Eisenstein arte e politica

Transcrição

Eisenstein arte e politica
Eisenstein: Política e Arte
Bianca Gonçalves Bueno ([email protected])
Erika Rodrigues de Paula
http://www.cinematografo.com.br
Introdução
Sergei Eisenstein ficou para a história do cinema não como um cineasta
político, mas como o elaborador de obras primas da sétima arte, como Outubro e
O Encouraçado Potemkin, e o criador de uma teoria da montagem cinematográfica
revolucionária. Ele sempre admitiu que as suas obras eram de cunho político e de
propaganda e nunca tentou encobrir isso com sua montagem.
Para que se possa entender sua obra, não se pode deixar de analisar o
contexto histórico e cultural no qual Eisenstein estava inserido. Sua obra é fruto
da Revolução Russa e das vanguardas que com elas vieram. O cinema só se torna
uma arte revolucionária na Rússia quando os jovens tomam o poder e contestam
tudo que os precedeu, desde a política, passando pela sociedade até chegar na
cultura, assim como todos os jovens querem.
O jovem Eisenstein toma partido da revolução e dos movimentos culturais
que a acompanham, mas sem sua base e conhecimentos burgueses, talvez não
tivesse desenvolvido tantas habilidades. Pronto para mudar ele criou o quanto
pode e o quanto permitiram. Apesar de o governo não ser o seu sonho de futuro,
Eisenstein nunca desistiu do ideal socialista e continuou firme até o fim lutando
por ele.
Os filmes de Eisenstein ainda hoje são tidos como elaborados, de
vanguarda e difíceis. Sua obra cinematográfica continua a ter grande
importância, assim como seus estudos sobre cinema e montagem. Ao contrário de
Leni Riefenstahl, ele sempre foi claro em suas propostas políticas e nunca as
negou, fazendo um cinema de cunho político, mas questionador e artístico.
Mais do que uma análise de como pode ser o cinema de propaganda, o
trabalho quer mostra como a propaganda pode ser uma obra de arte.
2
Contexto Histórico
Rússia era uma mistura de etnias, povos e culturas sob um regime
absolutista, semifeudal e pouco se desenvolvia economicamente. As terras
estavam concentradas nas mãos da nobreza, e quase oitenta por cento da
população era rural. No início do século XX, o Partido Social Democrata,
desarticulado pela polícia em 1898, reorganiza-se no exterior tendo Lênin como
principal articulador.
Em 1905, num protesto
pacífico, em são Petersburgo,
mais de mil operários foram
massacrados pela polícia, no
famoso episódio conhecido como
Domingo Sangrento. Também
outros protestos tomam conta das
ruas, e, diante da reação popular,
o czar permite a formação da
Duma (parlamento), mas às
vésperas da I Guerra Mundial as
forças policiais do governo voltam
a agir com violência. O governo de Nicolau II é autocrático e corrupto e o czar é
suspeito de ser simpático aos alemães. O ministério é dominado pela estranha
figura de Grigor Rasputin, um camponês siberiano e ocultista cuja libertinagem e
poder político despertam o ódio da população. Rasputin é assassinado em 1916.
A mobilização de cerca de 13 milhões de soldados na 1ª guerra desfalca os
setores mais produtivos da sociedade. Os gastos com a guerra diminuem os
investimentos em bens de consumo, elevando os preços e provocando inúmeros
conflitos internos. Os soldados russos morrem nas frentes de batalha por falta de
equipamentos, alimentos e vestuário. A fome chega às grandes cidades, onde
também falta carvão no inverno. Em 1916 o país é varrido por greves. A greve dos
operários de Petrogrado mobiliza cerca de 200 mil trabalhadores.
A oposição ao czar Nicolau II é dividida em duas correntes: a liberal
reformista, favorável a um regime parlamentar burguês e
apoiada pela burguesia; e a revolucionária, que compreende
os socialistas-revolucionários e os social-democratas. Os
primeiros são contrários à industrialização da Rússia e
defendem um regime socialista agrário, caracterizado pela
exploração coletiva das terras após o confisco das grandes
propriedades. Os segundos são adeptos das teorias
socialistas de Marx e Engels e se organizam no meio do
proletariado urbano. O segundo congresso do Partido
Operário Social-Democrata, reunido em 1903, divide-se em
duas facções quanto às táticas de tomada do poder, os
mencheviques (minoria) e os bolcheviques (maioria).
