ATO DE CORAGEM Os encontros de adolescentes do bairro não

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ATO DE CORAGEM Os encontros de adolescentes do bairro não
ATO DE CORAGEM
Os encontros de adolescentes do bairro não eram somente
para as peladas da tarde. Muitas vezes, ao anoitecer, cansados das
correrias do futebol e desejosos de boa conversa fiada, nos sentávamos
em círculo na parte gramada do improvisado campinho, a fim de
contar “causos” sem nenhum compromisso com a verdade, solta a
imaginação fértil que nos povoava a mente. Seria uma boa que adultos
também se animassem a brincar dessa forma, pois é uma pena que a
pressa do mundo atual nos faça esquecer dos tempos de criança.
Falava-se de tudo, das experiências escolares, dos filmes
em cartaz, dos namoros e sobretudo das meninas de costumes mais
avançados, que entretanto não eram como as de hoje, apenas as
facilidades de beijos mais prolongados e, nos casos extremos, de
algumas apalpadelas fugazes. Quando surgiram os filmes da Bardot,
todos censurados para menores, a preocupação era como subornar o
porteiro para nos permitir a entrada na sala de projeção. A estratégia
que mais funcionava era a de pagar-lhe diretamente o valor do
ingresso e, assim que a sessão começasse, esgueirar-nos pela sombra
para o interior da sala, para essas coisas não faltam imaginação e
muito menos escrúpulos.
No capítulo da valentia, porém, ninguém ganhava do
Bráulio, que até conseguiu matar, imaginem que coragem, uma
perigosa cascavel com certeiro golpe de cabo de vassoura. O episódio
aconteceu, segundo seu relato que nos deixou cheios de admiração, em
recente viagem ao sítio do tio, ocasião em que conversava à sombra de
um abacateiro e o réptil peçonhento se aproximou desapercebido.
Felizmente Braúlio, olhos de lince, viu-o a tempo, quando prestes a
picar alguém. “Vou trazer o guizo, que está lá em casa, pra mostrar a
vocês”. Só que até hoje ninguém viu o cobiçado troféu.
Foi na mesma noite desse relato que o César sugeriu
fôssemos “roubar” as cobiçadas mangas do quintal da casa do coveiro,
homem sisudo e mal encarado, bem ao lado do cemitério municipal.
Dali se podia ver, inclusive, as cruzes de alguns jazigos mais altos. Há
de ter corrido um frio pela espinha de cada um, como aconteceu
comigo, mas, embalados pela coragem brauliana e tendo o próprio
conosco, lá fomos, pouco mais de nove horas de noite escura, para o
local da empreitada, que parecia sinistramente silencioso e calmo, só
uma leve brisa agitando as folhas das árvores. Galgar o muro do
quintal e alcançar os galhos da mangueira que se debruçavam sobre
ele, foi tarefa fácil, uns fazendo “escadinha” para os outros, do que se
pode concluir como os infratores são solidários entre si. Já tínhamos
conseguido alguns frutos, a tarefa parecendo fácil demais e todos já
cheios de coragem, quando um longo e sofrido uivo canino, que mais
parecia grito desesperado, quebrou o silêncio e arrasou nossa coragem,
pondo-nos em desabalada fuga. Em poucos minutos, suados e
ofegantes, chegamos ao campinho, nosso ponto de encontro, todos
menos o Bráulio. Fomos para casa assim que a tremedeira passou,
preocupados com o que pudesse ter acontecido com ele, justo o
Bráulio, que no momento do sofrido uivo canino equilibrava-se em
galho mais fino para alcançar os frutos maduros. Era mesmo
corajoso...
O segredo só se desfez dois dias após, quando a irmã nos
contou que ele, naquela noite, teve uma incontida descarga intestinal,
chegando em casa todo descomposto. “Pudera, onde já se viu chupar
manga à noite. Vocês vivem mesmo aprontando!”
Darly Viganó
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