História recente

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História recente
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Temas e problemas da história do presente
Rui Bebiano
Esta intervenção segue um roteiro no qual cada paragem é representada por uma palavra que
invoca alguns problemas. Enunciam-se desta forma dúvidas e embaraços que podem ser
levantados na definição dos conteúdos, dos processos e dos trajectos de uma história
preocupada com o tempo mais próximo. Mas procura-se também avançar certezas razoáveis que
a experiência pode desde já ditar.
Proponho, pois, cinco palavras para este breve exercício de cartografia . São elas: identidade ,
memória, complexidade , velocidade e cidadania.
1. Identidade
O primeiro problema prende-se com a definição desta área do conhecimento. A expressão
“história imediata” que se lhe associa, relaciona-se com o artigo homónimo de Jean Lacoutre,
publicado em 1978 na colectânea-dicionário La Nouvelle Histoire. Uma obra organizada por
Jacques Le Goff, que foi bastante importante para a renovação da história e que rapidamente se
tornou canónica 1 . O autor, jornalista do Le Monde e do Nouvel Observateur, havia criado nas
edições Seuil uma colecção chamada precisamente “L’histoire immédiate”. Ensinando no
Institut des Hautes Études Politiques de Paris e na Universidade de Vincennes, levantava
questões que, dentro do universo académico da época, não estavam ainda no momento certo
para seguirem o seu caminho. Nessa altura a historiografia europeia era dominada, fora dos
círculos anglo-saxónicos, por uma escola , a dos Annalles, que havia exorcizado o
“acontecimento”, centrando o seu método na abordagem quase exclusiva do documento escrito
e arquivado. Uma proposta como a de Lacoutre – avançada no sentido de associar a prática do
historiador à actividade do jornalista, unida ao grande interesse por um audiovisual apenas
emergente e por um “numérico” ao qual muito poucos atribuíam um mínimo de importância –
não podia deixar de parecer herética. Não bastava sequer, para defender, como Lacoutre fez,
“uma pesquisa centrada no vivo”, a invocação da tradição historiográfica anterior ao século
XVIII, uma vez que a proposta programática que avançava, de assunção da crónica de guerra
como modelo da história imediata, invocava ainda um outro demónio apenas recentemente
recuperado das profundezas do Abismo: o qualificativo de “história-batalha” aplicado, como
um estigma, a toda a prática historiográfica que tenha a guerra e os militares por objecto. Mas
Lacoutre foi ainda mais longe, sublinhando o papel importante da subjectividade – apenas
1
Jean Lacoutre, “L’histoire immédiate”, La Nouvelle Histoire, dir. de Jacque Le Goff, Paris, CEPL, 1978,
pp. 270-293.
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temperada pela afixação clara das escolhas e orientações – no trabalho do “imediatista”. Terá
sido sobretudo isto que matou a possibilidade de integração da “história imediata” numa área do
conhecimento que perseguia então a quimera da completa objectividade.
