o Largo do Rosário da Vila Real de Sabará
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o Largo do Rosário da Vila Real de Sabará
Uma Cidade, uma praça e muitas histórias: o Largo do Rosário da Vila Real do Sabará Selma Melo Miranda Este texto foi publicado em 1994 em: Revista do Instituto de Artes e Cultura, Ouro Preto, UFOP, v. 01, p. 24-37, 1994. ( As transcrições de documentos conservaram a grafia original. Créditos de fotos atuais: Vitor Hugo http://www.flickr.com/photos/22434764@N00/page4/ RESUMO Os largos e praças constituem elementos fundamentais da cidade colonial como articuladores da trama e da paisagem urbanas e como centro de convívio e expressão dos diversos grupos sociais. A antiga Vila Real do Sabará apresenta aspectos singulares que a distinguem entre as demais vilas mineradoras. O Largo do Rosário, espaço principal da Vila, era dominado pela presença da Casa de Câmara e Cadeia e da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, caracterizando uma situação espacial, pois as igrejas dos negros quase sempre ocupavam lugares secundários nos antigos núcleos urbanos. No século atual, o Largo passa por gradativo processo de transformação que se intensifica a partir dos anos 40. Hoje, mostram – se claramente os traços das etapas de sua evolução histórica, mas o espaço tem, ainda, como elemento dominante, o grande arcabouço de pedra da Igreja do Rosário dos Homens Pretos. Palavras – chave: Minas Gerais, Sabará, Evolução Urbana, Largo do Rosário. O urbanismo colonial mineiro constitui tema ainda pouco privilegiado pelos estudiosos apesar de representar uma riquíssima fonte de leitura e interpretação do universo cultural do século XVIII e início do século XIX. Alguns importantes estudos foram dedicados ao assunto, mas estamos longe de uma análise satisfatória das especificidades das vilas e arraiais da época da mineração bem como de uma necessária visão de conjunto da rede urbana. A cidade, enquanto expressão espacial de relações sociais (REIS FILHO, 1968), oferece elementos para a compreensão do complexo cultural a que se vincula. Os estudos sobre o Barroco em Minas Gerais têm, por vezes, enfocado os edifícios, particularmente as igrejas, como elementos isolados, desconsiderando sua inter-relação com o espaço urbano. No entanto, as próprias edificações apontam a necessidade de os enfoques ganharem ruas e praças em uma abordagem de caráter global. A localização dos templos, sua orientação e composição arquitetônica mostram o papel destacado que possuem na forma de organização da cidade. Algumas cerimônias religiosas fornecem indicações claras sobre esse inter–relacionamento dos componentes urbanos, utilizando espaços internos e externos – edificações, adros, ruas, praças – apropriados a cada parte do ritual. Enfim, a cidade, com seus edifícios e com seus lugares públicos, forma o espaço privilegiado de sociabilidade nas Minas setecentistas. Nos séculos XVII e XVIII, foram criados esquemas de composição arquitetônica e urbanística no sentido de obter efeitos espaciais dinâmicos e abertos, principalmente através da valorização das perspectivas e do jogo de linhas e volumes. No caso de cidades coloniais brasileiras, não encontramos a magnificência de alguns conjuntos europeus. Tampouco se aplicaram aqui os rigorosos preceitos adotados pelos espanhóis em suas cidades do Novo Mundo, sendo desconhecidos entre os arranjos monumentais das “plazas mayores”. Longe da leitura feita por Robert SMITH (1955), porém, segundo a qual os núcleos urbanos brasileiros não passavam de meras transposições do urbanismo medieval português, vemos em nossos assentamentos urbanos uma interpretação do urbanismo barroco em outra escala e outra ordem de dados físicos e socioculturais. Importantes contribuições ao tema foram dadas por REIS FILHO e SANTOS (1968). Chamando a atenção para as análises dos dois estudiosos, Giovanna Rosso DEL BRENNA destaca, no entanto, o enfoque desse último, a quem devemos “... o primeiro reconhecimento da originalidade e vitalidade dos traçados urbanos coloniais...”. A pesquisadora assinala que, a partir de seu trabalho, “o caráter „medieval‟ da cidade colonial no Brasil é, enfim, liberado de velhas conotações negativas que o conceito do urbanismo „orgânico‟ – resultado coerente, e de alta qualidade visual, de todo um sistema de vida – substitui o de urbanismo desordenado, fruto do desleixo e do acaso”. DEL BRENA, 1982–1983, p.141–145. Essa observação é particularmente aplicável às cidades mineradoras como Ouro Preto, Sabará e Diamantina. Assentadas em sítios de topografia acidentada, apresentam paisagem movimentada, rica em perspectivas e arranjos espaciais dinâmicos, valorizados pela posição destacada dos edifícios importantes em meio ao casario serpenteante que se alastra pelas encostas e fundos de vales. Essa conformação “... dá às povoações configurações uma configuração mais orgânica, uma adaptação maior às condições do terreno e um agenciamento natural bastante diverso do racional partido preconizado pelas „Leis das Índias‟.”2 No traçado irregular desses centros, os largos ou praças eram elementos essenciais na organização da trama urbana como articuladores do espaço e da composição da paisagem, constituindo local de convivência e expressão da sociedade mineradora. A propósito, REIS FILHO (1968) afirma que era constate nos núcleos urbanos “... a valorização, por meio de praças, dos pontos de maior interesse...” para as comunidades.3 Nessas praças, geralmente, se agrupavam os principais edifícios, religiosos ou oficiais, programas arquitetônicos que impunham a necessidade de áreas livres fronteiras para cerimônias e diversas atividades coletivas. Seguindo a tradição portuguesa, a instalação das vilas implicava a escolha de local amplo e bem situado, que se tornaria o espaço de honra, sede da municipalidade. Em Sabará é possível que, em 1711, à época de construção da Vila, já estivesse destinado para a praça principal o sítio mais tarde denominado Largo do Rosário. Nascida nos fins dos seiscentos, a partir do assentamento de vários núcleos de povoação às margens dos rios Sabará e das Velhas, a cidade teve, logo de início, resultados compensadores com a exploração aurífera e o comércio. O arraial da barra, situado na confluência dos dois rios, e o da Igreja Grande, tido como o mais antigo, rapidamente se desenvolveram. A sede da Vila foi instalada na Barra que, em pouco tempo, apresentou intenso movimento, ali se expandindo um núcleo urbano básico. A Paróquia, entretanto, foi estabelecida na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, no Arraial da Igreja Grande ou Igreja Nova. A ligação entre os dois povoados era feita pelo Caminho velho, que galgava o morro depois chamado da Intendência, havendo também notícias de acesso fluvial pelo rio Sabará. 