. E se fizermos da NATO o
pilar central do envolvimento norte­
‑americano, a cooperação com a Rússia e
a China será menor. Aqui trata­‑se do P5, os
cinco membros permanentes do Conselho
de Segurança – mais a Alemanha –, terão
que se empenhar, juntos, no tema do Irão.
Acreditamos que é uma boa forma de o
fazer, se isso significar que o Irão irá seguir
em frente. É essa a forma, mais do que
colocar a NATO no centro, o que traria um
quadro militar para a relação.
[P] Como é que o Presidente Obama avaliou as
negociações com o Irão encetadas pelo Presidente
Lula da Silva?
[IHD] O Presidente mostrou­‑se a favor de
qualquer esforço para fazer com que o Irão
cumprisse as obrigações internacionais,
mas não achou suficiente. Decidiu portan­
to pressionar a comunidade internacional,
que acabou por concordar, como resultado
final, com a adopção de novas sanções.
O Presidente dos EUA é profundamente
pragmático. Ele quer resolver o problema.
Isto não resolveu o problema.
[P] O Comando da NATO em Oeiras poderá ser
deslocado?
[IHD] Estamos no meio de um processo a
tentar perceber como vamos adaptar a estru­
tura de comando para lidar com novas ame­
aças e desafios. É algo que, num sentido
genérico, esperamos concluir em Lisboa.
O que estamos à procura é de uma estru­
tura de comando que seja capaz de reagir,
destacável no terreno, e que consiga lidar
com as ameaças e desafios do amanhã, mais
do que com os desafios de ontem.
1. Daalder, Ivo H., E. Slaughter, Anne­‑Marie (2008),
“America’s new global challenge”, in Boston Globe.
33
marco leitão silva
As parcerias internacionais
da Aliança Atlântica
Por Carlos Gaspar*
‘
Espinosa demonstrou que “a validade de uma alian­
ça só dura enquanto existir o motivo que levou à
sua conclusão”. Para os que entendiam que a Aliança
Atlântica se resumia à necessidade de conter a União
Soviética, a sua sobrevivência depois do fim da
Guerra Fria continua a ser um contra­‑senso. Mas a
aliança das democracias ocidentais também asse­
gurou a resolução da questão alemã e não só con­
seguiu evitar uma escalada na competição entre as
duas super­potências, como se tornou o principal
garante da estabilidade internacional durante a
“longa paz” da Guerra Fria. Nesse sentido, a razão
A necessidade de intervir “fora­‑da­‑área”, para lá
das fronteiras do espaço euro­atlântico, reclama
formas específicas de legitimação e a articulação
com novos parceiros.
@ NATO
’
O secretário­‑geral da NATO, general Anders Fogh Rasmussen, recebido na Casa Branca
pelo Presidente Barack Obama no passado mês de Setembro. Os Estados Unidos querem
acumular parcerias heterogéneas, bilaterais e multilaterais na NATO.
34
de ser da Aliança não desapareceu com a dissolução
da União Soviética e, no pós­‑Guerra Fria, a
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)
continuou a ser crucial para garantir a nova balan­
ça do poder.
A natureza da OTAN não se alterou e os seus ini­
migos continuam a ser todos os que ameaçam os
equilíbrios internacionais. A mudança está na defi­
nição desses agentes, uma vez que se multiplicaram
as ameaças, regionais ou periféricas, estatais e não­
‑estatais, simétricas ou assimétricas, que podem
perturbar a balança do poder.
A parceria euro­atlântica
Para responder à nova configuração das ameaças no
pós­‑Guerra Fria, a OTAN transformou­‑se e procurou
encontrar novas doutrinas, novas capacidades e, tam­
bém, novas parcerias. A reconciliação com os inimi­
gos tornou­‑se uma prioridade na re­definição do
“espaço euro­atlântico” de “Vancouver a Vladivostock”,
como uma “comunidade de segurança”. A dissua­
são nuclear não perdeu a sua relevância, mas não é
eficaz na luta contra os talibãs ou a Al­‑Qaeda. As
forças convencionais que mantêm os equilíbrios no
teatro europeu foram reduzidas para se desenvol­
verem as forças expedicionárias e as capacidades de
projecção de poder indispensáveis para intervir no
Afeganistão ou controlar as costas da Somália.
A necessidade de intervir “fora­‑da­‑área”, para lá das
fronteiras do espaço euro­atlântico, reclama formas
específicas de legitimação e a articulação com novos
parceiros globais.
As parcerias – um termo deliberadamente ambí­
‑guo – são uma inovação política e institucional que
caracterizou a transformação da Aliança Atlântica no
pós­‑Guerra Fria. A sua primeira forma, criada em
Dezembro de 1991 – o Conselho de Cooperação do
Atlântico Norte (NACC) – ainda incluiu a União
Soviética. Mais tarde, em 1994, os Estados Unidos
e a Aliança Atlântica criaram os programas da Parceria
para a Paz (PfP), aos quais aderiram os países da
Europa Central e Oriental e as antigas repúblicas
da União Soviética, incluindo a Rússia.
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
A segunda geração
Nos anos seguintes, com os novos alarga­
mentos da Aliança Atlântica e a integração
das democracias pós­‑comunistas, os mem­
bros da OTAN passaram a ser maioritários
do Conselho de Parceria Euro­atlântica. Em
minoria, os “Partner Countries” dividiram­
‑se entre os parceiros que podiam encarar
a sua adesão à OTAN, como os Estados
neutrais, a Ucrânia e a Geórgia, e os que
não estavam interessados nessa possibili­
dade, como a Rússia ou as repúblicas da
Ásia Central.
A segunda geração de parcerias revelou os
problemas da projecção da OTAN para lá da
área definida pelo Tratado de Washington e,
nomeadamente, a recentragem vertical dos
conflitos internacionais no “Grande Médio
Oriente” e no Índico. Desde os anos 1990,
a OTAN começou a desenvolver relações com
os países mediterrânicos e, em 2004, na
Cimeira de Istambul, os membros do Diálogo
Mediterrânico (MD) – o Marrocos, a Argélia,
a Tunísia e a Mauritânia, bem como o Egipto,
a Jordânia e Israel ­– foram elevados à cate­
goria de “parceiros”. Na mesma altura,
formou­‑se a Iniciativa de Cooperação de
Istambul (ICI), à qual aderiram Estados
membros do Conselho de Cooperação do
Golfo –­ o Koweit, o Bahrein, o Qatar e os
Emirados Árabes Unidos. Essas novas parce­
rias eram claramente exteriores ao espaço
tradicional da Aliança Atlântica e nunca
houve qualquer intenção de integrar os seus
membros na OTAN.
Mais importante, a principal missão inter­
nacional da OTAN – a Força Internacional
de Assistência à Segurança no Afeganistão
(ISAF) – pôde contar com a participação
militar da Austrália, da Nova Zelândia, da
Coreia do Sul e do Japão. Paradoxalmente,
as quatro democracias da Ásia e do Pacífico
aliadas dos Estados Unidos, que partilham
com as democracias ocidentais os mesmos
valores e os mesmos objectivos de segu­
rança internacional, não têm um estatuto
formal de parceria com a Aliança Atlântica,
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
que os designou inicialmente como “Países
de Contacto” e, mais tarde, como “partners
across the globe”.
acumular parcerias heterogéneas, bilaterais
e multilaterais, com a União Europeia,
a União Africana e a Organização do Tratado
de Segurança Colectiva, e com a Rússia,
a China e a Indonésia, sem um critério claro
– no limite, correndo o risco de duplicar
as Nações Unidas. A linha minoritária pro­
põe uma valorização específica das relações
entre a Aliança Atlântica e as potências
democráticas.
A terceira geração de parcerias vai comple­
tar a transformação da Aliança Atlântica e a
institucionalização específica das parcerias
estratégicas com as potências democráticas
pode reforçar a sua capacidade para garan­
tir a balança do poder num momento crí­
tico da transição internacional.
A Aliança Atlântica
e os parceiros democráticos
A questão posta para a definição de uma
terceira geração de parcerias depende da
definição dos objectivos inscritos no Novo
Conceito Estratégico, cuja aprovação está na
ordem de trabalhos da Cimeira de Lisboa.
A Aliança Atlântica é uma aliança regional
com responsabilidades internacionais.
A OTAN não vai abrir as suas portas às
potências democráticas não­‑europeias,
como a Índia, o Japão ou o Brasil, para se
transformar numa “Global NATO”. Mas * Director do IPRI – UNL
persiste uma divisão entre
duas linhas políticas no
Persiste uma divisão entre duas
debate sobre a sua evolução
e a procura de parceiros
linhas políticas no debate sobre
estratégicos internacionais.
a sua evolução e a procura
A linha dominante, expres­
sa no Relatório do Grupo
de parceiros estratégicos
de Peritos dirigido por
internacionais.
Madeleine Albright, quer
‘
’
@ NATO
O sucesso da primeira geração das parce­
rias ficou demonstrado em 1997, quando
a Polónia, a Hungria e a República Checa
foram convidadas para aderir à Aliança
Atlântica, a Rússia e a Ucrânia concluíram
acordos bilaterais próprios com a OTAN e
se fundou o Conselho de Parceria
Euroatlântica (EAPC), com a participação
de todos os membros da Aliança Atlântica,
dos antigos membros do Pacto de Varsóvia,
dos novos Estados independentes formados
com a decomposição da União Soviética,
e dos Estados neutrais europeus.
Uma “terceira geração” de parcerias estratégicas da NATO será definida na Feira Internacional de Lisboa,
o local escolhido para a cimeira. Aqui durante uma visita de Rasmussen.
35
NATO
Um por todos, todos por um
A missão da Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN, ou NATO, na sigla em inglês), sofreu profundas alterações
ao longo dos últimos sessenta e um anos. Mas mantém-se a premissa
desta aliança militar: cooperação estratégica em tempo de paz
e auxílio mútuo em caso de ataque a um dos países-membros.
Países fundadores
da NATO
Actuais
países-membros
70 000
militares envolvidos
em intervenções
da NATO
2 200 militares mortos
Canadá
(2 100 no Afeganistão)
Principais missões da NATO
Jugoslávia (1993)
Bósnia-Herzegovina (1994-2004)
Sérvia (1995)
Jugoslávia (1999)
Kosovo (desde 1999)
Macedónia (2001-2003)
Costa do Mediterrâneo (2001)
Afeganistão (desde 2003)
Costa da Somália (2008-2009)
O C E A N O
TEXTOS Patrícia Fonseca INFOGRAFIA Álvaro Rosendo
FONTE NATO, Ministério da Defesa Nacional,
Estado-Maior General das Forças Armadas, Coalition Casualty Count
11 de Setembro, Nova Iorque (2001)
O artigo 5.º do tratado, que estipula que
um ataque a um dos membros da NATO
é um ataque a todos, foi accionado pela
primeira vez na sequência dos ataques
terroristas contra as Torres Gémeas.
Nova Iorque
Washington
Estados Unidos da América
Fundação da NATO, Washington (1949)
O Tratado de Washington foi assinado
a 4 de Abril de 1949 por 12 países ocidentais,
para “salvaguardar a liberdade e a segurança
de todos os seus membros”. A liderança norte-americana marcou, desde o início, a história
da NATO. E foram os EUA que contribuíram
com a maior parte dos fundos económicos,
tropas e armas para suportar as intervenções
da Aliança, até aos dias de hoje.
Bahamas
México
Cuba
Haiti
Jamaica
Belize
Guatemala
El Salvador
36
A T L Â N T I C O
Rep. Dominicana
Puerto Rico
Honduras
O C E A N O
Trindade
e Tobago
Nicarágua
Costa Rica
A T L Â N T I C O
| OUTONO | INVERNO 2010
Panamá
Paralelo n.o 5
Venezuela
Colombia
Guiana
Pacto de Varsóvia (1955)
Em resposta à formação da NATO,
sete países socialistas do Leste europeu
(Albânia, Alemanha Oriental, Bulgária,
Hungria, Polónia, Checoslováquia
e Roménia) uniram-se à União Soviética
na criação de uma nova aliança militar.
O Pacto de Varsóvia foi extinto
a 31 de Março de 1991, data que acabou
por simbolizar o fim da Guerra Fria.
Gronelândia
(Dinamarca)
Islândia
Suécia
Finlândia
Queda do Muro de Berlim (1989)
Originalmente, a NATO visava defender
o Ocidente da União Soviética. A partir
dos anos 1990, e com a dissolução
do bloco socialista, a sua continuidade
chegou a ser posta em causa.
Noruega
Estónia
Sede da NATO
em Bruxelas, Bélgica
Letónia
Dinamarca
Lituânia
Rússia
Reino Unido
Irlanda
Holanda
Portugal em missões NATO
Bruxelas
Foi ao aliar-se à NATO que Portugal
quebrou a tradição de não intervenção
em conflitos, que mantinha desde
a I Guerra Mundial. Nos últimos
.
vinte anos, o País empenhou mais de 20 mil
homens em 15 intervenções diferentes,
na Europa, no Mediterrâneo, na Ásia e na África.
Alemanha
Bélgica
Luxemburgo
França
Guerra nos Balcãs (1995)
A primeira intervenção militar da história
da NATO é lançada na Bósnia, com
o bombardeamento de posições sérvias.
Varsóvia
Rep. Checa
Eslováquia
Áustria
Suiça
Moldávia
Hungria
Ucrânia
Roménia
Eslovénia
Croácia
Bósnia
e Herz.
Sérvia
Bulgária
Itália Montenegro Kosovo
Geórgia
Macedónia
Arménia
Albânia
Portugal
Turquia
Grécia
Espanha
Açores
Tunísia
(Portugal)
Malta
Madeira
(Portugal)
Bielorrússia
Polónia
Berlim
Missões em curso
com participação portuguesa:
Kosovo (KFOR) – 300 militares
Afeganistão (ISAF) – 247 militares
Marrocos
Mar
Mediterrâneo
Chipre
Canárias
Sara
Ocidental
Irão
Síria
Líbano
Israel
Palestina
Líbia
Argélia
(Espanha)
Rússia
Iraque
Jordânia
Kosovo (1999)
A NATO conduz onze semanas de bombardeamentos Egipto
contra a ex-Joguslávia para forçar o fim do conflito
no Kosovo. É a primeira missão lançada sem
a aprovação das Nações Unidas.
Arábia
Saudita
Mauritânia
Mali
Niger
Cabo
Verde
Chade
Afeganistão (2003)
A NATO aceita tomar o controlo
das operações no Afeganistão,
assumindo a primeira intervenção
militar fora da Europa.
Iéman
Senegal
Sudão
Gâmbia
Guiné-Bissau
Paralelo n.o 5
Burquina-Faso
Guiné
| OUTONO | INVERNO 2010
Serra Leoa
Benin
Costa
do Marfim
Nigéria
Togo
Gana
Camarões
Rep. Centro
Africana
Etiópia37
Somália
SARA PINA
Do tratado aos conceitos
Por josé Medeiros Ferreira
‘
É natural que do alargamento da NATO
e da condução de certas operações na península
balcânica, ou no Afeganistão, resulte uma
maior ênfase no processo de consulta colectivo
previsto no artigo 4.º do Tratado.
@ NATO
’
Se a NATO não existisse, alguém reclamaria hoje a
sua constituição e, se sim, em que moldes? Esta
parece ser a pergunta fundamental que persegue
Madeleine Albright e o seu grupo de trabalho para
um novo conceito estratégico da Aliança Atlântica.
Com efeito, caso o Tratado do Atlântico Norte
tivesse sido concebido para enfrentar um só pos­
Reunião bilateral NATO/Rússia. Da esquerda para a direita: o secretário­‑geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen,
a cumprimentar o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov.
38
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
‘
Um novo conceito estratégico para a NATO
também abre um espaço para a Rússia.
[…] Portugal, em termos da NATO, tem navegado
entre os Açores, o Comando de Oeiras e as operações
militares na península balcânica e no Afeganistão.
sível inimigo, ele estaria obsoleto. Mas
procurar­‑se­‑á em vão, nos seus 14 artigos,
a determinação específica de um só.
A história da Guerra­Fria como foi conta­
da apontou o “perigo soviético”, o expan­
sionismo russo ou o “comunismo” como
os adversários dos co­‑signatários do Tratado
depositado em Washington. Lord Ismay,
com o sentido da fórmula, apontou em
breves palavras o primeiro conceito polí­
tico da Aliança: “Keep the americans in,
the Germans down and the Russians out”
Era muito mais do que uma boutade.
Fosse como fosse, a NATO assistiu como
vencedora à reunificação alemã, ao retrai­
mento soviético na Europa de Leste e,
depois, ao próprio desmembramento da
URSS, se bem que talvez não esperasse
tanto duma só vez.
Caso a NATO tivesse na sua génese apenas
esses objectivos históricos, teria então ter­
minado a sua existência. Ora, antes pelo
contrário, será no período posterior a 1989
que o Tratado do Atlântico Norte, então com
quarenta anos, ganha novo vigor. Dota­‑se
de dois novos conceitos estratégicos, em
1991 e 1999, ainda com Washington vira­
da para as condições da segurança transa­
tlântica. Se esses conceitos eram um tudo
nada barrocos e múltiplos nos seus propó­
sitos, espelhados por mais de 50 artigos,
o certo é que os EUA forçam, com natura­
lidade e com êxito, o alargamento da NATO,
primeiro à Polónia, República Checa e
Hungria em 1999, depois aos países bálti­
cos e aos da Europa Oriental em 2004.
Ouso opinar que só então se cumpriu o
grande objectivo da Aliança Atlântica vista
da capital onde está depositado o Tratado.
Um outro acontecimento veio demonstrar
as virtualidades do Tratado de 1949, para
além das circunstâncias europeias: os EUA
são vítimas de actos de guerra no seu próprio
território com os ataques terroristas de 11
de Setembro de 2001. Uma eventualidade
muito remota em 1949 e nem sequer pre­
vista nos 65 artigos do então fresco concei­
to estratégico da NATO de 1999.
O que se mantinha ático e firme era o
artigo 5.º do Tratado que considera que um
ataque armado contra uma das partes, “na
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
’
Europa ou na América do Norte” será con­
siderado um ataque a todas. Assim, esse
artigo foi accionado pela primeira vez só
depois do fim da Guerra Fria e por causa
de um ataque ao território dos EUA, con­
trariamente a toda a doutrina militar e ao
sistema de forças instalado. É ainda por causa
desse ataque que as forças da NATO estão
empenhadas no Afeganistão há oito anos.
Assente­‑se pois que a NATO venceu sem
condições a Guerra Fria mas só accionou o
artigo da defesa colectiva militar depois dela
e para enfrentar outro tipo de ameaças.
Deste modo, faz todo o sentido prolongar
a vida da NATO, sobretudo depois dos seus
alargamentos ambivalentes no teatro euro­
peu. Que sentido faria o seu alargamento
de 16 para 28 membros, já no século XXI,
caso o seu fim estivesse próximo?
Elabora­‑se pois o projecto de um novo
conceito estratégico para a NATO que
deverá ser discutido na próxima cimeira
em Lisboa. Embora tendo presente que
nenhum conceito altera a letra do Tratado
do Atlântico Norte, trata­‑se de um exercí­
cio fundamental depois das experiências
na Bósnia, no Kosovo, na Macedónia e no
Afeganistão, e das novas ameaças como
elas se estão desenhando nestas duas pri­
meiras décadas do século XXI.
Nota­‑se uma tendência geral para recen­
trar a estratégia da NATO na sua missão
principal de garantir a defesa colectiva de
todos e de cada um dos seus membros,
nos termos do artigo 5.º.
Ora é natural que do alargamento da
NATO e da condução de certas operações
na península balcânica, ou no Afeganistão,
resulte uma maior ênfase no processo de
consulta colectivo previsto no artigo 4.º
do Tratado sobre a percepção das ameaças
à integridade territorial, à segurança e à
independência de cada um dos Estados
membros.
Essas consultas podem servir para redu­
zir o âmbito das surpresas internacionais
que têm caracterizado os últimos tempos.
O campo dessa cooperação é vasto, desde
a avaliação das novas ameaças até à imple­
mentação de um quadro de segurança
marítima que pode interessar Portugal.
Mas o projecto de um novo conceito
estratégico para a NATO também abre um
espaço para a Rússia e essa é, de facto, uma
das grandes variáveis para o futuro.
Paradoxalmente, o conceito de Ocidente
só se refaz caso Moscovo venha a aderir a
uma espécie de pacto tripolar entre a
Rússia, a União Europeia e os Estados
Unidos da América que ajude todos a criar
um ambiente de segurança com as potên­
cias emergentes.
O comportamento da Rússia – nas ques­
tões do desarmamento nuclear, no policia­
mento das actividades anti­terroristas, no
respeito pela integridade territorial dos
Estados representados nos organismos inter­
nacionais, o seu compromisso de facilitar
o acesso das tropas NATO, ou norte­
‑americanas, ao teatro do Afeganistão, a sua
entrada no mercado mundial da energia e
do gás ­– será determinante para a seguran­
ça do nosso mundo.
Aliás, a diplomacia dos EUA tem estado
muito activa, estabelecendo conversações
bilaterais com a Rússia sobre a redução do
arsenal nuclear, a abertura de vias de aces­
so ao Afeganistão e o tratamento da questão
do Irão.
Essas questões, tratadas bi­lateralmente,
ou dentro do quadro da parceria atlântica,
indicam uma passagem da Rússia de par­
ceiro de segurança concorrencial para
parceiro de segurança cooperativa.
Curiosamente, o “pilar europeu da
Aliança”, pujante no conceito estratégico
da NATO em 1999, perdeu gás nos últimos
anos. A criação da moeda continental, as
prioridades estabelecidas pelo Pacto de
Estabilidade e, agora, a crise das “dívidas
soberanas” atenuaram o ímpeto da iden­
tidade europeia de segurança. A re­entrada
da França nos comandos militares da
NATO fez o resto, e ainda terá outras con­
sequências, inclusivamente para Portugal.