Por sua vez, o uso da expressão “história do tempo presente”, ou mais simplesmente “história
do presente”, levanta também problemas. Num livro com a mesma designação, Timothy Garton
Ash refere-se à forma como, num dado momento, a expressão parecia ter gerado uma espécie de
casamento “contra-natura” entre história e jornalismo. Cito:
“A fronteira entre jornalismo e história (...) é a menos marcada, mas também a mais tensa e
disputada. Posso assegurá-lo, porque vivi em ambos os lados e no meio-termo. No jornalismo,
descrever uma peça como «bastante académica» – significando aborrecida, de jargão pesado,
ilegível – é o caminho mais seguro para a prateleira. Na academia, considera-se um
comentário mordaz dizer que o trabalho de alguém é «jornalístico», pois tal significa
superficial, espirituoso e em regra não muito sério. «História contemporânea?», desdenhou um
idoso dignitário, quando voltei para a minha faculdade de Oxford vindo de um emprego no
jornalismo (...). «Quer você dizer jornalismo com notas de rodapé?»”2
Todavia, a expressão entrou nos círculos profissionais da história e actualmente cadeiras,
seminários, cursos ou colóquios de “história do presente” multiplicam-se um pouco por toda a
parte. Deve porém considerar-se, como sugeriu Robert Frank, director do Institut d’Histoire du
Temps Présent, criado já em 1978, “a história do tempo presente não é a história imediata, pois
ela não se interessa só pela espuma da actualidade, inscrevendo-se antes nas profundezas e na
espessura do tempo histórico”3 . Nesta asserção, sem dúvida menos controversa do que a
anterior, este campo da história procede acima de tudo a uma arqueologia do presente,
aproximando o conhecimento daquilo que se passa à nossa frente dos seus fundamentos mais ou
menos profundos. Desta maneira, a “história do presente” valoriza necessariamente a história
que situa o seu objecto em outros períodos, sem a qual carece de importantes instrumentos de
análise. É este o processo a que assistimos há pouco tempo, quando, no contexto dos atentados
terroristas contra os Estados Unidos e da guerra aberta no Afeganistão, se procurou entender a
fundamentação histórica desse “choque de civilizações” sugerido pelo tão abusivamente citado
Samuel Huntington, e se iniciou, na tentativa de obter respostas para um problema da
actualidade, a corrida à colaboração de especialistas em domín ios da história religiosa, política,
militar, cultural, etc., cujos trabalhos se encontravam centrados em etapas cronológicas mais
recuadas.
2
Timothy Garton Ash, História do Presente, Lisboa, Editorial Notícias, 2001, p.17.
Robert Frank, prefácio a Écrire l’histoire du temps présent, Paris, Institut d’Histoire du Temps Présent,
1993, p. 16.
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3
Mas claro que a “história do tempo presente” não é só isto. A escolha dos seus objectos supõe
um debate sobre o próprio conceito de época e põe de hoje em dia em causa a validade da forma
como se concebe aquilo que, de forma canónica, continuamos a designar como “época
contemporânea”, ou “idade contemporânea”.
Não é possível debater aqui o conceito de contemporaneidade e o modo como a sua definição
força a uma constante reapreciação das identidades históricas. Admita-se que o marco milenar
que tem gravado na pedra o número “1789” conserva o mesmo valor que possuía há cinquenta
anos atrás – coisa da qual pessoalmente duvido – dentro do nosso universo culturalmente plural
e cada vez mais globalizado, e que é ainda a herança fundamental da Revolução Francesa que
confere uma unidade a estes dois últimos séculos. Admita-se que sim. Mas não podemos deixar
de, por exemplo, reconhecer a definição de uma nova construção identitária a partir do final da
Segunda Guerra Mundial. É pois neste mundo nascido de um banho de sangue sem precedentes,
construído sobre os escombros de um continente arrasado e num cenário de afirmação imperial
dos dois grandes blocos liderados pelos Estados Unidos e pela União Soviética, que os
historiadores do presente em regra situam a unidade do tempo dentro do qual integram os seus
objectos de estudo. A apreciação de sugestões como a de Eric Hobsbawm, que fala de um “curto
século XX” encerrado em 1991 com o fim da União Soviética 4 , pode ainda levar-nos, dentro de
algum tempo, ou de pouco tempo, a uma nova reconsideração da dimensão porosa do “tempo
presente”.
Porém, a procura de uma identidade atribuível a este campo de estudos depara-se com uma
dificuldade que, até há pouco tempo, não parecia preocupar ninguém. Tendo prevalecido
durante muito tempo a pretensão de, tanto quanto possível, afastar o historiador do seu objecto
de análise, de forma a tornar esta supostamente menos permeável aos ímpetos da subjectividade,
construiu-se artificialmente – na falta daquele “mar de fogo” que nos tempos anteriores às
navegações ibéricas se acreditou separar equatorialmente os dois hemisférios – o chamado
“deserto dos trinta anos”. Este era um espaço árido, dentro do qual a história se vivia na
ausência do historiador, protegido dessa maneira – e, para mais com um excelente álibi: o de
que não podia legalmente aceder a arquivos que ainda não se encontravam mortos – das agruras
da observação da sua própria realidade. Adiante tentarei mostrar como, afinal, este “deserto” se
encontra hoje densamente povoado.