2 VASCONCELLOS, 1959, p.3 – 6. Ver também: MARX, 1990 – 1992 e VASCONCELLOS, 1956. Rodrigo Bastos vem trabalhando com brilhantismo o tema das povoações coloniais a partir da aplicação do conceito de decoro. BASTOS, Rodrigo Almeida. O decoro e o urbanismo luso-brasileiro na formação da cidade de Mariana, Minas Gerais, meados do século XVIII, Revista Barroco, Belo Horizonte, p. 273-295, 2001-2004. No decorrer do século XVIII, a Vila Real, cabeça de uma imensa comarca, consolidou–se como ativo centro minerador e empório comercial com domínio sobre vastíssimo território.4 A situação estratégica do Arraial da Barra, geográfica e topograficamente mais favorecido, concorreu para o seu desenvolvimento e posterior consolidação como centro mais importante da Vila. O traçado urbano definiu–se basicamente a partir de um eixo perpendicular à encosta, a antiga rua Direita, hoje Dom Pedro II, e outro transversal, formado pela seqüência das ruas de são Pedro e da Cadeia, hoje Borba Gato. A rua Direita leva ao largo do Rosário, estendido na base do morro aos fundos. Paralelamente a ela, e aproveitando a topografia, as ruas do Fogo, atual Comentador Viana, e de São Francisco, ao alto, integram o conjunto das ruas transversais. Formando uma espécie de via de contorno paralela ao rio, a rua das Bananeiras, hoje da República, prolonga a rua do Fogo até o chafariz do Kaquende e, a partir dali, passando–se pelo Largo do Jogo da Bola, fecha–se o circuito até a rua de São Francisco. Caminho Velho para a Matriz Arraial da Barra – 6: rio Sabará – 7: Chafariz do Kaquende – 8: Ponte Pequena – 10: Largo do Jogo da Bola – 11: Capela de São Francisco – 13: Igreja de Santa Rita – 14: Capela do Rosário – 15: Capela das Mercês – 16: Largo das Bananeiras – 17: Casa da Intendência e Hospício da Terra Santa – 18: Chácara do Lessa. Área do Kaquende embaixo, à esquerda, com Igreja de São Francisco ao fundo, Alto das Mercês a caminho da Intendência, e antiga rua do Fogo. 4 A comarca, criada em 1714, abrangia quase um terço do atual Estado de Minas Gerais. Instalou–se em Sabará uma das três primeiras casas de fundição da antiga Capitania de Minas Gerais, com rendimentos sempre muito elevados. A vila também foi uma das primeiras criadas em território minerador, como estratégia de ocupação da região e de controle e fiscalização da produção aurífera. A questão sobre a precedência nas descobertas e fixação do povoamento é polêmica. PASSOS (1942) defende os baianos que já estariam instalados no “Arraial da Igreja” quando Borba Gato comunicou suas descobertas à coroa. A expansão urbana se deu principalmente em direção leste, rumo ao Arraial da Igreja Grande, seguindo o curso do rio Sabará e interligando outros focos de povoação instalados entre os dois pontos. No início do terceiro quartel do século XVIII, a ocupação naquele sentido foi possibilitada pela abertura do Caminho Novo, tendo como ponto intermediário a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, iniciada em 1763. A construção desse templo exigiu o desmonte de parte da encosta abaixo da Intendência, no local então chamado Cruz das Almas. Antigo Caminho Novo, atual Rua do Carmo Do outro lado, a oeste, a ligação até a confluência dos rios Sabará e das Velhas deu origem à importante rua do Kaquende que, continuando pela rua de São Pedro, forma o grande eixo que define a cidade como um todo. Concretiza–se, dessa forma, um aspecto típico das vilas da época da mineração, onde uma rua-tronco define a organização da trama urbana. Chafariz do Kaquende à frente do Largo do Jogo da Bola Quanto à escolha do Arraial da Barra para sede da nova Vila, a Ata de Instalação da Villa do Sabará esclarece ser aquele “... o sítio mais capaz, e comodo para ella...” (PASSOS, 1942, p. 147). Com efeito, havia, quando da fundação de cidades e vilas, cuidados na seleção de locais convenientes, observando–se fatores físicos, geográficos e socioeconômicos que favorecessem a defesa, o transporte, as comunicações e o abastecimento. O Vale do rio Sabará, apertado entre morros, apresenta encostas abruptas em vários pontos, sendo a colina da Barra a única área disposta a oferecer maior superfície para o assentamento urbano. Além disso, a situação na confluência dos dois rios permitia domínio e acesso às povoações localizadas às margens do rio das Velhas e assegurava a fiscalização dos acessos terrestres e fluviais. Vista da cidade em 1900. Rua do Kaquende abaixo à esquerda e antiga ponte de madeira sobre o rio das Velhas. A partir do centro da foto vê-se, à direita, a demolida Igreja de Santa Rita. O Arraial da Igreja Grande, segundo PASSOS (1942), resultou da fusão do antigo Arraial da Igreja com o da Igreja Nova (atual Matriz de Nossa Senhora da Conceição). Teria se tornado um núcleo rico e populoso, com intenso movimento minerador. Sua situação, porém não favorecia a expansão urbana. Na segunda metade do século XIX, a povoação “... apertada entre os montes e o rio (...) não se compõe senão de uma rua, que se alarga diante da Igreja paroquial”. Acrescente–se que, em 1817, foi observado: “... no tempo em que Sabará ainda era florescente, (...) era a parte mais rica e mais habitada; mas hoje não anuncia senão decadência, crescendo mato por toda a parte.” (SAINT– HILAIRE, 1974, p.75). Largo da Matriz de Nossa Senhora da Conceição – Situação atual Igreja Matriz – Fachada e interior Mais além, a leste, situava-se povoação surgida com a construção da Capela de Nossa Senhora do Ó, e incorporada ao conjunto urbano a partir dos fins do século XIX, especialmente com a implantação da siderúrgica. Largo de Nossa Senhora do Ó Zoroastro Passos, ao investigar as razões da instalação da Vila da Barra, e não na povoação mais antiga e rica da igreja grande, não pôde defini-las com precisão. O pesquisador levanta a hipótese de que a escolha teria se dado porque o Arraial “servia de intermediário entre os [arraiais] do rio Sabará até o Pompéu”5. O crescimento da vila consolidou a posição do Largo do Rosário como espaço de importância primordial, constituindo ponto de convergência e elemento preponderante na organização da trama urbana. O extenso terreiro de formato trapezoidal articula acessos a outros pontos de povoação e, ao mesmo tempo, distribui e recebe as ligações com os arraiais próximos. Funciona, portanto, como uma sala de visitas simultaneamente acolhedora e irradiadora. Esse aspecto se torna mais evidente ao reconstruirmos o antigo percurso de acesso à Vila a partir da perpendicularmente Ponte à Pequena encosta sobre o percorria–se rio o Sabará. sinuoso Subindo corredor a de rua Direita casas que proporcionava sucessivos imprevistos visuais, o que ainda ocorre. Ao meio do caminho, deparava – se com o volume não prenunciado da Igreja de Santa Rita para, finalmente, já visualizado o paredão do morro, o espaço alargar e, ao mesmo tempo, se aprofundar obliquamente até a base da elevação dissolvendo o olhar em novas perspectivas oferecidas.6 5 Passos, ibidem, p. 68 e 71. Ainda hoje é possível apreender a beleza e o caráter da conformação urbana, embora a visualização do Largo do Rosário esteja parcialmente obstruída por espessa cortina vegetal, o que restringe a percepção do espaço em profundidade e elimina o impacto da visão da igreja do Rosário aos fundos, fora do eixo da simetria da Rua Dom Pedro II. A forma irregular do Largo e o arranjo topográfico concorrem para a ampliação do movimento e a valorização do conjunto. 