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Tratados nos trópicos: Vignola e Pozzo como
fontes de referência na obra de talha de
Valentim da Fonseca e Silva
PhD. Márcia Bonnet
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Dos artífices que viviam e trabalhavam na América Portuguesa sabe-se pouco.
Há mais de dez anos, sabia-se menos ainda. E como acontece quando se tem poucas
informações, teorias equivocadas vão se criando e com o tempo vão se enraizando.
Suposições errôneas ganham força e, quando nos damos conta, já se transformaram
em consenso. E nesses casos, nada como as boas e velhas fontes primárias para nos
colocar de volta no caminho certo. Alguns ponderariam que a documentação arquivística relativa ao período colonial é ínfima ou inexistente. Uma visita aos arquivos
mais importantes do país revela entretanto um outro quadro acerca desta documentação. Pobre e pouco numerosa, de maneira alguma; mal organizada e pulverizada
por diferentes arquivos, sim; pouco explorada e estudada, certamente.
Entre agosto de 1993 e janeiro de 1996, estive investigando pintores e entalhadores que viveram e trabalharam no Rio de Janeiro do setecentos para escrever minha
dissertação de mestrado. Vasculhei os principais arquivos brasileiros a procura de pistas que me levassem a entender melhor e delinear um perfil dos pintores e entalhadores
do setecentos fluminense. ‘É como procurar uma agulha num palheiro!’ alguns me diziam. A sensação, certamente era esta. Para surpresa de muitos, entretanto, encontrei
várias agulhas nos palheiros por onde as andei procurando: algumas de ouro, outras
enferrujadas. Foram suficientes, entretanto, para costurar uma dissertação de mestrado.
E como sempre acontece com assuntos pouco estudados, as surpresas foram muitas.
Naquela época acreditava-se que pintores e entalhadores coloniais tinham
pouco mais do que bíblias e missais como fonte de referência formal e iconográfica. Como freqüentemente acontece com a pesquisa arquivística, eu procurava por
uma coisa e encontrei outra que sequer esperava. Munida de uma lista de nomes
de artífices, eu procurava por inventários post-mortem que pudessem me dar uma
idéia mais clara do nível de vida daqueles homens. Acabei encontrando um inventário post-mortem de um tal Valentim da Fonseca. Como sempre acontece, só o
conteúdo do documento poderia esclarecer a identidade do inventariado. Já num
primeiro exame, a listagem de bens denunciava a atividade daquele indivíduo:
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bancadas de trabalho, peças entalhadas e por entalhar. Mas foi na listagem de livros que minhas suspeitas realmente se confirmaram.
Em geral, os livros que aparecem nos inventários post-mortem coloniais são
muito poucos. Além de serem considerados artigos de luxo, já que não possuíamos
imprensa na Colônia e os livros tinham que ser trazidos da Europa, não havia exatamente uma enorme demanda destes itens no magro ambiente cultural colonial.
Em geral, quando eles aparecem nos inventários post-mortem, constituem obras
que tratam de assuntos como a teologia ou a navegação. Pois este tal Valentim possuía
um exemplar de ‘A perspectiva de Pozzo’ e outro do ‘livro de arquitetura de Vignola’.
A avaliação dos livros foi executada e assinada por ninguém menos que Manuel Dias
de Oliveira, também conhecido pelas alcunhas de ‘O Brasiliense’ e ‘O Romano’, pintor
fluminense que se tornou o primeiro Professor Régio de Desenho do Vice-Reino.
Foi, entretanto, a comparação do depoimento deixado no testamento com as informações que Simeão de Nazaré fornecera a Araújo Porto Alegre que identificou de
maneira definitiva o inventariado como Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre Valentim, conhecido artífice fluminense do período colonial.
Simeão de Nazaré fora aprendiz de Mestre Valentim, o mais afamado artífice colonial fluminense. Seus feitos não foram poucos: Mestre Valentim era entalhador, escultor e mestre de obras. Fez o primeiro projeto do Passeio Público por encomenda do
Vice-Rei Dom Luís de Vasconcelos, projetou inúmeros chafarizes para a cidade do Rio
de Janeiro, projetou e coordenou a fatura de vários retábulos e foi responsável pela
decoração interna de igrejas e capelas de variadas confrarias da cidade.