Esta é a realidade, por muitos artigos que
o novo conceito estratégico venha a dedi­
car ao tópico.
E Portugal?
Portugal, em termos da NATO, tem nave­
gado entre os Açores, o Comando de Oeiras
e as operações militares na península bal­
cânica e no Afeganistão. No novo conceito
só pode querer aumentar o lado colegial
da Aliança, reforçar as suas relações estra­
tégicas com a América do Norte, manter as
suas forças militares operacionais, ser no
pilar europeu um parceiro credível e escu­
tado nesta nova fase de segurança coope­
rativa. Sem a NATO seria bem pior.
* Professor da UNL
39
Presidentes americanos em Portugal:
sempre VIP’s, mas uns mais amados do que outros
As relações políticas e diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos
foram sempre boas, nunca foram muito intensas.
A América era o país novo e rico, Portugal antigo e pobre.
Por Carla Baptista
Espanha oferecia em troca do apoio por­
tuguês. A resposta americana traduziu­‑se
na assinatura de três acordos comerciais
e mais três acordos sobre arbitragem,
naturalização e emigração no período que
decorre entre 1899 e 1910.
Foi sempre a guerra, ou a sua iminência,
a determinar a visita dos presidentes ame­
ricanos a Portugal. O relato feito pela
imprensa da época dessas visitas dá­‑nos
conta de uma profunda alteração no modo
de relacionamento com a potência estran­
ARQUIVO DN
Na última década da monarquia, os con­
tactos entre os dois países aumentaram,
favorecidos pela decisão de D. Carlos
declarar a neutralidade face à guerra
hispano­‑americana, em 1898, embora
aliciado pelas “vantagens substanciais” que
“I like Ike”. Foi com esse diminutivo carinhoso e informal que o Diário de Notícias anunciou a chegada a Lisboa de Eisenhower, a 19 de Maio de 1960.
40
Paralelo n.o 5
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geira, com matizes que vão desde o puro
fascínio até à declarada hostilidade, senão
do Estado, pelo menos de parcelas da opi­
nião pública.
Roosevelt nos Açores e um mapa
para as crianças
A primeira visita de um putativo presiden­
te, então subsecretário da Marinha, foi a
de Franklin Delano Roosevelt, que viria a
ser eleito para a Casa Branca em 1932 por
uma esmagadora maioria de votos popu­
lares e no colégio eleitoral, motivada pelo
descontentamento gerado pelo crash bolsis­
ta de 1929 e pelo desgaste que a Grande
Depressão causou no seu rival e antecessor
no cargo, Herbert Hoover.
Da passagem de Roosevelt pelos portos
de Ponta Delgada e do Faial, em 13 e 14
de Julho de 1919, a bordo do destroyer USS
Dyer, com o objectivo de visitar a base
naval que os americanos tinham instalado
meses antes em Ponta Delgada, não ficou
grande registo histórico. A base fora mon­
tada meses antes pelos americanos para
fazer face à campanha submarina alemã
no Atlântico e foi desactivada após o fim
da I Grande Guerra, ficando as autoridades
militares portuguesas com algumas peças
de artilharia.
Existe uma pintura a óleo do barco, um
discurso proferido no Almirantado
Americano em Ponta Delgada, sublinhando
a importância estratégica das ilhas para o
transporte das tropas através do Atlântico
(reproduzido pelo jornal República, de Ponta
Delgada, a 20 de Julho de 1918), e uma
curiosa passagem no seu diário, dirigida à
mulher Eleanor, recomendando­‑lhe que diga
aos três filhos do casal, Ana, James e Elliot,
para procurarem no mapa “estes lugares dos
Açores”, cenário do “famoso combate entre
o corsário John Armstrong e os barcos de
guerra britânicos, na guerra de 1812”.
Banhos de multidão em Lisboa
para receber Eisenhower
A honra de inaugurar a primeira visita ofi­
cial de um presidente dos Estados Unidos
a Portugal coube a Dwight Eisenhower, um
estadista cuja elevada popularidade se ficou
a dever também ao facto de a sua eleição
para o segundo mandato, em 1956, ter
coincidido com a entrada em força da tele­
visão nas campanhas eleitorais.
Eisenhower foi o inventor de um dos
primeiros grandes slogans políticos da era
moderna, o “I like Ike”, e foi com esse
diminutivo carinhoso e informal que o
Diário de Notícias anunciou a sua chegada a
Lisboa, a 19 de Maio de 1960.
Paralelo n.o 5
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‘
Naquela época,
recebia­‑se à grande
e à portuguesa,
A honra de inaugurar a primeira visita
tanto mais que
oficial de um presidente
Eisenhower vinha
de um cenário tem­
dos Estados Unidos a Portugal
pestuoso em Paris,
coube a Dwight Eisenhower, um estadista
capital que abando­
nou um dia antes,
cuja elevada popularidade se ficou
obrigando o proto­
a dever também ao facto de a sua eleição
colo luso a uma
canseira imensa
para o segundo mandato, em 1956,
para ter prontos,
ter coincidido com a entrada em força
vinte e quatro horas
mais cedo do que o
da televisão nas campanhas eleitorais.
previsto, os sump­
tuosos preparativos,
incluindo “decoração esplendorosa do aero­ mesmo grafado] em Paris”. Em oposição,
porto”, “tolerância de ponto, da parte da
a conferência de imprensa no Hotel Ritz
manhã, para todos os estabelecimentos serviu até para que o adido de imprensa
públicos e organismos corporativos” para americano, James Hagerty, fizesse algumas
poderem assistir ao cortejo presidencial, o
confissões de foro pessoal: o Presidente
navio Pocono, da Armada americana, anco­ Eisenhower estava “fed up”, “disgusted”,
rado no Tejo, e um banquete na Sala dos “farto e cheio do clima criado em Paris
Espelhos do Palácio de Queluz.
por Kruschef [este, por sua vez, dera no
O relato do DN destes dois dias segue a Palácio Chaillot uma conferência de
fórmula grandiloquente habitual na cober­ imprensa épica, em que se “exaltou, ameatura jornalística das vindas de políticos çou e deu socos na mesa, enquanto a assis­
estrangeiros durante todo o Estado Novo: o
tência assobiava, gritava e aplaudia] e ficou
avião que trouxe o Presidente americano muito emocionado com a recepção portu­
(um Boeing 707) “rolou na pista, os jactos
guesa, especialmente das crianças que
entoando uma estranha sinfonia […] o povo, “delirantemente o aclamaram”.
que se aglomerava aos milhares, nas varan­
das do aeroporto e nos passeios do largo
fronteiro, irrompeu em longos aplausos, Nixon na ilha Terceira
tornados mais calorosos com o entusiástico para resolver crise monetária
agitar das bandeiras portuguesas e norte­
A visita do Presidente Richard Nixon à ilha
‑americanas […] estalejaram foguetes”.
Terceira, em 11 de Dezembro de 1971,
O jornal titulou que “o presidente onde se encontrou com o Presidente
Eisenhower fez o elogio de Salazar” duran­ Charles Pompidou para discutir a crise
te o banquete em Queluz, acrescentando
monetária internacional (o 37.º Presidente
o delicioso pormenor de, durante as foto­
dos EUA suspendeu unilateralmente o acor­
grafias oficiais, vendo Salazar tímido e dis­ do de Bretton Woods, cancelando a con­
tante das objectivas dos fotógrafos, ter versibilidade directa do dólar em ouro, e
abandonado a companhia da Sra. D. adoptou uma série de outras medidas pro­
Gertrudes (mulher do almirante Américo
teccionistas), decorreu num ambiente polí­
Tomás), estendendo­‑lhe a mão “num gesto
tico e jornalístico bastante diferente do
de cortesia e amizade”: “Senhor Presidente, quadro salazarista anterior.
venha fotografar­‑se ao meu lado”.
A dupla Nixon­‑Caetano esforçou­‑se por
A passagem por Lisboa não teve um gran­
desanuviar a tensão que estalara durante o
de impacto político e foi mais importante tempo dos respectivos antecessores, Kennedy
pelo que a antecedeu – o malogro da
e Salazar, em virtude da posição americana
cimeira de Paris entre Eisenhower, na guerra com as colónias portuguesas.
Khruchtchev, De Gaulle e MacMillan e o
John Kennedy e os seus conselheiros
início de um período de enorme tensão
tentaram convencer Salazar a aceitar a
entre os dois blocos, motivado pela Guerra autodeterminação de Angola, Moçambique
do Vietname, iniciada em 1959, e pelo e Guiné­‑Bissau. Salazar, enfurecido pela
abate pelos russos, apenas uns dias antes, ingerência e inamovível, recusou renovar
de um avião espião americano – do que
o Acordo Suplementar de Defesa, assinado
pelos seus efeitos práticos.
em 1957 e com data de expiração em 31
O DN sublinhou que “Portugal foi um de Dezembro de 1962, que previa a uti­
oásis depois da atmosfera de irritação e de lização sem restrições do aeroporto de
ódio estabelecida por Kruschef [assim
Santa Maria e do aeródromo das Lajes,
’
41
ARQUIVO DN
Richard Nixon à chegada à ilha Terceira, em 11 de Dezembro de 1971, para se encontrar
com o Presidente Charles Pompidou e discutir a crise monetária internacional. O presidente do Conselho
de Ministros, Marcelo Caetano, recebeu-os nas Lajes.
na Terceira. Desse impasse, resultou a par­
tir de 1964, uma posição muito precária
dos Estados Unidos relativamente à utili­
zação das facilidades das Lajes.
O governo de Marcelo Caetano foi mais
realista: evitou o confronto ideológico e
procurou obter o máximo de cooperação,
incluindo a exigência de contrapartidas
materiais, que até aí não existiam. Este foi
exactamente o ponto central de uma colu­
na de opinião escrita por Manuel Magro,
um dos quatro jornalistas que o Diário
Popular enviou para a intensa cobertura do
encontro entre Nixon e Pompidou: “A
ajuda económica agora negociada nos ter­
mos do acordo de Bruxelas faz­‑nos,
porém, pensar em como parece incrível
que o nosso país tenha durante tantos anos
permitido a utilização da base sem que
por isso fosse devida qualquer taxa ou
renda […] Fidalgo sim, mas não tanto.”
António Rego Chaves, outro dos jorna­
listas do DP, traçou o perfil de Nixon (num
artigo de opinião chegou a escrever que o
secretário de Estado do Tesouro norte­
‑americano da altura, John Connally, aban­
donou na Terceira a sua linguagem
“imperativa e nacionalista, substituindo­‑a
por um tom menos aparentado com o esti­
lo texano”, uma avaliação impensável na
imprensa portuguesa durante a época sala­
zarista): “O presidente dos Estados Unidos
é uma estrela: surgiu sempre rudemente
maquilhado perante as objectivas dos fotó­
42
grafos e o olhar indagador dos repórteres;
o seu passo, o seu sorriso, os seus gestos
foram sempre idênticos, resvalando para o
movimento mecânico do autómato. Este é
o aspecto exterior, que oculta o talento
político de um dos mais notáveis chefes
de estado que Washington abrigou.”
Mas se Nixon ganhou em vedetismo, e se
passeou de helicóptero pela ilha, Pompidou
tinha o “brinquedo” mais admirado: o mag­
nífico Concorde, o último grito da indústria
aeronáutica europeia, a primeira coisa que
Nixon viu ao aterrar na Terceira, segundo
o próprio, e que fez questão de visitar,
depois de o embaixador americano em
Paris, que viajou com o Presidente francês,
lhe ter dito que a comitiva francesa partiu
mais tarde e chegou três horas antes do que
a americana. À saída do Concorde, segundo
o DP, Nixon desabafou: “Não o digo com
inveja, mas gostaríamos de ter sido nós a
construir este avião.”
Uma passagem relâmpago
de Carter por Lisboa
A vinda de Jimmy Carter a Lisboa, em 26
de Junho de 1980, por umas escassas sete
horas – bastante atarefadas, pois deu tempo
para visitar os Jerónimos, o Palácio da Ajuda,
o Palácio de Belém e discursar na Assembleia
da República – não teve os banhos de mul­
tidão das anteriores. Foi discreta, como o
seu protagonista, um construtor de paz (os
EUA devem­‑lhe o restabelecimento das rela­
ções diplomáticas com a China e o início
das negociações com a então União Soviética,
posteriormente abortadas, para limitar a
proliferação de armas nucleares), inábil na
gestão das crises violentas que teve de
enfrentar ao longo do seu único mandato.
Carter falhou a reeleição em 1980 e os
seus últimos catorze meses de governação
foram atormentados pelas notícias perma­
nentes acerca dos 52 funcionários feitos
reféns pelo Irão, depois do assalto à
Embaixada americana naquele país (liber­
tados no exacto dia em que deixou a Casa
Branca).
Dos governantes portugueses, Carter con­
versou com o Presidente, Ramalho Eanes;
o primeiro­‑ministro, Sá Carneiro; e o
secretário­‑geral do PS, Mário Soares
(concedeu­‑lhe uma audiência de vinte
minutos). O País, ainda jovem aprendiz da
democracia, já tinha espaço para as mani­
festações de repúdio que costumam pautar
a passagem dos presidentes americanos
pelo mundo. A UDP, com o apoio do PCP,
liderou uma concentração de pessoas junto
à Praça José Fontana (onde, na altura, fica­
va situada a Embaixada americana) e o
deputado Mário Tomé chamou Carter de
“abutre e chefe de fila do imperialismo”,
responsabilizando os Estados Unidos “pelos
horrores do Vietname, Chile, Camboja, Laos
e São Salvador”.
Os capitalistas portugueses ajudaram a
reforçar a antipatia pois, nesse dia, segun­
do Mário Tomé disse ao Diário Popular, “a
multinacional Standard Eléctrica despediu
212 trabalhadores por motivos políticos,
num brinde a Carter”.
Reagan, “grande comunicador”
e amigo de Mário Soares
Foi ainda o Presidente Ramalho Eanes
quem recebeu Ronald Reagan, a 8 de Maio
de 1985. Desta vez, o Presidente america­
no chegou no “Air Force One” e demorou­
‑se dois dias, uma largueza de tempo que
deu para esticar o protocolo, por exemplo,
indo ao Palácio de São Bento para se
encontrar com Mário Soares (o semanário
O Jornal ironizou que, “um pouco à manei­
ra das histórias de esposos e amantes, é ao
primeiro­‑ministro que estão reservados os
carinhos especiais, ainda que todas as apa­
rências estejam salvaguardadas na recepção
oficial de Eanes a Reagan) e recebendo,
em audiência privada, o líder do CDS,
Francisco Lucas Pires.
Manuela Eanes, que já tivera um papel
importante na organização do programa
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Clinton, o mais europeu
dos americanos
A visita de Bill Clinton, a 30 de Maio de
2000, foi a primeira da era realmente
moderna: Portugal na UE desde 1986, mais
cosmopolita e, portanto, pouco povo e muita
segurança para receber “um presidente ame­
ricano que foi bom para a Europa”, nas
palavras de Teresa de Sousa no Público. A vinda
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| OUTONO | INVERNO 2010
enquadrou­‑se no âmbito da cimeira entre a
Europa e os Estados Unidos e houve muito
business para discutir, nomeadamente um
diferendo que hoje parece bizarro mas na
altura fez correr muita tinta, relacionado
com o embargo europeu à importação de
carne americana com hormonas.
Clinton, porém, não se ocupou dessa ques­
tão. Numa conferência de imprensa com o
cenário singelo da Torre de Belém atrás e
um sol primaveril que o fez colocar os Ray
Ban, falou no processo de autodeterminação
de Timor, da cooperação científica entre os
dois países e fez de Lisboa o primeiro porto
de um périplo que o levaria ainda à
Alemanha, à Rússia e à Ucrânia.
O Presidente americano estava a sete meses
do fim do seu mandato e procurava cumpri­
‑los com estilo. Ao longo dos oito anos de
Casa Branca, realizara já 69 visitas oficiais
(um recorde, sobretudo se comparadas com
as 24 de Reagan, seis das quais ao México
e cinco ao Canadá) e o número ainda subi­
ria, passando a incluir o Japão, a Irlanda do
Norte, a Inglaterra, o Brunei e o Vietname.
O editorial do Diário de Notícias, assinado
por Carlos Magno, notou que “já não se
via um Americano tão europeu desde que
Vincent Minelli filmou Gene Kelly a dançar
nas ruas de Paris” e todos os jornais por­
tugueses lhe fizeram o “elogio fúnebre”,
reconhecendo que, com Clinton, o mundo
mudou para melhor. Naqueles gloriosos
anos, o euro estava a subir contra o dólar,
a OCDE fez previsões excepcionais para as
duas maiores economias do mundo, havia
“confiança e optimismo”, como disse o
anfitrião Jorge Sampaio.
Bush e os ventos de Guerra
Se Clinton viera colher os frutos e os títu­
los – foi­‑lhe concedido o de “cidadão
honorário” ­– da sua viragem europeia –
Bush chegou à Terceira (mais uma vez, a
plataforma das Lajes no centro das relações
transatlânticas) trazido pelos ventos da
guerra. Duas horas bastaram, entre as 12
e as 16 do dia 16 de Março de 2003, para
que George W. Bush, Tony Blair, José María
Aznar e Durão Barroso concertassem um
discurso a quatro vozes: o tempo da diplo­
macia para o regime de Sadam Hussein
no Iraque estava por horas e, caso o líder
iraquiano não se retirasse, haveria, como
veio a acontecer, invasão.
Foi uma decisão pouco consensual, veta­
da pelo Conselho de Segurança da ONU,
e a imprensa portuguesa reflectiu as con­
tradições internas geradas pelo apoio do
então primeiro­‑ministro, Durão Barroso,
em contraste com a maioria dos restantes
governantes, incluindo o Presidente Jorge
Sampaio. A Visão, por exemplo, transfor­
mou a edição de 13 a 19 de Março de
2003 num autêntico manifesto antiguer­
ra, cujo título diz tudo: “Bush, és fixe.
E o Sampaio que se lixe”.
EPA PHOTO INACIO ROSA/LUSA
paralelo para a mulher de Jimmy Carter,
Rosalyn (ela e uma filha loirinha passearam
no Castelo de São Jorge com a então
primeira­‑dama e o filho mais velho, com
um ar muito enfastiado nas fotografias,
talvez chateado por medir menos uns três
palmos do que a amiguinha ianque)
ocupou­‑se desta vez de entreter Nancy
Reagan: as duas receberam uma associação
de pais de toxicodependentes (o combate
à droga foi uma das bandeiras de Nancy a
partir de 1982, em torno da frase que ela
própria inventou: “Just say no”) e visitaram
o Colégio Ramalhão em Sintra.
O ousado perfil que O Jornal fez do
Presidente americano reflecte o ambiente
da imprensa portuguesa dos anos 80: extre­
mamente politizada e sem grandes preo­
cupações com conceitos como
objectividade ou rigor. Mas, ainda assim,
bem escrita e com graça: Reagan, “o gran­
de comunicador”, actuou no plateau portu­
guês e o jornal denunciava “a fragilidade
de certos raciocínios reagonianos, como
aquela dos contras anti­‑sandinistas serem
combatentes da liberdade e os guerrilhei­
ros salvadorenhos a incarnação do mal”.
A política americana para a América
Latina provocou, em Portugal, reacções
ainda mais violentas do que as motivadas
pela visita do pacifista Jimmy Carter: o
grupo parlamentar do PCP abandonou o
hemiciclo quando Reagan entrou na
Assembleia da República e houve mani­
festações na rua com gigantones represen­
tando Soares e Reagan. Na interpretação
feita por O Jornal, Reagan seria tão soarista
que Ramalho Eanes ficou enciumado e o
pressionou para dar maior importância
protocolar ao banquete final (o título de
uma das peças do dia 10 foi “Belém puxou
as orelhas à delegação americana”).
Aquele semanário brincava ainda com
as dúvidas dos jornalistas americanos que
integravam a comitiva, alguns dos quais
tinham enviado previamente para a
Embaixada portuguesa em Washington
perguntas como: “Em Portugal é aceite o
uso das barbas? O bikini não era chocante?
É costume dar beijos?”.
O Presidente Bill Clinton, o primeiro­‑ministro António Guterres e o presidente da Comissão Europeia
Romano Prodi no Palácio de Queluz.
43
d.r.
A NATO e a dimensão
de género nos conflitos armados
Por HELENA CARREIRAS*
Em Outubro de 2000, o Conselho de Segurança das
Nações Unidas adoptou a resolução 1325 sobre
mulheres paz e segurança, onde se reconhece o
impacto desproporcionado dos conflitos armados
sobre mulheres e crianças, a relativa ausência de
mulheres nos processos de paz e estabilização, e se
exortam os Estados­‑membros a promover o papel
das mulheres a todos os níveis da tomada de decisão,
desde o âmbito da prevenção ao da reconstrução
pós­‑conflito. Esta resolução foi seguida por três
outras resoluções, SCR 1820 (2008), SCR 1888
(2009) e SCR 1889 (2009), que configuram, pela
primeira vez na história da organização, uma ver­
dadeira agenda internacional sobre a dimensão de
género nos conflitos e na produção de segurança.
do sobre a implementação da resolução 1325 ao nível
dos Provincial Reconstruction Teams (PRT) no
Afeganistão.