6 No largo se localizavam os principais edifícios da Vila, com exceção da Matriz que, como assinalamos, situava–se em local distante, na povoação da Igreja Grande. Ao longo dos séculos XVIII e XIX ali se concentraram as moradias abastadas de potentados e autoridades locais, mescladas, entretanto, a edificações mais modestas. Predominavam, como em todo o núcleo urbano, as casas térreas entre as quais de vez em quando sobressaía um sobrado. Instalou–se, também, no Largo, uma fonte pública, equipamento primordial das vilas coloniais, em geral tratado com esmero, especialmente quando se localizava nos pontos mais importantes. Quanto à pavimentação, podemos supor que a praça era toda calçada, pois, pelo menos na segunda metade do século XIX “as ruas de Sabará são calçadas, mas com pedras pequenas e desiguais”.7 Chafariz do Rosário – Carrancas e bacia A paisagem arquitetônica e toda a vida do Largo, porém, giravam em torno de dois elementos básicos: o edifício da administração municipal, com o pelourinho à frente e o templo religioso. Já por ocasião da instalação da Vila, os moradores foram convocados para a construção dessas edificações “... como era estylo e pertencia a todas as Repúblicas...”8 Era comum, à época da demarcação do terreno da Vila, já ficar “reservado e balizado o terreno onde se construiria a Casa de Câmara e Cadeia e, 7 SAINT–HILARIE, ibidem, p. 75. Outros viajantes que passaram pela cidade no século XIX confirmam a existência de calçamento nas ruas, como SPIX e MARTIUS e BURTON, embora não se refiram ao Largo do Rosário. Em fotografias do início do século atual, entretanto, a praça parece não ter pavimentação alguma, sendo provável que o antigo calçamento tenha sido recoberto por alguma obra de regularização do terreno do Largo ou retirado em razão de mau estado de conservação. 8 PASSOS, ibidem, p. 147. Ata de Instalação da Villa Real de Sabará. também, o da Igreja”. O mesmo ocorria com o pelourinho, cujo levantamento era feito no mesmo ato de fundação da Vila.9 A Câmara, nos primeiros anos, deve ter ocupado um prédio construído provisoriamente ou mesmo um lugar já existente, uma vez que o edifício definitivo que ocupou a parte mais baixa do Largo, ao sul, teve suas obras arrematadas somente em 1738. Construído com alicerces de pedra e paredes em adobe, era um sobrado que tinha “... na frente uma sacada, apoiada em quatro colunas de madeira”, salientando–se a presença, do sino e das armas imperiais em cima, e “as feias janelas gradeadas embaixo” a indicar que se tratava da cadeia.10 A construção teve as paredes e o piso das enxovias reforçados internamente por pranchões de tabuado para evitar a fuga de presos. Possuía as janelas pintadas de verde e apresentava, em seu interior, pinturas decorativas no forro da Casa da Câmara, com “... cratescos e quartois de flores e quartellas...” A casa da Audiência era também decorada e tinha “simalha fingindo de pedra azul...” É interessante ressaltar que os autos de arrematação determinavam que o trabalho fosse cercado de cuidados e executado de acordo “... para ser visto por mestre, se esta com perfeição que he esillo (sic) fazerce semelhantes obras...”11 Em posição oposta à Câmara e Cadeia, ao alto, na cabeceira da praça, instalou–se a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, com aquela dividindo o principal espaço da Vila. Esse fato dá a Sabará singularidade entre as vilas coloniais mineiras, e talvez entre as brasileiras, o que distingue o Largo do Rosário de outras tantas praças municipais do período da mineração. Nas proximidades do edifício da administração instalava–se, geralmente, a matriz ou igrejas de Ordens Terceiras importantes, a exemplo de Ouro Preto, Mariana e Diamantina. Os templos de Nossa Senhora do Rosário quase sempre se localizavam em pontos mais afastados do centro urbano, como nas vilas citadas e tantas outras vilas brasileiras.12 Em Sabará, essa situação evidenciou–se desde cedo, já na povoação nascente, uma vez que “... no princípio da fundação da Villa entrara fervorosamente a Devoção dos fiéis a erigir uma capella onde pudessem louvar a Deos, e fazendo–se desta forma mais effectiva a Devoção dos Homens Pretos, foram elles que por seu protector e benfeitor 9 BARRETO, 1978, p. 137 - 139. BURTON, 1976, p. 354 – 355. O viajante observava que “no centro da praça, sobre quatro degraus de pedra, fica o velho pelourinho, com ervas daninhas crescendo ao alto”. 11 Autos de arrematação da Casa de Câmara e Cadeia de Sabará. BARRETO, ibidem, p. 219 e 247. 12 Julita SCARANO (1978, p. 15), a propósito, assinala que algumas exceções “... não bastam para desmentir a regra: o Templo do Rosário não é dos mais bem localizados nas cidades mineiras do setecentos, o que parece demonstrar que, quando os pretos tiveram possibilidades suficientes de abandonar seus antigos altares emprestados, não lhes foi possível ocupar os lugares de maior destaque”. Em Sabará, a capela do Rosário estava distante da Matriz, mas localizava–se junto à sede da municipalidade, em local importante da Vila. 10 João Gonçalves da Costa conseguiram erigir a Capella da dita Mai de Deos, a qual se acha hoje regulada com sua Irmandade com Compromisso...” Assim, em 1713, já estava construída essa primeira capelinha do Rosário em terreno doado pela Câmara nesse ano e confirmado quatro anos depois.13 Consolidadas a Vila e a Irmandade, nos meados do século XVIII, os devotos da Virgem do Rosário resolveram ampliar a sua capela, o que, em 1764, ainda não haviam conseguido concretizar. Nesta ocasião surgiram problemas ocasionados pelo descumprimento do prazo acertado para a obra, levando à interdição do uso do antigo templo. Ao solicitar mais tempo para a execução dos trabalhos e a suspensão do “enterdicto”, a Irmandade declara não ser possível o aproveitamento da Capela Velha “... com o fundamento de ser a referida capela pequena para o povo da dita Barra (...) e porque por ser a mesma Capella Antiga e de madeira se acha podre senão pode fazer aquelle acrescentamento na forma determinada, e ainda que se podesse, seria com mui disforme na architectura...” Foi então projetada uma igreja grandiosa “... mais para traz do lugar, onde se acha a que existe...” orçada em mais de dez mil cruzados, quantia que os Irmãos do Rosário não possuíam. Apesar disso se dispõem a executar a obra advertindo, porém, que ela “...pela decadência em que se acha o paiz, só pode ir fazendo muito devagar.”14 Os serviços foram finalmente contratados, em 1768, com o Mestre Antônio Gomes Moreira tendo sido parcialmente concluídos em 1781. Nessa ocasião estavam prontos, a capela–mor, as sacristias e “hum acressentamento de madeira” provisório que, certamente, é a pequena nave ainda hoje existente dentro do arcabouço de pedra. 13 PASSOS, ibidem, p. 288. “Registro da Ordem Régia que confirmou o foro do terreno do Largo da Capela de Nossa Senhora do Rosário para a Irmandade da mesma Senhora.“ O compromisso da Irmandade foi aprovado por provisão de Dom Francisco de San Jerônimo, Bispo do Rio de Janeiro, em cinco de Fevereiro de 1718. 