Voltando ao inventário, é possível constatar que os livros citados por Manoel Dias
de Oliveira, pertencem a uma linhagem de tratados bastante numerosa na Europa e que
surge a partir do Renascimento. Tratam-se, provavelmente, do tratado de Andrea Pozzo
que surgiu pela primeira vez com o título Prospettiva de’ pittori e architetti – publicado em duas partes em 1693 e 1700, sendo o original em latim e italiano – e o Livro de
Arquitetura de Vinhola, que poderia ser Regola delli cinque ordini d’architettura ou Le
due regole della prospettiva practica, ambos de Giacomo Barozzi da Vignola, editados
pela primeira vez em 1562 e 1583 respectivamente.
Há atualmente na Biblioteca Nacional de Lisboa um manuscrito datando de 1768
com a tradução da obra de Pozzo do original em latim e italiano para o português.
Entretanto, acredita-se que seja um exemplar único. Com base nesta informação, podemos deduzir que o exemplar de Mestre Valentim não se tratava de uma versão em
português. Seria, quem sabe, uma cópia da edição bilíngüe em latim e italiano. Isto nos
PORTO ALEGRE, Araújo. Valentim da Fonseca e Silva In Revista do IHGB, tomo XIX, n 23.
Rio de Janeiro: IHGB, 1856.
POZZO, Andrea. Perspectiva pictorum et architectorum. 2 vols. Roma: 1693 e 1702.
ou Perspective in Architecture and Painting. Edição facsimilada. New York: Dover, 1989.
VIGNOLA, Giacomo Barozzi da. Regola delli cinque ordini d’architettura. Roma: 1562. ou
Canon of the five orders of architecture. New York: Acanthus Press, 1999. ______. Le due
Regole dela Prospettiva Practica. Roma: 1583.
Informação coletada no site http://opac.porbase.org/ em 07 de fevereiro de 2006.
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leva a hipótese de que o artífice fosse versado em um dos idiomas em que estava publicada a edição original. Tal possibilidade vem reforçar a afirmação de Araújo Porto
Alegre de que Mestre Velentim teria sido levado para Portugal pelo pai para que lá
fosse educado e sua hipótese de que poderia ter ainda freqüentado escolas de arte na
Metrópole, ou seja, de que parte da sua educação teria se dado na Europa.
Quanto às obras de Vignola, consta na Biblioteca Nacional de Lisboa uma
edição de Regola delli cinque ordini… em língua portuguesa que data de 1787. A
biblioteca conta com um total de onze exemplares desta mesma obra, de datações,
edições e procedências diferentes. Da obra Le due regole… a mesma biblioteca
conta apenas com um exemplar em latim e datando de 1583. O mais provável é
que o livro de Mestre Valentim fosse uma edição de Regola delli cinque ordini… já
que esta obra parece ter sido bem mais popular no mundo luso de então do que Le
due regole… E como já se contava com uma tradução de Regola delli cinque ordini… para o português, é possível, que o exemplar de Mestre Valentim já fosse uma
tradução para este idioma.
A obra de Pozzo Prospettiva de’ Pittori e Architetti se dedica ao estudo da
perspectiva na pintura e na arquitetura, como o próprio título demonstra. Já Regola delli
cinque ordini… é um estudo de proporção aplicado à arquitetura que abrange as cinco
ordens clássicas – dórica, jônica, coríntia, toscana e compósita – enquanto que Le due
regole… é um tratado de perspectiva dirigido a pintores, cenógrafos, matemáticos e
arquitetos. Os três tornaram-se referências obrigatórias para o estudo da perspectiva.
Entretanto, complementando seus objetivos principais, os dois primeiros tratados oferecem uma série de modelos para elementos decorativos como portadas, sobrevergas
ornamentadas e consolos em voluta.
Partindo, então, do pressuposto de que as duas obras pertencentes a Mestre
Valentim e que aparecem em seu inventário eram Prospettiva de Pittore e Architteti do jesuíta Andrea Pozzo e Regola delli Cinque Ordini de Giacomo Barrozzi da
Vignola resta buscar compreender como Valentim da Fonseca e Silva utilizava estas referências visuais em sua obra de talha. Uma vez que os dois tratados enfatizam sobremaneira as proporções, tanto na arquitetura clássica mapeada por Vignola, quanto nos exercícios de perspectiva propostos por Pozzo, meu primeiro
impulso foi tentar verificar os cálculos de proporção utilizados por Mestre Valentim
em seus retábulos. Devido às vastas proporções da maioria deles e as dificuldades
PORTO ALEGRE, Araújo. Valentim da Fonseca e Silva In Revista do IHGB. Tomo XIX, n
23. Rio de Janeiro: IHGB, 1856.
VIGNOLA, Giacomo. Regras das cinco ordens de architectura: segundo os principios de
Vignola, com um ensaio sobre as mesmas ordens feito sobre o sentimento dos mais celebres
architectos. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1787. Informação coletada no site
http://opac.porbase.org/ em 07 de fevereiro de 2006.