3
A irrupção da I Guerra Mundial favoreceu o movimento de contestação ao
regime czarista. Despreparada para a guerra, a na qual entrou ao lado da entente
contra a Alemanha e a Áustria-Hungria, a Rússia viu-se em situação de
dependência com relação aos seus aliados para o equipamento de seu exército. A
situação militar em breve se tornou catastrófica. Desorganizou-se inteiramente a
vida econômica do país. Eclodiram na capital, Petrogrado, greves e manifestações
por pão, contra a autocracia e a guerra.
Em Fevereiro de 1917 as greves tomam
conta das principais cidades russas. A
insatisfação com a guerra e com o colapso do
abastecimento chega ao seu ponto máximo. A
greve da usina metalúrgica de Putilov, com a
participação de 90 mil trabalhadores, recebe o
apoio de organizações femininas e a
insurreição se espalha. A capital é tomada
pelos rebeldes em 25 e 26 de fevereiro: é a
Revolução de Fevereiro. Os revolucionários
recebem apoio de parte do Exército. Em Moscou, tomam o Kremlin, a antiga
fortaleza no centro da cidade e símbolo do poder absolutista dos czares.
Depois da revolução dois poderes disputam o comando do governo: o
Comitê Executivo Provisório da Duma, constituído por liberais e favorável à
negociação com os insurretos; e o Soviete dos Operários e Soldados, eleito a 27 de
fevereiro e formado por socialistas-revolucionários e mencheviques.
O czar Nicolau II comanda a resistência,
mas é abandonado pelos chefes militares e
abdica em favor de seu irmão, o grão-duque
Miguel, que não aceita assumir o poder. A
monarquia está extinta na Rússia. A renúncia
foi assinada no dia 15 de março, e no dia 21, o
czar foi preso, com sua família. Um governo
provisório é instalado de comum acordo entre o
Soviete dos Operários e Soldados e o Comitê
Executivo Provisório da Duma, sob a presidência do príncipe Lvov. A esquerda é
representada na Duma pelo socialista moderado Karenski. Como os líderes
bolcheviques estão presos ou exilados, os operários não estão presentes no
governo. Em conseqüência disto, o poder ficou com o Soviete de Petrogrado.
O governo provisório vai de 17 de março a 15 de maio
de 1917, não consegue debelar a crise interna e ainda insiste
na continuação da guerra contra a Alemanha. A liderança de
Lênin cresce. O líder bolchevista prega a saída da Rússia da
guerra, o fortalecimento dos sovietes e o confisco das grandes
propriedades rurais, com a distribuição de terra aos
camponeses. Em 4 de maio, o governo é vítima de suas
próprias contradições e se demite. O príncipe Lvov se mantém
à frente de um novo governo de coalizão, formado por
mencheviques e socialistas-revolucionários e com Kerenski à
4
testa do Ministério da Guerra. A pressão da população leva ao poder um governo
majoritariamente socialista moderado, sob a chefia de Kerenski. Lvov deixa o
poder e Lênin busca asilo na Finlândia.
Em outubro um levante popular aniquila um
golpe de direita desfechado por militares contrarevolucionários de Petrogrado. Os cossacos,
soldados recrutados entre as populações nômades
ou semi-sedentárias e que fazem parte de
regimentos especiais da cavalaria russa, passam
para o lado dos revolucionários e a esquerda ganha
força entre os trabalhadores. O governo Kerenski
não consegue se manter, isolado das principais
facções em luta. Da Finlândia, Lênin comanda o
avanço da revolução. Os bolcheviques ingressam em massa nos sovietes e
Trotsky é eleito presidente do soviete de Petrogrado. Lênin entra
clandestinamente na Rússia e leva o comando bolchevique a encampar a idéia de
revolução. A resistência de Kerenski, em Moscou, é debelada e no dia 25 de
outubro os bolcheviques tomam o Palácio de Inverno do czar. Kerenski foge da
Rússia. Os bolcheviques tomam o poder em 7 de novembro de 1917. É criado um
Conselho dos Comissários do Povo, presidido por Lênin, Trótsky assume o
Ministério dos Negócios Estrangeiros e Stálin o das Nacionalidades (Interior). A
Revolução Russa é vitoriosa e instala o primeiro Estado socialista do mundo.
