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Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias MEMÓRIAS E NARRATIVAS NA (RE)CONSTRUÇÃO DAS PAISAGENS AMAZÔNICAS MARAJOARAS Flávio Leonel Abreu da Silveira1 Cristiane do Socorro Gonçalves Farias2 RESUMO Neste artigo procura-se entender o cotidiano dos marajoaras que vivem na região dos furos, às margens do Rio Pará, no município de Curralinho. Para tanto, privilegia-se as suas narrativas – e a mitopoética que delas emana - amalgadas às suas vivências junto ao meio aquático e às paisagens nas quais estão inseridos. Sendo assim, a partir da vida vivida naquele contexto, os narradores evocam as imagens de seres fantásticos que povoam o imaginário local, como o boto, a mãe do mato e a cobra encantada, que surgem misteriosamente para animar as paisagens sensíveis marajoaras. Palavras Chave: Marajó, narrativas, paisagens, seres fantásticos, água 1 O LUGAR E SUAS PAISAGENS Este trabalho surge com o intuito de (re)pensarmos as relações dos amazônidas, aqui em especial os ribeirinhos das várzeas do Marajó situadas nas regiões de rios e florestas, com as paisagens míticas evocadas por meio das narrativas que emergem a partir de suas próprias vivências, portanto, experienciadas no cotidiano, as quais se misturam constantemente com as paisagens que fazem parte de suas vidas. A nossa perspectiva é a de um diálogo interdisciplinar que envolva os campos da Antropologia e da Narratologia, aliados aos estudos de memória. Nestes termos, o artigo em questão é o reflexo de encontros com pessoas que habitam Curralinho, no contexto da Ilha do Marajó (PA) – situada no nordeste do Estado do Pará, na chamada zona fisiográfica do Marajó e Ilhas. É preciso 1 Doutor em Antropologia e professor adjunto na UFPA. Pesquisador do CNPq. Aluna de mestrado do programa de Pós-graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia UFPABragança. 2 Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 5, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias deixar claro que todos os interlocutores são oriundos de localidades do interior do município, portanto, as suas narrativas giram em torno de suas memórias, posicionadas em relação às diversas experiências com seus lugares de pertença. Nesse sentido, propomo-nos a entrar em um determinado espaço social e existencial a fim de tentarmos compreender, ou ainda, interpretar, as narrativas que foram ouvidas/recolhidas ao longo do ano de 2013 junto aos moradores dessa região de várzea, recortada por muitos rios e matas. Interessa-nos refletir sobre os temas de suas narrativas, ou seja, nosso interesse gira em torno do que eles contam e, a partir daí, dos seus vínculos simbólico-afetivos com as paisagens praticadas cotidianamente. Como dito antes as paisagens aqui pensadas pertencem a uma cidade localizada na Ilha do Marajó, grande ínsula - com uma área de 40.100 km², é considerada a maior ilha flúvio-marinha do mundo - que constitui com outras menores o Arquipélago do Marajó, situado no estado do Pará, e cercado pelos rios Amazonas e Tocantins, bem como pelo Oceano Atlântico. Sabe-se que com a chegada dos portugueses foi criado o Baronato da Ilha Grande de Joanes, como então era conhecida a ilha, que estava dividido em 13 distritos, um desses é hoje a cidade de Curralinho. Primeiramente, a área do município fora uma fazenda particular cujos proprietários dispunham de muitas relações comerciais na região. Naquela época, o lugar constituía-se num porto de parada obrigatória das embarcações e dos regatões que subiam e desciam o rio, realizando o comércio junto as comunidades existentes ao longo dos cursos de água. Pela sua localização e, também, devido a grandes propriedades, pessoas ligadas aos proprietários para lá se dirigiram, e com autorização, fixavam suas moradas. Em pouco tempo formava-se um núcleo populacional de relativa expressão. Com isso, a localidade prosperou, e em 1850, adquiriu a categoria de Freguesia sob a denominação de São João Batista de Curralinho, Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 6, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias constituindo-se no município de Curralinho alguns anos mais tarde. O lugar acolheu, também, muitos aventureiros - portugueses, italianos, turcos, japoneses, cearenses, entre outros - que vinham em busca de riquezas, fixando residência e negócios que contribuíram para tornar o local mais populoso. Nota-se que a partir do início do século XX, com a chegada desses aventureiros e o advento de seus negócios, o desenvolvimento local toma novos rumos, associado à produção na zona rural, com a extração de frutos que a terra oferecia e o trabalho de lavoura. Os comerciantes, em contrapartida traziam os produtos para a troca, entre eles o peixe salgado, os cachimbos, o jabá, alguns tecidos, entre outras coisas. As atividades extrativistas das sementes locais como a andiroba, a ucuuba, a copaíba (o seu óleo), bem como as madeiras, que nessa época eram lavradas a machado, ocorriam no período do inverno Amazônico, enquanto que a extração da borracha, a manutenção das roças com a plantação de arroz e banana, principalmente, se dava no período de verão, quando se concretizava a troca dos produtos. A população sobrevivia à época – mas, em parte ainda sobrevive - da pesca artesanal de pequenos peixes e camarões, os quais são até hoje vendidos no próprio mercado interno. Recentemente houve um alto crescimento na extração do açaí, fruto muito consumido em toda a cidade e interior, fazendo com que a economia da cidade se elevasse no tempo de safra do fruto, que vai de setembro a dezembro. A cidade