14 PASSOS, ibidem, p. 292. “Registro de huma petiçam da Irmandade em q. pede tempo para acrescentar a Capella, suspenço o enterdicto”. Nave inacabada e capela provisória construída provavelmente no final do século XVIII Surgiram, entretanto, inúmeras dificuldades financeiras com a construção, tendo sido por esse motivo suspensas as festas da padroeira durante vários anos. Quase meio século depois, em meados do século XIX, é presumível que as paredes do corpo da nave se limitassem à altura do embasamento.15 A partir dessa época, porém, vários pagamentos foram feitos por obras na capela. Em 1849, serviços de “arrancamento”, transporte e acomodação de pedras foram contratados e , em 1856, se ajustou com Antônio José da Silva Guimarães o prosseguimento de trabalhos que certamente correspondem à elevação das paredes da nave, desde o embasamento até pelo menos a altura da verga da portada. Com efeito, sete anos depois, os Irmãos do Rosário comemoraram a conclusão de importante etapa da construção. Na ocasião, registraram o acontecimento para que chegasse ... ao conhecimento da posteridade que no dia sabbado vinte e dous de Agosto de 1863 às 4 horas da tarde sobio para o seu competente lugar o arco da porta principal da Capella, ao som de repetidoss toques de uma banda de Muzica que se achava postada no adro da Igreja, ao som de toques de sinos, foguetes, etc...16 Nos anos setenta do século XIX, a Irmandade insiste em seu empreendimento esforçando-se por concluir a obra, mas a grande igreja restou inacabada até os nossos dias, a testemunhar o confronto entre vontade e determinação e as vicissitudes do cotidiano ao tempo da Colônia e do Império. Um aspecto que merece destaque na história do templo do Rosário e da própria Vila Real é a questão da transferência da Matriz para o antigo Arraial da Barra, mais precisamente para a capela dos Pretos. Não se sabe quando teria surgido a idéia, mas em meados do século XVIII ela toma corpo na Ordem Régia datada de 10 de maio de 1757, que 15 No início desse século vários trabalhos foram contratados incluindo “... obra de pedreiro [...] seis corpos de cunhaes the altura do envazamento de pedra lavrada como aponta o risco...” PASSOS, ibidem, p. 308. 16 PASSOS, ibidem, p. 321. confirma, a pedido da Irmandade, o foro do terreno que havia sido doado pela Câmara algumas décadas antes. Entre as justificativas para a referida confirmação considerou–se a possibilidade de “... aquella Capella servir de Freguezia pelo muito Povo que hoje tem, ao qual resulta da existencia grande utilidade espiritual, sem que para os grandes gastos dos paramentos dos sacrifícios haja outra fabrica...” 17 A transferência apresentava grande interesse para a Irmandade e para os moradores da Barra de um modo em geral. Apesar da opinião abalizada de Zoroastro Passos, acreditamos que até meados do século XVIII existia naquela povoação apenas o templo de Nossa Senhora do Rosário. Daí por que, em 1764, os Irmãos, argumentando contra a interdição do uso da capela, alegam o “gravíssimo prejuízo no espiritual para o povo da dita Barra, que fica distante da matriz...”18 O século XVIII transcorreu sem que se efetivasse a mudança ou a criação de nova freguesia, permanecendo a população da Barra dependente da Matriz de Nossa Senhora da Conceição do Arraial da Igreja Grande. O processo, contudo, parece ter tido ainda outros estágios ainda no mesmo século, mas as lacunas documentais não permitem que se avance no sentido de sua elucidação. Uma referência isolada sobre o fato de os Irmãos do Rosário estarem “pagando a Fabrica da Matriz” foi feita em 1780, quando a Irmandade pediu provisão para trasladar os santos para a nova capela, indicando a possibilidade de a questão da transferência ainda ser cogitada. É certo que um século depois se falava no assunto. Em 1847 os Irmãos tomam conhecimento que na Assembléia Provincial havia sido sugerida a idéia de se transferir a matriz para a sua capela. Encaminham representação à Assembléia concordando em ceder a igreja para nela se instalar a freguesia por conhecer ... a grande utilidade que disto resulta ao público, por achar–se ella cituada no centro da cidade facilitando os recursos espirituais a mais de quatro partes da população, visto que a actual Matriz existe muito distante, e no cítio menos povoado e mais decadente...19 A concretização da idéia seria oportuna para a Irmandade, principalmente como forma de se terminar “... O Templo mais magestozo, e mais bem colocado desta cidade, cuja conclusão não tem sido possível pela deficiência de meios em que existia a Irmandade”. 20 17 PASSOS, ibidem, p. 288 – 289. “Registro da Ordem Régia que confirma o foro do terreno do Largo da Capella de Nossa Senhora do Rosário para a Irmandade da mesma Senhora”. Houve problemas entre a Câmara e a Irmandade a respeito dos foros que se resolveram com a interferência do soberano português. 18 PASSOS, ibidem, p. 292. Esse autor acredita que a Igreja de Santa Rita teria sido construída em 1714, baseando–se, entretanto, em referências documentais não ligadas especificamente a esse templo. É certo que ela já existia em 1768, data citada no processo de devolução de um sino que havia sido emprestado à Câmara.. 19 PASSOS, ibidem, p. 315. Cópia da representação mencionada no termo anteriormente mencionado. 20 Ibidem. Novamente, porém, a matriz continuou a funcionar na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, pois a Igreja do Rosário só se tornou paróquia em 1940. Talvez para isto tenham contribuído as condições impostas pelos Irmãos Pretos, exigindo que a Nossa Senhora do Rosário continuasse no trono, e que eles pudessem, também, continuar a cumprir suas funções na capela e permanecer com os direitos de propriedades e administração dos bens da Irmandade. Assim, na verdade, os Irmãos abriam mão apenas do uso do edifício, continuando, porém, com todas as suas prerrogativas, o que certamente não deveria interessar ao Bispado e a alguns segmentos da sociedade local 21. Permanecem, entretanto, em aberto as razões precisas que levaram à instalação das sedes da freguesia e da vila em sítios distantes e ao impedimento da transferência da matriz para a capela do Rosário, aspectos que merecem, portanto, o aprofundamento das pesquisas. Tais aspectos estão, naturalmente, ligados à formação e às características do povoamento da área. É significativa a respeito a projeção alcançada pela devoção dos pretos na Vila, consubstanciada no prestígio de sua igreja junto à população da Barra e em sua posição destacada no centro urbano. O fato sugere que os “homens bons” que se agrupavam nas Irmandades do Santíssimo Sacramento e capitaneavam a construção das matrizes na primeira metade do século XVIII estavam presentes em reduzido número no Arraial da Barra, a sede da Vila, concentrando-se na povoação da Igreja Grande. A barra teria sido habitada principalmente por negros e mestiços. A propósito PASSOS (1942) observava que por volta de 1750 já havia quatro irmandades de pretos e pardos na Vila Real, contra apenas uma de brancos, mesmo assim sem exclusividade. Somente na virada da década de 60, com a fundação da Ordem Terceira do Carmo, é que se instalou organização religiosa exclusiva de brancos. Verifica–se, porém, que, dessas quatro irmandades de pretos e mestiços três estavam instaladas na Barra e apenas uma, a de Nossa Senhora do Amparo, existia na Igreja Grande. Com sede na matriz de Nossa Senhora da Conceição, essa Irmandade não construiu igreja própria como as demais situadas na Barra 22 . Esses fatos, como assinalamos, dão um caráter especial à formação de Sabará e ficam aqui colocados como indicações para pesquisas posteriores. O aprofundamento de algumas questões poderá contribuir para elucidar vários pontos da evolução histórica da cidade, bem como de outras vilas setecentistas mineiras. 