2. Memória
A respeito da dimensão da memória vou começar por contar um episódio que já referi em
público para tentar mostrar a importância da história do presente.
4
Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos. História breve do século XX, Lisboa, Presença, 1996.
4
Os jornais traziam há algum tempo uma notícia que fazia ressoar uma das actuais obsessões da
comunicação social: "Daniel Cohn-Bendit acusado de pedofilia", anunciava o cabeçalho. Achei
estranho, conhecendo como conhecia o trajecto do antigo líder estudantil do Maio de 68 e actual
deputado europeu pelos verdes alemães, mas nesta vida tudo é possível. Fui depois percebendo
outros contornos do caso. Alguém – por acaso, ironia ou drama, uma filha de Ulrike Meinhof, a
antiga guerrilheira enforcada na prisão, que até havia encontrado já uma fotografia de Joschka
Fischer, ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, a bater num polícia – tinha ido buscar meia
dúzia de linhas que o irrequieto activista escrevera há trinta anos, para leitores de há trinta anos,
no contexto de uma revolução cultural e sexual com trinta anos, e que, transpostas para o tempo
presente, o denunciavam como ser perverso, merecedor, no mínimo, do legítimo opróbrio de
vizinhos e eleitores. Mas mais inquietante do que isso era a ignorância, evidenciada por
inúmeros jornalistas e comentadores, sobre o sentido que tinha, por volta de 1972, a afirmação
de uma pedagogia infantil que dava uma grande importância – era esse o sentido das palavras de
Cohn-Bendit – ao conhecimento directo, por parte das crianças, dos “mistérios” do corpo e da
sexualidade. Aquele tempo não constava já da memória dessas pessoas, mas, ao que parece,
ainda ninguém lhes havia revelado a sua história.
O conhecimento histórico é por vezes concebido – e não me vou aqui afastar deste sentido –
como processo definido pela interacção da memória colectiva com o trabalho de escrita da
história. Esta acepção produz uma relação entre os conceitos de história e de memória que me
parece especialmente interessante no domínio do estudo da história do presente, forçando-nos a
rever algumas ideias. O velho debate história-memória – estruturando um par dicotómico
composto, de um lado, pelo testemunho flutuante dos vivos , e do outro, pela prova irrefutável
dos arquivos – encontra-se, nesse contexto, em vias de pacificação. Paul Ricouer procura
explicar-nos as razões desta transformação: ela está acontecer, afirma ele, porque “nos
inclinamos cada vez menos a valorizar a cientificidade da história“, e também porque “estamos
em vias de considerar de uma forma crescentemente crítica a própria noção de memória ”5 . A
psicologia, a psicanálise, a sociologia , as neurociências, contribuíram para este processo
acentuando-lhe a complexidade, envolvendo na sua constituição aspectos como a relação entre
memória e interpretação, a integração no núcleo da memória de informação passada de geração
em geração ou obtida por via genética (descobriu-se, por exemplo, que invisuais congénitos são
capazes de desenhar no papel casas, árvores ou caminhos), a incorporação da aprendizagem da
história na própria memória, etc. Nesta direcção, faz cada vez menos sentido levantar barreiras
físicas e temporais entre “aquilo” que é memória e “aquilo” que é história: são, de facto,
entidades parentais mas com um comportamento muito mais incestuoso do que aquele que
vínhamos supondo.
5
Paul Ricoeur, “Remarques d’un philosophe”, Écrire l’histoire du temps présent, Op. cit., pp. 35-41.
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Se regressarmos à forma mais simples de separar história e memória, o presente do qual aqui
falo – no fundo, nada mais do que um passado menos passado – é ainda assim, ao mesmo
tempo, ele próprio memória, devido à sua inscrição natural na lembrança individual e colectiva,
mas também história, pelo rastro que vai deixando num volume crescente de documentos que
podemos conhecer, inventariar, relacionar e interpretar.