VIGNOLA, Giacomo. Le due regole della prospecttiva pratica. Roma: Francesco Zannetti,
1583. Informação coletada no site http://opac.porbase.org/ em 07 de fevereiro de 2006.
WIEBENSON, Dora. Los Tratados de Arquitectura – de Alberti a Ledoux. Madrid: Herman
Blume, 1988.
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evidentes que medí-los envolveria, elegi dois retábulos menores onde certamente
se poderia verificar esta questão: o retábulo da capela de Nossa Senhora das Vitórias da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Paula e o retábulo de Nossa
Senhora do Amor Divino, na Capela do Noviciado da Igreja da Ordem Terceira de
Nossa Senhora do Monte do Carmo, ambas no Rio de Janeiro. Nos dois casos, esbarrei em proibições no sentido de fotografar, medir e, no caso da Igreja da Ordem
Terceira do Carmo, até de ver os retábulos. Esta primeira possibilidade de investigação, portanto, teve de ser adiada para um momento futuro, quando, quem sabe,
as instituições proprietárias destes bens, ou que detêm a sua salva-guarda, possam
perceber a importância de se estudar estas obras.
Sendo obrigada a abandonar esta primeira avenida de investigação, voltei-me
para uma análise dos modelos propostos nos dois tratados e sua utilização pelo artífice – ainda que algumas de suas obras tenham sido, obrigatoriamente, analisadas
por fotografias. A primeira constatação é a de que o artífice, mineiro do Serro do Frio
e radicado no Rio de Janeiro, não copiava diretamente os desenhos dos tratados.
Antes, Mestre Valentim parece ter tido o cuidado de, partindo dos modelos propostos
nos tratados, buscar novas composições que, por vezes, combinam diferentes modelos para um mesmo elemento e, em alguns casos, distanciam-se bastante o modelo
inicial. Curioso, se pensarmos que pouquíssimas pessoas no Rio de Janeiro colonial
poderiam identificar um ‘empréstimo’ que o artífice fizesse de algum tratado.
Como nos lembra João Adolfo Hansen, a originalidade não era uma característica almejada pelo artífice dos séculos XVII e XVIII. Buscava-se, outrossim, o engenho, a agudeza. O adjetivo engenhoso, neste caso, seria aplicável aos produtos de
‘operações intelectuais’ como a perspicácia e a versatilidade. Segundo Hansen,
A perspicácia é a capacidade lógico-dialética de penetração e análise do assunto a ser representado, em busca de suas especificidades, pela distinção de
semelhanças e diferenças; a versatilidade significa a capacidade retórica de,
achando-se as partes próprias do assunto, relacioná-las por analogia umas às
outras e ao todo da peça, produzindo-se efeitos agudos, como metáforas que
emulam, isto é, imitam e superam outras do mesmo gênero já realizadas. (...)
não sendo tão entendidas pela plebe dos não-doutos, que não tinha muitas
dessas informações retórico- plásticas, assim mesmo as agudezas deviam impor-se pelo maravilhamento do artifício aplicado, sendo admiradas por todos
segundo várias razões e apropriações.
Faz parte, portanto, da busca de engenhosidade, a recombinação de elementos de um repertório já estabelecido de maneira a superar o modelo proposto.
Resta-nos imaginar quantos observadores coloniais teriam a agudeza necessária
HANSEN, João Adolfo. Teatro da Memória: monumento barroco e retórica. Seminário
Teoria do Monumento Barroco, IAC, UFOP, 1994, mimeo.
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para perceber a perspicácia e a versatilidade aplicados por Mestre Valentim na realização de suas obras.
Consolos em voluta, detalhes dos retábulos-mor das igrejas da Ordem Terceira de Nossa
Senhora da Conceição e Boa Morte e da Irmandade de Santa Cruz dos Militares, respectivamente. Fotos da autora.