21 A Igreja de Santa Rita parece ter absorvido informalmente algumas funções da matriz. Sobre o processo da transferência, há necessidade de se estudar também a questão da matriz instalada na Roça Grande e todos os estágios referentes à mudança dessa freguesia para Santa Luzia. Um aspecto marcante das praças do período minerador e de qualquer espaço público está ligado à sua utilização, às funções sociais ali cumpridas. A praça abriga a essência do viver urbano, desdobrado em atividades cotidianas e em momentos excepcionais de comprazimento ou de pesar. A mentalidade barroca, particularmente através das cerimônias cívicas ou religiosas, ali tem seu palco, seu espaço de expressão. A respeito das praças municipais, BARRETO (1978) assinala que os serviços e necessidades da Câmara nelas se extravasavam. Freqüentemente, ... eram convocados a nobreza, o clero e o povo para ajuntamentos e saimentos. Ajuntamentos, para deliberarem com os oficiais da Câmara sobre as questões de ordem pública: saimentos para festejos de dias santificados, aclamações, procissões de EL-Rei...23 No Largo do Rosário, às convocações da Câmara, somaram–se diversos eventos, como as festas de padroeiros e outros santos, homenagens, cortejos fúnebres e espetáculos de diversão. Há notícias de representações teatrais em tablados armados especialmente para essa finalidade, ornamentados e providos de camarote particular para as autoridades locais. Eram também construídos os curros para touradas e outros programas públicos. Em 1782, como nos anos anteriores, o Senado da Câmara registrou a sua participação em várias festas religiosas, não exclusivamente realizadas no Largo do Rosário, como as da Procissão do Corpo de Deus, do Anjo Custódio, de Santa Isabel, de São Francisco da Borja (padroeiro do reino), do Patrocínio de Nossa Senhora e da padroeira da Vila. Em todas essas ocasiões os representantes da municipalidade compareciam acompanhados de estandarte e insígnias.24 O maior acontecimento festivo da antiga Vila foi, provavelmente, a homenagem prestada ao nascimento de Dom Antônio, Príncipe da Beira, em setembro de 1795. Foram sete dias seguidos de “festejos de rua” organizados pelo senado da Câmara e preparados com toda a pompa, em programação grandiosa, destinada a promover a “felicidade pública”. (Notícia ..., 179-). Em sua promoção participavam, como era costume, todas as corporações, irmandades, autoridades, comerciantes e homens ricos, enfim, toda a população da Vila. O palco principal da festa foi o Largo do Rosário, incluindo várias noites de luminárias, uma delas 22 É interessante observar que as duas povoações parecem ter tido desde o início certa independência e profundas diferenças quanto à formação e composição social, havendo, inclusive, notícias de rivalidades e enfrentamentos entre as duas. 23 O autor informa, ainda, que os pregões também eram ali realizados e os porteiros andavam “... na praça de sima para baycho e de baycho para sima...” (Câmara de Santo Antônio da Bahia). BARRETO, ibidem, p. 156. 24 PASSOS, ibidem, p. 223 – 224. à custa dos juizes, vereadores e procurador da Câmara “... com tres Porticos, ruas de arvoredo, labiryntho, tanques, e huma caza chineza no meio para a muzica, e danças; tudo com execellente gosto, e arquitectura propria de similhante objeto...” 25 . Espetáculo cenográfico por excelência, de concepção nitidamente barroca, obedecia “... ao imperativo de compor, para gáudio de uma população sensível aos efeitos encantatórios, uma fascinante montagem de formas, cores e luzes”. (ÁVILA, 1971, p. 216). Durante vários dias diversas danças foram oferecidas pelas “corporações”. Com roupas e ornamentos, “... que faziam a mais especiosa vista...”, os grupos eram conduzidos em carros triunfantes, dos quais desciam para a execução das danças. Assim, concorreram os comerciantes com a Guarda Marinha, de uniforme escarlate e azul, embarcados em um bergantim. Os oficiais de Justiça vieram com a dança de sátiros, “... que entrou um carro, que figurava bosque, com hum monte, no cume do qual se representava Baco sentado numa dorna...”. Dançaram ainda outros grupos, como o de marujos, ordenado por alguns “curiosos”, que desembarcou de um navio, e o dos oficiais da vila e do termo com “... Figuras vestidas de setim verde, e côr de rosa à chineza, as quaes assim pelo asseio, como pelo acerto, e regularidade com que dançavão bem ensaiadas contradanças, encherão de prazer os Expectadores”. 26 Foram realizados também Outeiros, ou festivais de poesia, com o “...Coro das Musas, que espalhadas pelo Parnaso, e ornadas com os respectivos instrumentos, davam os Motes aos insignes Poetas, que alli concorreram...”. Característico dessas ocasiões, o espetáculo pirotécnico iluminou a praça em uma das noites e terminou “...com uma letra iluminada por baixo de Hum coração abrazado, que dizia: ARDET AMANS”. 25 A propósito dessas manifestações transplantadas pelos portugueses para o Brasil, entre as quais, em Minas Gerais, é exemplo maior a do Triunfo Eucarístico, realizada em Ouro Preto em 1733, destaca–se o excelente estudo de Affonso ÁVILA. Quanto a sua ocorrência em Minas, esse autor informa que “... o dispositivo festivo da sociedade mineradora era elástico e abrangente, não se limitando às comemorações e celebrações de regozijo público ou concernentes ao calendário da igreja. As populações das vilas coloniais mineiras, afeitas a um estilo de vida de coloração tipicamente barroca, incluíam até mesmo a morte ou o motivo do luto como um ato, ainda que dramático, de sua festa contínua e coletiva, um ensejo a mais de afirmação de inata disponibilidade lúdica”. ÁVILA , 1971, p. 189. 