cresce desordenadamente, sem estruturas básicas, sem políticas públicas consistentes, além disso, não há fábricas ou empresas na cidade, desta forma, os moradores sobrevivem da renda oriunda da prefeitura ou de pessoas que recebem benefícios do governo, bem como do pequeno comércio que foi se constituindo ao longo do tempo. A principal via de entrada e de saída dos moradores, visitantes e vendedores na cidade ocorre através do rio Pará ou Guajará. Quando a cidade é vista de longe, a partir de um barco que navega, um tempo nostálgico nos toma os sentidos, principalmente se nos debruçamos sobre o batente do barco Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 7, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias e ficamos a admirar - um tempo sensível de devaneio - observando aquela paisagem que se conecta: céu, terra e rio, juntos, parecem dar as boas vindas ao navegante. E é esse rio que leva e traz pessoas, conduzindo por meio de sua força agitada e turbulenta à cidade, aos furos e aos meandros que constituem uma topografia regional dinâmica e fantástica, que as bagagens de histórias viajam, sendo trazidas/levadas/ressignificadas pessoas que circulam por pelas lugares outros situados além ou aquém do município. 2 REMINISCÊNCIAS, OU A VIBRAÇÃO DAS IMAGENS DE OUTRORA Os vínculos simbólico-afetivos com as paisagens de pertença se relacionam intimamente com as histórias de vida dos sujeitos em relação com os lugares praticados, indicando trajetórias e possibilidades de construção de si que revelam, a partir do trabalho da memória e da consequente tessitura da narrativa, tanto os aspectos das experiências vividas outrora quanto um (re)pensar acerca das localidade dos espaços onde o sujeito se situa em relação ao (seu) mundo. A partir deste ponto do artigo fazemos uma incursão a este universo sensível através das rememorações de um dos autores que nasceu e tornou-se adulto na cidade de Curralinho. O ato de narrar histórias é uma prática corrente – e de longa data - entre os moradores do núcleo urbano e do interior do município e, não raro, pode(ria) Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 8, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias estar associado à certa sazonalidade em relação aos recursos disponíveis às pessoas, neste caso, trata(va)-se, mais especificamente, de um tempo de escassez. É por isso que uma criança quando dirigia-se ao interior com sua família, a fim de deixar passar aquele que era considerado um tempo ruim na cidade - de maneira que o grupo familiar pudesse extrair da natureza as dádivas que ela podia oferecer, tais como os peixes, os camarões, as caças, os frutos, ou seja, os alimentos que não eram preciso pagar –, que ela poderia ouvir com frequência as histórias narradas pelos adultos. De qualquer maneira brincava-se muito com barquinhos feitos de miriti, com bonecas elaboradas da vassoura de açaí e as panelinhas do barro que era retirado na beirada do rio ou dos igarapés; os piões, os bichinhos moldados na pitaíca3 e na pracuuca4. Os banhos eram tomados na Prainha, e muitos botos foram vistos próximos a ponta da mamorana5. 3 Semente da árvore Pitaiqueira, que ao comando da mão, e com ajuda de uma faca, tomava várias formas, inclusive, a forma de um boi. Colocava-se palitos imitando as pernas, a partir daí a semente ficava em pé parecendo com o animal. 4 Semente da planta denominada de pracuubeira. 5 A ponta é uma saliência de terra que adentra o rio e, nesse caso, encontrava-se repleta de mamoranas, árvore típica da beira do rio, sendo ela uma espécie de cacau selvagem. Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 9, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias Por isso, a partir das seis horas da tarde ao por do sol ninguém se atrevia a ficar na beira da praia, todos ficavam observando da janela da pequena casinha os botos que pulavam para fora da água, parecendo saber que estavam sendo observados. Passado o dia, os compadres do patriarca e do tio chegavam e se reuniam no único compartimento da casa – chamado de tapiri6, sem paredes laterais, no entanto, esse tinha as paredes da frente com uma porta e uma janela voltada para o rio. A janela que nessas horas é o lugar de descanso dos braços, do corpo e da mente, momento em que as pessoas se proporcionam certo devaneio, perceptível no olhar distante. A casinha apresentava-se rodeada por florestas. Um fogão a lenha, um jirau7, alguidar8 e peneiras9, além de um pote de barro10, 6 Moradia feita de madeira bruta, geralmente não possuem paredes laterais, sendo cobertas com palha. 7 Espécie de estrado feito de madeira mais elevado que o chão da casa, serve para as pessoas cuidarem dos seus afazeres domésticos, como um apoio para as tarefas, podendo ser considerado como uma espécie de pia. 8 Trata-se de um tipo de cerâmica feita de barro que toma o formato de uma bacia, serve de depósito para o vinho do açaí, para o peixe salgado, entre outros. Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 10, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias eram os únicos utensílios de valor que a casa possuía. Tod os arrumados para dormir, as crianças, cada uma na sua redinha, a lamparina11 acesa - o objeto que oferecia luz no interior da habitação. Café pronto, barulho de remos encostando no trapiche improvisado12, os compadres chegavam e se acomodavam em círculo sentados no chão, quando o tabaco começava a ser enrolado delicadamente no abade. A lamparina iluminava os contadores presentes na roda de pessoas. O seu tênue clarão batia no telhado sem forro, feito de palhas, propiciando ao ambiente uma aura de mistério. As crianças dormiam ou fingiam o sono para ouvir as histórias, permanecendo na rede, imóveis e em silêncio. A luz da pequena lamparina colocada no meio da roda, permitia ver o reflexo batendo na palha que compunha o telhado, ouvidos atentos para todas as histórias maravilhosas que brotavam da voz de seu Banana13, de seu Jabuti, de tia Zeca, e daquele que parecia ser um grande narrador, o seu Pepira, como é carinhosamente chamado até hoje. Ele era um contador especial, um performer, principalmente pelo seu entusiasmo, por sua risada espalhafatosa e suas histórias arrepiantes e belas sobre o boto, a cobra, as tantas visagens. Tudo verídico, como ele mesmo dizia. 9 Cesto feito de tala de arumã, de jacitara ou de miriti que é bastante utilizada na pescaria, onde os pescadores depositam seus pescados. 10 Vasilhame feito de barro muito utilizado para depósito de água. 11 Objeto feito de lata ou vidro, onde é colocado um pavio encharcado de querosene, utilizado para iluminar o ambiente. 12 Tronco de miriti que a noite ao bater o luar parecia se transformar em uma linda e misteriosa cobra grande. 13 Todas essas pessoas eram chamadas pelos seus apelidos e não pelo nome de batismo. Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 11, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias Essas vozes vibravam entre as crianças, tratando-se de verdades incontestáveis, uma vez que ninguém convenceria do contrário acerca do que contavam ali, pois “a impressão” que persistia “no ouvinte [era a] de uma fidelidade menos contestável do que na comunicação escrita ou diferenciada, de uma veracidade mais provável e [portanto] mais persuasiva” (ZUMTHOR, 2010, p.30). Essa voz evocadora da continuidade da tradição do contar, do narrar, constituía, assim, a perdurância de formas sensíveis relativas às manifestações do imaginário ligado ao mundo da várzea, das florestas ribeirinhas. A sua força evocativa das imagens mostra como esses sujeitos se inserem e se imbricam nesses espaços que mesclam o prático e o mítico. Novamente é Zumthor (2010, p. 52) que nos auxilia ao afirmar que “ninguém duvida que a capacidade de contar seja definidora do estatuto antropológico; de que as lembranças, os sonhos, os mitos, as lendas, a história e tudo mais constituam juntos, a maneira pela qual os indivíduos e grupos tentam se situar no mundo”. A simbólica das imagens naquele contexto, portanto, ligava-se a um conjunto complexo de agências de humanos, não humanos (viventes ou não) e sobre-humanos relacionados entre si, cuja potência vibrava no lugar (e por isso, persiste nas memórias pessoais e coletivas): as histórias fantásticas - a lembrança da fulguração da voz - a luz bruxuleante cedida pela lamparina e a roda de gente formavam uma paisagem misteriosa repleta de vida e de emoções. Neste sentido, a luz enquanto uma expressão das “forças fecundantes uranianas” representa o calor que possibilita a vida, o começo desde a saída das trevas (CHEVALIER, 2012, p.567). Ela se associa à roda constituída pelas pessoas – a qual se materializa no círculo - que o mesmo autor afirma ser, na sua forma fechada, algo que simboliza a proteção aos que estão dentro de seus limites. Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 12, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias O ato de narrar do contador, portanto, é uma experiência performática que só pode existir na relação sensível e complexa com a plateia, pois as agências de ambos constituem expressão como formal dimensão do a rito da socialidade naquele contexto marajoara, onde os mitos afloram e reverberam sua imagética sutil, cujas pulsações do mistério vibram nas memórias do lugar e de suas gentes. 3 O CONTEXTO E A FULGURAÇÃO DAS PAISAGENS Ao falarmos em cultura necessariamente tocamos no tema da linguagem, vislumbrando-a, nestes termos, a partir de suas diversas facetas produtoras de comunicação, portanto, está longe de nossas intensões neste artigo a possibilidade de separá-las, pois são elas que, no seu entrelaçamento, contribuem na estruturação das diversas sociedades humanas. Ora, usamos a linguagem como extensão do corpo e da natureza, sendo essa mesma pluralidade da linguagem o que nos auxilia na manutenção de laços complexos dos sujeitos entre si e deles com o mundo (e, assim, como os não humanos e os sobre-humanos), os quais sempre se renovam de acordo com as paisagens em que estão inseridos desde suas agências. Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 13, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias As paisagens – fantásticas ou não - (re)constituídas pelas narrativas na Amazônia, propiciam a emergência de inúmeras vozes, e essas vozes pertencem, por certo, às tantas gentes amazônidas cujas experiências de vida estão profundamente imersas/envoltas nas águas, florestas, bichos e marés. O homem integrado tensionalmente à natureza transforma e é transformado por ela: com as oscilações da maré, ora enchente ora vazante, que levam e trazem canoas, gentes, mururés14, lembranças, alegrias, tristeza, esperanças e, por fim, histórias submersas nas águas da memória – por vezes, referidas a mundo subaquáticos, aos seres misteriosos do fundo das águas - histórias essas que não são separadas das suas vivências, porque vividas a partir do cotidiano, o que permite o olhar calmo e sensível, evocador do maravilhoso. As pessoas que tiram o seu sustento da terra hoje, são as mesmas que de forma admirável se prostram à grandeza e exuberância das paisagens diante de seus mistérios e epifanias. Elas, cujo passado está marcado por lutas, mortes e destruições em nome de um processo civilizatório que avança sobre as fronteiras, e que, atualmente, precisam lidar com o advento das novas tecnologias que alcançam as pequenas localidades, nem por isso, abandonaram certas práticas e crenças de seus antepassados, especialmente nas áreas interioranas do município15. 