O artífice eletroacústico Rogério Duprat
Transcrição
O artífice eletroacústico Rogério Duprat
IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste. 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE. Grupo de Trabalho: Antropologia das práticas musicais O artífice eletroacústico Rogério Duprat, arranjador tropicalista Jonas Soares Lana1 [email protected] Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro 1 Bolsista de doutorado CAPES/PROSUP do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Ex-bolsista-sanduíche CAPES/PDEE. O artífice eletroacústico: Rogério Duprat, arranjador tropicalista Jonas Soares Lana Há algum tempo, nota-se no Brasil o crescimento do esforço entre os pesquisadores da canção popular moderna para evitar análises que deixem escapar os sentidos musicais da palavra cantada. A fim de alcançar significados que estão para além das letras, eles passaram a deslocar a atenção, antes concentrada nos encartes aos CDs e LPs, para o conteúdo sonoro dos discos. Mas se por um lado, essa mudança de abordagem deu fôlego aos estudos da canção, por outro, ela produziu efeitos colaterais. Alguns desses estudiosos incorrem no erro de tomar a gravação apenas como uma via de acesso à palavra cantada, como se a última fosse uma entidade autônoma situada no mundo das ideias. Essa operação reduz o registro sonoro a um epifenômeno por meio do qual se busca captar a “essência original” da canção. Com isto, perde-se de vista a maneira pela qual os significados da palavra cantada são modificados pelos demais elementos presentes em uma gravação, como a interpretação vocal, os instrumentos musicais e equipamentos do estúdio utilizados e o universo infindável de escolhas à disposição daqueles que preparam o arranjo musical. Tal desossa analítica favorece ainda a reprodução da noção naturalizada de que os compositores e cantores das canções gravadas são os únicos autores desses registros. Frequentemente implícita, essa percepção acaba por fazer persistir uma relativa indiferença com relação à colaboração de outros profissionais que atuam diretamente na produção fonográfica e que, por esse motivo, devem ser encarados como coautores das gravações de canção. Muitos anos antes da canção tornar-se um assunto recorrente no meio acadêmico, essas questões sobre a autoria compartilhada e o impacto do contexto sonoro da gravação nos significados da palavra cantada foram levantadas por alguns de seus produtores. Desde o surgimento da Bossa Nova no final dos anos 1950, consolidou-se no Brasil uma tendência entre os cancionistas filiados a esse gênero de produzirem o que Santuza Naves 2 chama de “canção crítica”. Parte dessa crítica foi destinada ao próprio fazer cancional em obras que propunham refletir sobre o processo criativo. Entre os principais agentes dessa autoreflexão metalinguística estão, segundo a autora, os integrantes do círculo tropicalista, formado no final dos anos 1960 por cantores, compositores, letristas e arranjadores que buscavam explorar as conexões entre a palavra cantada e outros elementos presentes na obra desses artistas, como os figurinos, as capas de disco e os arranjos musicais (NAVES, 2010). Ao tematizar a integração entre a canção e outros elementos sonoros e visuais, os tropicalistas chamaram a atenção para o peso desses elementos na constituição dos sentidos da palavra cantada. Ao mesmo tempo, eles expuseram os bastidores da produção fonográfica, dando visibilidade a diversos colaboradores que contribuíram para a formação desses sentidos, tais como o produtor da gravadora, os técnicos de gravação, os arranjadores e outros envolvidos no processo de produção. Colaboradores cujas vozes e nomes soam em algumas gravações tropicalistas e, cuja fisionomia, em um caso específico, pode ser apreendida diretamente na capa do álbum coletivo Tropicália ou panis et circencis. Refiro-me a Rogério Duprat, compositor e arranjador que figura na capa desse disco de 1968 em meio a estrelas da música popular como Caetano Veloso e Gilberto Gil. Duprat não foi o arranjador exclusivo do círculo musical tropicalista, mas foi único pela intensidade com que colaborou com os demais integrantes do grupo. Responsável pelos arranjos do disco Tropicália e de oito álbuns gravados individualmente pelos membros desse círculo entre 1967 e 1969, Duprat recebeu ainda no calor do momento a atenção de críticos como Augusto de Campos (2005) e, a partir de meados dos anos 1970, de pesquisadores como Celso Favaretto (1995), Silviano Santiago (1978), entre outros que celebravam o modo como os arranjos de Duprat dialogam com a palavra cantada. Repletos de referências a estilos composicionais, de citações musicais e dos mais variados efeitos sonoros, eles estabelecem uma interlocução tão profunda com a melodia e o texto verbal das canções que não seria exagero afirmar que algumas delas perderiam a identidade se fossem isoladas da textura sônica desses arranjos. 