26 NOTICIA... ( 179-), p.6. Segundo LANGE (1969), as danças coletivas eram traço essencial na vida pública portuguesa e vinham da tradição européia do Medievo e do Renascimento, “... mais especificamente de acordo com a tradição ibérica e a reciprocidade entre a Espanha e a Lusitânia antes e depois da Restauração”. Tiveram grande importância no período colonial brasileiro, tendo sido muito freqüentes em Minas Gerais. Quanto às “danças dos ofícios”, o autor informa que existia, ao que parece, um padrão de dança, ou [...] uma dança típica de cada ofício – a dos alfaiates, carpinteiros, pedreiros, ferreiros, sapateiros, latoeiros, entalhadores, ourives, espingardeiros ou armeiros, cada uma precedida pelo estandarte (ou bandeira) da corporação, distintivo que, junto com o traje característico, a fazia conhecer de longe”. A participação dos ofícios com suas danças nas festividades oficiais era imposta pelo Senado da Câmara. LANGE, 1969, p.17 e 43. A programação do festejo de rua incluiu vários outros divertimentos como cavalhadas, óperas, touradas e cortejo, tendo transcorrido “... sem desordem alguma, e sempre com a mesma igualdade de prazer, e luzimento...”27 Muitas outras ocasiões festivas ou pesarosas desenrolaram–se no Largo. Em 1823, foi festejada a coroação e a sagração de Dom Pedro I, tendo sido “a espaçosa Praça dos Paços do Conselho” embandeirada. Houve fogo de artifício, um “Castelo de fogo guarnecido de Porticos” e desfile de tropas vestidas em grande gala, além de repiques de sinos, salvas de tiros e cortejo.28 Nessas ocasiões os moradores eram convocados a limpar as ruas e enfeitá–las com “flores e folhas cheirosas”, a colocar luminárias e caiar as fachadas de suas casas, e adornar as janelas com colchas e outros objetos vistosos. Tais providências constituíam obrigações cobradas pelas Câmaras das vilas coloniais e seu descumprimento implicava em pena de multa e prisão. Nos momentos de pesar “... mandavam os vereadores, debaixo de penas, que se fechassem as portas e as janelas de todas as casas e que os moradores delas tomassem luto rigoroso, e depois aliviado pelo tempo que se determinava”.29 Festividades religiosas em Sabará Ainda sobre as festas ocorridas no largo do Rosário, assinalamos o “singular espetáculo” assistido por Castelnau em 1844, através das janelas da Casa do Barão de Sabará, onde estava hospedado. Eram cerimônias do congado, por ele vistas como “um extravagante carnaval” em que se misturavam “... reminiscências da costa africana, com os costumes 27 NOTICIA ... ( 179), p. 6 e 7. A propósito desse aparato visual Affonso ÁVILA se refere a uma “fantasia barroca” detectada “...quando o jogo das luzes envolvia as cidades numa paisagem de „ensueño barroco‟ proporcionando aos olhos um instante de concretização do claro–escuro, uma imagem do mundo fugaz e contraditório que era a própria visão místico–existencial do homem residuariamente seiscentista. ÁVILA, 1971, p. 218. 28 AS CÂMARAS... 1973, p. 318 – 322. 29 Procedimentos determinados pela Câmara de São Paulo conforme BARRETO (1978, p. 157). Cada ocasião exigia roupas apropriadas, segundo normas observadas com rigor. Na festa de Dom Antônio, em Sabará, os membros do Senado e da “Governança” compareceram “... de capas bandadas de sedas de côres, e chapeos de plumas...” NOTICIA ... (179 - ), p. 2. Em São Paulo, nas ocasiões tristes, os vereadores saíam “com capas pretas compridas, e o estandarte real preto” e nos festivais usavam “... capa bordada de branco, colete branco, calções pretos, meias brancas e chapéus redondos [...] com pluma branca e cobertos com estandarte”. BARRETO, 1978, p. 157. brasileiros e cerimônias religiosas”. O viajante ressalta as magníficas vestimentas e as coroas de prata maciça do rei e da rainha e comenta que o rei “...traz uma máscara preta, como se tivesse receio de que a permanência no país lhe tivesse desbotado a cor natural”. Admira–se com os trajes da corte, em que se mesclam “todas as cores e enfeites mais extravagantes”, e com as danças, salientando que “... a coisa mais divertida era porém um preto mascarado de branco, e vestido com a farda vermelha do soldado inglês...”30 Os devotos do Rosário ainda apresentam suas danças na rua em homenagem à Nossa Senhora. O largo da Matriz funcionou, também, como importante espaço de cerimônias públicas, ao que parece com movimento de menor expressão no conjunto de manifestações coletivas da antiga Vila. Em inúmeras ocasiões a programação dos eventos incluiu atividades nos dois Largos. Salientamos, entre as festas transcorridas no Largo da Matriz, as comemorativas da aclamação de D. João VI, entre os dias 13 e 18 de maio de 1817, quando foi construído “hum magnífico Curro cercado de palanques de dous andares, vestidos de Damasco, e Arcados à Romana para a Corporação da Câmara, Nobreza, Contradanças, Musica, e povo.”31 Mas a condição de principal espaço da vila, centro de acontecimentos sociais, foi assegurada ao largo do Rosário ao longo do século XVIII, o que de certa forma perdura ainda em nossos dias. No século seguinte, em 1842, a praça serviu de ponto de concentração das tropas liberais, prisioneiras em Sabará. Por outro lado, no final do século XIX, já havia, ali, festa de carnaval, especialmente o Bloco Mundo Velho, que atualmente comemora seu centenário. A configuração arquitetônico–urbanística do Largo parece, também, não ter sofrido alterações substanciais nesse período como indicam fontes documentais. O “Auto do Lansamento dos prédios desta Villa para a Decima de 1828”, importante documento para estudos da evolução histórica da cidade, fornece alguns elementos sobre a constituição do conjunto arquitetônico do Largo no início do século passado. Ali estavam localizadas vinte e oito casas, incluindo–se oito situadas na rua “atraz do 30 31 CASTELNAU, 1949, p. 171 – 172. LANGE, ibidem, p. 54–56. Rosário” e outras oito no “lado direito do Rosário”. Entre elas, se destacavam quatro de maior porte, a exemplo do Sobrado do Barão de Sabará, avaliadas entre 10.000 e 30.000 cruzados.32 Uma interessante gravura datada provavelmente de meados do século XIX oferece-nos uma visão geral do casario, notando-se a representação da Casa da Câmara e Cadeia ao fundo, e da Igreja do Rosário com as paredes da nave ainda limitadas à altura do embasamento, o que está de acordo com as referências documentais da construção do templo. Vê-se, ali, que predominavam as casas térreas destacando-se alguns sobrados na lateral esquerda do Largo.33 Nos relatos dos viajantes que passaram pela cidade ao longo do século XIX não há referências explícitas ao casario da praça, mas foram registradas observações gerais a respeito do conjunto da Vila. Spix e Martius (1938) comentam que era ela formada de “...filas espalhadas de casas baixas e asseadas...”. Saint-Hilaire informa que as casas são todas caiadas e bem conservadas e sua forma “... é a mesma que a de outros lugares; elas são quase quadradas e são cobertas de telhas (...) várias tem um andar e janelas envidraçadas. As de rés do chão são em geral baixas e pequenas”. Por fim, Burton observa que as casas são pintadas de várias cores e destaca a Casa do Barão de Sabará “...dotada de um pára-raios, coisa muito rara por aqui”.34 Documentação fotográfica dos fins do século XIX e início do século XX confirma a manutenção dessas características gerais da paisagem arquitetônica. O processo de transformação inicia-se ainda timidamente nessa época para, no espaço de poucas décadas, concretizar-se a completa alteração das antigas feições do Largo. Nota-se um primeiro momento que vai até o início dos anos 1930, período em que as modificações atingem algumas unidades do conjunto arquitetônico, e um segundo, a partir de alterações na própria estrutura urbana, com efeitos mais radicais. O prédio da Câmara e Cadeia foi o primeiro a desaparecer. Com a sua demolição, efetivada em 1891, o espaço que ocupava permaneceu vazio até por volta de 1940. Já na virada do século XIX evidenciava-se, portanto, a rejeição aos esquemas da 32 SABARÁ. ARQUIVO DO MUSEU DO OURO. Auto do Lansam.to dos Prédios desta Villa para a Decima de 1928. Cod. 2 cartório do 1o Ofício”. É interessante observar que quase a metade das casas era propriedade de senhoras, contando-se, entre os demais moradores, cinco capitães. Três casas estavam arruinadas, duas eram devolutas e sete encontravam-se alugadas. Como seis eram propriedade de herança, pode-se concluir que uma boa parcela das residências já não era usada por seus antigos moradores, indicando processo de substituição em relação à composição social do Largo à época setecentista. Em relação à Vila como um todo, o confronto da lista de moradores com os inventários e outras fontes indica a presença de muitos proprietários de “... boas moradas de casas, bem conservadas em sua maioria, de fazendas com engenho e terras de minerar e de cultura, pequenos sítios ...” atestando a existência de certa riqueza. BOUZAS. 