No seu conjunto, a avaliação feita no âmbito destas
várias iniciativas aponta para a existência de uma
grande diversidade de situações e perspectivas em
vários lugares da organização e entre os seus Estados­
‑membros. Três áreas de intervenção são apontadas
como prioritárias: a necessidade de promover, numa
lógica compreensiva, a formação de género e intro­
duzir posições de gender experts e gender­‑advisers; respon­
sabilizar as chefias e comandantes das operações pela
monitorização de progresso na implementação da
resolução; necessidade de aumentar o número de
mulheres nas forças dos vários países e nas forças
mobilizadas em operações. Embora todos estes
objectivos possam ser parte de uma estratégia
Os resultados mostram, pois, que a mudança
comum, a sua efectiva concretização ou efi­
sugere algumas dúvidas quando se toma
em direcção a uma maior igualdade nas forças armadas cácia
em conta resultados de estudos empíricos
não ocorrerá automaticamente como consequência
disponíveis sobre processos de integração de
género neste universo.
do tempo ou do aumento do número de mulheres.
No que diz respeito à questão da presença
de mulheres em forças militares da Aliança,
No âmbito da NATO, e face ao reconhecimento da
os dados mostram que, hoje, como há dez anos
dificuldade em implementar a resolução 1325, em atrás1, a diversidade entre os países é muito eviden­
Dezembro de 2007 o Conselho do Atlântico Norte te: enquanto alguns integraram mulheres, conferindo­
‑lhes um acesso real (e não apenas formal), outros
decidiu desenvolver esforços para construir um qua­
dro comum de conceitos e práticas, comprometendo­ reservam­‑lhes lugares meramente simbólicos. Entre
casos de extrema sub­‑representação numérica, segre­
‑se a promover o papel das mulheres nas suas
operações e aos vários níveis de decisão na Aliança. gação do treino e severas restrições funcionais, até
Para além do desenvolvimento de um código de con­ casos de ampla representação, padrões de carreira
abertos, treino integrado e acesso a papéis de com­
duta destinado ao pessoal militar destacado em ope­
rações e da colocação de dois gender­‑advisers no bate, existe uma pluralidade de situações. Se, por
exemplo, países como a Noruega permitiram o aces­
Quartel­‑General da ISAF no Afeganistão, foi publica­
da, em Setembro de 2009, a directiva Bi­‑scD 40­‑1, so de mulheres a todas as áreas operacionais, o que
Integrating SCR1325 and Gender Perspectives in The NATO possibilitou por exemplo que neste país uma mulher
Command Structure including measures of protection during armed tivesse já comandado um submarino, outros mantêm
ainda anacrónicas regulações formais limitando o
conflict, onde se condensa o essencial da política da
acesso de mulheres às academias militares e a várias
Aliança nesta matéria. O preexistente Committe on
áreas operacionais.
Women on the NATO Forces alterou a sua designação
O possível impacto de efeitos de disseminação resul­
para Committee on Gender Perspectives, mandatado
tantes da pertença à Aliança, evidente apesar de tudo
para apoiar a implementação das várias resoluções, e
foi constituído o Office on Gender Perspectives junto na adopção de princípios de doutrina e políticas
ao Comité Militar. Neste contexto, foi também comis­ comuns em determinadas áreas sectoriais, não pare­
ce ter vindo a reduzir essa diversidade. Apesar do
sionado, a oito especialistas internacionais, um estu­
‘
’
44
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
lo de conscrição; onde as mulheres não
atingiram posições “qualificadas” na estru­
tura social; onde, finalmente, não foram
prosseguidas políticas específicas, os níveis
de representação e integração de género
são bastante mais reduzidos.
Os resultados mostram, pois, que a
mudança em direcção a uma maior igual­
dade nas forças armadas não ocorrerá
automaticamente como consequência do
tempo ou do aumento do número de
mulheres. A redução de assimetrias exis­
tentes dependerá muito mais da existência
de políticas específicas e da forma como
factores exteriores determinem orienta­
ções e processos de decisão no interior
das forças armadas. E contudo, alguns
estudos também revelaram resultados
desanimadores no que se refere à eficácia
das políticas institucionais na remoção de
estereótipos culturais enraizados, que fre­
quentemente funcionam como poderosos
obstáculos à integração. O desenvolvimen­
to de políticas de integração – incluindo
a formação em questões de género a
vários níveis da estrutura militar, como
agora se pretende promover, não mostrou
a eficácia pretendida. Esses trabalhos mos­
tram que a existência deste tipo de polí­
ticas pode ser condição necessária mas não
suficiente para a integração – que o seu
impacto, enquanto positivo na integração
formal, pode não sê­‑lo necessariamente
em termos de integração social – e que
as condições para a mudança exigem uma
atenção particular à forma como são pen­
sadas e implementadas as várias medidas
de política. Sugerem, designadamente, a
necessidade de analisar as condições sob
as quais a eficácia das políticas pode variar,
considerando tanto variáveis externas (por
exemplo, a sua ancoragem institucional,
articulação ou conflito com políticas de
género noutros contextos) e características
internas (flexibilidade vs rigidez, estabili­
dade vs volatilidade, coerência, coordena­
ção, formas de implementação e
controle).
Este objectivo deverá então configurar
uma agenda paralela para a Aliança
Atlântica, se for séria a sua pretensão de
implementar a resolução 1325 e contri­
buir para os objectivos de promover a
igualdade e reduzir a violência de género
em contextos de conflito.
* Subdirectora do Instituto da Defesa Nacional
1. Carreiras, Helena, (2007), Gender and the Military. Women in
the Armed Forces of Western Democracies, London, Routledge; Ver
também dados dísponíveis em: http://www.nato.int/cps/
en/natolive/topics_50327.htm
@ nato
carácter meramente consultivo de estrutu­
ras como o Committee on Gender
Perspectives, cujo objectivo não é o de pro­
mover articulação de políticas entre os
Estados­‑membros, poder­‑se­‑ia esperar que
o trabalho de difusão de informação, par­
tilha de experiências e aconselhamento de
quase quatro décadas reforçasse a sincroni­
zação de processos e práticas. Tal não pare­
ce ter acontecido de forma significativa.
Diversos factores concorrem para expli­
car as diferenças entre países. Por um lado,
a integração de mulheres nas forças arma­
das atingiu patamares claramente mais
elevados em países expostos à democra­
tização das relações género na sociedade
em geral e à existência de pressões exter­
nas no sentido de promover a igualdade
no interior da instituição militar; onde as
forças armadas mais se abriram à socie­
dade devido a mudanças organizacionais
no sentido da profissionalização; onde,
finalmente, políticas de integração foram
propostas e implementadas. Por outro
lado, e independentemente do momento
em que as mulheres entraram na institui­
ção, em países onde essas influências
externas não se fizeram sentir com a
mesma intensidade, onde as forças arma­
das permanecem próximas de um mode­
Conferência “Women, Peace and Security”. Da direita para a esquerda: capitão Linda Johansson (conselheira sueca para o género),
secretário­‑geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, e Margot Wallström, vice­‑presidente da Comissão Europeia.
Paralelo n.o 5
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45
d.r.
A NATO, que futuro?
Por António de Almeida
Santos*
Este breve texto é, da minha parte, um colossal atre­
vimento. Mas como as minhas preocupações mentais
dominantes, neste ocaso da minha vida, se vêm cen­
trando cada vez mais no incerto futuro da
Humanidade, o fenómeno militar não escapa a essa
minha irresistível devassa.
Em livros e outros textos, cada vez mais testa­
mentários, dei por mim a reflectir predominante­
mente sobre o fenómeno, ponto de chegada
civilizacional do nosso tempo, da globalização.
também ser culpado por ele quem o não evitou.
Responsabilidades só são possíveis se e quando se
recusa essa inevitabilidade, e se não tiram as con­
sequências dela.
Venho também chamando a atenção para o facto
de os desacertos deste nosso Mundo serem em larga
medida a consequência de se ter querido confinar
o fenómeno globalizador a apenas uma parte das
consequências das causas desse fenómeno.
Exemplifico: globalizaram-se as tecnologias; glo­
balizaram-se as comunicações e os contac­
tos; globalizou-se o modelo económico
liberal; mas impediu-se a globalização polí­
Creditemos à globalização a demonstração de que,
a globalização social, a globalização
ao contrário do que comummente se pensa, o equilíbrio tica,
fiscal, e a globalização militar.
Resultado: o Mundo é já um só para os
económico global, longe de ser favorecido pela guerra,
domínios que se globalizaram. Mas perma­
tem nesta o pior dos inimigos.
nece um conjunto de recintos cada vez mais
exíguos, e que continuam a reger-se pelos
modelos político, social, fiscal e militar do
Tem-se reflectido pouco sobre ele. Em resultado século XVIII, quando o já então fenómeno agluti­
disso, não faltam aí doutos pensadores a responsa­
nante criou o Estado-Nação.
bilizarem a globalização pelo que de mal acontece,
As consequências desta globalização por metade,
como se se tratasse de uma entidade susceptível de são entre outras a de que a economia global, ao
culpa e responsabilidade, e não de uma evolução
deixar de estar submetida à disciplina jurídica dos
civilizacional tão incontrolável como a sucessão das órgãos políticos nacionais, sem passar a ser tutela­
estações do ano.
da por órgãos políticos nenhuns, ficou a funcionar
Parto, nas minhas cogitações, da convicção de que
em roda livre, com os competidores mais fortes a
a globalização, como processo em movimento, é
explorarem, dominarem e esmagarem os mais fra­
tão antiga como o ser humano. Tão antiga, sobre­
cos, além dos não competidores – naturalmente
tudo, como a domesticação do cavalo e a invenção –, na lógica do máximo lucro e da máxima con­
da roda. Sempre o homem dilatou o conhecimen­
centração da riqueza. Daí a explosão do número
to e o domínio de mais alargados espaços. O que de pobres, do número de desempregados, dos trá­
aconteceu na era moderna foi apenas o facto de a ficos ilícitos e da violência que sempre decorre da
instantaneidade das comunicações, a velocidade competição sem regras entre o forte e o fraco. Daí
supersónica das deslocações, e a domiciliação do
as crises económicas e financeiras cíclicas e cada
conhecimento, via TV, ter tornado o globo, todo
vez mais dificilmente controláveis.
ele, conhecido, devassado, pequeno.
Daí também a lógica defesa, que venho tentando,
Daí a globalização das tecnologias, das comuni­
da criação de um Super­‑Estado Político Global, para
cações, dos contactos, e em consequência disso dos o qual se transfiram os poderes políticos necessários
mercados. Tudo isso se globalizou, com consequên­
à criação de uma Nova Ordem Mundial, com uma
cias positivas e negativas. Contra os defensores de
cúpula política, económica, social, fiscal e militar,
que as negativas são da responsabilidade da globa­ que ordene o caos instalado.
lização, venho opondo que um facto, em si, não é
À objecção de que é difícil, respondo: que não
passível de responsabilidade, e que, quando inevi­
foi fácil nenhum dos grandes saltos civilizacionais,
tável, como é o caso da globalização, não pode nomeadamente o da criação da actual cúpula do
‘
’
46
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
de partida da tal unidade militar globali­
zada, que a um tempo fundisse e substi­
tuísse os actuais exércitos nacionais sem
inimigos e sem meios eficazes de se lhe
opor, se vierem a tê-los?
A próxima cimeira, de 19 a 20 de
Novembro em Lisboa, inclui na sua agenda
uma reestruturação da Aliança, visando
torná-la mais flexível e mais barata. Parece
que um relatório preliminar defende a redu­
ção do actual número de comandos. É tema
sobre o qual não tenho opinião. Mas não
resisto a pensar que se trata de um objecti­
vo pouco ambicioso, e eventualmente lesi­
vo do interesse nacional, na medida em que
pode vir a traduzir-se no encerramento do
Comando Conjunto de Oeiras.
O que me enchia a alma era algo de mais
verdadeiramente inovador: converter a
NATO num fórum de reflexão sobre os
reflexos da globalização na actual organi­
zação militar à base das centenas de exér­
citos – um por cada país – multiplicando
as Suíças militares, e reduzindo tenden­
cialmente a uma possível unidade militar
global o irrealismo de um exército por
Estado, situação que só favorece o tráfico
de armas, sabido como é que a sua simples
existência fomenta os conflitos destinados
a justificá-las e a consumi-las. Uma polí­
tica o mais possível globalizada de desar­
mamento a sério – daí a política de
globalização militar que defendo – é assim
amiga da paz e terá, entre méritos que
hoje não tem, o de canalizar para inves­
timentos amigos do homem e da paz,
colossais investimentos de hoje no fomen­
to da economia de guerra.
Creditemos à globalização a demonstra­
ção de que, ao contrário do que comum­
mente se pensa, o equilíbrio económico
global, longe de ser favorecido pela guer­
ra, tem nesta o pior dos inimigos.
Dou a quem ler este descolorido arra­
zoado o direito de achar que não passa
de uma soma de dislates. Mas, a isso,
objecto que, se há apenas meio século,
me tivessem dito que vinham aí a globa­
lização e a europeização que já vieram,
eu diria que isso era um rematado dispa­
rate. E não foi. E não é!
* Jurista
@ nato
Estado­‑Nação; que mais difícil é não fazer
nada e esperar pelas consequências; que
o que proponho não é diferente, a um
nível global, do que a União Europeia fez
a nível continental, ou seja, uma europei­
zação simultaneamente económica e polí­
tica, sem que ninguém, que eu saiba,
tenha batido em ninguém.
Quem ler este arrazoado até aqui, per­
guntará o que tem isto a ver com o futuro
da NATO. Talvez nada, talvez tudo. É minha
convicção que uma globalização política
acarreta necessariamente uma globalização
militar, além de uma globalização social,
que concretize uma nova síntese entre a
liberdade e a igualdade, e uma globalização
fiscal, que ajude a resolver os problemas
económicos que deixaram de ter solução
nacional. Sirva de exemplo a proposta tão
generosa da Taxa Tobin, que os interesses
hegemónicos condenaram. Será que hoje
não passaria?
A organização militar actual deste Mundo
semiglobalizado é uma irracionalidade.
Tantos exércitos quantas as nações para
quê? Para que quando é preciso apagar
um fogo algures, alguns dos duzentos
exércitos mundiais contribuam com um
pequeno corpo de bombeiros? A própria
União Europeia, precisará mesmo de vinte
e sete exércitos? E nós de dois submari­
nos? Sem um só inimigo?
É sabido que o melhor antídoto contra
a guerra é a democracia. Não se conhece
– o que não é muito realçado – um só
caso de guerra entre dois estados genui­
namente democráticos. E o Mundo, feliz­
mente, vai-se democratizando.
Será que sonho pensando que começa a
ser viável a redução, não direi à unidade
militar global, mas concentrações defen­
didas por grandes espaços plurinacionais,
sob o controlo de uma unidade militar
globalizada? A NATO é um produto da
Guerra Fria. Nasceu como um pacto
defensivo contra o Bloco de Leste, este
tutelado por outro pacto, o de Varsóvia.
Essa causalidade recíproca pertence ao
passado. Ex-países do Pacto de Varsóvia
pertencem, hoje, à NATO. E o próprio
Bloco do Leste se desfez. Quer isto dizer
que, até certo ponto, a NATO tendencial
e parcialmente se globalizou. Será que é
sonhar demais conceber uma futura orga­
nização militar mundial que tenda à gra­
dual substituição das actuais organizações
militares sectoriais, e à progressiva subs­
tituição de exércitos nacionais sem inimi­
go pronto a vestir? E já que sonho, será
de todo irrazoável admitir que a NATO
aceite completar o processo de globaliza­
ção, para poder constituir a base e o ponto
“O melhor antídoto contra a guerra é a democracia”.
47
POLÍTICA
Allan J. Katz, o embaixador americano em Lisboa,
classifica as relações entre os Estados Unidos e a Europa
“Somos uma espécie de primos”
Allan J. Katz veio viver para Lisboa há cerca de meio ano, nomeado embaixador
dos Estados Unidos para Portugal. O advogado e lobista deu um forte apoio
ao Presidente Obama na campanha para a presidência.
RUI OCHÔA
Por Sara Pina e Simão Martins
Allan J. Katz: “A Europa tem sido um grande parceiro dos EUA e ainda estamos a trabalhar com grande proximidade”.
48
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RUI OCHÔA
POLÍTICA
Vindo da Florida onde exerceu vários car­
gos públicos com reconhecido mérito,
Katz tem visitado várias regiões de Portugal
que acha “lindo”, com pessoas “extraor­
dinariamente gentis”, com um clima
“muito melhor” e sem a humidade e os
insectos do estado onde vivia. Considera
que “Somos uma espécie de primos”.
[Paralelo] Qual a maior diferença que encontra entre
a sua cidade, o seu estado e Lisboa?
[Allan J. Katz] Vivia em Tallahassee, na
Florida, e, primeiro que tudo, aqui o
tempo é muito melhor! Depois a diferen­
ça é que a maioria das nossas famílias veio
para os Estados Unidos de outros sítios,
nos últimos dez, quinze ou cem anos. Há
muito poucos americanos cujas famílias
estão nos Estados Unidos desde o seu iní­
cio. Em Portugal há pessoas de diferentes
origens mas, ao mesmo tempo, há um
grande número de famílias que estão cá
há muito, muito tempo. Assim, há um
ponto de vista diferente. É a maior dife­
rença cultural que vejo.
[P] Relativamente à relação do Presidente Obama
com a Europa. Acha que apesar de mais europeus
gostarem do Presidente Obama que os próprios
americanos1 as expectativas europeias foram um
pouco frustradas, porque afinal Obama não está
assim tão virado para o Atlântico?
[AJK] Penso que as pessoas estão a tirar
conclusões erradas. O Presidente Obama
já esteve em cinco ou seis países europeus
desde que tomou posse e agora em
Portugal. A Europa tem sido um grande
parceiro dos EUA e ainda estamos a tra­
balhar com grande proximidade, particu­
larmente no sentido de resolver a crise
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
‘
em que nos encontramos.
O Presidente acredita que a Europa
É bastante óbvio que a
Europa continua a ser
talvez tenha compreendido os EUA
muito importante para os
muito melhor que o resto do mundo e,
EUA. O Presidente acre­
dita que a Europa talvez
por isso, precisou de comunicar mais
tenha compreendido os
com outras partes do mundo.
EUA muito melhor que o
resto do mundo e, por
isso, precisou de comu­
nicar mais com outras
partes do mundo para ser
mais bem compreendido do que no pas­ [P] Na sua perspectiva, para Portugal é importan‑
sado. De certa forma, vemos a Europa te ficar com o lugar no Conselho de Segurança da
como um sítio de onde muitos de nós ONU?
viemos [o pai do embaixador emigrou da
[AJK] Há várias coisas que cada país, quer
Alemanha como refugiado da II Guerra se trate dos EUA ou de Portugal ou de qual­
Mundial], logo, somos como uma espécie
quer outro, consideram vantajosas. Por
de primos. E, muitas vezes, esperamos que vezes, identificamos o sucesso com coisas
os nossos primos nos compreendam que não são tão importantes como julga­
melhor do que as pessoas que não conhe­ mos e nem sempre funcionam.
cemos tão bem.
[P] Relativamente às eleições americanas. Qual diria
[P] Mas outros países ganharam muita importân‑ que são as hipóteses dos democratas. As condições
cia… por causa da economia…
são piores?
[AJK] Houve uma altura em que a Europa
[AJK] A situação é muito difícil para todos
era, provavelmente, o único continente
os detentores de cargos políticos. Neste
realmente importante para os EUA. De
momento, há um maior número de repu­
facto, houve outros que também se tor­ blicanos que perderam nas eleições primá­
naram importantes mas isso não significa rias. Logo, parece­‑me que muito do
que a Europa tenha perdido relevância. descontentamento e da irritação é direc­
Penso que a mesma coisa se passa na
cionado para o lado republicano. No fundo,
Europa. Fundamentalmente, estavam muito
a questão é se os democratas vão estar entu­
focados na economia americana e, como
siasmados com estas eleições. As eleições
acontece em Portugal, muito preocupados
nos EUA são bastante diferentes das eleições
com as suas relações com os EUA. Claro
na Europa. Os que, como eu, estão envol­
que a importância da África ou do Brasil vidos nas eleições consideram isso muito
é bastante significativa para Portugal, da
frustrante.Trabalhamos muito para incen­
mesma forma que a Europa de Leste é tivar o voto. As pessoas que aparecem para
importante para os EUA.
votar [nos EUA] são muito mais
’
49
POLÍTICA
‘
Tanto a Europa como os EUA,
que são aliados próximos,
se encontram na pior situação
económica possível.
’
importantes, porque não há taxas de par­
ticipação tão elevadas como na Europa.
Portanto, a questão não é só saber em que
candidato votam mas que eleitores é que
vão às urnas.
[P] Como avalia o Recovery Act?
[AJK] Penso que tem ajudado. É importante lembrarmo­‑nos das circuns­
tâncias em que se instituiu o Recovery
Act – foi elaborado antes de o
Presidente Obama tomar posse. Foi o reco­
nhecimento de que o sistema financeiro
estava à beira do colapso. Houve um plano
de emergência para a estabilização econó­
mica do país ainda com o Presidente Bush
no poder, em que republicanos e democra­
tas trabalharam unidos para a sua concreti­
zação. Impediram que os bancos entrassem
em falência, dada a preocupação significa­
tiva com a situação poder vir a ficar drama­
ticamente pior – e já estava muito mal. A
ironia é que os democratas foram tão bem­
‑sucedidos nas eleições que os republicanos
precisavam do apoio de todo e qualquer
democrata. Não foi uma solução perfeita,
nem agradável – foi um conjunto de cortes
nos impostos para as pequenas empresas, o
que as ajudaria a continuar a contratar e a
manterem­‑se em funcionamento e, por
outro lado, injecções de capital para impedir
despedimentos. O que acontece é que demo­
ra tempo a fazer com que mais dinheiro
entre no sistema.
[P] Diria que as expectativas de recuperação econó‑
mica foram satisfeitas?
[AJK] Penso que houve desilusões por causa
de outros factores que contribuíram para
o desemprego noutras áreas, o que resultou
numa disparidade de números que não
eram esperados.