3 Nesse sentido, a experiência de Duprat como arranjador de canções tropicalistas constitui-se como um meio importante de reflexão sobre a produção fonográfica do grupo e, em nível mais abrangente, sobre o lugar ocupado pelos arranjadores no campo da produção de música popular gravada para o consumo em massa. Com isto em mente, proponho neste trabalho promover um estudo de fundo etnográfico das atividades desempenhadas por Duprat como arranjador de canções tropicalistas gravadas entre 1967 e 1969. Nos LPs tropicalistas, a participação de arranjadores limita-se, quando muito, à menção de seus nomes nas capas. Qualquer outra informação como, por exemplo, as faixas de cuja produção eles participaram, estará cifrada na própria massa sonora fonografada ou em trabalhos acadêmicos, matérias jornalísticas e entrevistas. A fim de expandir o meu horizonte empírico e de multiplicar as perspectivas sobre a experiência de Duprat junto ao grupo tropicalista, entrevistei pessoas que acompanharam, a diferentes distâncias, a sua atuação como arranjador.2 Dentre os meus entrevistados, o ex-produtor da gravadora Philips Manoel Barenbein e os ex-técnicos de gravação Gunther Kibelkstis e Stélio Carlini foram aqueles que me concederam as mais detalhadas descrições sobre as atividades de Rogério Duprat como arranjador, possivelmente por terem acompanhado o seu trabalho mais de perto. Nessas entrevistas, Barenbein, Kibelkstis e Carlini enfatizaram espontaneamente a importância da sessão de gravação de “Domingo no parque” em 1967. Essa experiência foi por eles descrita como uma das mais marcantes entre todas as produções tropicalistas, em razão da complexidade técnica de um projeto que, segundo Barenbein, envolveu nada mais nada menos que trinta e seis músicos de orquestra.3 No comando da “técnica”, como era chamada a operação dos equipamentos de gravação, estava 2 As entrevistas foram realizadas entre 2010 e 2012. Os entrevistados foram Cláudio César Dias Baptista (irmão de Sérgio Dias e Arnaldo Batista, da banda Os Mutantes), o cantor e compositor Gilberto Gil, o musicólogo Régis Duprat (irmão de Rogério), o maestro e arranjador de canções tropicalistas Júlio Medaglia, o ex-produtor da gravadora Philips Manoel Barenbein e, em uma mesma ocasião, os ex-técnicos de gravação do estúdio Scatena Gunther Kibelkstis e Stélio Carlini. 3 BARENBEIN, Manoel. S/l, 1º fev. 2012. Entrevista concedida a Jonas Soares Lana (por telefone). 4 Carlini, apontado por Kibelkstis como seu grande mestre. Carlini narrou o registro de “Domingo no parque” como um feito heróico. Diante da obrigação de gravar todos esses músicos simultaneamente, erros eram simplesmente inconcebíveis: “não tinha aquele negócio de ‘passa de novo aí’”, comentou o técnico. Referindo-se aos equipamentos digitais de áudio, Kibelkstis enfatizou que “não era tecladinho nem sampler, nem nada. Era realmente uma orquestra ao vivo”.4 Dotados de um sistema ainda muito rudimentar de gravação em multipista, cujo nível atual de desenvolvimento permite a qualquer iniciante gravar instrumentos separadamente para a posterior integração na fase de mixagem, eles eram obrigados a gravar todos os músicos da orquestra tocando ao mesmo tempo. Assim como esses técnicos, Barenbein ressaltou que em uma gravação complexa como a de “Domingo no parque” era tudo ou nada. “Não tinha como voltar atrás. Ou era na hora que se decidia o que estava bom ou o que estava ruim, ou não tinha o que fazer”, comentou Barenbein, concluindo que “não dava pra dizer ‘ah não, esquece... a gente volta amanhã e termina isso’”.5 Afinal, observou Kibelkstis, os músicos de orquestra eram pagos por hora, e a repetição das sessões de gravação era sinônimo de prejuízo financeiro. Frente a essa situação, nem Duprat nem qualquer outro arranjador que estivesse envolvido em uma produção do porte de “Domingo no parque” podia cometer um erro sequer. Depois de finalizado o arranjo, comentou Kibelkstis, restava ao arranjador apenas subtrair a parte de um instrumento, naipe ou seção da orquestra que não soasse bem na gravação.6 Inspirado pelos relatos dos produtores George Martin, conhecido como o quinto Beatle, e Phil Ramone, responsável pela produção de discos de artistas como Frank Sinatra e Ray Charles,7 eu acreditava que a sonoridade final das gravações tropicalistas era ditada por Manoel Barenbein. Ao perguntá-lo se o seu trabalho se assemelhava ao deles fui surpreendido por 4 KIBELKSTIS, Johann Gunther; CARLINI, Stélio. São Paulo, 22 jul. 2011. Entrevista concedida a Jonas Soares Lana. 5 BARENBEIN, Manoel. Op. Cit. 6 KIBELKSTIS; CARLINI. Op. Cit. 7 Sobre a trajetória de Phil Ramone como produtor musical, confira RAMONE; GRANATA (2008). Detalhes sobre atuação de George Martin como produtor dos Beatles podem ser encontrados em obras de sua autoria como MARTIN; HORNSBY (1994) e MARTIN; PEARSON (2006). 