14 Planta aquática que cresce estendendo-se sobre a superfície das águas calmas, no entanto, quando começa a vazante ou a enchente das águas se aglomeram na boca dos lagos, rios, igarapés, furos em grande quantidade. 15 José Veríssimo (2013) oferece um conjunto de imagens que, considerando algumas modificações, ainda é recorrente para a região pesquisada. Conforme o autor: “Nos lugares alagados de beira-rio, com certas Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 14, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias Sendo assim, nota-se que as paisagens atuais ainda são muito parecidas com aquelas de outrora, como as que José Veríssimo descreveu. Mesmo considerando-se o “progresso” que com o passar do tempo chegou à região, quando percorremos os rios e ruas das localidades é possível, ainda, perceber a mesma conformação das moradias descritas pelo autor, pois se as casas não são mais de paxiúba ou de miriti, muito menos amarradas com cipós, conservam uma estrutura que ainda lembra tais descriçõ es, mesmo em contraponto com outras habitações muito mais elaboradas. Entretanto, falar acerca das paisagens, em especial na Amazônia, é falar de contextos – e territórios - detentores de complexidades que se colocam ao pesquisador que adentra tais universos, que no contemporâneo não se apresentam mais como lugares distantes e isolados – aliás, porque nunca foram -, pois estão interligados física ou virtualmente (rádio; televisão; celular; internet; WhatsApp, entre outros) a outras localidades da região, ou mesmo, desde um processo de globalização cultural as demais partes do mundo. porções do Amazonas entre o Pará e o Gurupá e em todo o Litoral do arquipélago do Marajó (...) erguem as casas sobre paliçadas (...) Nada ali é vindo de estranhas terras, tudo (...) proveio, quase sem esforço, da natureza ao redor. O madeiramento para a casa, o cipó, que faz a vez do prego (...) a matéria do tipiti (...) o barro e a argila (...). O prato é muitas vezes a cuia, como o pote ou o cântaro é a cuiambuca ou o jumaru (...) A mata fornece-lhes ainda a caça, o rio e o peixe, a terra frutos, com mão pródiga, e com tudo isso, que profunda não é a sua miséria”. (Veríssimo, 2013, p. 94) Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 15, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias Hoje em dia, um objeto básico que figura nas paisagens domésticas, tanto na zona rural quanto na urbana, é a antena parabólica. Dessa forma as pessoas tem acesso a muitas notícias e entretenimentos, sendo que algumas comunidades mais bem organizadas já possuem internet. Os telefones móveis estão cada vez mais acessíveis. Portanto, por meio de tais tecnologias obtêm informações em tempo real. Além disso, a presença de embarcações mais rápidas permitem diminuir as distâncias. Por certo, muitas paisagens se transformaram ao longo do tempo, tanto pelas agências humanas quanto por aquelas de caráter não humano, ocasionadas pela dinâmica das águas, por exemplo. Das interações que ocorrem entre homem e natureza, emanam experiências que nos levam a pensar sobre a importância das agências simbólicopráticas, que nos termos de Simmel (1996) desdobrar-se-iam nos “formismos das paisagens”, e que seguindo Durand (1989), revelariam um conjunto de imagens/imaginário16 que constelaria aderido/imerso/sobreposto aos lugares, quando a participação dual da natureza e da cultura se manifesta17. 4 OS PERSONAGENS E A ARTE DE NARRAR 16 Para Maffessoli (2001) “o imaginário é uma realidade (...) quando o real é acionado pela eficácia do imaginário das construções do espírito", ou ainda, para o autor “[o] imaginário permanece uma dimensão ambiental, uma matriz, uma atmosfera. Aquilo que Walter Benjamin chama de aura. O imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável”(2001, p.75). 17 Nestes termos “[p]ermutas dessa ordem possibilitam que cosmologias específicas aflorem em contextos culturais e ecológicos particulares, nos quais os grupos humanos estabelecem seus vínculos com o meio biofísico: mitos, fabulações e lendas extravasam do universo imaginal como manifestações da potência subterrânea das imagens e o resultado das interações entre o mundo social e o ambiente experienciados no cotidiano, sendo este vivido enquanto “acontecer” no tempo” (SILVEIRA, 2009, p.75). Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 16, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias As narrativas coletadas para este artigo resultam do trabalho de campo junto aos contadores de histórias que moram em bairros periféricos da cidade de Curralinho, as narrativas aqui apresentadas surgiram das entrevistas e conversas tidas com seu Pedro, dona Zeca e seu Fernando. Todos com lembranças da infância, juventude, vividas nos seus lugares de origem. Pedro é um jovem senhor de 53 anos, casado com dona Zeca. Sempre foi um homem do “mato”, como gosta de afirmar, mas depois que deixou o interior as coisas se tornaram difíceis na cidade, ponderou. Atualmente trabalha com concertos de motores, geradores, entre outros. É um homem alto, magro e de cabelos grisalhos. Em sua rede simples atada no único compartimento de sua casa de alvenaria que ainda não foi concluída, conversou e contou um pouco de sua vida, de sua história. Pouco a pouco foram surgindo as narrativas que ele mesmo diz não ter o hábito de contar, pois