Esta engenhosa recombinação de motivos é uma característica largamente perceptível em propostas decorativas implementadas pelo artífice em interiores como
o da igreja da Irmandade de Santa Cruz dos Militares e da igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte, ambas no Rio de Janeiro. Capacetes e armaduras romanas, por exemplo, saem dos frisos decorados dos tratados e
aparecem reposicionados e redimensionados como destaque decorativo, nos painéis da igreja de Santa Cruz dos Militares. Consolos em voluta, apesar de apresentarem a forma geral representada nos tratados, ganham nova ornamentação, ou os
mesmos elementos ornamentais rearranjados em novas combinações.
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Painel decorativo, igreja da Irmandade de Santa Cruz
dos Militares, Rio de Janeiro. Foto da autora.
Entretanto, esta característica não aparece na obra do artífice apenas aplicada a
utilização de elementos decorativos. Obsevando-se, por exemplo, os modelos de retábulo propostos na edição original do tratado de Pozzo, onde constam representações
de retábulos das igrejas de Il Gesú e de Santo Inácio de Roma, e os retábulos projetados
por Mestre Valentim, é possível perceber que o artífice combinou em suas obras elementos retirados de vários modelos de retábulo.
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Retábulos-mor das igrejas da Irmandade de Santa Cruz dos Militares e da Ordem Terceira
de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte, respectivamente, ambas no Rio de Janeiro.
Fotos da autora.
Desde a notória predileção de Mestre Valentim pela coluna pseudo-salomônica
até a utilização de figuras antropomorfas assentadas sobre os fragmentos de arco presentes nos coroamentos dos seus retábulos, percebe-se a utilização de elementos presentes nos tratados. Mas, para além da composição de um repertório decorativo a
partir deles, observa-se que através da recombinação da informação estética obtida nos
tratados, Mestre Valentim criou duas tipologias de retábulo, uma para retábulos-mor e
outra para retábulos laterais e de capela, mas isto já é uma outra história...
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Coroamento dos retábulos-mor das igrejas de São Pedro dos Clérigos, Santa Cruz dos Militares e da Ordem Terceira de Nossa Senhora da Conceição
e Boa Morte, respectivamente, todas no Rio de Janeiro. Fotos da autora,
exceto a de S. Pedro dos Clérigos, oriunda do Arquivo Noronha Santos,
IPHAN-DID, RJ.
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Referências Bibliográficas e fontes:
Fontes:
a) Primárias:
Inventário de Valentim da Fonseca, 1813. Arquivo Nacional. Caixa 7148, maço
464, n 8870
b) Secundárias:
POZZO, Andrea. Perspectiva pictorum et architectorum. 2 vols. Roma: 1693 e
1702. ______. Perspective in Architecture and Painting. Edição facsimilada. New
York: Dover, 1989.
VIGNOLA, Giacomo Barozzi da. Canon of the five orders of architecture. New
York: Acanthus Press, 1999.
______. Le due Regole dela Prospettiva Practica. Roma: 1583.
______. Regola delli cinque ordini d’architettura. Roma: 1562.
______. Regras das cinco ordens de architectura: segundo os principios de Vignola,
com um ensaio sobre as mesmas ordens feito sobre o sentimento dos mais celebres
architectos. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1787.
Livros e Artigos:
BONNET, Márcia C. L. Entre o artifício e a arte: pintores e entalhadores no Rio de
Janeiro Setecentista. No prelo.
______. Pegadas de Mestre Valentim pelos labirintos da história colonial: o inventário de Valentim da Fonseca e Silva In MARTINS, Maria Clara A. & VALENTE,
Carlos Eduardo. Memória e esquecimento na arte. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ,
1996.
HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o Engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
______. Teatro da Memória: monumento barroco e retórica. Seminário Teoria do
Monumento Barroco, IAC, UFOP, 1994, mimeo.
LEVY, Hannah. Modelos europeus na pintura colonial In Revista do SPHAN, n. 8,
Rio de Janeiro, MES, 1944, p. 7-66.
PORTO ALEGRE, Araújo. Valentim da Fonseca e Silva In Revista do IHGB, tomo
XIX, n 23. Rio de Janeiro: IHGB, 1856.
WIEBENSON, Dora. Los Tratados de Arquitectura – de Alberti a Ledoux. Madrid:
Herman Blume, 1988.
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Websites:
http://digi.ub.uni-heidelberg.de/sammlung14/allg/werk.xml?docname=pozzo1709bd1
http://digi.ub.uni-heidelberg.de/sammlung14/allg/werk.xml?docname=vignola1620
http://opac.porbase.org/
http://www.unav.es/ha/003-ORDE/aprender-de-pozzo.htm