1991. p. 2. 33 A gravura foi publicada por MARINHO (1939). 34 SPIX e MARTIUS, 1938, p. 86; SAINT-HILAIRE, 1974, p. 75; BURTON, 1976, p. 354-355. arquitetura colonial, o que, de resto, ocorria nos quatro cantos da República nascente. Comentando o destino do antigo prédio, a “Folha Sabarense”, em 1890, aplaude o ato de “...demolir-se aquele espantalho do nosso Largo do Rosário, o qual ficará bem lindo”.35 É interessante assinalar que essa rejeição se fez sentir também em Belo Horizonte, pois sua antiga Matriz, à mesma época, foi considerada uma igreja ... sem elegância nenhuma no exterior, acaçapada e tosca no systema de sua architectura, toda portugueza no pesado das proporções e incorreções das linhas, sem ornato externo (...) com ornamentação interna pesada e sobrecarregada de tintas douradas que fatigam a vista. (LEAL, 1985, p. 13-15). Voltando a Sabará, após o período em que se fizeram sentir os efeitos da Primeira Grande Guerra, as transformações passam a pontuar aqui e ali a paisagem do velho Largo. As linhas contínuas das casas sobre os alinhamentos e a seqüência volumétrica dos quadrângulos cobertos pelos telhados em cangalha, que se haviam mantido por longo tempo, passam a sofrer descontinuidades. Uma ou outra fachada absorve novidades em sua composição, com a introdução de platibanda e mãos francesas recortadas. A presença da nova Capital do Estado nas proximidades da cidade setecentista e o início da siderurgia projetam seus reflexos no contexto socioeconômico local e fomentam os anseios de renovação. O imponente Sobrado do Barão de Sabará desapareceu em 1921 e sete anos depois surgiu em seu lugar o edifício do Fórum, de linhas neocoloniais, rompendo o ritmo, a implantação e o volume das construções tradicionais. Na esquina da Rua da Cadeia, as velhas casas deram lugar ao prédio da escola pública, inaugurado em 1925. Pouco mais tarde, surgiu nessa rua a sede do Clube Cravo Vermelho, também projetado ao gosto neocolonial. 35 A Folha Sabarense, 1890, p. 3. SALGUEIRO (1987, p. 125-126) observa que “... as novas gerações conscientes da sua contemporaneidade à era industrial aspiram a ostentar nas suas casas e templos sinais de adesão à modernidade”. E conclui: “Se o Barroco é estilo da época colonial e o Neoclássico representa o Império, ambos tornam-se modelos automaticamente rejeitados pela República”. Contrapostos à seqüência de pequenas unidades arquitetônicas, esse edifícios ocupam amplos espaços, em nova escala e nova conformação construtiva. Concebidos em época de importantes transformações políticas e socioeconômicas, seguem a orientação eclética da arquitetura dos grandes centros urbanos, com estilos variados e programas construtivos ligados ao ideário republicano. A velha cidade oscila entre o passado e as novidades traduzidas nas formulações arquitetônicas para, no momento seguinte, definir um compromisso mais efetivo com as idéias renovadoras. Na virada dos anos 1930 uma intervenção fundamental foi executada no espaço da praça, alterando a conformação original até então mantida. O grande terreiro foi subdividido por jardins, em dois tabuleiros gramados com arbustos, roseiras e outras flores. A arborização das ruas e o ajardinamento dos espaços públicos, importante elemento nas renovações urbanísticas ou nos planos de novas cidades a partir do século XIX, em um dos aspectos primordiais da vizinha Capital, alcançaram a antiga Vila e, provavelmente, foram motivo de orgulho para os habitantes. A organização do Largo orientava-se então por princípios inteiramente diversos daqueles prevalecentes no período colonial, quando o espaço aberto convidava às concentrações do povo em suas manifestações coletivas. O novo esquema não impede o acesso público, mas condiciona a utilização da praça mediante uma compartimentação inflexível de canteiros e passarelas, que deixa ao usuário a alternativa única de circular em torno das áreas ajardinadas. O arranjo espacial, muito simples, apresenta caráter hierarquizador, com demarcação nítida de funções definida na perspectiva de um novo elemento: o automóvel. Não há mais a multiplicidade de opções oferecida pelo terreiro vazio a permitir a construção de paisagens efêmeras, cenográficas. À montagem de arquiteturas próprias a cada ocasião, em processo dinâmico e criativo, contrapõe-se um cenário definitivo, que não se abre a possibilidades. A partir dos anos 1940, como assinalamos, inicia-se um processo consistente e progressivo de renovação dos velhos padrões arquitetônicos e urbanísticos que alcança não somente o Largo do Rosário, mas outros conjuntos do centro da cidade. As alterações atingem o tecido urbano, com a criação de praças e a “abertura de novas ruas e alargamento de becos e vielas inconvenientes ao aspecto urbanístico da cidade.”36 Edificações fundamentais na composição da antiga Vila e na vida dos sabarenses vieram abaixo, a exemplo do grande sobrado da antiga Escola Normal e da Igreja de Santa Rita.37 A demolição desse templo, situado na Rua Dom Pedro II logo abaixo do Largo do Rosário, constitui o exemplo da intervenção de maior amplitude, porquanto alterou em profundidade a morfologia da paisagem urbana. Vista do centro da cidade a partir da ladeira da Intendência - 1940. Observa-se o Largo das Bananeiras em primeiro plano, as ruas do Fogo e Borba Gato, e a Igreja de Santa Rita ao fundo dominando a paisagem. À esquerda o grande sobrado da Santa Casa também demolido. Construída provavelmente nos meados do século XVIII, a Igreja desempenhava um papel destacado na conformação do núcleo colonial, constituindo um elemento chave da organização espacial setecentista. Sua demolição, autorizada pela Câmara Municipal em 1937, concretizou-se poucos anos depois. O ato da Prefeitura Municipal foi cercado “... de todos os requisitos necessários à satisfação da opinião pública do País”38, legitimando-se através de pareceres técnicos de engenheiros especialistas em história e arte e autorização da Cúria Metropolitana. Justificada pelo risco de desabamento propalado pelos técnicos e administradores e, principalmente, “pelas exigências da vida moderna”, a eliminação do templo “...possibilitou o alargamento do beco por onde se processava o forçado e maior movimento de veículos da cidade”. Foi promovida “... em benefício da segurança pública e muito especialmente, do desenvolvimento e aspecto urbanístico da cidade”. Os moradores se consternaram, mas não apresentaram reação capaz de impedir o ato, 36 SABARÁ. Prefeitura Municipal. Relatório... 