5 uma resposta negativa. Suas atribuições, contou-me o produtor, iam além das paredes do estúdio. Comparando-se a um produtor executivo, ele afirmou que seu trabalho envolvia o acompanhamento da produção geral do disco, desde a escolha do repertório até o seu acabamento final, assim como a coordenação de equipes que incluíam desde músicos até artistas gráficos. Na medida em que o trabalho no estúdio era apenas um entre tantos outros que ele tinha que acompanhar, ele não podia controlar integralmente como soaria a gravação. Assim, ele tinha que delegar essa atribuição, mesmo que parcialmente, aos técnicos do estúdio e aos arranjadores. Dando continuidade à entrevista, indaguei se Barenbein podia prever como soaria uma gravação com arranjo antes que ela fosse registrada. O exprodutor da Philips afirmou que a pouca familiaridade com o pentagrama o impedia de ler uma grade, a partitura na qual o compositor dispõe as partes escritas para todos os instrumentos, permitindo, assim, ao regente, orientarse enquanto comanda a orquestra, dentro ou fora do estúdio. “O cara que escreve uma grade sabe qual é o resultado final”, disse Barenbein, referindose aos arranjadores, geralmente os únicos capazes de imaginar a sonoridade de uma gravação com arranjo orquestral a partir da leitura da grade. “Você não escreve o arranjo se não souber como vai soar”. Barenbein chama a atenção para o fato de que, para ser arranjador dos discos tropicalistas, Duprat teve que desenvolver, nos termos de Virgínia Bessa, a aptidão para “escrever (e executar) a sua própria escuta” (2005: 6). Para que pudesse escrever uma grade e antecipar o resultado final sem tocar uma nota sequer, Duprat precisou desenvolver um conjunto de competências musicais que incluía desde o domínio avançado da escrita em pentagrama até a capacidade de reger uma orquestra, como de fato ele fazia nos estúdios de gravação.8 Acrescenta-se a isto o conhecimento das regras da harmonia, do contraponto, assim como um conjunto vasto de noções de orquestração que inclui o domínio das propriedades timbrísticas dos instrumentos, de seus idiomas específicos, as notas mais graves e agudas que eles podem alcançar (o registro) e assim por diante. 8 KIBELKSTIS; CARLINI. Op. Cit. 6 Estas e muitas outras habilidades exigidas para a preparação de arranjos complexos como o de “Domingo no parque” são dominadas por maestros e principalmente por compositores de música erudita, os quais são preparados por meio de um estudo livresco dos mais variados estilos e técnicas de composição desenvolvidas no Ocidente desde pelo menos o século XVI. Esta não é, contudo, a formação predominante entre os cantores e compositores de canções populares, ainda que cancionistas como Gilberto Gil tenham desenvolvido auditivamente algumas das competências dos compositores eruditos para programar mesmo que parcialmente os seus próprios arranjos, por meio da escolha de instrumentos e da criação de encadeamentos harmônicos, de motivos rítmico-melódicos, de vozes secundárias, introduções e outras seções instrumentais. Conforme relatos de Duprat, do integrante da banda Os Mutantes Sérgio Dias, e de Gilberto Gil, este participou ativamente da confecção do arranjo de “Domingo no parque”.9 No entanto, Gilberto Gil não poderia tê-lo feito sem a ajuda de Rogério Duprat, como ele próprio comentou em 1968: “eu mostrei a Rogério a música e as ideias que eu já tinha e ele as enriqueceu com os dados técnicos que ele manuseia e eu não: a orquestração, o conhecimento da instrumentação”.10 Sem o auxílio, portanto, de um arranjador profissional, cantores e compositores de canção não poderiam concretizar um arranjo que, de outro modo, ficaria apenas na imaginação de músicos destituídos dos conhecimentos necessários para fixar um conjunto complexo de ideias musicais em uma grade para orquestra. Todos os esforços desconstrutivistas de compositores eruditos como Erik Satie (1866-1925) e John Cage (1912-92) foram insuficientes para desarmar a ideia, ainda persistente, de que o compositor erudito é um gênio criador de obras originais. No livro O artífice, Richard Sennett afirma que no mundo da arte essa ideia de originalidade denota, desde Platão, “o súbito surgimento de alguma coisa onde antes não havia nada” que provoca 9 A descrição de Gilberto Gil sobre a sua colaboração na produção do arranjo de “Domingo no parque” encontra-se em uma entrevista concedida a Augusto de Campos (2005: 196). As descrições de Rogério Duprat e Sérgio Dias foram registradas em entrevistas por Getúlio Mac Cord (2010: 282; 332). 