[P] Que consequências tem para a Europa a retoma
económica nos EUA e as medidas de controle finan‑
ceiro adoptadas?
[AJK] Tratou­‑se de um fenómeno inte­
ressante, já que tanto a Europa como os
EUA, que são aliados próximos, se
encontram na pior situação económica
possível. Quando os EUA olham para o
passado e se tentam lembrar da pior
altura para a sua economia, lembram­‑se
da Grande Depressão e da deflação. Por
outro lado, quando a Europa faz o
mesmo exercício, lembra­‑se da inflação
galopante. Por essa razão, a abordagem
americana foi considerar que a inflação
não era um problema tão grave quanto
a depressão. A única maneira de recu­
perarmos da depressão foi com a II
Guerra Mundial, pelo facto de podermos
produzir em grandes quantidades. A
Europa, por seu lado, encara a inflação
como o maior problema, uma vez que,
no fim da década de 1920 e no início
da década seguinte, proporcionou o for­
talecimento da Alemanha e acabou com
as reservas de dinheiro.
RUI OCHÔA
[P] O que acha do Tea Party?
[AJK] Em primeiro lugar, há um leque
alargado de pessoas distintas. Não existe
só um Tea Party e diversas organizações
abusaram desse nome. Neste momento,
nos EUA, há muita coisa a acontecer. Há
as frustrações com a economia e mudan­
ças que, em qualquer sociedade, levam as
pessoas a sentir­‑se muito inseguras e insa­
tisfeitas, e, por vezes, fazem com que
associem a sua infelicidade a algo que não
está relacionado com a mudança de poder.
Na sua grande maioria, o Tea Party repre­
senta a ala mais reaccionária do Partido
Republicano. O que fizeram foi incentivar
as pessoas que por vezes não votam, foi
nomear candidatos que podem ter influ­
ência naqueles eleitores que não
são nem republicanos nem demo­
cratas, mas se situam no meio do
espectro eleitoral e vão votando
num partido ou noutro.
Allan J. Katz: “Trabalhamos muito para incentivar o voto. As pessoas que aparecem para votar [nos EUA] são muito mais importantes,
porque não há taxas de participação tão elevadas como na Europa”.
50
Paralelo n.o 5
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RUI OCHÔA
POLÍTICA
relevância por causa do Afeganistão e do
Iraque. Os aviões não têm necessariamen­
te de aterrar na base, mas se o fizerem
podem chegar a qualquer lado. Tem havi­
do uma discussão entre os governos por­
tuguês e americano para que, numa
perspectiva a longo prazo, possamos
encontrar utilidades adicionais para as
Lajes, não apenas para os EUA, mas tam­
bém para outros países da NATO. Podemos
trabalhar com o Governo português no
sentido de identificar algumas dessas
oportunidades.
[P] Os Estados Unidos apoiam a manutenção do
Comando Regional Sul da NATO em Oeiras?
[AJK] Ainda não foram tomadas decisões
concretas relacionadas com a localização mas
o que temos tentado levar a cabo é antecipar
um plano estratégico geral. Temos que reco­
‘
nhecer que a NATO foi criada – e Portugal
foi membro fundador da organização –
especificamente para impedir o avanço sovi­
ético na Europa Central. Desde essa altura,
houve mudanças estruturais na NATO. O
clima actual cria tanto uma oportunidade
como uma preocupação: por um lado, exis­
tem muitas alianças da NATO em diversas
partes do mundo e a forma como reagimos
como aliados tem de ser distinta da forma
como reagimos no passado; por outro, é
necessário encontrar mecanismos eficientes
e efectivos para lidar com essa situação e
parte dessa actuação deverá envolver rees­
truturação e resultará em mudanças opera­
cionais da NATO.
1. Dados do mais recente inquérito à opinião pública euro­
peia e norte­‑americana pelo Transatlantic Trends em www.
transatlantictrends.org
É necessário equilibrar todos os factores
de forma a não destruir o crescimento
económico.
O lado americano está a actuar de forma
a não absorver todas as reservas nos merca­
dos, sob pena de as empresas não poderem
contrair empréstimos. Qualquer que seja a
abordagem, é útil tanto para os EUA como
para a Europa manter as taxas de juro baixas,
favorecendo o sector privado de forma a
contribuir para o crescimento.
[P] Os Estados Unidos foram mais bem­‑sucedidos
na recuperação da crise?
[AJK] Depende da sua definição de suces­
so. Não estou a tentar evitar a questão,
que é justa e pertinente. Penso que os EUA
fizeram progressos significativos, consi­
derando que era impossível calcular a
gravidade da situação na altura em que
foram tomadas essas decisões. Devemos
recordar que foi apenas em Setembro de
2008 que os mercados bolsistas começa­
ram a colapsar, de modo que não era pos­
sível prever os acontecimentos tão
prematuramente.
[P] No que diz respeito à base das Lajes. A base
está a perder importância?
[AJK] Não. Creio que devemos ver as Lajes
como determinantes para os EUA em
questões de segurança. O papel que tra­
dicionalmente desempenhou vai evoluir,
tendo em conta que houve uma altura em
que era uma base absolutamente essencial,
como se fosse a estação de serviço do
Atlântico. Neste momento, é da maior
Paralelo n.o 5
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RUI OCHÔA
Creio que devemos ver as Lajes como determinantes
para os EUA em questões de segurança.
’
Allan J. Katz: “Somos uma espécie de primos. Os Estados Unidos e a Europa são ‘uma’.”
51
PORTEFÓLIO
Impressões fotográficas dos EUA
João de Vallera, durante quatro anos Embaixador de Portugal em Washington,
captou em imagens fotográficas muitas das suas experiências nos Estados Unidos.
Acedemos a uma pequena amostra deste particular olhar português sobre a América
que publicamos nestas páginas.
O autor.
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PORTEFÓLIO
Obelisco de Washington DC e Capitólio.
Convenção democrata em Denver.
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Tomada de posse do Presidente Obama, 10 de Janeiro de 2009.
No jardim do Museu Hirschorn.
53
PORTEFÓLIO
Linha do horizonte com nevoeiro, Nova Iorque.
Casamento na Florida.
Pormenor do monumento à Guerra da Coreia.
54
Grand Canyon.
Paralelo n.o 5
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PORTEFÓLIO
Manhattan.
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
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PORTEFÓLIO
Nova Iorque, Little Italy.
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PORTEFÓLIO
Passeio a dois no zoo de Washington DC.
Encontro de Ron Mueck com John Currin.
Dia de Portugal em Bethlehem, Pensilvânia.
Embaixada portuguesa em Washington com (muita) neve.
Paralelo n.o 5
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57
SOCIEDADE
Médicos portugueses em Harvard
Maria Inês Sousa e José Sandoval foram escolhidos entre 36 estudantes
de Medicina de todo o país. Passaram mais de um mês entre ratos de laboratório
e o tu­‑cá­‑tu­‑lá dos cérebros brilhantes da Harvard Medical School.
A oportunidade foi única, a experiência incrível.
Por Joana Carvalho Fernandes
por David E. Golan e Tomas Kirchhausen,
em Harvard. Ela em Junho e Julho, ele em
Agosto e Setembro.
Inês explica que o júri considerou três
vectores para chegar aos nomes dos dois
alunos: “Tinham em atenção a experiência
laboratorial prévia de cada candidato, o seu
currículo e a carta de motivação.”
“Enquanto frequentava o curso fiz inves­
tigação no Instituto Gulbenkian de Ciência,
‘
O que se tira deste estágio é a vivência em
laboratório, o contacto com diferentes maneiras de
fazer ciência, identificamos os nossos pontos fortes
e os fracos, para podermos melhorar, crescer.
’
Depois de três angustiantes fases de selecção, Maria Inês e José estagiaram em Harvard.
58
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
Rui Ochôa
Ela tem 23 anos, foi aluna da Faculdade de
Medicina da Universidade de Lisboa. Ele
tem 25, estudou na Faculdade de Ciências
Médicas da Universidade Nova de Lisboa.
Candidataram­‑se ao Programa Harvard
Medical School, iniciativa sugerida pela
Associação Nacional de Estudantes de
Medicina e bem recebida por Harvard e
pelo Ministério da Ciência, Tecnologia
e Ensino Superior, e apadrinhada pela
Fundação Luso­‑Americana.
Depois de três angustiantes fases de selec­
ção, Maria Inês e José estagiaram durante
mais de um mês nos laboratórios liderados
Rui Ochôa
SOCIEDADE
Voltam ambos fascinados com o tu­‑cá­‑tu­‑lá dos nomes importantes dos cérebros de Harvard.
no grupo de Biologia Evolutiva, e parti­
cipei em vários projectos em que estudei,
sobretudo, a evolução de células humanas
in vitro”, acrescentou.
José trabalhou durante o último ano no
Centro de Investigação de Doenças Crónicas
da Faculdade de Ciências Médicas, a estudar
tráfego intracelular.
Os percursos de cada um até chegar aqui
são diferentes mas, sobre esta experiência,
as vozes confundem­‑se muitas vezes. Um
fala, o outro assente, trocando depois sor­
riso sempre partilhado. Foram sete semanas
dedicadas a um tema que era completa­
mente novo. Nenhum dos dois teria esco­
lhido a área em que trabalhou, mas ambos
consideram que a oportunidade foi única
e que aprenderam muito.
“Quando cheguei eles tinham um pro­
jecto bem definido, já tinham delineado o
que eu ia fazer. Fui estudar hematopoiese
[o processo de formação, desenvolvimen­
to e maturação dos elementos do sangue]
e isolar algumas células da medula óssea
de um rato para que pudessem ser utiliza­
das noutros estudos”, conta Inês.
O projecto em que José participou tinha
que ver com a observação de células ao
microscópio para caracterizar a entrada do
vírus influenza, o vírus da gripe, em células:
“Não tivemos um resultado claro, mas tive­
mos indicações de que a forma como até
agora se julgava que o vírus entrava nas
células e se movimentava dentro delas pode
não ser a correcta. As conclusões do traba­
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
‘
mente à vontade, desenvolvi todo o traba­
lho sozinha, senti uma responsabilidade
enorme”, diz.
José concorda. “Sentíamos uma respon­
sabilidade enorme, o material de investi­
gação é todo muito caro, deixar cair
alguma coisa é um prejuízo impensável,
mas em momento algum nos disseram que
não podíamos pedir alguma que entendês­
semos necessária para o nosso trabalho”,
acrescentou. “Mas matámos muitos rati­
nhos”, riem.
Ambos mantêm ligações com os investi­
gadores dos laboratórios onde estagiaram,
mantêm­‑se a par dos projectos.
Inês e José ficaram alojados em casa de
famílias onde havia estudantes de outros
países. Ela alugou uma bicicleta que peda­
lava 25 minutos para chegar ao laboratório
“muito mais depressa do que se fosse de
autocarro”. Ele ia de autocarro. Fora do
laboratório riram, passearam por ali perto,
foram à praia, fizeram amigos.
Antes de sentirem vontade de voltar para
Harvard ambos sentiram, em Harvard, von­
tade de não voltar para Portugal.
Uma das perguntas que o júri da entre­
vista fez aos candidatos foi onde se viam
lho são um contri­
buto para tornar o
Fomos para uma das melhores
combate ao vírus
mais eficaz”, disse.
universidades do mundo
“O que se tira deste
estágio é a vivência e não assistimos ao “doutor para cá,
em laboratório, o
doutor para lá”.
contacto com dife­
rentes maneiras de
fazer ciência, identificamos os nossos pon­
no futuro, “daqui por dez anos”. E também
tos fortes e os fracos, para podermos melho­ aqui concordam. Querem exercer medici­
rar, crescer. E aprendemos muito, as áreas
na, não querem deixar de investigar.
de conhecimento não são estanques. Em
Por agora, Inês vai fazer o exame de espe­
dado momento do nosso trabalho este cialidade e depois fará o ano comum. Segue­
conhecimento será útil”, acrescentam.
‑se o doutoramento, enquanto exercer a
Voltam ambos fascinados com o tu­‑cá­‑tu­‑lá
especialidade. Nos poucos tempos livres
dos nomes importantes dos cérebros de pratica desporto e prefere não ler notícias,
Harvard: “Fomos para uma das melhores não gosta.
universidades do mundo e não assistimos
José segue para um doutoramento em
ao ‘doutor para cá, doutor para lá’. Os Oncologia em Cambridge, onde ficará
investigadores são mais acessíveis, apesar durante os próximos quatro anos. Depois
de serem pessoas importantíssimas. São quer voltar para Portugal e escolher uma
pessoas muito solícitas, muito acessíveis. especialidade médica. No tempo que sobra
É muito diferente das experiências que gosta de estar atento ao mundo que o
temos aqui”, diz Inês.
rodeia.
E, dizem, tiveram sorte por não sentir
Gostaram, repetem, muito­, muito da
dentro dos laboratórios em que trabalhavam
experiência. Viram a participação no pro­
o clima de competitividade que sentiam grama como antecâmara de projectos futu­
alguns investigadores da Universidade.
ros. Os dois querem sair do País para
Inês sentiu também diferença na forma estudar e trabalhar, mas nenhum deles
como trabalhou: “Com muito mais inde­ arrisca dizer que não volta: “A experiência
pendência, tive total liberdade no labora­
inspirou­‑nos e é verdade que ser investi­
tório. Durante dois ou três dias
gador neste país é pior do que ser médico,
ensinaram­‑me algumas técnicas que eu mas também não é tão mau como pintam”,
ainda não sabia, depois estive completa­
concordam.
’
59
SOCIEDADE
Boas histórias salvam vidas
Foi com Henry James (autor sobre o qual está a escrever um livro) que Rita Charon,
médica e docente no College of Physicians and Surgeons of Columbia University,
em Nova Iorque, encontrou um caminho para tornar os cuidados de saúde mais eficazes.
Por Isabel Marques da Silva*
[Paralelo] Henry James, e depois Marcel Proust,
impressionaram­‑na pela capacidade de “não só
colocar no papel as palavras das pessoas mas tam‑
bém de captar cada nuance dos seus sentimentos”.
Como é que isso a levou até esta nova disciplina?
[Rita Charon] Henry James foi, de facto, um
instigador. Eu licenciei­‑me em Biologia, não
em Literatura. Depois fui estudar medicina
em Nova Iorque e comecei a trabalhar no
hospital. Lia muito, mas não sabia muita
coisa sobre como ler bem. Lia romances sem
perceber o que fazer com eles. Um dia alu­
guei uma casa na praia para uma semana
de férias e, literalmente, peguei no primei­
ro romance de Henry James que me apa­
receu. Li As Asas da Pomba todas de um
fôlego e dei­‑me conta que não sabia que
alguém podia captar de forma tão precisa
o que acontece na consciência. Havia diá­
logos, factos, uma história, mas era tudo
apresentado com uma enorme precisão e
compreensão do que se passava na mente
das personagens. Era como aqueles relógios
de pulso com bracelete expansível. Quando
a puxamos vêem­‑se as ligações elásticas. Ele
expunha tudo o que estava nos interstícios
das ligações mentais a partir das quais as
personagens pensavam, faziam ou diziam.
Rui Ochôa
Saber captar a história do doente pode ser
vital para que este leve a bom termo o tra­
tamento e que a cura seja mais rápida e
duradoura. A Medicina Narrativa é um pro­
grama interdisciplinar, onde se combinam
ferramentas da literatura, psicologia e filo­
sofia, que Charon vem desenvolvendo desde
2000. O colóquio internacional “Doença e
Diálogo”, organizado pelo Centro de Estudos
Anglísticos e pelo Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa, em parceria com o
Centro de História da Cultura da Universidade
Nova de Lisboa, convidou a autora de
Medicina Narrativa: Honrar as Histórias da Doença.
Saber captar a história do doente pode ser vital para que este leve a bom termo o tratamento.
60
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
Rui Ochôa
SOCIEDADE
[P] Isso é uma forma de protecção do médico que
não quer mergulhar na vastidão dos problemas da
pessoa?
[RC] É, de facto, uma defesa face a coisas
que não sabem resolver: “Não me diga que
o seu filho está preso”, “não me diga que
tem pesadelos em que está a ser violada”,
“eu sou só um cardiologista”. Mas é também
uma protecção contra algo mais profundo:
é sabido que quem trabalha com pessoas
doentes e que estão a morrer tem mais pro­
babilidades de se tornar numa pessoa triste,
com mais sofrimento psicológico.
“Para trabalharem bem juntos, médico e doente
precisam de uma ligação”.
[P] Como é que percebeu que essa maneira de escre‑
ver a podia ajudar na sua prática médica?
[RC] Além de trabalhar no hospital, eu tinha
o meu pequeno consultório num bairro
de Nova Iorque onde recebia os meus
doentes, só meus. Eram pessoas pobres de
Upper Manhattan e eu era a sua médica de
família. Demorou algum tempo até que eu
percebesse que o que estes doentes preci­
savam era que os ouvisse com muita aten­
ção. Que fizesse alguma coisa com os seus
relatos, os dos médicos das urgências onde
iam, os dos familiares que os acompanha­
vam. Havia ainda os relatos dos exames e
análises. Relatos em palavras, imagens,
números, outros em silêncios e linguagem
corporal. Eu era a leitora que dava coerên­
cia a esses pedaços, mesmo que eles se
contradissessem ­– o que acontecia sempre.
Precisava de lhes dar um sentido, mesmo
que provisório e mesmo que se provasse
que estava errado. Mas tinha de fazer essa
tentativa. Sabia que não tinha as ferramen­
tas para isso e tinha consciência que pre­
cisava de aprender mais sobre narrativa,
sobre compreender histórias.
[P] A eficácia do tratamento aumenta quando, além
dos dados quantificáveis, são levados em conta fac‑
tores como as histórias dos doentes?
[RC] Exacto, mas temos de mudar a men­
talidade dos meus colegas. Eles diziam
muitas vezes: “Rita, essa não é a tua função,
isso cabe ao assistente social.”
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
[P] E escondem­‑se atrás da técnica, da ciência?
[RC] É algo feito de forma consciente mas
não de forma maliciosa. Pensam que essa
frieza ajuda na capacidade de fazer um
melhor julgamento clínico do caso. Vão
convencendo­‑se de que isso é necessário
e que os protege. O que eles não sabiam
é que essa protecção também os impedia
de aceder à alegria. É uma “alegria negra”
em que sabemos que a nossa presença
ajudou, que aquela pessoa teve uma morte
“melhor” porque foi ouvida.
[P] Como é que escrever as histórias ajuda o médi‑
co, por um lado, a compreender melhor os pacien‑
tes e, por outro, a lidar melhor com essa tristeza?
[RC] Para trabalharem bem juntos, médico
e doente precisam de uma ligação. Não é
que os médicos tenham de “se dissolver”
no doente. Mas é preciso realçar a noção
de que têm de trabalhar no mesmo senti­
do. O médico é activado por o que o doen­
te diz, como se fosse uma ignição. Penso
que as histórias do doente têm esse efeito
no médico: animam­‑no, dão­‑lhe vida e
despoletam os seus conhecimentos, perícia,
sensibilidade de forma a convocar uma
resposta e a colocá­‑la ao serviço dessa pes­
soa em particular.
[P] Porque é que os médicos devem escrever as
histórias, seguindo os cinco blocos de construção
da narrativa de que fala no seu livro (temporali‑
dade, singularidade, causalidade, intersubjectivida‑
de, ética)?
[RC] Essa é apenas a forma de treinar até
chegar ao ponto de estar disponível para
integrar as histórias do doente, todos os
pormenores de que falámos. Quero que os
meus alunos e colegas sejam capazes de
reconhecer o que é emanado pelo doente.
Que sejam capazes de ler nas entrelinhas,
no tipo de linguagem escolhida, nas metá­
foras que usam, no cronograma dos factos.
A maneira mais rápida de ensinar alguém a
ser um “ouvinte próximo” é ser um “leitor
próximo”, no sentido de estar interessado
na forma como é comunicada a mensagem.
Se os médicos não escreverem, não há nada
de material sobre o qual possam reflectir.
Mas o objectivo é que usem as técnicas nar­
rativas quando estão a ouvir os doentes,
tornando o tratamento mais eficaz.
[P] De que forma a interdisciplinaridade
ajuda à eficácia?
[RC] A narratividade na medicina cria
uma espécie de clareira na floresta.
É um espaço de comunhão. Quando
comecei a fazer seminários, os médi­
cos e enfermeiros que se nos junta­
vam partiam de pontos de vista
muito diferentes porque habitual­
mente eles não se dão muito bem
uns com outros. Numa sessão de
escrita tinham de descrever o que os
comovia na situação de um doente.
Quando liam os textos, davam­‑se
conta de que não sabiam quase nada
sobre o que os outros faziam. Agora
entendiam de forma mais completa
a função de cada um, eram mais
transparentes. Havia muitas divisões
no meio hospitalar entre as pessoas
e elas estão muitas vezes em compe­
tição ou em oposição. As narrativas
criam essa clareira de entendimento
onde o que interessa é unir­‑se de
forma a acabar com o sofrimento do
doente. E nessa clareira podemos
entrar com todo o nosso ser: não é
só o médico, sou eu, a pessoa!
* Jornalista da SIC
61
SOCIEDADE
Conferência dos Oceanos
Em busca da Dow Jones dos oceanos
Lisboa faz a ponte entre EUA e UE no primeiro encontro de especialistas dos oceanos.
O objectivo? Cruzar informação para alcançar políticas de sustentabilidade viáveis.
Por Joana AZEVEDO Viana*
mais alto nível, que vão cruzar dados
sobre os oceanos para chegar a consen­
sos”. A explicação é de Charles Buchanan,
administrador da Fundação e um dos
organizadores do evento, que adianta à
Paralelo: “Com a História que Portugal tem,
é de lamentar que as questões do mar não
sejam ainda o forte do País.”