1946, p.6. Na pesquisa da cronologia das transformações arquitetônicas, particularmente no século atual, contamos com a valiosa colaboração do pesquisador José Arcanjo do Couto Bouzas. 37 A antiga Escola Normal localizava-se na atual Praça Bueno Brandão e sua demolição alterou completamente a paisagem arquitetônica daquela área. Segundo relatório da Prefeitura Municipal (nota 36), a escola foi desativada em 1939 e a própria Congregação entendia que o velho prédio deveria ser demolido. Como medida de acautelamento, a administração municipal solicitou parecer do então serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional SPHAN que não viu impedimento na demolição em vista ao péssimo estado de conservação do prédio. Não ter houve, portanto, nenhum esforço do órgão no sentido de preservá–lo. 38 SABARÁ, Prefeitura Municipal. Relatório... 1946, p. 16. restando-lhes ver surgir no lugar do templo uma “... bela praça, amostra de seu apurado gosto artístico e cultural”.39 Toda a argumentação da prefeitura, entretanto, não foi suficiente para o convencimento da população, pois “...todo mundo viu que a igreja, que tão rebelde se mostrava aos processos de demolição empregados, estava apta a resistir por mais uma centúria! O travamento das paredes era feito de tal geito (sic) que não foi fácil desfazer no século XX o que se fez no século XVIII!”.40 Área anteriormente ocupada pela antiga igreja, atual Praça de Santa Rita Ali ficou certamente a maior cicatriz das renovações operadas na paisagem urbana e na tradição cultural dos sabarenses. É significativo que quase à mesma época, em 1932, Belo Horizonte perdia também a sua matriz do período colonial, então sobrevivente único das velharias do antigo Curral del Rei. Após quase quatro décadas de resistência, desde o início da construção da nova Capital, o templo setecentista foi demolido. Esses episódios mostram bem o triunfo de uma mentalidade que opunha desenvolvimento e tradição, e que se submetia à autoridade inabalável da técnica moderna e de um sistema político populista e centralizador. As questões da renovação e embelezamento urbano colocam-se em primeiro plano nas propostas administrativas e tornam-se símbolos do progresso e da modernidade. Em Sabará, a expansão da siderurgia e a vizinhança com a capital do Estado representam um forte estímulo aos ideais renovadores, na medida em que influenciam profundamente os projetos políticos e socioeconômicos da velha cidade.41 Voltando ao Largo do Rosário, a construção de um posto de gasolina no terreno da Casa de Câmara e Cadeia é exemplo dessa afirmação dos novos valores. Paradoxalmente, mostra ele seu ar mourisco a lembrar tradições arquitetônicas ao gosto neocolonial. Com 39 Ibidem, p. 17. PASSOS, 1942, p. 344 - 345. 41 A questão se insere em um quadro mais amplo e complexo, acompanhando o ideário desenvolvimentista que se afirma nos meados do século atual, trazendo conseqüentemente, a aceleração das transformações urbanas. No caso de algumas cidades coloniais, a ação do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional 40 suas colunas torsas, frontãozinho com painel de azulejos e elementos cerâmicos vazados, seguiu a moda já inaugurada em outras edificações da cidade nos anos 1920. A praça vai consolidando novas funções e absorvendo o estacionamento dos carros de praça, o posto de saúde, as escolas públicas, a sede da justiça e um pequeno comércio. Pequena parte do casario guarda ainda algum compromisso com a arquitetura do passado. Na década de 1960, outras intervenções acentuaram a transformação. Os dois únicos sobrados remanescentes da era colonial desapareceram, um vitimado por incêndio, outro demolido para dar lugar a uma residência que ostenta com orgulho os ecos da arquitetura modernista, como o afastamento frontal, a fachada envidraçada, a laje plana e a platibanda revestida com pastilhas. Alguns anos depois, desapareceram o Passo, situado na esquina da rua São Pedro, e algumas casas antigas, dando lugar ao moderníssimo edifício da escola Estadual Zoroastro Passos. Do antigo conjunto arquitetônico sobraram, portanto, além do Chafariz e da Igreja do Rosário, fragmentos do antigo casario localizados aos fundos e ao lado do templo. O espaço da praça sofreu remodelação, com nova organização espacial dos canteiros e circulações segundo um projeto de linhas geométricas que não favorece as representou uma forma de controle e orientação dessas transformações, o que ocorreu apenas em parte do conjunto de Sabará por não ter sido feito o tombamento do núcleo e sim de unidades isoladas. concentrações populares. As pessoas aglomeram-se nas pequenas áreas livres de circulação em torno dos tabuleiros ajardinados.42 O antigo largo é, pois, hoje, uma coletânea de amostras arquitetônicas que expressam as várias etapas de sua evolução histórica. Os diversos nomes que teve ao longo do tempo demonstram, também, os sucessivos estágios de transformação: Largo do Rosário ou da Cadeia na época colonial, Praça da Constituição no final do século XIX, Praça da Independência nos anos 20 do século atual e, finalmente, Praça Melo Viana. A cidade vive, hoje, problemas imensos, em parte ocasionados pelo crescimento explosivo de Belo Horizonte, avançando sobre o município e trazendo grandes contingentes populacionais. A administração municipal enfrenta dificuldades com a demanda de infra-estrutura, assistência e integração dessa nova população. Por outro lado, nas áreas antigas, a situação econômica atual leva os proprietários a ampliarem suas moradias, concentrando-se diversas famílias nas propriedades herdadas. Há carência imediata de ajustes e complementações da legislação urbana existente, particularmente no que se refere ao centro histórico. No Largo do Rosário, em face de mudanças desde o início do século XX, como a chegada do trem, da siderurgia, das escolas e dos carnavais de rua, a paisagem pouco lembra o 42 É preciso elaborar um novo projeto que venha a valorizar o conjunto do Largo sob o ponto de vista históricourbanístico e adequá-lo a uma utilização plena de suas potencialidades. De resto, todo o antigo centro urbano necessita de urgente tratamento, tanto do ponto de vista do controle e harmonização das intervenções, quanto de projetos de conservação e valorização. tempo da antiga Casa da Câmara e Cadeia. Mas a imagem soberana do grande arcabouço de pedra ainda se impõe. É necessário, portanto, compatibilizar os interesses econômicos e os socioculturais de forma a garantir aquele espaço às gerações futuras. Há ainda ali muita beleza e poesia. Olhando a praça e a cidade, vem-nos à memória a fala de Ítalo Calvino sobre Zaíra, uma de suas cidades imaginárias: A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (CALVINO, 1990).