as “pessoas não acreditam”. Trata-se de episódios que ocorreram nas suas andanças pelos interiores, quando se dirigia a certos lugares para pescar ou caçar. Tivemos a oportunidade, dias depois, de acompanha-lo em uma dessas viagens de barco. Ele não dispensa certos hábitos e prazeres adquiridos na cidade, pois não deixa um dia sequer de beber uma cerveja e de fumar o seu cigarro. Dona Maria José, ou Zeca (49 anos), como é chamada. Possui estatura baixa, cabelos curtos e é muito falante. A senhora foi criada pela avó. Afirmou que sempre teve uma vida dura no interior, pois trabalhou em atividades Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 17, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias pesadas para se sustentar e ajudar sua mãe-avó no que podia, o respeito e a admiração que nutre por ela surgiam a todo tempo em sua fala. Zeca contou que veio morar na cidade há mais de quinze anos e nunca mais voltou ao interior. O casal abandonou o lugar onde moravam quando perceberam que não tinham mais condições de deixar os filhos sem escola, pelo fato de que no local era oferecido ensino até a quarta série. Ela possui três filhos com seu Pedro. Seu Fernando tem 49 anos. Muito cedo teve que aprender a lutar pela sobrevivência, a viver sozinho, ou melhor, a criar seus seis irmãos menores devido a morte prematura de seus pais. Há 11 anos deixou o interior e veio para a cidade, movido pela necessidade de que seus filhos tivessem mais oportunidades nos estudos, possibilidade que ele não teve. Até hoje seus irmãos mais novos o consideram como um pai, todos lhe respeitam e, acima de tudo, reverenciam a sua coragem. A partir da convivência com os três narradores fica claro para nós que a memória sempre foi uma via fundamental para a conservação de histórias do seu grupo social e, portanto, dos ensinamentos repassados de geração a geração por meio do ato de narrar. A oralidade, nestes termos, desempenha papel importante como expressão sensível de estar com o outro, bem como de partilhar experiências e sentidos no mundo18. O passado como um tempo distante, a partir do momento em que a memória é elaborada/trabalhada (Bosi, 1994) como exercício de rememoração, permite que as lembranças que emergem sejam (re)atualizadas e (re)apresentadas, a fim de serem redesenhadas pelo narrador dinamicamente como experiência do si mesmo – certamente com o Outro, porque como ensinou Halbwachs (1990) a memória é sempre social - conexa à imaginação criadora. 18 Desta forma, “não podemos duvidar que a força de narrar tenha formas antropológicas, e tudo que surge das narrações constituem a maneira de como o homem se coloca no mundo” (JANETT apud ZUMTHOR, 1993, p,52). Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 18, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias Nesse sentido não devemos tratar a memória como um mero desenho de signos externos que emergem de estado psicológicos19, e, sim, como expressão fantástica vinculada ao real que nos permite compreender, mediante as narrativas – entendidas como parte das vivências do ser humano, quando esse entra no plano da intratemporalidade (ROCHA & ECKERT, 2001, p.12) – que indicam a existência de jogos ritmanalíticos entre o passado e o presente num devir que vislumbra os horizontes do futuro, processos sutis reveladores do si-mesmo do narrador a partir das suas relações com o mundo. Por outro lado Rancière (2010) nas suas reflexões sobre a ficção documental diz que não devemos imaginar a memória coletiva apenas como “lembranças de consciência” e, sim, como um montante de signos, vestígios de monumentos que fazem sentido para os sujeitos. Sendo assim, nenhuma imagem poderia surgir sem razão, sem a associação de ideias (BACHELARD apud ROCHA e ECKERT, 2001, p.35) – e coisas -, daí, que na tessitura da narrativa (Ricoeur, 1994) assume formas estéticas e sensíveis que encerram dimensões poéticas20 em relação às paisagens. Dessas vozes emanam imagens, paisagens sensíveis e fantásticas que perduram nas memórias, sendo continuamente (re)construídas novas imagens, pois de acordo com Novaes (2008, p.467), as “imagens (...) favorecem a narrativa (...) Permitem compartilhar a experiência com o real”. Assim, fica evidente que as formas/táticas pelas quais os narradores vão descrevendo os fatos e tecendo a narrativa – especialmente, com um cuidado nos detalhes nos leva, enquanto ouvintes, à construções mentais das imagens narradas. 19 “Reconhecer que os jogos da memória estão atrelados às operações do pensamento humano não nos leva a reduzi-lo a um mero resíduo “material” da consciência, por outro lado, apregoar o lugar da imaginação criadora como elemento formal do pensamento não nos conduz a concluir que tais jogos sejam apenas produtos dos estados psicológicos, desvinculados de suas operações com o real”. (ROCHA & ECKERT, 2001, p. 09) 20 Segundo Paul Zumthor a voz poética assume a função coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia durar no tempo. Além disso, conforme o autor: “As vozes cotidianas dispersam as palavras no leito do tempo, ali esmigalham o real; a voz poética os reúne num instante único - o da performance -, tão cedo desvanecido que se cala; ao menos, produz-se essa maravilha de uma presença fugidia mas total... a voz poética, é ao mesmo tempo, profecia e memória” (Zumthor, 1993, p.139). Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 19, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias Esses construtos mentais de ambos tendem a organizar simbolicamente a realidade dos sujeitos situados nos lugares, conformando sensivelmente as representações e os sentidos das paisagens locais (em termos físicos e fantásticos, por exemplo) a partir da voz, da performance e da memória do narrador em relação com o ouvinte. Nestes termos, imagens diversas acerca de certos lugares praticados (Certeau, 1994) se configuram, assim, como reveladoras das forças simbólico-práticas presentes nas relações entre o mundo mítico (como dimensão do sensível e do mistério) e a realidade dos sujeitos (como agência humana frente a matéria) nas suas paisagens de pertencimento. É neste sentido, por exemplo, que a veracidade das narrativas é acionada pelo narrador (Silveira, 2005), uma vez que se pode perceber na sua fala a preocupação em deixar claro, que certos episódios e fatos contados, existiram e foram vivenciados em determinado lugar ou em algum momento, por ele ou por outrem, quando assevera a veracidade do acontecimento. 5 DAS NARRATIVAS E SUAS PAISAGENS FANTÁSTICAS A partir de agora apresentaremos algumas narrativas dos narradores com os quais dialogamos, para tentarmos mostrar como se colocam frente à situações reais da sua vida, especialmente quando envolvem o fantástico. Dona Zeca nos contou sobre certas memórias relacionadas a sua infância, envolvendo fatos acontecidos com ela, ou outros narrados por sua mãe, principalmente episódios que dizem respeito à figura do boto, quando histórias que envolvem o animal mítico e seres humanos são comuns e temidas: “Ah... eu cheguei a vê boto, foi que no...no...assim em dia de lua nova eles subiam no trapiche, eles vinham subiam no trapiche, batiam na porta de casa, só que a mamãe não abria, que a casa que nós morava tinha segurança naquela época... Era com chave, com tudo... ela sabia que era, porque ela cansou de me chamar a janela pra ver... tava em pé... uma pessoa normal... a única diferença é que o pé era pra trás... Todos com chapéu... igual marinheiro, tudo de branco... e nós Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 20, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias via muito, eu com ela... aí na costa do Samanajós... agora o filho, ele chora igual uma criança... porque também umas quantas vezes nós ia pro mato, eu com ela, na beirada... choro, choro, choro de criança e ela encostava porque ela não tinha medo de nada... Ia roçando e ia, ia, até que achava, passava a mão e jogava dentro da água../ele fica no seco?/fica...ela pari nos tocos do pau... igualzinho gente, tem placenta tem tudo... tem porque eu cansei de ver... pegava e jogava na água e acabava tudinho a confusão e nós ia embora... e isso ela fazia e mamãe nunca foi mulher de.... duvidar... ela acreditava e ela dizia que ele era perigoso, que ele malinava de mulher que ele engravidava mulher... quando eu tava menstruada ela não deixava eu ir na beira por causa de boto, até porque pra eles não atacarem a gente... E dava muito, e nós morava só nos duas... longe de vizinhos... aí ela não deixava, e quando eu menstruava era quando nós se aquietava em casa, porque na época ela não menstruava mais, aí pronto era três dias que a gente não saía.. Tinha uma mulher que ela contava aí do Samanajós... que... a mulher dizia: - Ah se tu presta vem dormir com ela... depois a mulher... o marido saía pra lanternar e o boto vinha dormir com ela feito o marido... e foi uma dessas vezes foi que ela... chegou parece ao ponto de... eles levarem ela. O boto levou ela... aí com uns quatro dias acharam ela morta na beira... foi, a mamãe contava isso.. O marido dela já tinha visto umas quantas vezes ela com ele... Ele dentro da casa com ela né... naquela época não existia esse negócio de cornagem, essas coisas longe de vizinho, era boto mesmo ele sabia o que era e aí ela começou a ficar pateta... esquecendo de tudo né... e foi o que aconteceu com ela, largou filho, largou marido, largou tudo... e... ficou pateta... Ele falava com ela e ela não dava atenção pra ele... como se fosse assim... eu não sei quem tu é, eu não te conheço... e quando foi num dia ela não amanheceu na casa e aí procuraram, procuram. Foi quando já com quatro dias que acharam ela... essa história que a mamãe contava” Fernando contou sobre uma prima sua que ao cair da tarde quando olhava para o Rio Pará, afirmava ter visto algo muito brilhoso, lindo. O objeto reluzia maravilhosamente. A jovem nunca tinha visto algo tão belo assim. Na realidade, tratava-se do boto que mostrava-lhe o objeto. Mais tarde, já encantada, comentou que era a sua mãe que a chamava, por isso ela tinha que acompanhá-la, coincidentemente, nesse período, a moça estava menstruada. O fato teria acontecido na ilha do Caí, que fica no meio do rio à frente da cidade de Curralinho. De acordo com o narrador: Mas antes era assim... E aquilo foi engraçado! Era tarde, era seis horas da tarde, era uma hora dessa assim, eu com um Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 21, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias tio meu que é marido dela, nós tava vindo de igarapé... e ela tava no tempo dela lá né [menstruada] e ela viu aquele boto boiando e o boto mostrou... e ela achou demais lindo aquilo, e ela se embelezou daquele negócio lá!... Ela disse que brilhava igual um ouro... e quando a gente chegou de lá, ela já tava sentindo um negócio e ela disse: - Manoel, bora pra casa do meu sogro que eu tô sentindo um negócio assim, uma coisa assim, sei lá... tá me dando vontade de correr pra água... E, e ele também não brincou né... pegamos ela e levamos... menina quando chegamos lá, cara! Pensa numa situação que nós enfrentamos... Ela começou a fazer força lá, o desejo dela só era a vontade de ir pra água e... queria ver aquilo que ela viu e aí pronto, ela