Por outro lado, o historiador do tempo presente não isola os seus objectos nem aborda apenas o
instante. Como qualquer outro historiador, ele lida com o tempo e inscreve a operação
historiográfica na duração. Mas, ao mesmo tempo, procede a constantes imobilizações do
assunto, ou do complexo, que observa. O presente do qual se ocupa não é um mero lugar de
passagem entre um antes e um depois, mas sim, tal qual o concebia Hannah Arendt, uma
“lacuna” entre passado e futuro6 ; não é um intervalo, mas sim um campo de forças gerado pela
iniciativa do pensamento humano. Uma noção que nos permite entender melhor aquilo que o
presente pode comportar de descontinuidade, de ruptura, de ponte entre o passado e o futuro.
Inscrito no tempo como descontinuidade, o presente é então trabalhado pelo historiador por
meio de um esforço para apreender a sua presença como ausência, tal como o fazem, em relação
aos seus objectos, os físicos ou os sociólogos: tocando-os como corpos que possuem a sua
dinâmica própria , ainda que, como elementos do universo actual, estejam em interacção
connosco.
Dou apenas um exemplo, para que tudo isto não pareça demasiado vago. Um historiador que se
interesse pelo recente conflito na região da ex-Jugoslávia – estou a pensar, como exemplo, em
alguns trabalhos de Carlos Santos Pereira, historiador e jornalista 7 – precisa desenvolver um
esforço de pesquisa e de interpretação no sentido de balizar obrigatoriamente o período e os
fenómenos relacionados com aquela região dos Balcãs que constituem o corpo fundamental do
seu trabalho, independentemente do facto destes possuírem uma ligação directa com uma
multiplicidade de acontecimentos ainda em curso.
3. Complexidade
A história do presente é tão antiga como a própria história , mas aquela que hoje se faz é sem
dúvida muito mais complexa do que a primeira. Aquilo que escreveram Heródoto, Tucídides,
Políbio ou Tácito relacionava-se com assuntos vividos pelos autores ou que os não antecediam
em muitas gerações, e possuía como fonte praticamente exclusiva o testemunho oral. A mesma
coisa podemos dizer dos escritos de Gregório de Tours ou de Fernão Lopes. A maior parte da
6
Cf. François Dosse, L’Empire du sens. L’humanisation des sciences humaines, Paris, La Découverte,
1997, pp. 378-379.
7
Com dois livros publicados sobre o assunto: Da Jugoslávia à Jugoslávia, de 1995, e Os Novos Muros da
Europa. A Expansão da NATO e as Oportunidades Perdidas do Pós-Guerra Fria, de 2001.
6
historiografia posterior foi no entanto preterindo, de forma crescente, ambas as tendências,
ocupando-se tendencialmente, sobretudo a partir do século XVIII, de períodos mais distantes, e
recorrendo principalmente, ou exclusivamente, ao documento escrito.
Sob estes aspectos, a diferença imposta pela actual “história do presente” é que, por um lado,
regressa a uma dimensão cronológica bastante mais próxima do seu autor, mas por outro
diversifica, como nunca antes acontecera, as fontes à quais recorre.
Os suportes explodiram, como todos sabemos: o manuscrito e o impresso permanecem,
naturalmente, assim como o papel do inquérito oral, mas adiciona-se agora, para além da
fotografia, do cinema e dos registos sonoros, já com alguma tradição, também o vídeo, o CD, o
CD-ROM, o DVD, o DVD-ROM, a Internet. E mesmo dentro do impresso os tipos sucedem-se:
o folheto, o cartaz, o postal ilustrado, a banda desenhada, o selo de correio, a capa de disco, a
publicidade (esta também em som, em imagem ou tridimensional). Depois existe ainda a
pluralidade de áreas cuja compreensão se mostra agora indispensável: a moda, o design, a
música de consumo, a imprensa light, os comportamentos das subculturas e das minorias. Mas
mais ainda do que a variedade, é a quantidade que se impõe: ao número de edições, ao volume
de títulos, à sucessão de imagens fixas ou animadas, juntam-se novas capacidades de produção,
de reprodução, de armazenamento, de catalogação e de permuta, possibilitadas todas elas pela
revolucionária tecnologia do digital.