Recorrer ao tempo dos descobridores
parece saudosista, mas Buchanan sabe do
que fala. O especialista em
ciência e tecnologia do
ambiente é o primeiro a
reconhecer a importância
Talvez o primeiro esforço
que Portugal teve no des­
bravamento dos recursos
desta importância na História.
‘
’
do mar, que precisam actualmente de
atenção extra ao nível político. “A verda­
de é que, se cada especialista seguir o seu
caminho, sem compararem resultados
entre si, as conclusões não serão úteis para
chegar a novas políticas do mar”, explica
Buchanan.
“Precisamente por isso”, adianta à Paralelo,
é que especialistas de todas as partes do
mundo, dos Estados Unidos à Suécia, da
França às Bermudas, foram convidados a
juntar­‑se em Lisboa para um momento
histórico de decisão do futuro dos oceanos,
no que Buchanan garante ser “talvez o pri­
meiro esforço desta importância na
História”.
d.r.
Lisboa tornou­‑se o centro dos oceanos,
num encontro histórico de especialistas
da área, acolhido pela FLAD e pelo
Instituto Superior de Psicologia Aplicada
(ISPA). Organizado em colaboração com
a Universidade de Maryland e a National
Oceanic and Atmospheric Administration
(NOAA), o evento foi baptizado de
Conferência dos Oceanos, ainda que seja
“mais um encontro de investigadores do
Actualmente, os mares enfrentam riscos absurdos. As últimas estatísticas dos efeitos da actividade humana nos oceanos
dão conta de 18 mil itens de plástico por quilómetro quadrado.
62
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
Políticas para que vos quero
O encontro aconteceu a mês e meio da
Cimeira da NATO e a proximidade das
datas não é aleatória. Apesar de as políti­
cas da Aliança relativamente ao mar se
concentrarem em questões estratégicas, o
facto é que há muito que pode ser alcan­
çado neste encontro com um olho na
Cimeira. O biólogo marinho Emanuel
Gonçalves explicou à Paralelo como “A
Aliança do Atlântico Norte trata o mar
numa perspectiva mais militar, mas se
pudermos juntar processos a nível mun­
dial e conseguirmos formar pontes entre
as observações dos oceanos pelos cientis­
tas e as áreas de governação, estaremos a
dar um passo muito importante” para
garantir a sustentabilidade deste recurso.
Actualmente, os mares enfrentam riscos
absurdos. As últimas estatísticas dos efeitos
da actividade humana nos oceanos dão conta
de 18 mil itens de plástico por quilómetro
quadrado, da mesma forma que as alterações
climáticas provocam uma cada vez maior
acidificação dos oceanos. “Com a absorção
do CO2, a água fica mais ácida, o que impe­
de que os organismos se desenvolvam. São
impactos brutais nos oceanos, e não são um
problema longínquo, são um problema do
dia­‑a­‑dia”, sublinha Gonçalves.
Dow Jones dos oceanos
Portugal é a casa do encontro, mas as pro­
postas de políticas que dele surgirem não
se vão limitar às relações bilaterais com os
Estados Unidos. A verdade de La Palisse
aqui é que a água é, mais do que o recur­
so que existe em maior quantidade no
planeta, aquele do qual mais dependemos.
E as más políticas marítimas, aliadas ao
aquecimento global e às alterações climá­
ticas, têm contribuído, sem conta, peso
nem medida, para a degradação de todos
os recursos que os mares albergam. “Temos
d.r.
SOCIEDADE
"É necessário definir como é que os Estados usam o seu território aquático".
problemas sérios de insustentabilidade dos
oceanos e é necessário criar um índice que
acompanhe a evolução dos acontecimen­
tos”, explica o biólogo marinho, que não
esconde as altas expectativas postas no
encontro. “Acima de tudo, trata­‑se de uma
questão de governação”, explica. “Em terra
tudo é território, tudo tem jurisdição, mas
no mar não é assim. É necessário definir
como é que os Estados usam o seu terri­
tório aquático e, sobretudo, como é que
podemos gerir os oceanos de território
aberto, ou seja, a maior parte deles. Temos
um longo caminho a percorrer.”
O objectivo final do encontro, repete o
biólogo, é chegar a um consenso para a
criação de um índice para a sustentabili­
dade, “uma espécie de Dow Jones para os
oceanos”, brinca. E de que forma é que se
pode alcançar esse índice? “O ideal seria
que o encontro resultasse num documen­
to que resolva o falhanço dos mecanismos
de gestão dos recursos marítimos. A ver­
dade é que há preocupações a esse nível:
a caça à baleia levou à necessidade de se
criar uma convenção num órgão de alto
nível, mas a pesca, por exemplo, continua
sem grande controlo e isso leva ao desa­
parecimento de vários recursos”, sublinha
Gonçalves.
‘
Temos problemas sérios
de insustentabilidade
dos oceanos.
’
d.r.
Pelas mãos dos cerca de 35 participantes
do encontro, Lisboa torna­‑se o palco
importante que acolhe projectos em desen­
volvimento na área da sustentabilidade dos
oceanos. “Vêm juntos para ganhar uma
melhor sinergia de esforços, para comparar
processos e assegurar mais qualidade aos
projectos. É ambicioso, mas é uma tenta­
tiva, e acima de tudo uma esperança, de
criar uma ponte para o futuro”, explica
Charles Buchanan. Emanuel Gonçalves
completa: “Sei que vamos conseguir criar
um statement, um documento com recomen­
dações que permitam tomar decisões e
articular os diferentes dispositivos para um
melhor investimento na área.”
* Jornalista do jornal I
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
63
SOCIEDADE
Explorar, explorar, explorar
Cheguei a Cambridge, EUA, em Agosto de 2009 com duas malas médias,
dez anos de jornalismo cultural e uma nova vida por vir.
Não consigo pensar em melhor altura no meu percurso para gozar em pleno
a Nieman Fellowship for Journalists at Harvard. Estava numa fase
de transição e ser uma Nieman Fellow justamente nesta altura
foi daqueles privilégios que uma pessoa sabe logo serem irrepetíveis.
D.R.
Por Joana Gorjão Henriques*
"Jornalismo não falta na sede da Nieman, uma casa branca com um jardim maravilhoso, impecavelmente cuidado.
Mas é mais na vertente académica". Aqui retratado o grupo de 2009–2010. Joana Gorjão Henriques é a segunda sentada da esquerda para a direita.
64
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
SOCIEDADE
Um dos objectivos deste programa é pre­
cisamente que os jornalistas parem um ano
para pensar, aprofundar ou experimentar
outros interesses através de aulas em Harvard
– e que ganhem uma nova frescura. Mas
também que convivam com os seus fellows,
o que eu e os meus colegas fizemos ques­
tão de levar à letra. Um dos meus profes­
sores, o teólogo Harvey Cox ­– que apesar
de reformado continua a dar uma aula sobre
Religião na América –­ dizia para a turma
inteira que ser um Nieman Fellow era a melhor
coisa do mundo. Ele próprio, brincava, que­
ria ser um depois de morrer.
Harvey Cox era assim enfático porque a
Nieman Fellowship é, de facto, um luxo.
Durante um ano, um grupo de jornalistas
­– metade americanos, metade internacio­
nais ­– forma uma classe. A minha, a classe
de 2010, tinha 23 repórteres dos mais
variados estados americanos e países, da
África do Sul à Inglaterra.
O lado especial de ser um Nieman que
Cox sublinhava é que cada fellow escolhe o
seu próprio programa em Harvard, vai às
aulas em qualquer uma das faculdades,
mas, salvo algumas excepções, não tem
obrigações para cumprir. Ou seja, um
Nieman Fellow senta­‑se nas salas de aula, ouve,
participa, só que não tem a ansiedade dos
exames. Isto é a regra, porque há excep­
ções, como na cadeira de Public Narrative
que tirei, dada pelo “community organizer”
Marshall Ganz, e em que tive de escrever
ensaios todas as semanas e apresentar tra­
balhos finais.
Na Fundação só exigem que o jornalista
leve a sério pelo menos uma cadeira semes­
tral. Há, assim, um voto de confiança do
curador Bob Giles nos jornalistas para eles
aproveitarem Harvard como quiserem.
Também não há um trabalho ou uma tese
– nada ­– para entregar à Fundação no final
do ano. Aquilo que nos pedem é que vamos
aos seminários e palestras que organizam,
a uma das aulas de jornalismo narrativo ou
de escrita para ficção na Fundação (estas
sim, têm trabalhos de casa semanais) e
pouco mais. E claro, que façamos a cha­
mada sounding onde, a cada segunda­‑feira,
um dos fellows organiza um jantar na
Lippmann House, a sede, e faz uma apre­
sentação de si durante uma hora, seguida
de perguntas dos colegas – e de dança e
copos nalguns casos.
Nada do que fiz em Harvard teve a ver
com artes. Não porque tivesse perdido o
prazer da cultura, mas porque o meu objec­
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
‘
tivo era descobrir
Na fundação só exigem que o jornalista outras áreas e fazer
justamente aquilo
leve a sério pelo menos uma cadeira
que este ano mais
semestral. Há, assim, um voto de confiança
estimula: explorar,
explorar, explorar.
do curador Bob Giles nos jornalistas para
É fácil perdermo­
eles aproveitarem Harvard
‑nos no mundo
que passa por
como quiserem.
Harvard. Difícil é
fazer as escolhas,
porque seguir uma
aula implica muitas vezes não seguir outra
lhoso, impecavelmente cuidado. Mas é mais
que acontece à mesma hora. Acho que na vertente prática que académica, com
nunca ouvi tantas vezes a palavra overwhelmed jornalistas de carne e osso a entrarem e a
como na primeira semana de aulas.
saírem dali todos os dias.
Apesar de ir com um plano definido na
Harvey Cox já conheceu muitos destes
cabeça – concentrar­‑me nos estudos afro­ Nieman Fellows ao longo dos quarenta e cinco
‑americanos – quis também ir a aulas sobre anos que ensina na Harvard Divinity School,
liderança, religião, política americana, polí­ e sabe bem o que é o programa. O que ele
tica internacional, política económica ou não viveu foi a intensidade da vida de grupo
jihad global. A ideia era não só aprofundar ­– que varia conforme os anos e os fellows,
o meu interesse por questões de diversi­
claro – e que foi, sem dúvida, uma das expe­
dade racial e cultural como chegar a riências mais fortes da minha fellowship.
Portugal com um melhor retrato da
Não me senti apenas esmagada pelos miú­
América, dado por alguns dos maiores dos de 18 anos nas salas de aula, senti­‑me
especialistas na sua área.
esmagada também pelos percursos dos
Fascinante foi viver a vibração intelectual
meus amigos, pessoas que arriscaram mui­
de uma cidade tão pequena, Cambridge, tas vezes a vida quando foram cobrir guer­
que, com Harvard e o MIT, terá uma das ras, desceram às mais sombrias histórias
maiores concentrações de cérebros do
humanas ou largaram um trabalho fixo para
mundo, sentar­‑me nas salas de aula com a serem freelancer noutro país. Confirmei assim
maior diversidade racial que vi numa uni­ uma ideia que sempre tive ­– e que conti­
versidade e ser esmagada pelo nível inte­
nuarei a tomar como credo até prova em
lectual de miúdos de 18 anos – sim, porque
contrário: a de que o jornalismo é feito de
se vai tanto a aulas de licenciatura como pessoas de carne e osso, inteiras, e estou a
de pós­‑graduação, não há barreiras.
falar tanto das pessoas que são os rostos
Quando digo que esta foi uma experi­ das histórias como de quem as conta.
ência decisiva é porque de facto aquilo
Talvez por isso tenhamos abandonado
que fiz em Harvard está­‑me a levar, rapidamente os imensos projectos iniciais
enquanto escrevo, a uma pós­‑graduação para discutir o futuro do jornalismo e pre­
em Sociologia na London School of ferido, em vez disso, partilhar o nosso
Economics para me dedicar aos estudos quotidiano de pessoas nas piadas sobre o
raciais (tenho a sorte de trabalhar num
próximo evento social, no barbecue no jardim
jornal que considera a formação dos jor­ de alguém, na sala de estar do hotel quan­
nalistas importante e que me deu mais um do fomos à neve, na desorganização da foto
ano de licença sem vencimento).
de grupo tirada já na praia, na gargalhada
Mas no meio disto, onde fica o jornalis­ entre dois copos de vinho, no embirrar
mo? Harvard não tem escola de
com o barulho das trincas nas bolachas
Comunicação Social, por isso é que tem a
que nos davam nos seminários, no ter
Nieman Foundation for Journalism – nas­ imensas ideias e fazer só algumas.
ceu de uma doação de Agnes Wahl Nieman,
Vários antigos Nieman Fellows disseram para
que queria que o dinheiro fosse para criar nos gozarmos bem uns aos outros. Acho
a escola que faltava, mas na altura, 1938, que foi das poucas coisas que resolvemos
a direcção da Universidade decidiu em vez
fazer exactamente como nos disseram.
disso criar este programa sabático. * Fellow 2009-2010 da Nieman Fellowship for Journalists,
Jornalismo não falta na sede da Nieman, programa financiado pela FLAD e pela Fundação Calouste
uma casa branca com um jardim maravi­ Gulbenkian e jornalista do Público
’
65
Patrícia Fonseca
CARTA BRANCA
Boston:
“Education is my business”
Manuel Anta
‘
A frase “a educação pode tudo: até faz dançar os ursos”,
da autoria de Leibniz, corre o risco de eternizar o seu prazo
de validade na parte mais britânica da América do Norte.
Em Boston, os ursos primam pela ausência. Se ali vivessem,
muito poucos se espantariam se a cidade e arredores
se transformassem, num ápice, numa gigantesca pista de dança.
Com Miami a vender turismo, Hollywood a vender sonhos, Nova
Iorque a vender de tudo e Washington a privilegiar a política,
Boston clama aos quatro ventos: “education is my business”.
Em Boston, que acredita que quanto mais se sabe mais longe se
vai, e num raio de poucos quilómetros, convive­‑se ao longo do
ano com o ritmo trepidante de uma densidade universitária sem
paralelo nos Estados Unidos da América. Nela se juntam vários
institutos ou estabelecimentos de ensino de primeira água. Entre
eles, três símbolos mundiais da arte de bem ensinar: Universidade
de Boston, que se espreguiça ao longo da Commonwelth Avenue,
e em Cambridge, do outro lado da bacia do Charles River,
Massachusetts Institute of Technology (MIT) e Universidade de
Harvard. Nesse diálogo, com o rio de permeio, o que mais chama
a atenção é a organização espacial: o campus, situado e inserido na
vida da cidade. Faculdades, bibliotecas, centros de investigação,
piscinas, restaurantes, apartamentos ou residenciais, minimercados,
tudo na mesma área.
A facilidade de contactos impressiona. A gestão do tempo é mais
fácil. A biblioteca é logo ali, a 100 metros. Professores e alunos
circulam num espaço amplo que renega a quilometragem. Com o
sistema de créditos a funcionar, o estudante de Economia pode, se
assim o desejar, frequentar uma cadeira de Medicina numa facul­
dade plantada ao virar da esquina. E se quiser frequentar uma aula
de Filosofia, no problem – é só andar mais uns 100 metros.
66
’
Tudo somado, a conclusão é óbvia: o campus gera uma atmosfera
de concentração e produtividade intelectuais.
A filosofia primordial das universidades é a de facilitar a vida a
professores e estudantes e criar programas que garantam a inserção
do estudante no mundo do trabalho e satisfaçam as necessidades
do mercado. Para tal, quebram o isolamento. Saem das suas fron­
teiras, contactam empresas, perguntam­‑lhes o que necessitam, criam
projectos comuns, frequentemente apoiados financeiramente pelas
empresas envolvidas. Entre universidades e empresas, o diálogo é
constante.
Ingressar neste paraíso académico tem custos quase tão elevados
como os benefícios. As propinas (tuition) rondam actualmente os
30 a 35 mil dólares. Acrescente­‑se alojamento, comida, dinheiro
de bolso e o total sobe facilmente para os 55 mil dólares.
Para fazer frente aos custos, várias soluções: pais com carteira
bem recheada, trabalhar antes ou depois das aulas, ajuda conce­
dida pela universidade que frequenta, de acordo com a situação
económica da família do candidato. No MIT, por exemplo, cerca
de 60 por cento dos alunos que ali fazem uma licenciatura bene­
ficiam de ajuda financeira. Essa ajuda pode, em média, rondar os
17 mil dólares/ano. O MIT bem pode ajudar quem nele pretende
formar­‑se. Estudos recentes indicam que as invenções nele reali­
zadas dotam, anualmente, a economia americana com mais de
20 biliões de dólares e 150 mil empregos.
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
Bolsas para jornalistas nos Estados Unidos da América
«Nieman Journalism Fellowship»
Universidade de Harvard
A Fundação Luso-Americana e a Fundação Calouste Gulbenkian
asseguram o financiamento de uma bolsa
destinada a um participante português, no ano lectivo 2011-2012.
A selecção é efectuada directamente pela Nieman Foundation sem qualquer
interferência das fundações portuguesas.
Candidaturas abertas até 15 de Dezembro de 2010 em
www.nieman.harvard.edu
(Seleccionar “Nieman Fellowships” e de seguida seleccionar “How to Apply”)
A bolsa da Nieman Foundation oferece aos jornalistas a oportunidade de cumprirem um ano académico
na Universidade de Harvard e de reflectirem sobre a sua carreira, renovando a curiosidade intelectual
e enriquecendo a compreensão das matérias que são objecto da cobertura jornalística.
Destinatários
Jornalistas portugueses a tempo inteiro ou freelancers com um mínimo de cinco anos
de experiência profissional que trabalhem em qualquer órgão de Comunicação Social
(imprensa, rádio, televisão, fotografia e conteúdos digitais).
Informações adicionais:
[email protected]
Tel. (+001) 617 495 22 38
Informações adicionais:
[email protected]
Tel. (+001) 617 495 22 38
SOCIEDADE
Portugal em Nova Iorque
“Destination Portugal” é o nome do projecto que levou, durante cerca de dois meses,
vários produtos de designers portugueses até às lojas do Museu de Arte Moderna
de Nova Iorque (MoMa). O balanço é tão positivo que foi decidido manter à venda
mais de uma dezena de produtos e fazer a divulgação para os mais de dois milhões
de sócios do museu através da sua revista.
Por Inês Sousa
“Destination Design Series” é uma inicia­
tiva que anualmente promove e dá a conhe­
cer novas tendências de design. Em cada
edição, é seleccionado um país e são dis­
ponibilizadas, nos espaços comerciais do
MoMa, peças de designers conceituados ou
em ascensão desse país. Nos últimos anos,
estiveram em destaque a Finlândia, a
Dinamarca, o Brasil e o Japão. Este ano, foi
a vez de o nosso país ser o anfitrião do
projecto.
Pelo MoMa passaram diversos acessórios
de moda, nomeadamente: famosos chapéus
de chuva, relógios e malas em cortiça, loiça
inspirada em cerâmica portuguesa e azu­
lejaria, jóias contemporâneas com filigra­
na e croché, livros, aventais, sacos, malas
feitas com teclas de computador, pins de
Lego, loiça Bordalo Pinheiro e até o típico galo
de Barcelos.
Muitos destes produtos nunca estiveram à
venda fora de Portugal e alguns dos materiais
usados causaram impacto e surpresa nos
visitantes, como foi o caso da cortiça.
O MoMa descreveu a colecção portuguesa
como “fresca, com interpretações contem­
porâneas das cores, formas, materiais e tra­
dições do País”.
Segundo Lauren Solotoff, do MoMa, esta
foi das melhores iniciativas já feitas com
68
produtos de outros países. Dos sete eventos para compor o leque de objectos que levou
já realizados este foi o que teve mais suces­ para os EUA.
so e o que alcançou melhores níveis de
Quem não viu a colecção em Nova
vendas. Após a exposição, o MoMa decidiu
Iorque pode fazê­‑lo na loja do Museu de
integrar mais de dez produtos no portfolio Serralves, no Porto, onde estarão alguns
permanente, cinco com grande destaque na dos objectos.
revista do museu que tem mais
de dois milhões de assinantes.
Entre os produtos mais ven­
Entre os produtos mais vendidos
didos esteve o serviço de chá
“Whistler”, feito de cerâmica
esteve o serviço de chá “Whistler”,
pintada e cortiça, as colheres
feito de cerâmica pintada e cortiça,
“Goa”, em inox e resina, um
vaso de porcelana, uma mala
as colheres “Goa”, em inox e resina,
de ombro em cortiça, as taças
um vaso de porcelana, uma mala
“Bordalo Pinheiro” em forma
de melão e os lápis Viarco.
de ombro em cortiça, as taças
O cenário foi semelhante em
“Bordalo Pinheiro” em forma de melão
todas as lojas. Na loja em
Tóquio os produtos em cor­
e os lápis Viarco.
tiça foram particularmente
bem­‑sucedidos.
A escolha destes objectos
trouxe a Portugal uma delegação do MoMa
no final de 2009 que regressou aos Estados
Unidos com as mãos cheias de design luso.
Lauren Solotoff, responsável do museu,
escolheu­‑os a dedo, visitou ateliês, contactou
com designers e fabri­
cantes, conheceu o
mercado português
através das exposições
organizadas pela
Fundação de Serralves
em parceria com o
Ministério da Cultura,
Aicep, Ministério da
Cultura e TemaHome,
‘
’
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
DR
SOCIEDADE
Portugal­‑EUA
Uma relação económica
bilateral renovada
Por Rui Boavista
Marques*
Um novo patamar de qualidade
Mais de dois anos e meio após o início dos primei­
ros sinais de recessão nos EUA, os economistas pre­
vêem finalmente que a economia crescerá este ano
à taxa de 3,3 por cento, mas que a retoma será
atenuada até 2015 projectando­‑se um valor nesse
ano de 2,6 por cento de crescimento real do PIB.