10 GIL, Gilberto. S/l, 6 abr. 1968. Entrevista concedida a Augusto de Campos (com intervenções de Torquato Neto). In: CAMPOS, 2005: 196. 7 “sentimentos de admiração e espanto” (2009: 84). Segundo essa concepção, a obra, única e singular, é gerada repentinamente como um objeto dotado de autonomia estética. Legada por renascentistas confiantes na capacidade demiúrgica do homem,11 essa representação esconde o lado mais prosaico e ordinário da vida cotidiana do criador. Como argumenta Sennett, o aprendizado dos compositores, bem como dos instrumentistas e dos maestros, é centrado nos modos de fazer. Como um oleiro que precisa por a mão na argila para aprender o seu ofício, o compositor só poderá compreender as técnicas necessárias à composição de um quarteto de cordas criando obras para esse grupo instrumental. Não é de se admirar, portanto, que em muitas situações os músicos dependam de seus instrumentos para transmitir conhecimentos que por vezes eles não podem verbalizar. Como os artífices entrevistados por Denis Diderot no século XVIII para a edição da Enciclopédia ou Dicionário de artes e ofícios, os músicos encontram dificuldade para descrever com palavras o que fazem com o corpo. Ainda que contemporâneos de Diderot como Jean-Phillippe Rameu já tivessem escrito volumosos tratados de teoria musical, o aprendizado desse ofício artesanal que é a música continuou, e assim permanece, baseado na transmissão de conhecimentos tácitos (SENNETT, 2009). Como qualquer outro músico ou artista, o compositor é formado e trabalha, portanto, de maneira muito semelhante à do artífice, como observa Richard Sennett. Esse ponto de vista converge com a perspectiva de Mário de Andrade, escritor e crítico musical brasileiro para quem o artista deve possuir uma sólida formação de “artesão”, termo que no meu entender é utilizado para se referir ao que Sennett chama de “artífice”. Esse argumento é um dos pilares da aula inaugural ministrada por Andrade aos estudantes de história e filosofia da arte da Universidade do Distrito Federal em 1938, posteriormente publicada no livro O baile das quatro artes com o título de “O artista e o artesão”. Nessa exposição, ele defende que os artistas adotem uma formação de artesão baseada no estudo da “técnica”, descrita pelo autor como a “relação entre o artista e a matéria que ele move”. Uma matéria que, 11 Uso propositalmente o termo “homem”, já que essa potência criadora era considerada um dom exclusivamente masculino, motivo pelo qual historicamente o ofício de compositor muito raramente foi desempenhado por mulheres (McCLARY,1991). 8 segundo Andrade, determina os limites da criação artística com suas propriedades e leis internas. Em música, continua o escritor, essa matéria consiste no som, no gesto, na voz e, no caso da canção, na palavra (2005: 25). Nesse sentido, as propriedades desses meios sonoros definem em última instância parte das soluções encontradas pelo músico, assim como o fazem os atributos materiais do mármore ou da madeira em relação a uma escultura. Um exemplo muito atual de resultados catastróficos da falta de intimidade com os atributos materiais dos sons são as composições realizadas no computador por iniciantes em música. Como professor de violão, acompanhei no final dos anos 1990 o deslumbramento de jovens alunos com a possibilidade de utilizar programas de informática para escreverem e ouvirem suas próprias obras musicais. Magos da informática e aprendizes dos rudimentos da leitura em pentagrama, eles lançaram-se à composição, preenchendo quase que aleatoriamente a pauta digital. Como era de se esperar, suas composições não passavam de agrupamentos de sons tão disformes quanto uma pilha de entulho deixada por um leigo que tentou esculpir em mármore sem conhecer as propriedades físicas dessa rocha. Mas ao contrário do que concluirão os detratores das tecnologias digitais, a fonte do problema não era o computador, equipamento que pode ser tão