endoidou... Cara, olha ela era uma menina magrinha, assim, como ela é até hoje, mas olha negócio de quatro, cinco homens pra segurar ela era brincadeira. Ninguém segurava ela, eu sempre fui forte do jeito que eu sou, mas a gente pegava nela e era o mesmo que não pegar nada! Um, tinha um amigo meu que era baixinho, que empinou nas últimas que ela pulou na água e ele pegou ela e puxou pra terra, quase consegue levar ela, olha nós fechamos a casa todinha, era grande, tinha uma sede lá, e ela ficava doidinha na casa, correndo, querendo pular pra água. Tu pensa na quantidade de boto que tinha debaixo daquele jirau que tinha lá, que a casa ficava em cima da água, assim... e pensa na quantidade de boto que tinha debaixo daquela casa pra querer, tu sabe, levar ela assim na marra, eles assobiavam, ela assobiava também... Olha ela pulava por cima de uma travessa assim da casa igual um peixe assim de cabeça na tábua, ela saía na tábua só a cabeça e o calcanhar, igual uma cobra assim. Era horrível aquilo, e nós levemos na casa da pajé, e tiraram aquilo, depois de tudo aquilo passado que ela procurou uma filha dela de dois anos que ela tinha na época... a Josiane né... depois de tudo aqueles dias... ela perdeu o sentido... ela mesmo mais embelezada no que ela viu... olha eu vou te falar uma coisa, que o boto é maléfico, o desgraçado... Ele encanta a pessoa... no tempo dos antigos ele era malino, mas agora não, o pessoal até lidam com ele é... o boto agora é praticamente parceiro do homem, é parceiro da gente, é...eu digo que é parceiro, porque o boto só fica rebelde se você mexer com ele... se você irar ele, ele fica brabo, ele fica macho, ele rasga tua malhadeira se tu tiveres pescando, ele pula no teu casco ele vira...” Seu Pedro, por sua vez, nos contou sobre um episódio ocorrido quando era mais jovem, momento em que ajudou um conhecido que se perdera na mata ao ir atrás de um caititu. O rapaz foi encantado, ou ainda, mundiado por algo desconhecido e ficou desaparecido por muito tempo até que o encontraram, sem rumo: Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 22, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias Olha... Eu já vi vários casos desses que as pessoas contam lá, inclusive... lá no Mocajatuba tinha um homem que eu conheci, inclusive, quem fez o caixão dele quando morreu fui eu... eles saíram pra pegar uns peixes lá pras cabeceira do rio, eles eram uns 8 ou 9 homens, quando eles vinham baixando de lá... essa época de verão pra lá, seca né? Aí cara vai só juntar peixe nos poços, dá muito, nós fazia muito isso lá, aí...o Chiquinho saiu, aí nesse dia que eles vieram de lá eles estavam pegando uns peixes, eles vem vindo de lá, Era umas quatro horas da tarde. No que eles vão andando na beira do caminho, na vista dele, ele enxergou um caititu andando - eles já vinham voltando né! Que a gente subia no rio aí, deixava o casco até onde dava a maré, de lá a gente andava pra chegar por terra – então, eles vinham até chegar no casco ele enxergou um caititu, passou um caititu na frente dele... e ele arriou o paneiro com o peixe que ele trazia e saiu atrás do caititu pra matar, pra trazer né, pra matar e pra comer né. Nessa saída que ele saiu pra lá, querendo, ele quis voltar, o caititu sai andando, ele olhava o caititu saía andando, e enxergava o caititu ele indo atrás pra querer atirar, o caititu sumia, o caititu sumia... quando ele se espantou que ele quis voltar... não acertou mais, não acertou a voltar mais, ele passou dezesseis dias perdido, no mato, e ele conhecia a área, aí ele... quando os cara chegaram no casco que deram por falta dele, os caras voltaram atrás dele. Os caras atiravam e ele não escutava, eles gritavam, ele também não escutava, ele ficou paranóio, ficou paranóio, e ficou andando, dormiu no mato... Eu sei que ele levou dezesseis dias, rodando, rodando, rodando, quando completou dezesseis dias ele varou nas cabeceira de um rio chamado Curuanã, que entra aqui na boca de Oeiras, do rio de Oeiras. Ele chegou na beira desse rio pra lá, mas é perto minha filha... é perto... de lá de onde ele se perdeu pra varar pro Curuanã direto, assim, tem caminho que vara, dá umas duas horas de pé pra lá, e ele levou dezesseis dias rodando, ele fez, ele fazia tapiri na boca do campo do Arcênio lá, ele fez uns dois tapiris, aonde anoitecia ele quebrava umas folhas e se aquietava lá de baixo né! E o pessoal achavam os tapiris dele mas ele não conseguiam encontrar, não conseguiam não, aí ele nesse dia que ele varou nesse rio lá, no Parnaúba, vinha um casco, aí todo mundo já sabia, só que já tinham dado ele por morto ninguém mais acreditava que ele tava vivo, aí vinha um cidadão baixando na beira do igarapé lá, ele estava sentado na beira no igarapé, aí o cara embarcou ele no casco levou pra casa dele, de lá rodou e foi deixar ele lá na casa dele no Mocajatuba, viveu ele não morreu, foi pro hospital, cuidaram dele, aplicar soro essas coisas... quer dizer que esse é um dos casos que ele foi sei lá mundiado por um bicho né? Porque na verdade o caititu que ele enxergou não era um caititu, era uma assombração do mato, porque se fosse caititu não fazia isso com ele, ele tinha matado, né? Então, mesmo depois dessa perdida dele, esse Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 23, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias homem levou o que... uns 15 anos vivo ou mais, e o caixão desse homem fui quem fez.. Perguntamos se ele lembrava das histórias que sua mãe lhe contava. Lembrou da única história que a sua mãe sempre narrava sobre a existência de uma cobra que nascera na sua família. (...) contava às vezes