É neste contexto que as relações bilaterais Portugal­
‑EUA ganham uma nova dinâmica, nas várias ver­
tentes de exportação portuguesa, de investimento
português, de investimento directo americano e de
parcerias de I&D voltadas para resultados no mer­
cado e de inovação de produto.
Portugal mantém, desde 1997 até esta data, uma
balança comercial positiva com os EUA, apesar de ter
registado durante o período de 2007 a 2009 uma
quebra significativa das suas exportações. No entanto,
durante os primeiros seis meses deste ano, as expor­
tações, reagindo às novas oportunidades da retoma
económica, aumentaram 43,6 por cento (relativamen­
te ao mesmo período no ano transacto).
Para além desta renovada tendência, identificamos
como provavelmente a maior alteração no relaciona­
mento bilateral, a visão e capacidade empreendedora
de algumas empresas portuguesas através do investi­
mento directo português nos EUA. A nível do sector
da energia, e após o investimento da EDP Renováveis
na aquisição da Horizon e posterior expansão comer­
cial, verificou­‑se a entrada no mercado da EFACEC e
da Martifer. Nas infra­‑estruturas e em novos conceitos
industriais e de serviços, chegaram ao mercado a Brisa,
a Soares da Costa e a Logoplaste, enquanto que a
Sovena já tinha efectuado investimentos significativos
em Roma e Nova Iorque.
A nível da credibilidade de Portugal como destino
de investimento directo americano, temos assistido
aos recentes reforços de investimento da CISCO, da
IBM, da HP e da Microsoft em operações de outsour­
cing ou de desenvolvimento de novas aplicações de
software e de serviços, que confirmam o reconheci­
mento do nível de competitividade e patamar de
excelência existente em Portugal.
A acrescentar às dimensões anteriores, existe uma
outra componente, que é a das parcerias internacio­
nais estabelecidas pelo Governo português entre
universidades e empresas portuguesas com institui­
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
ções americanas líderes mundiais da investigação
científica aplicada: o Massachussets Institute of
Technology, a Carnegie­‑Mellon University, a University
of Texas in Austin e a Harvard Medical School, estan­
do mais duas parcerias a ser analisadas.
A manter­‑se este ritmo e intensidade de interesse
dos agentes económicos portugueses pelas oportu­
nidades geradas pela retoma económica, pela dimen­
são e características de inovação do mercado
americano, estaremos seguramente num ano de vira­
gem do relacionamento bilateral.
Um evento português
de sucesso em Nova Iorque
O evento “Destination Portugal”, que se realizou de
meados de Maio a finais de Julho de 2010 nas três
lojas do MoMa em Nova Iorque, enquadrou­‑se numa
série que o museu iniciou há seis anos, com regu­
laridade anual e retratando um país em termos de
novidades de design mundial.
O facto de Portugal ter sido convidado a seguir à
Dinamarca e ao Japão, eleva o país a um nível de
reconhecimento de “país de design” que é uma novi­
dade para o grande público e líderes de opinião
americanos, sendo Nova Iorque uma das cidades
líderes das tendências mundiais de consumo.
A escolha das marcas portuguesas foi feita por um
grupo de curadoras do MoMa que durante três visi­
tas a Portugal se actualizaram com o design contem­
porâneo português. Segundo as suas próprias palavras,
ficaram muito bem impressionadas com os produtos
e com a qualidade e nível de resposta dos produtores
e designers, reconhecendo que foi um dos melhores
eventos da série. De facto, em termos de resultados,
nunca aconteceu passar da inexistência total de mar­
cas, a decidirem ficar com 15 produtos no portfolio de
Outono, correspondendo a nove marcas, algumas delas
com relevo especial na revista semestral do MoMa
que é enviada a 2,5 milhões de sócios do museu.
As marcas que tiveram bons resultados e que ficaram
no catálogo do MoMa são a Viarco, a parceria Amorim
Cork/Matceramica, a Bordalo Pinheiro, a Pelcor, a Cutipol,
a Spal, a João Sabino, a Alentejo Azul e a TemaHome.
* Director coordenador para a América do Norte
Aicep Portugal Global, Nova Iorque
69
CULTURA
Novo Museu do Côa
A região do Vale do Côa, internacionalmente reconhecida pela importância
da sua arte rupestre e classificada pela UNESCO como Património da Humanidade,
tem mais um local de visita obrigatória: o Museu do Côa.
Por João Silvério*
do Ambiente Dulce Pássaro, Gonçalo
Couceiro e João Pedro Cunha Rodrigues, do
IGESPAR, a directora do Parque Arqueológico
do Vale do Côa, Alexandra Cerveira Lima e
Fernando Real, coordenador do projecto do
Vale do Côa, o presidente da Câmara de Vila
Nova de Foz Côa e Maria de Lurdes
Rodrigues, presidente do Conselho Executivo
da Fundação Luso­‑Americana. A cerimónia
inaugural, que contou, também, com a visi­
ta da nova embaixatriz americana em Lisboa,
juntou, ainda, os habitantes de Vila Nova de
Foz Côa e cerca de quinhentos convidados
de diversas áreas da cultura, da política e da
sociedade civil.
O projecto do museu, dos arquitectos
Camilo Rebelo e Tiago Pimentel, teve em
conta a relação com a paisagem sendo a
sua implantação localizada num dos pontos
mais altos, o que permite, ao visitante, des­
D.R.
Localizado num dos pontos mais altos da
zona é incontornável ver o novo edifício,
usufruir a sua magnífica vista sobre o rio
Douro e as encostas do vale e aproveitar
para visitar a exposição que encerra em
Janeiro de 2011.
O Museu do Côa foi inaugurado no pas­
sado dia 30 de Julho com a presença do
primeiro­‑ministro José Sócrates, a ministra
da Cultura Gabriela Canavilhas, a ministra
O museu está localizado num dos pontos mais altos, o que permite aos visitantes desfrutar de uma magnífica vista do rio Douro.
70
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
D.R.
CULTURA
frutar de uma magnífica vista sobre o rio
Douro e as encostas do vale. A região do
Vale do Côa, internacionalmente reconhe­
cida pela importância da sua arte rupestre,
foi classificada pela UNESCO em 1998
como Património da Humanidade. Esta
classificação distintiva esteve na origem da
criação do Parque Arqueológico do Vale do
Côa, para ser um elemento dinamizador
de um plano de desenvolvimento integra­
do da região, combinando o património e
a economia, o lazer e o conhecimento,
a investigação e o turismo, multiplicando
por essa via o emprego e renovando em
todos os aspectos a vida dessa região.
‘
É incontornável ver
o novo edifício, usufruir
a sua magnífica vista
sobre o rio Douro
e as encostas do vale.
Obras de Alberto Carneiro (desenho), Julião Sarmento (pintura), Michael Biberstein (pintura)
e Pedro Cabrita Reis (escultura) ao centro.
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
D.R.
’
O museu apresenta uma vasta área expo­
sitiva com equipamento audiovisual dedi­
cando várias salas à introdução histórica e
interpretação do legado museológico que
se encontra ao longo do Vale do Côa, numa
extensão de aproximadamente 20 quilóme­
tros. Este museu, o segundo maior em
Portugal, conta também com um núcleo de
três salas para exposições temporárias onde
se encontra instalada a mostra “Gesto e
Inscrição – Obras da Colecção da Fundação
Luso­‑Americana para o Desenvolvimento”.
A exposição resulta de um protocolo assi­
nado entre esta instituição e o IGESPAR/MC,
no sentido de promover e dinamizar este
tipo de iniciativas ampliando a actividade
do museu às práticas artísticas contemporâ­
neas. É de salientar que o projecto do museu
inclui obras de dois artistas plásticos, Alberto
Carneiro e Ângelo de Sousa, convidados a
realizar intervenções permanentes no espa­
ço interior do museu, que criam uma pecu­
liar relação com as gravuras do Vale do Côa
e com a arquitectura do museu.
É neste contexto museológico que ao
conceber a exposição “Gesto e Inscrição”,
tomando como ponto de partida a ligação
entre dois tempos históricos, já inscrita no
projecto museológico. A exposição tem
como primeiro objectivo dar a ver obras
de arte contemporânea de artistas relevan­
tes no panorama nacional e internacional,
e que pertencem a uma colecção institu­
cional, à população de Foz Côa e aos visi­
tantes do parque e do museu. Esta
iniciativa, em colaboração com o IGESPAR,
vem na continuidade de um programa de
Dulce Pássaro, ministra do Ambiente, Gabriela Canavilhas, ministra da Cultura,
Maria de Lurdes Rodrigues, presidente da FLAD, e José Sócrates ouvindo a explicação
do curador da colecção da FLAD, João Silvério.
exposições da colecção da FLAD que tem
permitido o acesso a autores e obras que
frequentemente encontram outros públicos
nos grandes centros urbanos.
Esta selecção abrange três gerações de artis­
tas com obras de Michael Biberstein, Pedro
Cabrita Reis, Fernando Calhau, Alberto
Carneiro, José Pedro Croft, Carlos Figueiredo,
Julião Sarmento, Ângelo de Sousa e Francisco
Tropa, mostrando o seu trabalho em diver­
sas técnicas e suportes tais como o desenho,
a gravura, a fotografia, a pintura, a encáus­
tica e a escultura/instalação.
A exposição propõe orientar o olhar do
espectador para a relação do corpo com a
obra enquanto presença performativa na
produção artística. Esta prática, sempre pre­
sente na criação humana, está intimamen­
te ligada ao acto de fazer e assim à
gestualidade. A inscrição pode ser compre­
endida num duplo sentido – como incisão
sobre o suporte e como metáfora do pro­
cesso artístico – estabelecendo uma relação
com o lugar e a sua memória, com a arqui­
tectura do museu e com a paisagem.
* Curador, Fundação Luso­‑Americana
71
CULTURA
Um livro que voltou às origens
Chegou, primeiro aos Açores, depois ao continente, o primeiro livro de uma colecção
que revelará ao público alguns dos nomes mais significativos da cultura luso­‑americana.
“Portugal na América” estreia­‑se com um best­‑seller do mercado americano,
assinado por um português.
RUI OCHÔA
Por Clara Pinto Caldeira
Da esquerda para a direita: Rui Zink, Francisca Cortesão, Mário Mesquita e Frank Sousa,
no lançamento do livro de Alfred Lewis Minha Ilha, Minha Casa.
“Uma obra literária regressa a casa”. Foi
assim que a editora da Edel Portugal, Emília
Madureira, falou da publicação de Minha
Ilha, Minha Casa, de Alfred Lewis, durante a
sua apresentação em Lisboa, no auditório
da FLAD, em Junho passado.
Escrito originalmente em inglês, publi­
cado pela primeira vez nos EUA, em 1951,
pela prestigiada editora Randon House,
este livro nunca tinha chegado a Portugal
na língua da saudade. Mas a saudade que
atravessa estas páginas impressionou o
público e a imprensa americanos da época.
Merecedor de cerca de 80 recensões em
alguns dos mais influentes jornais da
época, destaca­‑se o elogio do New York Times
e de Patricia Highsmith, a célebre autora
de policiais psicológicos, cujo texto serve
72
de posfácio a esta edição: “O mundo já
quase se esqueceu de ler livros como este.
É bom que haja escritores que ainda não
se tenham esquecido de os escrever.”
Quem o escreveu foi Alfred Lewis, nasci­
do na ilha das Flores em 1902, que partiu
para os Estados Unidos com 19 anos de
idade, em 1922. Exerceu o cargo de juiz
municipal, tendo tido um papel de relevo
junto da comunidade emigrante. Mas foi
enquanto homem das letras que se desta­
cou, como o primeiro português a con­
quistar a atenção do público de língua
inglesa. Romancista, poeta e dramaturgo,
é também autor de contos publicados numa
revista literária americana, Prairie Schooner –
relatos que descrevem uma sociedade mul­
tirracial, composta por mexicanos,
portugueses, arménios e anglo­‑americanos
que mereceram referência na prestigiada
antologia The Best American Short Stories, dois
anos seguidos, em 1949 e 1950.
Minha Ilha, Minha Casa é o primeiro livro da
série “Portugal na América”, uma iniciativa
do Center for Portuguese Studies and Culture
(http://www.portstudies.umassd.edu/),
University of Massachusetts, Dartmouth,
com o apoio da Fundação Luso­‑Americana
para o Desenvolvimento. De acordo com
Mário Mesquita, administrador da Fundação,
a iniciativa “inscreve­‑se na política da FLAD
de estreitar laços culturais entre Portugal e
os Estados Unidos”. Mário Mesquita subli­
nhou ainda a ligação especial da FLAD com
a região autónoma dos Açores (onde se rea­
lizou a primeira apresentação do livro em
Portugal) e destacou as Flores como uma
ilha literária, que viu nascer poetas como
Roberto Mesquita e Pedro da Silveira.
Frank Sousa é o responsável, do outro
lado do Atlântico, por esta publicação.
Coordenador do Center for Portuguese
Studies and Culture em Massachusetts, ele
próprio emigrante açoriano desde os nove
anos, contou ao público presente na apre­
sentação de Lisboa o percurso de Alfred
Lewis, que começou por se empregar numa
plantação de batata­‑doce, ao chegar ao país
do El Dorado. Uma tuberculose afastou­‑o
dos campos e acabou por determinar o seu
futuro, porque a família do médico que o
tratou apoiou a sua educação. Partilhando
com o autor a experiência da emigração e
a origem, Frank Sousa sublinhou o carácter
universal e simultaneamente autobiográfi­
co do livro, um regresso claro a uma infân­
cia bucólica e sonhadora, com a terra
prometida em pano de fundo. “Na verda­
de, a pessoa escreve com a vida que teve.
No momento, transcreve­‑a”, disse Rui Zink,
responsável pela revisão literária da obra
em português e coordenador da tradução
de Francisca Cortesão.
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
CULTURA
O elo dourado
Minha Ilha, Minha Casa é o primeiro livro da nova colecção que a Edel,
em colaboração com a Universidade de Massachusetts, e com o apoio – indispensável
– da FLAD, começa agora a publicar. Seguir­‑se­‑á Vasco da Gama, Cary Grant
e as Eleições de 1934, de Charles Reis Felix.
Por Rui Zink*
Fico sempre espantado, mas não devia ficar
espantado (bem sei), quando vejo o trajec­
to de gente como Alfred Lewis, que parte
do nada em busca do eldorado e faz fortu­
na. Fico ainda mais espantado, mas (bem
sei) não devia ficar espantado, quando essa
fortuna é feita na literatura. Fico ainda mais
espantado (e aqui há mesmo razão para
ficar) quando essa fortuna na literatura é
feita construindo um romance musical, cali­
brado, onde quase não acontece nada mas
onde tudo acontece, que nos dá o mundo
sem no­‑lo impor, um tempo sem lhe que­
brar o cristal, beleza sem arrastar o
salto alto. Aos 20 anos, Alfred Lewis
descobriu uma língua nova na
Califórnia − o inglês − e a ela se mol­
dou. Nela viveu dois terços da sua vida
e nela morreu, juiz de paz, homem de
paz, de letras, de cultura. E nessa língua
decidiu devolver um percurso, uma
origem, tanto à comunidade luso­
‑americana da qual fazia parte como à
comunidade mais vasta para quem esta
comunidade era invisível − ou menos
que isso.
É uma devolução a dois imaginá­
rios, no fundo: ao público america­
no − e este romance foi um best­‑seller,
ou seja, chegou a muita gente − para
o qual os descendentes de portugue­
ses não têm sequer a dúbia aura do
crime para se tornarem distintos;
como já foi dito e ainda não desmen­
tido, a comunidade portuguesa tem
sido um grande invisível; e uma
devolução ao público português, que
só agora, volvidos sessenta anos, tem
acesso a uma tradução − ou a uma
retroversão? − de Home Is an Island.
Na abertura, um jovem nas Flores à
espera do vapor para a América reen­
contra a mulher que, literalmente, pri­
meiro o viu: Tia Maria, a parteira da
aldeia. Nos capítulos seguintes teremos
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
a história de José, linear, sem mais cortes
temporais, analepses ou prolepses, desde o
berço até ao corte com o cordão umbilical
da ilha e da comunidade. A partir daí,
o jovem talvez passados uns anos regresse
a Portugal − o autor sabemos que não, até
ao fim da vida. E porquê? Porque não voltou
Alfred Lewis à Fajãzinha? Talvez porque, na
verdade, nunca de cá tenha saído.
Embora o estilo seja simples, e a história
de uma limpidez poética, como sublinhou
Patricia Highsmith, muita coisa acontece
neste livro. A bem dizer, tudo: vida, morte,
‘
Embora o estilo
seja simples,
e a história
de uma limpidez poética,
muita coisa acontece
neste livro.
’
amor, dor, felicidade, descoberta,
estranheza, o mundo, enfim. E há
mudança, no mundo e na percep­
ção no mundo, de capítulo para
capítulo. Nunca estamos parados
porque, se o lar é uma ilha, apren­
der é uma viagem. Seguimos o
herói ao longo da primeira infân­
cia e da juventude, sempre em
metamorfose − porque uma crian­
ça de cinco anos não tem exacta­
mente os mesmos motivos que
um jovem de dezasseis.
Este livro não é o relato da des­
coberta do eldorado. O romance
é que é um verdadeiro elo dou­
rado: uma dádiva para o leitor
americano, a paga de uma dívida
para com o mundo que o viu
nascer e, agora, um presente para
o leitor português.
Alfred Lewis compreendeu como
fazer um romance universal: não
saindo de casa. Mas isso já o uni­
verso, que não nasceu ontem, sabe
há muito tempo: é preciso sair de
casa para regressar a casa.
Welcome home, mr. Lewis.
* Escritor
73
CULTURA
A casa das histórias
“Parece um barco a vapor” dizem muitos dos visitantes da casa onde viveu
Sam L. Clemens com a mulher e as três filhas. Mais conhecido como Mark Twain,
escreveu, muitas vezes, no escritório do último andar, alguns dos livros que o conservam
ainda entre nós, apesar dos cem anos passados da sua morte.
Por Sara Pina
“Para nós, a nossa casa tem um coração,
e uma alma, e olhos que nos vêem”,
escreveu Clemens. Com as filhas Susy,
Clara e Jean, Livy e Sam viveram aqui até
1891 muito perto da casa de uma amiga,
também escritora, Harriet Beecher Stowe,
autora do livro A Cabana do Pai Tomás, escri­
to contra a escravatura e que inspirou o
abolicionismo e a guerra norte­‑sul.
Abraham Lincoln chamou a Harriet “a
pequena mulher que escreveu o livro que
começou esta grande guerra”.
Nos anos em Hartford, Clemens ganhou
muito dinheiro com os seus livros mas per­
‘
A prosperidade é a melhor
protectora dos princípios.
Mark Twain
’
deu ainda mais com o investimento que fazia
nas suas invenções. Junto da casa principal,
havia uma oficina onde ele chegou a traba­
lhar na concretização de ideias para novos
produtos. Algumas patenteadas, como um
jogo para as crianças aprenderem história
ou um acessório de vestuário que substituía
os suspensórios. Outras que lhe roubaram
muito do seu tempo e economias como um
sistema de impressão que nunca resultou.
O primeiro telefone na América foi para
a casa dos Clemens. Geralmente era aten­
dido pelo fiel mordomo George Griffin que
trabalhou com a família cerca de dezoito
anos. Clemens ironizava que o telefone era
frustrante porque só permitia ouvir um
dos lados da conversa. Das vezes que aten­
dia uma chamada no moderno aparelho
gritava­‑lhe vários insultos por não ter paci­
ência para a fraca qualidade da comunica­
ção telefónica da época.
D.R.
As Aventuras de Tom Sawyer, A Vida no Mississipi ou
as Aventuras de Huckberry Finn (a que Hemingway
chama a raíz de toda a literatura america­
na moderna) foram escritas na casa de
Farmington Avenue, em Hartford, no
Connecticut. A casa-barco foi mandada
construir à beira de um rio (que agora já
não existe), que lembraria Sam Clemens
das primeiras décadas da sua vida dura mas
apaixonada no Mississipi enquanto piloto
de barcos. Ser steamboater foi o seu sonho
desde criança e nesse trabalho conheceu
muita gente, viveu muitas aventuras que o
marcaram para sempre e inspiraram toda
a sua obra.
Olivia, ou carinhosamente Livy, a mulher
de Sam, preparou muitos dos desenhos para
inspirar o arquitecto na construção da casa
da família. Em 1874, ainda com as obras
por concluir, a família Clemens mudava­‑se
para a casa de 25 quartos.
“Para nós, a nossa casa tem um coração, e uma alma, e olhos que nos vêem”, escreveu Clemens.
74
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
D.R.
D.R.
CULTURA
As histórias contadas ao serão entre os membros da família Clemens tinham início no gato e acabavam em Emmeline –
dois quadros pendurados na parede da sala de estar.
O gato e a Emmeline
O piso de entrada da casa tem várias salas
praticamente iguais ao que eram quando os
Clemens a habitaram. Nestas salas eram rece­
bidos muitos amigos. Livy, a mulher de
Clemens, tocava piano e toda a família can­
tava espirituais. Era o sempre fiel mordomo
George que servia o jantar e permanecia
junto à porta, perto de um biombo à ­entrada
da cozinha. Durante a refeição, Clemens con­
tava histórias e anedotas aos seus convidados,
Ainda no primeiro piso fica a sala onde
a família se reunia a seguir ao jantar. Junto
de uma estufa, Sam Clemens, a mulher Livy
e as três filhas, Susy, Clara e Jean, sentavam­
‑se perto da lareira para ler e contar histó­
rias. Muitos dos contos que partilhavam
eram inventados no momento e, por regra,
tinham de ter início no gato, com uma
farfalhuda gola renascentista, retratado na
parede, e acabar numa pintura impressio­
nista, também pendurada, comprada em
Itália, reproduzindo uma jovem
mulher a quem a família chamava
de Emmeline.