útil ao compositor contemporâneo como um martelo e um cinzel eram para Michelangelo. Com essa ferramenta, os meus alunos poderiam, portanto, ter escrito mil Bachianas brasileiras. Mas para isto, eles teriam que conhecer de perto as propriedades materiais do som, assim como o fazem compositores como Villa-Lobos. No processo composicional, o músico combina sons como pintores misturam tintas ou cozinheiros harmonizam ingredientes culinários. O compositor lida com um conjunto de leis físico-acústicas estabelecidas por convenções culturais que ditam, por exemplo, que, os sons da flauta e do clarinete geram uma boa combinação e que, tocadas ao mesmo tempo, notas vizinhas como um Mi e um Fá produzirão grande dissonância, pedindo assim, que sejam utilizadas pelo compositor com a prudência do cozinheiro que adiciona pimenta a uma receita. 9 Estas e diversas outras recomendações enchem livros de orquestração, harmonia e contraponto, assim como os poucos manuais de arranjo existentes. Em busca de instrução para que eu pudesse desenvolver algumas aptidões musicais que me permitissem aproximar do universo dos arranjadores, estudei alguns desses manuais, dedicando-me especialmente às obras do norte-americano Vince Corozine (2002) e do húngaro radicado no Brasil Ian Guest (2009). Em pouco tempo, confirmei o que esses autores já haviam alertado nas introduções de seus livros: que essas publicações destinam-se a iniciados em algumas das disciplinas da música e que um arranjador não se forma da noite para o dia. Como observa Corozine, A aquisição de habilidades de arranjador é um processo complicado que envolve a análise de trabalhos de muitos compositores e o estudo de todos os aspectos da música, incluindo harmonia, contraponto e forma (...). Isso requer muitas horas de estudo intensivo e é uma busca para 12 toda a vida. Não seria lendo esses livros, portanto, que um violonista como eu, dotado de algum conhecimento de partitura, percepção musical e harmonia, apreenderia os arranjos de Rogério Duprat com ouvidos de um arranjador profissional. No entanto, esses conhecimentos foram suficientes para que eu pudesse entender, com olhos de etnógrafo, o conteúdo desses manuais e identificar neles um saber nativo que é sistematizado por arranjadores mestres para serem transmitidos a leitores aprendizes. Mesmo com abordagens e níveis de profundidade diferentes, as obras desses autores têm em comum a perspectiva de que o arranjador aprende fundamentalmente “por meio da tentativa e erro”.13 Isso não significa, contudo, que esse processo não envolva reflexão. Como em qualquer outra produção de tipo artesanal, mente e corpo, pensamento e ação, são inseparáveis (SENNETT, 2009). De fato, questões teóricas aparecem nas entrelinhas desses manuais de arranjo, dizendo respeito particularmente as implicações formais das propriedades físicas do som ou, parafraseando 12 “acquiring arranging skills is a complicated process that involves analyzing the works of many composers and studying all aspects of music, including harmony, counterpoint, and form. (…) This requires many hours of intensive study and is a lifelong pursuit” (COROZINE, 2002: IX). 13 “The art of arranging is a skill developed through trial and error.” (COROZINE, 2002: 2). 10 Mário de Andrade, de suas qualidades materiais. Essas questões podem ser identificadas em diversas recomendações normativas apontadas nesses manuais como essenciais à garantia do equilíbrio formal dos arranjos e da audibilidade de todos os instrumentos e linhas musicais. Como mestres de ofício, Ian Guest e Vince Corozine não poupam conselhos, desde os mais genéricos, como “procure dar descansos a cada um dos instrumentos” (GUEST, 2009: 129) até os mais específicos, como “sinos podem ser adicionados para realçar a linha melódica e dar-lhe charme e brilho”.14 Nestas e em muitas outras recomendações, eles procuram chamar a atenção de seus leitores para o modo como o equilíbrio formal está condicionado à boa medida na adição de ingredientes sonoros e ao conhecimento das qualidades acústicas desses materiais. Os princípios que alicerçam estas e outras recomendações de Guest, de Corozine e de outros autores de manuais de arranjo não diferem, salvo exceções, daqueles que orientam a composição erudita. Mas ainda que arranjos e composições sejam elaborados segundo princípios comuns, eles possuem finalidades distintas. Em meados do século XIX, compositores eruditos europeus como Beethoven assumiram gradativamente a independência com relação ao patrocínio de aristocratas e de instituições religiosas, à