alguma coisa, mas a gente era moleque e não dava atenção pra muita coisa né... a gente ainda não ligava muito pra esse tipo de coisa, então, eu não tenho muito esses tipos de histórias da mamãe, a única coisa que eu ouvia que ela sempre contava, ela sempre relatava era... que... de um negócio de uma cobra encantada que tinha lá no Tucupi, mas que era... era... a irmã dela, por que nasceu enrolada na tia Nadir, a minha vó, que era a mãe da mamãe teve uma... quando ela teve a tia Nadir no parto dela veio uma cobra envolta nela, na cintura da neném, nasceu a cobra junto com ela, ela veio enrolada aqui [mostra a cintura] e naquele tempo, como os antigos, eles, eles tinham uma visão diferente de hoje. As parteiras, que naquele tempo não tinha médico, eram as parteiras, as benzedeiras, os curadores, né, a parteira nasceu vive junto com a criança, a parteira batizou e jogou na água e a cobra simplesmente nadou e sumiu... E essa história a mamãe sempre contava que essa cobra de vez em quando, depois que um negócio de dois três anos eles viam, ela estava encostada no miritizeiro lá no porto, sempre ela estava por lá, de vez em quando eles vinham lá, ela estava boiada por lá, encostava, vinha... às vezes subia... botava a cabecinha em cima do miritizeiro... Foi, foi ,foi, e... até um dia que ela sumiu, não viram mais, então, é uma das histórias que se dizem que tem cobra encantada, essa é uma delas né?... E aconteceu justamente na nossa família, na verdade ela vinha a ser a irmã da minha mãe, porque a menina que ela nasceu era mais velha que a mamãe, mas olha, teve o tio Dedir, Mariquinha e tia Nadir - da terceira filha que aconteceu – e, de lá pra cá teve, tio Ormando, mamãe, Orlando e Raimundo, na terceira filha... depois que ela foi... tem umas histórias de cobra que eu ouvi a cobra sempre pede para alguém a desencantar, mas essa nunca fez nada, nunca pediu pra ninguém, nunca falou nada... Sempre as pessoas viam ela por lá, sempre a própria minha avó de vez em quando os irmãos mais velhos viam ela por lá, boiada lá pelo porto, no lado do miritizeiro, mas também não mordia ninguém, não falava com ninguém, foi, foi, foi, foi, depois ela sumiu, desapareceu, depois sumiu, não se sabe o que aconteceu com ela, não se sabe se cresceu, não sabem se morreu, não sei, só sei dizer que... então, mas se a gente for relatar isso para as pessoas, sair falando, os caras vão dizer que é uma baita de uma mentira, é assim que fazem é assim que acontece... então era a única coisa que a mamãe ela Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 24, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias sempre falava contava isso pra gente, outras coisas ela não comentava, não assim que eu me lembre, né... Um olhar mais detido sobre as três narrativas permite-nos perceber as maneiras pelas quais os contadores se colocam no enredo, como agentes – pois teria acontecido com eles - ou como alguém que narra episódios ocorridos com outras pessoas. Nestes casos, o narrador não duvida dos acontecimentos, pois os mistérios do mundo vibram nas coisas e nos viventes, nas suas trajetórias e nas dos outros. Trata-se de crer nas sutilezas do mundo amazônico, presenciando, ou não, os episódios estranhos que ocorrem nos lugares praticados. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo com as narrativas apresentadas podemos perceber como os sujeitos se colocam nas paisagens que os cercam e com as quais interagem em termos simbólico-práticos, tendo, por isso, que lidar com as experiências misteriosas e sutis - uma realidade vibrante e desestabilizadora vivida no cotidiano, que exige agências – configurando, complexa, a potência do imaginário como dimensão místico-aurática das paisagens amazônicas, onde os mitos se apresentam como hierofanias. As pessoas ao praticarem os lugares, literalmente transformam a natureza em cultura constituindo paisagens e, assim, precisam negociar com a sobre-natureza, pois a fantástica que vibra nos mistérios que povoam esse mundo sutil constituem as verdades do Outro narradas por sua voz, representadas na mulher menstruada atraída pelo objeto que reluz igual a ouro e, por isso, seduzida pelo boto; na figura do animal que simboliza o guardião da floresta, que mundia o homem por alguma falta grave que cometeu e, por fim, a cobra que nasce do ventre de uma mulher e recebe o batismo cristão para logo depois ser lançada nas águas turvas do rio. Cotidiano comum e estranho neste mundo amazônico, ambíguo e sensível na sua força imaginária, no seu existir aos olhos que o contemplam pela janela enquanto o rio passa, como se sabe, sem nunca ser o mesmo. Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 25, jan. /jul. 2015 Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias RESUMÉ Cet article tend à comprendre le quotidien des habitants de l’ile de Marajo, qui habitent sur les affluents situés aux marges du fleuve Pará, dans la municipalité de Curralinho. L’importance est mise sur les récits - et la mytho-poétique qui en émane - mélangées aux expériences de ses habitants avec le milieu aquatique et les paysages dans lesquels ils sont insérés. Ainsi, à partir de leur vécu dans ce contexte, les narrateurs évoquent des images de créatures fantastiques qui peuplent l’imaginaire local, tel que les botos, la « mère » de la forêt, et le serpent enchanté, qui émergent mystérieusement pour animer les paysages sensibles de Marajó. Mots-clés: Marajó, récits, paysages, êtres fantastiques, eau REFERÊNCIAS BOSI. Ecléa. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CERTEAU, Michel de. 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