Não há coisa mais triste
No segundo andar da casa estão
do que um jovem pessimista,
os quartos de dormir e os para
as crianças estudarem e brinca­
excepto um velho optimista.
rem. O casal Clemens dormia
Mark Twain
com os pés para a cabeceira da
cama que compraram em Veneza,
muitas vezes interrompidas pelos risos do
por 200 dólares – uma fortuna na época.
mordomo que como já as conhecia de cor Toda gravada de anjos, a cabeceira é a parte
ria­‑se antes destas chegarem ao fim. Clemens
mais trabalhada e Livy e Sam preferiam
ficava furioso com as interrupções e, por
adormecer a olhar para a parte da cama
isso, dezenas de vezes despediu o mordo­
que achavam mais bonita. Sam costumava
mo, voltando a contratá­‑lo logo a seguir.
dizer que isso lhe trazia bons sonhos.
‘
’
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
‘
Viajar é fatal
para os preconceitos.
Mark Twain
’
Para escrever, Sam Clemens usava uma
sala no último andar, o escritório era tam­
bém a sala do bilhar onde fumava muitos
charutos e cachimbo. A única regra que
tinha, dizia, era não fumar mais do
que um ao mesmo tempo.
Nas férias de Verão, a família mudava­‑se
para casa da irmã de Livy que fez um
escritório só para Sam Clemens escrever.
Para ele, era o sítio mais inspirador, onde
era capaz de escrever nove capítulos segui­
dos. Mas em Hartford, a sala do bilhar foi
muito usada para trabalhar nos seus livros
e, de vez em quando, relaxar com um jogo
de bilhar. A mesa de bilhar era, também,
muito útil para espalhar textos e cortar e
colar frases e parágrafos. Uma espécie de
antepassado do sistema copy­‑paste dos nos­
sos computadores usado por Clemens que
sempre escreveu à mão.
75
CULTURA
Mark Twain: o homem que ensinou
o romance americano a falar
No centenário da sua morte, Mark Twain é canonizado como ícone fundamental
da cultura norte­‑americana, cujos génio e actualidade são reinterpretados
dentro e fora de portas.
D.R.
Por Filipa Melo
A Mark Twain talvez todo este alarde pare­
cesse tão “francamente exagerado” como
a notícia da sua morte, anunciada por um
jornal em 1897, três anos antes de ocor­
rer de facto. O escritor sempre foi terra­­‑a­
­‑terra, mestre de uma mordacidade
risonha, mas demasiado sarcástico e crí­
tico até para se conceder a si mesmo uma
importância desta ordem. Ou… talvez não.
‘
Na ordem do dia
da análise da obra
de Mark Twain estão,
de facto, as suas
contemporaneidade
e transnacionalidade.
Um retrato clássico de Mark Twain com 71 ou 72 anos (tirado em 1907).
76
’
Pelo mundo fora, comemora­‑se em 2010
o centenário da sua morte. Com enorme
expectativa, aguarda­‑se a edição do pri­
meiro dos três volumes do texto integral
da Autobiography of Mark Twain, prevista para
Novembro pela University of California
Press. Para alguns dos que já as espreita­
ram, nestas páginas de opinião, que Twain
desejou que só agora fossem reveladas na
íntegra, o escritor surgirá mais franco,
mais coloquial e com uma acutilância e
um arrojo políticos tão intensos que se
diria proféticos. Renovar­‑se­‑ão, pois, os
sinais do génio criador de Huckleberry Finn,
o livro que Jorge Luis Borges disse ter
“ensinado todo o romance americano a
falar” e ao qual Ernest Hemingway atri­
buiu a origem de “toda a literatura ame­
ricana moderna”.
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
D.R.
CULTURA
‘
A voz moral de Twain, objectiva e independente,
talvez até seja mais apreensível hoje,
passados cem anos sobre o tempo
em que o [enorme] sucesso e popularidade
do escritor “advinha da comédia,
e não do criticismo social”.
’
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
bate contra a expansão imperialista, uma
posição actualíssima, defende Peter Messent:
“O que ele escreveu genericamente sobre o
assunto e concretamente sobre o envolvi­
mento dos EUA nas Filipinas reverbera for­
temente no Ocidente pós­‑Iraque.” A voz
moral de Twain, objectiva e independente,
talvez até seja mais apreensível hoje, passa­
dos cem anos sobre o tempo em que o
[enorme] sucesso e popularidade do escri­
tor “advinha da comédia, e não do criticis­
mo social”. Mas será essa voz escutada em
todo o mundo?
Shelley Fisher Fishkin responde com iro­
nia. No início da carreira, Twain tinha
D.R.
Inocentes acontece nos Açores,
cujas gentes e hábitos não
deixam a melhor das impres­
sões no escritor. Ainda assim,
esta é a mais célebre referên­
cia de Twain aos portugueses
e mais um dos múltiplos
exemplos da sua inventivi­
dade crítica: intrépida e
sagaz e com um inimitável
wit cómico. Em que sentido
Mark Twain próximo da idade em que embarcou
é que se mantém actual?
no cruzeiro Innocents.
Para Peter Messent, é evi­
dente a premência das con­
siderações de Mark Twain
sobre como a whiteness (a
Na ordem do dia da análise da obra de supremacia branca) “foi – e, por vezes,
Mark Twain (pseudónimo literário de ainda é – uma norma assumida na
Samuel Langhorne Clemens, nascido na
América em detrimento de outras expe­
localidade de Flórida, no Missouri, em riências culturais e grupos raciais”. O
1835) estão, de facto, as suas contempo­
radicalismo do ataque do escritor aos
raneidade e transnacionalidade. Assim o preconceitos raciais comprova­‑se em con­
justificaram os especialistas Shelley Fisher tos como “A True Story” e representa um
Fishkin e Peter Messent durante o coló­ dos muitos sinais do seu progressivo
quio, ocorrido a 8 de Outubro último, desencanto com os EUA e, genericamen­
em Lisboa, com o qual a Fundação Luso­ te, com o mundo. Em 1900, com 65
‑Americana prestou tributo ao escritor anos, Twain escreve: “A minha ideia da
(iniciativa organizada, em parceria, por
nossa civilização é a de que se trata de
Teresa F. A. Alves e Teresa Cid, do Centro
uma pobre coisa gasta e cheia de cruel­
de Estudos Anglísticos da Universidade de dades, vaidades, arrogâncias, despropó­
Lisboa, Isabel Caldeira, da Faculdade de sitos e hipocrisias. Quanto ao mundo ele
Letras da Universidade de Coimbra, e mesmo, odeio o seu som, porque ele
Mário Mesquita e Miguel Vaz, pela FLAD). encobre uma mentira; quanto à coisa ela
Para os leitores portugueses, a celebração mesma, eu queria mesmo é que ela fosse
de Twain inclui ainda a tradução de para o Inferno a que pertence.”
A Viagem dos Inocentes, assinada por Margarida
Ainda que este Twain dos últimos anos de
Vale de Gato e recém­‑editada pela Tinta­
vida revele uma “misantropia profundamen­
‑da­‑China, com apoio da FLAD. Primeiro te irónica”, o escritor nunca abandonou “o
grande sucesso da carreira de Mark Twain, impulso moralista e reformista que também
este livro de viagens relata o mergulho deu forma à sua escrita”. Um impulso que
“inocente” de um grupo de americanos deriva, em grande parte, da influência da
na cultura europeia e na Terra Santa, ins­
mulher, a liberal nova­‑iorquina Olivia
pirado nas notas e cartas escritas pelo
Langhton, que lhe apresenta, entre outros,
repórter Twain durante a viagem que fez
Harriet Beecher Stowe, Frederick Douglas e
à Europa, em 1867, a bordo do paquete o socialista William Dean Howells. À luta
Quaker City. A primeira escala d’A Viagem dos contra o racismo, Twain acrescentará o com­
Ilustração retirada da obra The Innocents Abroad
com Mark Twain a bordo.
77
CULTURA
A Viagem dos Inocentes, inspirada nas notas e cartas escritas pelo repórter Twain durante a viagem que fez à Europa, em 1867, a bordo do paquete Quaker City.
‘
Para os leitores portugueses, a celebração de Twain
inclui ainda a tradução de A Viagem dos Inocentes.
tudo para não ser apreciado fora de portas.
O privilégio da linguagem dialectal torna­
va os seus livros por vezes impenetráveis
para os leitores europeus e, para mais, o
jovem autor, já mestre da linguagem humo­
rística, insistia em encontrar novas formas
de os ofender de cada vez que publicava
um novo livro. E, no entanto… Fisher
Fishkin despeja exemplos. Charles Darwin
mantinha A Viagem dos Inocentes na mesa­‑de­
‑cabeceira, para lhe pegar rapidamente
quando queria desanuviar a mente e rela­
xar antes de dormir. Por seu turno, o chan­
celer Otto von Bismarck aprendeu de cor
passagens deste livro para poder partilhá­‑las
com os netos. Friedrich Nietzsche adorava
enviar Tom Sawyer como presente para os
melhores amigos. Joseph Conrad reflectia
muitas vezes nas experiências de Twain
como piloto de barcos a vapor (descritas
em Life on the Mississipi) enquanto conduzia
um através do Congo. Jorge Luis Borges e
o nobel Kenzaburo Oe inspiraram­‑se em
Twain para escrever os primeiros livros. E,
após ler A Connecticut Yankee in King Arthur’s Court,
o cubano José Martí ficou tão comovido
78
’
com o indignado sentido de justiça social
do escritor norte­‑americano que quis
conhecê­‑lo pessoalmente “para lhe apertar
a mão”.
“Leitores de todo o mundo maravilharam­
‑se com a arte de Twain forjada a partir
do discurso das pessoas comuns, cuja
anterior presença na literatura havia sido
sobretudo ridicularizada”, justifica Shelley
Fisher Fishkin. Em Huckleberry Finn, Borges
garante que “pela primeira vez um escri­
tor americano usou a linguagem da
América sem afectação”. O exemplo con­
tagiou escritores como, por exemplo,
Johannes V. Jensen e Lu Xun, os primeiros
grandes modernistas dinamarquês e chi­
nês. A força da linguagem singularíssima
de Twain prevaleceu até sobre a duvidosa
qualidade de muitas das suas traduções.
Talvez tenha ajudado, e muito, o facto
de Twain ter visto “mais do mundo do
que qualquer outro escritor norte­
‑americano antes dele” e de, nos EUA, ter
sido “um dos primeiros genuínos cidadãos
do mundo”. No ano em que se comemo­
ra o centenário do seu nascimento, sobe
à cena na Roménia uma peça escrita por
ele em 1898, dedicam­‑lhe um importan­
te congresso em Yokahama e uma gigan­
tesca enciclopédia da sua obra é
publicada em Tóquio, em japonês. Twain
transnacional? Sem dúvida. Mas depois de
que percurso entre os académicos?
Shelley Fisher Fishkin aponta a Guerra
Fria como a principal causa de duas visões
radicalmente distintas sobre a obra de
Twain nos EUA e na China e na União
Soviética, da década de 40 à de 70. Em
simultâneo “castrados” e “reabilitados”
(Maxwell Geismar), o génio de Twain e o
seu papel como crítico social e cultural
foram distorcidos pelos imperativos polí­
ticos dos contendores. Enquanto escritores
e críticos chineses e soviéticos exaltavam
uma visão corrosiva sobre os EUA, os seus
pares norte­‑americanos desvalorizavam esta
faceta da obra de Twain como fruto de mera
propaganda comunista e enalteciam o escri­
tor enquanto humorista. Para Fisher Fishkin,
os americanos “deitaram o bebé com a
água do banho quando desvalorizaram
a validade das críticas de Twain em relação
ao seu país – que era também o deles – e,
infelizmente, em muitos aspectos, ainda
válidas para a América actual”.
Teresa F. A. Alves defende: “É interessan­
te constatar que, no percurso de passagem
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
CULTURA
na tradição literária erudita e estabeleceu na e se devolve ao leitor como o cenário
um novo modelo de tradição literária. adequado às realidades e aos paradoxos de
Estamos de regresso ao caudal do Mississipi uma cultura em transição”. A viagem será
de As Aventuras de Huckleberry Finn.
o tema central em toda a obra de Twain, do
Desde 1958, quando se dá a reorganiza­ Mississipi da infância até ao tempo do rei
ção dos currículos das Humanidades na Artur revisitado do futuro. “A viagem como
Faculdade de Letras da Universidade de metáfora da própria vida, numa escrita
Lisboa e é instituída uma cadeira anual de
essencialmente autobiográfica.Twain propõe­
Literatura Americana (no então curso
‑nos uma viagem literária e humana radi­
de Filologia Germânica), esta obra marca calmente ligada à mudança. Na verdade,
presença obrigatória nos programas. “Ela
ainda estamos todos a bordo e a viagem
presta­‑se, talvez como nenhuma outra do parece estar longe de terminar.”
autor, a funcionar como
obra de iniciação à diferen­
ça territorial e linguística da
literatura americana, a uma
Charles Darwin mantinha
cultura que se estrutura em
função de complexas duali­ A Viagem dos Inocentes
dades e de difíceis concilia­
na mesa­‑de­‑cabeceira,
ções.” Huck encarna “a
para lhe pegar rapidamente
aventura ao sabor da Terra
Prometida”. Foi na compa­
quando queria desanuviar
nhia de outro jovem, Tom
a mente e relaxar antes de dormir.
Sawyer (“este correspon­
dendo ao que um leitor
europeu familiarizado com
romances de cavalaria e de
novelas românticas esperaria
encontrar num juvenil aven­
tureiro”) que Huck deu a
Mark Twain a maior popu­
laridade e maior difusão
entre os leitores portugue­
ses. Estávamos na década de
1940 e, antes disso, era
como contista que Twain
surgia nos periódicos e
folhetins portugueses de
finais do século XIX – iní­
cios do século XX. Depois,
Tom conquistou os jovens,
Huck conquistou todas as
faixas etárias, – “não só pela
novidade estilística das suas
aventuras, mas também pela
representação de uma nova
percepção da experiência humana”.
Efectivamente, “no seu
fluir por entre as realizações
humanas precárias – repre­
sentadas pelas comunidades
que habitam as suas margens
– e a multiplicidade das
metamorfoses observadas ao
vogar de uma jangada tripu­
lada por um adolescente
branco e um homem negro,
o Mississipi como que sim­
bolicamente se apropria das
profundas contradições que
A visão dos peregrinos, retirado da obra The Innocents Abroad.
assinalam a existência huma­
‘
’
a autor canónico, Twain abriu caminho a
outros escritores que, como ele, começa­
ram a escrever à margem das convenções
dominantes, deixando­‑nos o testemunho
de uma literatura que se processa justa­
mente no recorrente intercâmbio entre
modos periféricos e canónicos.” Ao des­
denhar das convenções suas contemporâ­
neas, o autor oitocentisa abriu uma brecha
Paralelo n.o 5
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79
CULTURA
Portugal e EUA:
repúblicas com paralelo
As repúblicas portuguesa e americana tiveram génese revolucionária,
institucionalizaram­‑se por via constitucional, consagraram direitos fundamentais,
separaram Estado e religião e acreditaram no homem novo.
De resto, mais de um século e um oceano as separam.
Por Carla Martins
Auditório da FLAD, 21 de Maio. Em discus­
são o tema “Repúblicas em Paralelo: Portugal
e EUA”, no contexto das comemorações do
centenário da República Portuguesa, com as
sessões “A génese política e o legado das
constituições americana e portuguesa
(1911)” e “O conceito de República e a sua
dimensão política e religiosa”.
Alexander Keyssar, professor da
Universidade de Harvard, foi o primeiro
orador, debruçando­‑se sobre a génese e o
legado da Constituição redigida em segredo
no longo e quente Verão de 1787, em
Filadélfia. A nova nação precisava, então, de
um texto constitucional que fosse “um fra­
mework for eternity” e esse documento viria a
caracterizar­‑se pela brevidade e flexibilidade.
Os artigos eram em número reduzido e
apenas “vieram a ser completados com o
Bill of Rights, acrescido da conhecida parci­
mónia das restantes emendas constitucio­
nais”, descreve José Esteves Pereira, professor
da Universidade Nova de Lisboa, no comen­
tário no final das comunicações.
A Lei Fundamental foi concebida para
“limitar o poder do governo nacional” e
para “tornar o Povo soberano”, explica
Keyssar. Mas soberano q.b., porque havia
também de “limitar” o poder do povo
(lembra Keyssar que “democracia” tinha
na altura um sentido negativo). Os Pais
Fundadores preocupavam­‑se em proteger
os direitos das minorias – religiosas e a
minoria dos proprietários de grandes lati­
fundiários – e por isso eram ambivalentes
em relação a um governo popular. John
Adams, o segundo Presidente dos EUA,
80
‘
confessava ter terror das elei­
ções, pela hipótese de eleva­
Seria impensável abordar a génese
ção ao poder das “classes
da República sem incorporar
mais baixas”.
Sendo um texto tão curto,
o fenómeno da secularização
“a Constituição resistiu ape­
e a relação de forças entre
nas porque tem sido interpre­
tada de forma maleável”,
o político e o religioso.
observa Alexander Keyssar,
apontando o papel exegético
fundamental do Supremo
Tribunal. Não obstante, tem
servido bem o povo americano? O profes­ Optimismo em 1910
sor de Harvard concentrou boa parte da
António Reis, professor da Universidade
sua comunicação em “alguns dos legados Nova de Lisboa, dirigiu idêntica reflexão
mais prejudiciais e negativos” do documen­ à génese e legado da Constituição Portuto. Por exemplo, a arquitectura da eleição
guesa de 1911. A República Portuguesa,
presidencial permite que um p residente mais do que um novo regime político,
seja eleito sem maioria dos votos (o que personifica “um ideal, uma mística, uma
aconteceu por quatro vezes na história do
ética que, na sua essência, assentou numa
país). Os Pais Fundadores não tencionaram filosofia da História e do cosmos e se tra­
“ter um presidente eleito pelo povo”.
duz institucionalmente numa determina­
O especialista argumenta ainda que, em
da concepção da democracia e do Estado”.
boa parte dos estados, os resultados das O positivismo está entre as influências
eleições presidenciais não revelam surpre­
mais marcantes da matriz ideológica do
sa e que as campanhas se tornaram “num republicanismo, também afectada por um
desporto para espectadores”, o que repre­ “complemento nacionalista da herança
senta “um problema sério da nossa vida romântica, que introduz o finalismo na
política contemporânea”. A Constituição evolução da história pátria”.
permite ainda que os diferentes estados
O republicanismo português emergiu,
designem quem pode, e não pode, votar, assim, no quadro “de uma filosofia da
pelo que podem efectivamente discriminar
história que seculariza o providencialismo
as suas próprias minorias.
teológico no molde de um humanismo
Análise crítica que não impede Keyssar prometeico, fundado num optimismo,
de concluir que “a nossa Constituição tem­ a um tempo determinista, na sua base
‑nos servido bem”. A eternidade continua científica, e messiânico, no seu impulso
no seu horizonte.
afectivo de expressão nacionalista”.
’
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
CULTURA
DR Library of Congress
Propugna­‑se uma moral independente
da religião, com “expressão viril, assente
no culto da vontade, do trabalho e ener­
gia”, a que se soma uma vocação solida­
rista e associativista. A ética republicana é
ainda caracterizada pelo culto da pátria e
da humanidade, em substituição do culto
de Deus. O Estado republicano – e a ética
cívica que neste húmus se forma –
caracteriza­‑se, segundo António Reis, pela
laicidade (ou pela “quase laicidade”, como
viria a acentuar Fernando Catroga na ses­
são seguinte).
A Constituição de 1911 embebeu este
mosaico de influências e ideário. Porém,
o documento, como a I República, viriam
a denunciar, na prática, fragilidades. O seu
legado projecta­‑se na Lei Fundamental de
1976. Directamente, no capítulo dos direi­
tos, liberdades e garantias, e indirectamen­
te, na introdução de um “correctivo
presidencial”, para impedir uma “tónica
excessivamente parlamentarista”. A insta­
bilidade governativa da I República estava
na mente dos deputados constituintes –
como o próprio António Reis e Mário
Mesquita, moderador da sessão.
tica e religiosa da República. Se os comen­
tadores e estudiosos conferem um peso
relevante ao religioso na sociedade e polí­
tica americanas, tanto Mewes como
Catroga questionaram a existência de um
“excepcionalismo” americano nesta maté­
ria. Na verdade, cada caso é um caso.
Segundo Fernando Catroga, na Europa
católica a religião institucional era vista
como um obstáculo à modernidade, pelo
que em países como a França o laicismo
Recuo dos valores públicos
foi consagrado constitucionalmente (o que
Seria impensável abordar a génese da hoje é visto com alguma preocupação
República sem incorporar o fenómeno da pelos conflitos étnico­‑religiosos no país).
secularização e a relação de forças entre Na América, ao invés, a religião contribuía
o político e o religioso. Horst Mewes e
para a fundação da modernidade e a cria­
Fernando Catroga foram os oradores da ção de uma esfera política autónoma.
segunda sessão, dedicada à dimensão polí­
O professor da Universidade de Colorado
explica que o princípio da
separação entre Igreja e Estado
durante a Revolução Americana
deve ler­‑se num contexto de
luta pela liberdade religiosa,
sem que nela pudesse haver
interferência e controlo pelo
governo.
Na actualidade, os dados
sobre o religioso na América
são surpreendentes. Por um
lado, Mewes aponta a ameaça
potencial para o político repre­
sentada pelas religiões funda­
mentalistas. Por outro, as
estatísticas mostram que a reli­
gião está menos presente na
vida das pessoas, sobretudo
dos jovens, e manifesta­‑se
sobretudo no Sul do país.