E aqui regresso, como ficou prometido, ao problema do “deserto dos trinta anos”. O historiador
do presente – que não pode deixar de respeitar as limitações legais existentes em relação à
manipulação dos arquivos e a privacidade expressamente desejada pelos seus actores – não pode
limitar-se aos arquivos mortos e às bibliotecas tradicionais – por muito que estas lhe continuem
a ser, o que de facto se passa, de uma enorme e imprescindível utilidade – precisa
desmultiplicar-se. Desde logo estar atento aquilo que acontece na fronteira da sua área com os
múltiplos saberes limítrofes. Mas também reparar no mundo do espectáculo, ver regularmente
televisão e possuir um arquivo de vídeo, ler muita da imprensa periódica actual, ter contacto
com os arquivos dos jornais, prestar atenção a inquéritos, estatísticas e sondagens, aceder
regularmente à Internet, frequentar exposições de fotografia, conversar, sempre que necessário,
com políticos, jornalistas, escritores, músicos, religiosos, desportistas, pessoas comuns,
incluindo outros historiadores, capazes de lhe darem aquele “suplemento de realidade” do qual
precisa para ter uma visão mais actualizada, mais dinâmica e mais completa da sua área de
interesses.
Uma situação que desde logo lhe impõe novas tarefas, forçando-o também a produzir desde já
nexos interpretativos e a contribuir, num primeiro nível de conhecimento, para a sistematização
da corrente de informação disponível, tarefa sem a qual, no futuro, será completamente
7
impossível – diante da crescente avalancha de dados, da sua multiplicidade e do seu babélico
entrecruzar – continuar a produção histórica. Pelo menos tal qual a conhecemos. Sob esta
perspectiva, pode dizer-se que sem história do presente não existirá história do futuro. E que o
historiador do presente será também o cronista do futuro.
Claro que esta proximidade do historiador em relação aquele que é o seu objecto de estudo
coloca o problema da “distância”, tão caro a muitos historiadores. Não discutindo aqui a
possibilidade de alguma vez ter existido ou poder existir um discurso histórico “distanciado”, é
preciso reconhecer a existência de uma “memória fria”, mediada pelo tempo e pela morte dos
intervenientes directos (ainda que os documentos legados tenham sido produzidos “no calor” do
seu próprio tempo), e de uma “memória quente”, passional, vivida directa ou indirectamente por
aqueles que dela partilham. Isto coloca, é verdade, problemas complexos, que se prendem com a
inevitável parcialidade que esta “memória quente” contém. Mas, na “história do presente”, esta
pode e deve ser temperada pela pluralidade e pela quantidade de fontes disponíveis,
incomensuravelmente maiores do que para os períodos em relação aos quais já não é possível
contar senão com o número limitado de documentos escritos que o tempo poupou.
O exemplo que posso dar é o de um estudo que terminei há pouco sobre a esquerda portuguesa e
a oposição à guerra colonial, no qual pude temperar o intenso calor que ainda se sente em
algumas lembranças pessoais com um volume imenso e diversificado de fontes materiais
disponíveis. Um trabalho que jamais poderia ter sido escrito daqui por trinta anos, em 2031,
pois grande parte destas fontes te r-se-iam entretanto perdido e a perspectiva seria outra.
Por outro lado, a complexidade inerente ao desenvolvimento desta modalidade do conhecimento
histórico passa também pelo comércio, intenso e mantido nos diversos sentidos – sem
parasitismo mas como processo de construção partilhada de novos objectos e de mais
complexas abordagens disciplinares – com saberes possuidores de uma maior experiência na
abordagem do tempo presente, como a sociologia, o jornalismo, as ciências da comunicação, os
estudos culturais, a antropologia social, a psicologia social, a etnografia, a informática aplicada,
e diversos outros campos de actividade e do conhecimento. A “história do presente”, mais ainda
do que outras áreas do conhecimento histórico, precisa unir-se a outros saberes e disciplinas,
sem os quais perde um grande número das fontes disponíveis e despreza instrumentos de análise
que lhe são imprescindíveis.