medida que passaram a viver da comercialização de sua música, editada em partituras ou executada em concertos pagos (RAYNOR, 1982). Como resultado, eles deixaram de atender a encomendas que muitas vezes cerceavam-lhes a criatividade, liberando-se para comporem suas obras com mais autonomia, desde a criação das primeiras ideias musicais até o seu acabamento final. Nesse processo, observa Christopher Small (1998), a música que antes era produzida como um ornamento para abrilhantar eventos sociais, políticos e religiosos, ganhava nas salas de concerto um espaço que lhe era dedicado e onde ela era apreendida como um objeto autônomo, supostamente desprovido de qualquer finalidade social. Enquanto isto, os compositores ganhavam notoriedade pelas inovações que faziam com relação à tradição. Contudo, a busca incansável pela originalidade destes que passaram a ser idolatrados como gênios da 14 “Bells may be added to highlight a melodic line and add charm and sparkle to the line” (COROZINE, 2002: 75). 11 inovação foi transformando cada estreia em um gesto inaugural que, a longo prazo, fazia a música contemporânea soar paradoxalmente mais e mais hermética aos ouvidos dos frequentadores das salas de concerto. Na virada para o século XX, esse hermetismo alcançou tal nível que o público que financiava os concertos acabou por se afastar dos compositores de seu tempo (McCLARY, 1989). Esse processo continuou pelo século XX na Europa e em países como o Brasil, onde Rogério Duprat adotou provisoriamente a bandeira vanguardista da originalidade na passagem dos anos 1950 para os 1960, compondo obras dodecafônicas e serialistas que compraziam a uma audiência diminuta e especializada. Como a grande maioria dos compositores da chamada música de vanguarda, Duprat atuava, nesse sentido, como o engenheiro, um tipo ideal descrito por Lévi-Strauss no livro O pensamento selvagem (2005) como aquele cujo trabalho consiste na elaboração de projetos que precedem e orientam a escolha dos instrumentos e materiais necessários à sua realização. Em outras palavras, observa o autor, o engenheiro parte da estrutura para só então chegar aos fatos. Trabalhando como arranjador profissional, entretanto, Duprat tinha que atender a demandas do mercado e a interesses de gravadoras e de outras empresas que o contratavam, moldando matérias-primas musicais, das quais ele não era autor, de modo a torná-las comercialmente palatáveis. Nesse sentido, ainda que autores como Regiane Gaúna (2002: 95) atribuam status de composição dotada de relativa autonomia a alguns arranjos de Duprat, a elaboração destes foi enquadrada por uma série de restrições impostas pelos resultados e diretrizes que fugiam a seu alcance. Em outras palavras, o seu trabalho como arranjador dependia do que Lévi-Strauss chama no referido livro de ocasião, um fato ou contingência extrínseca que impõe limites e direções à produção do artista. No caso específico dos arranjos, a ocasião seria basicamente a canção ou palavra cantada, o material preexistente com e a partir do qual ele elaborou o arranjo. Duprat seguia, portanto, o caminho inverso do engenheiro, partindo dos fatos para só então chegar à estrutura. Nesse sentido, o arranjador Duprat estava menos para o engenheiro do que para o bricoleur, aquele que segundo Lévi-Strauss produz obras a partir da coleta, coleção e inventário de fragmentos ou resíduos de obras humanas 12 segundo a sua potencial instrumentalidade. “A regra do seu jogo é sempre arranjar-se com os ‘meios-limites’, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais [grifos meus]” (2005: 34). Em um nível mais abrangente, o bricoleur é como um grande “arranjador” que, completa LéviStrauss, não só produz estruturas a partir dos meios ou materiais disponíveis, exprimindo-se também através deles. As restrições impostas pelas canções-ocasiões ao arranjador-bricoleur Rogério Duprat não fazia dele uma “besta de carga”, como poderiam crer os compositores dedicados à música erudita que eles supunham ser esteticamente autônomas. Como um ourives, o arranjador desenvolve uma capacidade acurada para ornamentar melodias e outros materiais musicais; como um lapidador, ele utiliza-se de técnicas complexas para realçar as qualidades inerentes a eles. Assim, o mérito do arranjador reside menos no seu poder de originalidade do que em sua competência técnica e em sua capacidade para compreender os atributos de sua matéria-prima, tanto no que diz respeito a suas propriedades físico-acústicas quanto nos sentidos culturais de que eles são investidos por aqueles que estejam direta e