Porém, o professor não iden­
tifica “a perda de bases religio­
sas” como o problema maior
da democracia americana actu­
al mas sim a “privatização da
vida”, o “reforço do individu­
alismo privatizado por muitas
formas de religiosidade”, à custa
das liberdades públicas. Hoje, as
religiões são assunto privado,
não norteiam ou impulsionam
os valores públicos, algo que
O Triunfo da Liberdade desenhado por John Francis Renault em 1795 representado pela deusa Minerva (à esquerda)
Tocqueville já prenunciava em
com um escudo com as armas dos Estados Unidos e a bandeira. O génio da liberdade aponta para a Declaração
de Independência e o livro a Constituição americana.
A Democracia na América.
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81
CULTURA
Gente de escrita
Miller ou a obscena inércia
Com intervalos de decénios ou séculos, surge um escritor
que mergulha dentro de si próprio, transformando a cratera do seu ser em linguagem.
Por Ana Marques Gastão*
Amiúde, é ignorado, esmagado, escarnecido
e, não menos frequentemente, embrulhado
em meia dúzia de linhas ou frases que o
arrastam para uma verdade que não é a sua.
A Henry Miller (1891­‑1980) chamam­‑lhe
pornográfico. Haverá passagens da sua obra
– que inclui os célebres Trópico de Câncer e
Trópico de Capricórnio ou a trilogia The Rosy
Crucifixion (Sexus, Plexus e Nexus) – em que o
será, mas até que ponto a sua obscenidade
tem sido contextualizada?
82
Sendo uma lenda – como as de Hemingway
ou Fitzgerald –, a verdade é que o seu nome
transporta um “horror obsceno”, por vezes
alucinante e não menos distante de uma
verborreia mítico­‑metafísica, que choca as
cabeças bem­‑pensantes. Camuflada fica,
quase sempre, a sua vasta dimensão enquan­
to autor erudito de prosa poética e apoca­
líptica, maldito ou profético.
Em Trópico de Câncer, pouco antes de definir
a Terra como “uma grande fêmea esparra­
mada, com torso de veludo
ondulante como vagas oceâni­
cas”, parecia ele que anuncia­
va/denunciava esta tendência
caverniculamente tenebrosa de
os homens destruírem o que
não entendem, escrevendo: “Se
de vez em quando encontra­
mos páginas que explodem,
páginas que ferem e cauteri­
zam, que arrancam gemidos,
e lágrimas, e pragas, sabei que
provêm de um homem de cos­
tas direitas, de um homem a
quem restam como únicas
defesas as suas palavras, e que
as suas palavras são sempre
mais fortes que o peso esma­
gador do mundo, mais fortes
do que todas as rodas e tortu­
ras que os cobardes inventam
para esmagar o milagre da per­
sonalidade.”
Há uma fisiologia quase mís­
tica ignorada no prosar deste
escritor de excessos e fatalis­
mos mecânicos e convulsivos,
algo que surge de um com­
plexo cultural onde se ani­
nham o Egipto e a Grécia
‘
Escreveu a aço e granito,
fazendo nascer “do nada
o sinal do infinito”,
do adubo morto “uma
canção contagiante”
porque o mundo
“é uma jaula” que,
ao agir, pensa.
’
como se se tratasse de restaurar as forças
solares de uma terra que a Miller serve de
útero e centro de um movimento de ideias.
Para o autor norte­‑americano, mesmo no
seu individualismo feroz, o ser humano é
traído pela melhor parte da sua natureza,
ele que desejava, incontido, o ressurgimen­
to de oceanos como Shakespeare ou Dante,
minérios da alma.
Sendo o homem vítima de preconceitos,
de ilusões idealistas, do sofrimento, da
humilhação e da pobreza, restam, a seu ver,
ao artista duas tarefas: uma certa ordenação
do caos e a reconstrução dos valores exis­
tentes, porque a verdadeira obscenidade é
a da inércia. Confessou, um dia, que a sua
maior aspiração não tinha sido a de viver,
mas a de exprimir­‑se, reatando, ciclicamen­
te, o ritmo existencial num esforço titube­
ante. Escreveu a aço e granito, fazendo
nascer “do nada o sinal do infinito”, do
adubo morto “uma canção contagiante”
porque o mundo “é uma jaula” que, ao
agir, pensa. E faz pensar.
* Poeta e crítica literária.
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LIVROS
True Compass
Autobiografia de Edward Moore
Kennedy (1932–2009)
2009, 532 páginas, Twelve
Memórias do
“Leão do Senado”
Por Paulo Pena
Jornalista da revista Visão
Um homem pode viver durante quinze
meses condenado a uma morte certa. Mas
só um homem excepcional consegue apro­
veitar essa derradeira etapa, os quinze
meses que lhe sobraram depois do diag­
nóstico fatal de um tumor no cérebro, para
escrever um livro de memórias como True
Compass. Edward M. Kennedy aproveitou a
oportunidade de uma forma shakespeariana,
rindo­‑se da morte: “Respeito a seriedade
da morte – em bastantes ocasiões pude
meditar nas suas intrusões.”
Nesta curta e surpreendente forma de
pôr as coisas, o mais novo dos quatro
irmãos Kennedy redimensiona uma tra­
gédia épica (que marcou profundamente
a política norte­‑americana) à sua própria
escala. Edward revela, neste livro, como
cresceu e aprendeu com os seus irmãos,
e como a morte destes marcou a família
e esculpiu o seu carácter.
A escala mede­‑se por vitórias pessoais.
“A atitude derrotista não faz parte do meu
ADN”, afirma. Foi assim que pôde dar a
notícia da morte do seu irmão Jack ao pai,
convalescente de um ataque cardíaco; foi
assim que ultrapassou o diagnóstico de can­
cro a dois dos seus três filhos (Teddy Jr e
Kara); foi assim que soube dimensionar os
seus sonhos políticos depois das derrotas.
Um exemplo recente é aquele que evoca
no prólogo (p. 10), recordando como uma
pedra no rim quase o impediu de discursar
na Convenção do Partido Democrata, em
Agosto de 2008, em Denver, três meses antes
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
da chegada vitoriosa de Barack Obama
à Casa Branca: “Inacreditavelmente,
depois de ter sobrevivido a uma cirur­
gia ao cérebro, à radioterapia, à qui­
mioterapia, e estando pronto para
cumprir o meu objectivo de falar aos
delegados em Denver, tinha sido ata­
cado, de repente, e pela primeira vez
na vida, por uma pedra no rim.”
Kennedy sabia que este seria o seu
último discurso numa convenção.
E queria repetir, quase palavra por
palavra, a frase final do seu discurso
de derrota, de 1980, quando abdicou
da corrida pela nomeação, benefician­
do Jimmy Carter. Ao perder a nomeação, Kennedy desistiu, de vez, do
destino presidencial que se lhe impu­
nha (mais do que um desejo próprio
era um destino que tentou combater).
Desta vez, em 2008, Kennedy endos­
sou a Obama o “sonho”. E o seu
sonho estava a meio caminho. Depois
da vitória nos direitos civis, faltava a
reforma da saúde: “O trabalho come­
ça de novo, a esperança volta a nascer
e o sonho vive outra vez.”
“Eu aguento”, revela na sua autobiografia,
era a frase que ia repetindo, entre o hospi­
tal e a convenção. Uma frase que se habituou
a repetir desde muito novo.
Sempre com humor, recorda Nixon: “Eu
fazia parte da sua infame ‘lista de inimigos’.
Uma vez que o alcance dessa lista rondava
os 47 mil, nunca pude verdadeiramente
saborear o sentimento de prestígio da
minha inclusão” (p. 314).
Sério e abalado, recorda a noite em que
o seu carro se despistou numa ponte na
ilha de Chappaquiddick, em 1969, quan­
do regressava de um encontro com
jovens que trabalharam na campanha do
seu irmão Bobby. Edward conseguiu
libertar­‑se enquanto o carro submergia,
mas a sua acompanhante, Marie Joe
Kopechne, acabaria por morrer. Kennedy
só comunicou o acidente à polícia no
dia seguinte: “Sofri várias vezes perdas
violentas e súbitas […] mas desta vez
foi diferente. Nessa noite eu fui o res­
ponsável. Foi um acidente, mas eu fui o
responsável.” (p. 292)
‘
A escala mede­‑se por vitórias
pessoais. “A atitude derrotista
não faz parte do meu ADN”.
’
Talvez o trecho que melhor resume a sin­
ceridade que Kennedy quis emprestar a este
livro é aquele que descreve os seus prazeres:
“Sou um apreciador da vida. Gostei de ser
senador; gostei dos meus filhos e dos meus
amigos; gostei de livros, de música e de boa
comida; gostei da companhia das mulheres.
Gostei de uma, ou duas ou três, bebidas
duras, e rendi­‑me aos prazeres de um bom
vinho. Por vezes, apreciei estes prazeres em
demasia…” (p. 421).
True Compass foi publicado menos de um
mês após a morte do seu autor, em
Setembro de 2009. Escrito em colaboração
com Ron Powers, baseia­‑se em diários que
o autor manteve ao longo dos últimos cin­
quenta anos e em depoimentos que gravou,
nos últimos cinco anos, para a Universidade
da Virgínia.
83
LIVROS
Histórias da Casa Branca
– Como o Fenómeno
Obama Está a Mudar
a América e o Mundo
Germano Almeida
2010, Prime Books
Um bom livro
para europeus
Por José Manuel Ribeiro
Deputado à Assembleia da República
O livro do jornalista Germano Almeida
constitui um autêntico roteiro não só para
uma boa compreensão dos primeiros doze
meses da presidência de Barack Hussein
Obama II, o imprevisto novo presidente
norte­‑americano que resgatou para a
América o respeito e admiração do mundo
livre e democrático, mas igualmente para
os próximos anos da era Obama.
Trata­‑se de uma publicação que junta e
organiza diversos artigos de opinião do
autor, centrados no primeiro ano da
“governação em prosa” de Obama, não
esquecendo ao longo do livro as necessárias
referências a períodos da “campanha elei­
toral em poesia”, como bem lembra o
autor quando cita a “receita” para o suces­
so no exercício de cargos políticos na
América, deixada pelo antigo governador
democrata de Nova Iorque, Mario
Cuomo.
Da histórica e difícil aprovação da refor­
ma da saúde até ao início do debate da
reforma financeira, da atribuição do Prémio
Nobel da Paz ao reforço da presença dos
EUA no Afeganistão, das questões internas
da raça aos gigantescos problemas da eco­
nomia norte­‑americana, do seu percurso
pessoal e familiar à escolha da equipa pre­
sidencial, nenhum dos mais relevantes
acontecimentos fica excluído da “lupa”
deste escritor jornalista.
84
O autor deixa­‑nos pistas
sobre alguns dos próximos
desafios que pairam e
ameaçam o “sonho” dos
milhões, na América e no
mundo, que acreditam na
mudança com este Presidente,
do desejado e tão necessário
crescimento económico à
crescente contra­‑ofensiva dos
sectores mais conservadores
da sociedade norte­‑americana
contra a sua presidência,
entre outros.
O trabalho do autor é
muito marcado pelo seu
interesse e fascínio pela
política e pelos políticos
americanos, o que saltando
à vista da leitura do livro
não deixa de entusiasmar o
leitor da primeira à última
palavra.
É notória a preocupação
de querer transmitir toda a
informação útil ao leitor,
acrescentando­‑lhe conheci­
mento, pelo que este livro
constitui também um ins­
trumento pedagógico e
muito útil para a compre­
ensão do sistema político
dos Estados Unidos da
América, com os seus
Aborda os principais e mais simbólicos
mecanismos de pesos e
momentos do “novo tempo” de Obama
contrapesos, que não dei­
na Casa Branca.
xando de ser fascinante
pela sua imprevisibilidade,
como referido pelo autor,
possui alguma complexida­
Aborda os principais e mais simbólicos de sobretudo quando comparado com os
momentos do “novo tempo” de Obama na
sistemas políticos europeus.
Casa Branca, com o método e rigor do bom
Este é um bom livro para europeus, entre
jornalismo e o talento e inspiração de um outros, sobretudo para os que ainda acre­
escritor que observa com paixão a vida ditam nas virtudes do caminho das reformas
política norte­‑americana, e muito em par­ no exercício do poder político, com a
ticular do político que “aparentemente, “assunção clara da cooperação e da nego­
surgiu na hora certa, como portador de ciação como modalidades de acção a privi­
novos modos de encarar e resolver os pro­
legiar” como bem refere o general Loureiro
blemas dos EUA e do mundo”, como refe­ dos Santos no seu prefácio, e que se sentem
re o general Loureiro dos Santos no profundamente inspirados pelo discurso de
prefácio.
mudança de Barack Obama.
‘
’
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
LIVROS
À Procura
da Grande Estratégia.
De Roosevelt a Obama
Coord.: Mário Mesquita, Sara Pina
e Susana Neves
2010, Lisboa, Tinta­‑da­‑China
The New Deal and
The Real Deal
Por Tiago Moreira de Sá
Professor da Universidade Nova
À Procura da Grande Estratégia. De Roosevelt a Obama
é o resultado das várias conferências apre­
sentadas durante o I Fórum Açoriano
Franklin D. Roosevelt, um evento organi­
zado em 2008 pela Fundação Luso­
‑Americana para o Desenvolvimento e o
Governo Regional dos Açores, destinado a
homenagear o Presidente Franklin Delano
Roosevelt e a assinalar a importância dos
Açores no âmbito das relações euroatlân­
ticas e luso­‑americanas.
É um livro com várias histórias, dividi­
das em seis grandes temas, que corres­
pondem às partes estruturantes da obra.
A primeira parte é consagrada à impor­
tância dos Açores para o espaço atlântico,
em geral, e para as relações Portugal­‑Estados
Unidos, em particular.
A este respeito refira­‑se o texto de
António José Telo que insere os Açores nas
três estratégias seguidas pelas grandes
potências desde 1917: as estratégias glo­
bais de negação; as estratégias globais de
preempção; as estratégias globais activas.
Merece também destaque o texto de José
Medeiros Ferreira sob o lugar de Portugal
nas relações luso­‑americanas. O autor
recua até às guerras napoleónicas e con­
cluiu que dessa data até à I Guerra Mundial
existiu uma coincidência nos percursos
na política internacional de Portugal e dos
Estados Unidos – ambos os países manti­
veram no essencial uma linha de neutra­
Paralelo n.o 5
| OUTONO | INVERNO 2010
lidade nos grandes conflitos do período.
A segunda parte é sobre a transição polí­
tica em curso nos EUA, nomeadamente
no contexto da eleição de Barack Obama
para a Presidência e da mudança em curso
no sistema internacional.
Refira­‑se desde logo o texto de Pierre
Hassner que defende que a ordem inter­
nacional em construção não deve ser pós­
‑americana, mas sim neo­‑rooseveltiana.
Para além desta perspectiva académica,
merece ainda destaque nesta parte do livro
a visão política de Mário Soares sobre a tran­
sição da Administração Bush para a Obama,
e que, segundo o ex­‑Presidente da República,
parece ter despertado “a consciência políti­
ca, o sentido de responsabilidade, o pionei­
rismo e o idealismo americanos”.
A terceira parte dedica­‑se às dimensões
políticas mais conhecidas da presidência
Roosevelt: o New Deal.
Um ponto comum percorre os três tex­
tos deste terceiro capítulo: a comparação
entre a crise económico­‑financeira dos
anos 1930 e a actual. E, ainda que com
perspectivas muito distintas, Álvaro
Dâmaso, Manuel Porto e Eduardo Paz
Ferreira coincidem num ponto: o New
Deal de Roosevelt foi um programa de
combate à crise bem­‑sucedido e assente
em três pilares: reestruturação do sistema
financeiro; recuperação da economia; cor­
recção das desigualdades.
A quarta parte analisa a comunidade
transatlântica e a sua importância no
actual contexto geopolítico, destacando­‑se
aqui o papel da NATO num momento de
revisão do seu conceito estratégico.
Este é um dos capítulos mais interes­
santes do livro, sendo constituído por
textos de Adriano Moreira, Carlos Gaspar,
Loureiro dos Santos, José Cutileiro e
Stephen Schlesinger (fellow da Century
Foundation).
Sob a forma de conclusões sobre o pro­
blema em apreço, podemos destacar as
seguintes ideias:
• A possibilidade de existência na actua­
lidade de uma “mudança na ava­
liação das ideias paradigmáticas
de Ocidente, de Atlântico, de
identidade cultural, de aliança
global das democracias, de apoios
estruturais da aliança militar con­
tra uma ameaça comum”
(Adriano Moreira).
• O fim da Guerra Fria está a
pôr em causa o papel da Aliança
Atlântica num mundo de uma
só superpotência (Loureiro dos
Santos).
• Apesar das crises ainda recen­
tes – e.g., a crise do Iraque – exis­
tem actualmente boas condições
para “consolidar a comunidade
transatlântica como centro de
estabilidade do sistema interna­
cional” (Carlos Gaspar).
A quinta parte é sobre uma das
questões centrais da agenda tran­
satlântica actual – as alterações
climáticas.
Finalmente, a última parte trata
da comunidade luso­‑americana
e o seu poder nas relações tran­
satlânticas.
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COLECÇÃO FLAD
Ângelo de Sousa
linhas de aço
Perseguindo a autenticidade, renovando­‑se constantemente, as tiras de metal sugerem apenas linhas em movimento, como
a obra de Ângelo de Sousa abrange diferentes técnicas e suportes: o se a matéria viva trabalhasse por si, indicando as possibilidades
desenho, a pintura, a escultura, a fotografia e o vídeo, tornando­‑se do seu manuseamento, impondo os limites da sua utilização.
possivelmente uma das mais intrigantes do nosso tempo e certa­ À semelhança de outras esculturas, também esta obra parece sur­
gir da realização de maquetas onde o autor explora a plasticidade
mente uma das mais difíceis de catalogar.
A escultura Sem título (1968), que aqui se procura abordar, dos materiais, a contaminação das linguagens neles contidas,
apresenta­‑se como um desenho tridimensional no espaço, neste realizando experiências, como que procurando dar forma a um
rasgando aberturas tal como um lápis abre incisões num plano vocabulário abstracto.
Mas então como pensar a obra de Ângelo de Sousa se ela enforma
bidimensional. Mas porquê falar em desenho, em inscrições e
registos deixados numa superfície, se esta obra se impõe pela sua e destrói simultaneamente todo o tipo de categorização?
O que ela formula são as tensões contidas no material antes e
presença física, pela ocupação de espaço tridimensional?
depois
de um momento. Assim, ela não é isto nem aquilo mas
Em princípio, qualquer escultura ocupa o espaço inerente à sua
condição material, mas esta obra parece distinguir­‑se particular­ um tempo de transição que condensa o antes e o depois. Ela é,
mente pela sua qualidade de traço, podendo mudar de disposição, enfim, uma obra que, mais que oferecer desenho, pintura, escul­
adquirindo diferentes configurações no espaço, o que lhe confere tura, mostra desdobramentos do pensamento plástico tornando
visível o movimento do próprio pensamento como se o pudesse,
leveza e fluidez.
Como pensar então a fluidez no âmbito da escultura, se a sua con­ momentaneamente, fixar.
Deixando­‑nos atravessar pelo movimento que lança no corpo e no
dição convencional é a de imobilidade? Estamos, por assim dizer, no
pensamento humanos, induzindo e fazendo propagar neles as suas
campo do pensamento plástico, território das virtualidades.
É talvez nesta zona que se pode localizar a escultura de Ângelo ressonâncias, deixando que desorganize o mundo e a sua forma de
de Sousa, particularmente, a obra Sem título (1968), proveniente aparência, as esculturas de barras de aço inoxidável, parecendo fluir
do conjunto de esculturas realizadas em barras de aço inoxidável, no espaço, colocam assim ao espectador novas leituras para os luga­
presas a uma ou duas charneiras, a partir das quais os elementos res que habita, uma revisão radical da nossa relação com o espaço.
podem girar assumindo variantes. Mas que zona é esta, excedendo Sara Antónia Matos
simultaneamente o espaço bi e tridimensional?
É o espaço onde o desenho já passou, onde
está sempre livre a correr; onde a pintura tal­
Nasceu em Moçambique, em 1938. assinalam­‑se as exposições antológi‑
vez tenha deixado composições de ritmos e
Licenciou­‑se na Escola Superior de ca, em 1993, no Museu de Serralves,
manchas, ensinando os elementos a organizar
Belas­‑Artes do Porto, em Pintura, no Porto e, em 2006, duas mostras
o espaço da representação; onde a escultura se
com a nota máxima de 20 valo‑ centradas em escultura na Fundação
libertou de formas fixas, onde a forma perene
res, faculdade onde posteriormente Gulbenkian e na Cordoaria Nacional,
parece ser sempre a da leveza.
foi convidado a integrar o corpo em Lisboa. Participou em várias bie‑
Se, num momento, a escultura se assemelha
docente. De um percurso extenso nais e foram­‑lhe atribuídos diversos
ao desenho de uma onda, no outro pode assu­
e consequente, abrangendo mos‑ prémios no âmbito da arte, testemu‑
mir a configuração de uma página dobrada, no
tras em Portugal e no estrangeiro, nhando o seu percurso singular.
seguinte, o de uma superfície reflectora, mem­
brana golpeada. Observada de outro ângulo,
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COLECÇÃO FLAD
Sem título, 1968, Aço inoxidável, dimensões variáveis
Paralelo n.o 5
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| Ground Zero Project.
88 Este é o projecto aprovado para a zona do Ground Zero, em Nova Iorque | Silverstein Properties, Inc. | www.wtc.com
Paralelo n. 5 | OUTONO | INVERNO 2010
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