Um outro exemplo: a abordagem do desenvolvimento de subculturas de juventude em Portugal
a partir da década de 60 apenas é possível através de um exame das condições sociológicas,
económicas e jurídicas que – em complemento dos múltiplos aspectos de natureza cultural e
política – permitiram a dada altura uma profunda modificação do próprio conceito de juventude
e a criação de uma crescente autonomia dos jovens em relação aos seus agregados familiares e
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comunitários de origem. Como se compreende, outras disciplinas dispõem já , para este período,
de instrumentos de análise testados aos quais o historiador precisa obrigatoriamente de recorrer,
num trabalho que implica a combinação híbrida e criativa de diferentes metodologias.
4. Velocidade
Um dos problemas que entretanto tem vindo a ser colocado em relação à existência e às
possibilidades da “história do presente”, prende-se com a velocidade da percepção do tempo.
Por um lado porque a aceleração dos ritmos de mudança e a quantidade de informação com a
qual somos diariamente bombardeados tem levado a maioria das pessoas – no esforço de gestão
de capacidade do seu próprio cérebro – a remeter para o esquecimento, ou para backups que
repousam em discos duros e disquetes zip , dados relativamente recentes. Mas até pessoas
jovens, com uma capacidade de registo mnemónico muito superior à de quem já entrou na meiaidade, reconhecem com frequência que não são capazes de guardar na sua recordação
acontecimentos marcantes da história recente ou até da sua vida pessoal. Há menos de um ano
fiz numa aula um pequeno teste neste sentido e não só nenhuma dos alunos presentes foi capaz
de se lembrar do ano em que aconteceu a guerra do Golfo (a resposta certa é 1991), com só ao
fim de alguns instantes de tentativa e erro alguém afirmou com clareza qual o sufixo numérico
da nossa tão badalada Exposição Mundial (refiro-me, evidentemente, à Expo-98). Esta amnésia ,
de contornos ainda pouco conhecidos nas suas origens e previsibilidade de consequências, não
pode deixar de ter uma relação directa com o bombardeamento informativo e a permanente
deslocação da nossa atenção de um acontecimento para outro acontecimento, de um crime de
Fortaleza para uma derrocada do World Trade Center, transformando o filme do nosso passado
recente num videoclip da MTV ou num alucinante zapping pelas dezenas de canais da televisão
por cabo.
Trata-se, no fundo, de um clima favorável a esse avanço do esquecimento da qual nos fala
Ricoeur na sua última obra: “O esquecimento permanece, de facto, como a inquietante ameaça
que se perfila por detrás da fenomenologia da memória e da epistemologia da história ”8 . Por
acaso simpatizo muito com uma afirmação de Marc Augé, de acordo com a qual “é preciso
saber esquecer para saborear o gosto do presente, do instante e da espera”9 , mas no domínio
da prática historiográfica, a situação actual, ampliando ad nauseam esse processo de
apagamento, revela -se preocupante. Ao mesmo tempo, porém, impõe desafios. Em livro
recente, cujo título é uma pergunta – L’Histoire va-t-elle plus vite? – Jean-Noël Jeanneney
aborda precisamente a nova realidade informativa, para concluir , por um lado, que o carácter
actualmente impositivo do “instante fugitivo”, como chama ao fluir constantemente acelerado
8
9
Paul Ricoeur, La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paris, Seuil, 2000, p. 536.
Marc Augé, As formas do esquecimento, Almada, Íman, 2001, p. 7.
9
do acontecimento, induz uma vertigem que afecta necessariamente a própria compreensão da
realidade, mas, por outro lado, mostra que é justamente a história uma das áreas do
conhecimento que se encontra em condições de dominar essa vertigem, introduzindo nexos
explicativos que podem ser criados, como indica, “à luz das comparações e na corrente longa
que as produziu e as explica” 10 . A história funciona assim como um instrumento destinado a
integrar a inevitável velocidade dos acontecimentos num andamento mais lento, reflectido e
inteligível.