indiretamente envolvidos no processo compartilhado de produção fonográfica. O desejo de originalidade, nesse sentido, pode levar o arranjador a produzir um arranjo que brilhe excessivamente, a ponto de ofuscar as características distintivas do material preexistente que ele pretende lapidar. A descaracterização desse material pelo arranjador também pode decorrer simplesmente de sua limitação técnica ou de sua simulação para o estabelecimento de incongruências deliberadas entre o arranjo e o material preexistente, como ocorre, por exemplo, nas paródias musicais (SHEINBERG, 2000). Nas gravações tropicalistas, esse tipo de simulação estava associado a diversas experimentações levadas a cabo pelos integrantes desse grupo, as quais exigiam de Duprat técnicas composicionais sofisticadas que envolviam não apenas instrumentos de orquestra como também geradores e processadores eletroeletrônicos de sons que vinham sendo utilizados regularmente desde os anos 1940 por músicos eruditos como John Cage, Pierre Schaeffer e Karlheinz Stockhausen. No Brasil do final dos anos 1960, 13 época de gravação dos discos tropicalistas, esses equipamentos podiam ser operados por um grupo seleto de compositores eruditos brasileiros que incluía Rogério Duprat, um dos poucos arranjadores profissionais brasileiros que, além de conhecer diversos idiomas da música de concerto, estava apto para lidar com esses instrumentos eletroacústicos. Na opinião de Júlio Medaglia, maestro que também colaborou como arranjador de canções tropicalistas, estas e outras habilidades que Duprat adquiriu como compositor erudito seriam decisivas para a constituição da singularidade de seus arranjos: O importante nos arranjos do Rogério é que ele tinha uma formação musical riquíssima. Então, diante de qualquer realidade que você colocasse em sua frente, ele teria soluções inusitadas. É diferente de arranjadores como, por exemplo, Luís Arruda Paes. Ele era um grande arranjador daqui de São Paulo, mas o seu mundo era o da música popular. Qualquer coisa que você pusesse na frente dele soaria como arranjos de rádio. O Rogério não. Ele possuía uma formação muito ampla, podia dançar a vontade com qualquer tipo de recurso sonoro. É a diversidade de linguagens que ele sabia e podia usar porque estudou (...). Isso tudo são informações que ele tem, da música erudita que ele fez. No universo do Rogério Duprat há toda a história da música 15 ocidental. Ele conhece desde Palestrina até Stockhausen. Igualmente decisivo para o desempenho de Duprat como arranjador era a familiaridade com os diversos repertórios da música popular brasileira e internacional que ele adquiriu como “músico de estante” durante os anos em que trabalhou em diversas orquestras de rádio, conforme me relatou o seu irmão Régis Duprat.16 A intimidade com a música popular e o domínio da música erudita dava, assim, a Rogério Duprat o que Mário de Andrade chama de virtuosidade técnica, descrita pelo autor como o “conhecimento e prática das diversas técnicas históricas da arte” (2005: 14). Esse conjunto de conhecimentos e práticas foi utilizado pelo compositor para trabalhar artesanalmente seus arranjos tropicalistas, como aqueles preparados para as gravações dos Mutantes, as quais, segundo Sérgio Dias, eram dotadas de “muitas filigranas”.17 15 MEDAGLIA, Júlio. São Paulo, 21 de julho de 2011. Entrevista concedida a Jonas Soares Lana. 16 DUPRAT, Régis. São Paulo, 22 jul. 2011. Entrevista concedida a Jonas Soares Lana. 17 DIAS, Sérgio. S/L, 1991. Entrevista concedida a Getúlio Mac Cord (2010: 279). 14 Ao mesmo tempo em que desfiava linhas musicais com a delicadeza e a minúcia de um ourives, Duprat operava com gravadores magnéticos e outros equipamentos eletrônicos de ponta. Desde pelo menos o contato com as técnicas de gravação e processamento sonoro da musique concrète no estágio informal que fez em 1963 no laboratório do Office de Radiodiffusion Télévision Française (GAÚNA, 2002), Duprat vinha se utilizando dessas tecnologias para produzir algumas poucas composições eruditas e muitos jingles e trilhas sonoras para filmes e outros meios audiovisuais através da Audimus, empresa fundada em 1966 em sociedade com o compositor Damiano Cozzella e com o poeta e publicitário Décio Pignatari. Em 1967, quando a Audimus funcionava a pleno vapor, Duprat reivindicou a identidade de designer sonoro a fim de estabelecer um paralelo com o designer gráfico, profissional que une o funcional e o artístico em obras destinadas ao mercado, integrando, desse modo, a arte com a vida moderna.18 Reivindicando a identidade de um técnico-artista que trabalha no chão da indústria do entretenimento, Duprat utilizava-se de todas as tecnologias disponíveis para executar trabalhos por encomenda com uma acuidade artesanal. Em suas atividades como arranjador de canções tropicalistas, ele dissolvia, desse modo, os limites que separam o artesanato da tecnologia. Erguida pelo pensamento romântico (SENNETT, 2009), essa fronteira é concebida a partir da premissa de que a tecnologia restringe-se a tudo que for mecanizado, automatizado e, por consequência, não-humano. Mas se nos voltarmos para a etimologia da palavra, encontraremos uma definição que, pelo contrário, aproxima esses dois termos, uma vez que a raiz de tecno-, do grego tékhn¨, significa arte, artesania, indústria e ciência.19 A tecnologia, nesse sentido, vai muito além dos autômatos, sendo, portanto, parte integral do ofício do artífice. Ela é feita de conhecimentos teórico e de habilidades práticas, fundamentos que, conforme Mário de Andrade, devem ser dominados virtuosamente por qualquer artista. 18 COZZELLA, D; et. al. Música, não-música, anti-música. 1967. Estado de São Paulo, São Paulo, 22 abr. (Suplemento Literário). Entrevista concedida a Júlio Medaglia. p. 33. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19670422-28226-nac-0033-lit-5not>. Consultado em 27 nov. 2012. 19 TECNOLOGIA. HOUAISS, 2001. 15 Boa parte dos fundamentos utilizados por Rogério Duprat na elaboração de seus arranjos foi adquirida por meio de uma instrução que inicialmente destinava-se à preparação de autores geniais de obras eruditas e, portanto, autônomas. Essa formação incluiu o uso intensivo de equipamentos eletrônicos de ponta com os quais ele acabou por aprimorar uma perícia que acima de tudo era artesanal. Artífice eletroacústico, Duprat levou todo esse know-how para as entranhas dos estúdios, esses grandes instrumentos-máquinas onde foram registrados arranjos tropicalistas produzidos com papel e lápis na escala intimista da oficina. 16 Referências Bibliográficas ANDRADE, Mário de. 2005, “O artista e o artesão”. In: ANDRADE, Mário de. Baile das quatro artes. 4. ed. Belo Horizonte: Itatiaia. pp. 11-33. CAMPOS, Augusto de. 2005. Balanço da bossa e outras bossas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva. COROZINE, Vince. 2002. Arranging music for the real world: classical and commercial aspects. Pacific: Mel Bay. FAVARETTO, Celso. 1995. Tropicália: alegoria alegria. 4 ed. Cotia (SP): Ateliê Editorial. GAÚNA, Regiane. 2002. Rogério Duprat: sonoridades múltiplas. São Paulo: Editora UNESP. GUEST, Ian. 2009. Arranjo: método prático. São Paulo: Irmãos Vitale; Lumiar Editora. 3 volumes. HOUAISS, Antônio; et. al. 2001. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva. 1 CD ROM. LÉVI-STRAUSS, Claude. 2005. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus. MAC CORD, Getúlio. 2011. Tropicália: um caldeirão cultural. Rio de Janeiro: Ed. Ferreira. MARTIN, George; HORNSBY, Jeremy. 1979. All you need is ears. New York: St. Martin's Press. MARTIN, George; PEARSON, William. 2006. Summer of love: the making of Sgt. Pepper (a book). Guildford, Surrey, England : Genesis Publications, 2006. McCLARY, Susan. 1989. Terminal prestige: the case of avant-garde music composition. Cultural critique, n. 12, Spring, (Discursive strategies and the economy of prestige. pp. 57-81. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/1354322>. Consultado em 5 de julho de 2013. McCLARY, Susan. 1991. Feminine endings: music, gender, and sexuality. Minnesota: University of Minnesota Press. NAVES, Santuza C. 2010. Canção Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. RAMONE, Phil; GRANATA, Charles, L. 2008. Gravando!: os bastidores da música (Phil Ramone, produtor e 14 vezes vencedor do prêmio Grammy). Rio de Janeiro: Guarda-Chuva. RAYNOR, Henry. 1982. História social da música: da Idade Média a Beethoven. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. SANTIAGO, Silviano. 1978. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva. SENNETT, Richard. 2009. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record. 17 SHEINBERG, Esti. Irony, satire, parody and the grotesque in the music of Shostakovich: a theory of musical incongruities. Aldershot: Ashgate, 2000. SMALL, Christopher. 1998. Musicking: the meaning of performing and listening. Hanover and London: Wesleyan University Press. Referências Discográficas GIL, Gilberto. Gilberto Gil. Rio de Janeiro: Philips, p1968. 1 CD. VELOSO, Caetano (et. all). Tropicália ou Panis et Circensis. Rio de Janeiro: Philips, p1968. 1 CD. 18