5. Cidadania
Quando começava a escrever esta comunicação, fui confrontado com uma notícia dramática,
daquelas com as quais os telejornais gostam de abrir a emissão, talvez com o inconfessável
desejo de nos estragarem a hora de jantar. Começava assim: “Seis idosos morreram hoje em
incêndio ocorrido num lar de Cascais”. Depois de revelar as circunstâncias e, como se tornou
habitual, alguns pormenores macabros do trágico acidente, o jornalista de serviço entrevistou
uma pessoa que revelou ter o fogo começado, cito, “na cama do senhor doutor, que gostava
muito de ler”. E o nome do infeliz senhor foi mencionado, aparecendo aos nossos olhos como
se de um “velhinho qualquer” se tratasse. Ora a pessoa da qual se falava na peça era nem mais
nem menos do que Manuel João da Palma Carlos, notável advogado e corajoso defensor de
presos políticos, ao longo de décadas oposicionista destacado do regime instalado a partir do 28
de Maio de 1926, preso político e embaixador, por acaso irmão também de um outro Palma
Carlos, de nome Adelino, que foi primeiro-ministro de Portugal em 1974. E, durante dias, em
relação a esta notícia, que os jornais repetiram, não parece ter existido alguém nas chefias de
redacção com capacidade de lembrança para reconhecer no infeliz senhor, tratado como um
anónimo velhote, uma figura notável do século XX português.
É esta espécie de amnésia , injusta e perigosa, que a história do tempo presente pode também
preencher, pois, ao que se vê, já nem mesmo os “feitos e obras valerosas” servem para da lei da
morte libertar uns tantos. Não só inscrevendo nas lembranças que organiza os acontecimentos,
os actores, os processos que de outro modo seriam rapidamente esquecidos, mas também
municiando políticos, intelectuais, jornalistas, estudantes, cidadãos em geral, para a
compreensão daqueles instantes do passado mais recente que dão um sentido e colocam em
inteligível devir o instante, sempre passageiro, que constantemente vivemos.
Unidades temáticas como as guerras coloniais e as descolonizações, a história do comunismo
após o fim do período estalinista, o processo revolucionário no pós-25 de Abril, a formação de
10
Jean-Noël Jeanneney, L’Histoire va-t-elle plus vite? Variations sur un vertige, Paris, Gallimard, 2001,
p. 141.
10
novas identidades culturais, as migrações iniciadas com o fim da URSS, a evolução das
empresas perante os novos desafios tecnológicos, a autonomização e afirmação das culturas
juvenis, o papel dos grupos activistas na definição das políticas dos governos, os conflitos
internacionais do pós-guerra fria , o processo de construção europeia, e tantos, tantos outros,
podem assim ser apreciados pelos profissionais da história. Se não actuassem desta forma,
desertariam da compreensão de fenómenos que, sob uma perspectiva compreensiva e
interpretativa que é a sua, nenhuma outra disciplina se encontra em condições de tratar.
Regresso a Timothy Garton Ash para relembrar a sua crítica aos historiadores que, recusando
aproximar-se sequer dos tais trinta anos canónicos, por vezes “ainda têm tendência para deixar
esse território a colegas que fizeram nome em temas como as relações internacionais, a ciência
política, os estudos de segurança, os estudos europeus ou os estudos de refugiados”11 . É esse
erro, essa deserção, que temos o dever urgente de evitar.
Desta forma cumpre a “história do presente” a sua condição cidadã, para a qual afinal nasceu na
antiga Grécia . Esteve depois , é verdade, ao serviço dos príncipes, das pátrias, das ideologias, e
continua hoje, tal como acontece com outras formas de conhecimento, a ser manipulada e
corrompida. Mas a sua função primordial permanece intocável: construir leituras do passado de
forma a transmitir aos vivos alguma sabedoria na observação do mundo e a prepará-los para
ocuparem o lugar que lhes pertence.
Novembro de 2001
11
T.Garton Ash, Op. cit., p. 20.