Em 1918, após a assinatura da paz com a
Alemanha, a Rússia vê-se tomada por uma sangrenta
guerra civil. Capitalistas e proprietários de terras,
auxiliados por generais czaristas, políticos liberais, socialrevolucionários, mencheviques e setores do campesinato,
tentam retomar o poder dos bolcheviques. Os contrarevolucionários são chamados de Brancos e os
bolcheviques de Vermelhos. Trótsky apela ao povo russo,
tanto em nome da Revolução quanto do patriotismo e do
nacionalismo, e organiza o Exército Vermelho, que foi
responsável pela derrota dos contra-revolucionários Brancos e das forças
externas invasoras. Com a vitória bolchevique o czar Nicolau II e sua família são
executados.
Em 1921, com a Revolução consolidada, Lênin
institui a Nova Política Econômica, uma volta ao
capitalismo de Estado, como solução para vencer o
impasse econômico. A União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS) é formada em 1924 com a adoção de
nova Constituição. A criação de uma União é a fórmula
encontrada pelos bolcheviques para conseguir manter
unidas nacionalidades, etnias e territórios que pouco têm
em comum. Segundo a Constituição de 1924, as
repúblicas têm autonomia, proposta que nunca saiu do
papel. O poder é mantido por alguns líderes do Comitê
Central por intermédio do Partido Comunista.
5
Lênin morre em 1924 e sua morte desencadeia uma
violenta luta pelo poder entre Trótsky e Stálin. É uma luta entre
concepções diferentes de política e revolução. Stálin derrota
Trótsky, que é expulso do partido em 1927 e do país em 1929, e
em 1940 é assassinado no México por ordem de Stálin. Seu
governo foi marcado por uma aguda centralização de poder e
controle ideológico. O governo de Stálin tinha na perseguição aos opositores um
de seus alicerces. Milhares de pessoas foram mortas, especialmente na época do
esforço para a industrialização do país por meio dos planos qüinqüenais. Em 23
de agosto de 1939 Stálin assinou um pacto de não-agressão com a Alemanha,
acordo rompido pelos nazistas em 22 de junho de 1941. Stálin ficou conhecido
como “o homem de ferro”, exercendo um governo totalitarista na União Soviética
até a sua morte em 1953.
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Contexto Cultural -
Melina Schleder
Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária. Maiakovski
Vanguarda Russa
O movimento artístico da vanguarda russa surgiu de uma avaliação e
crítica ao elitismo da arte simbolista e influência do futurismo, movimentos préRevolução. Com a revolução bolchevista, a arte serviu como afirmação e
consolidação da tomada de poder em outubro de 1917. Arte, política e ideologia
passaram a caminhar lado a lado, no movimento chamado Construtivismo Russo.
Este visava uma linguagem plástica universal compreensível a todas as
classes e etnias, se colocando a serviço da Revolução, orientando-se para a
movimentação das massas. O direcionamento às
massas era fundamental.
Esteticamente, se consistia num estilo artístico
ligado à modernidade e ao progresso, baseado na
ideologia marxista, onde o objeto artístico se liberta de
sua base, do pedestal, trabalhando mais com o espaço
como elemento da linguagem plástica, “o mundo da
não-representação” (Malievich).
Na escultura, a noção de esculpir desgastando um material ou na adição
de material a uma base é substituída pela construção, usando materiais naturais
e sintéticos (estes, oferecidos pela industrialização).
Entre os pensadores do movimento estavam, entre outros, Alexandre
Rodtchenko, Meyerhold, Mayakovsky (poeta e dramaturgo), Kasimir Malevitch,
Vladimir Tatlin, Chagall (pintores), Dziga Viertov e Serguei Eisenstein (cineastas).
Estes e outros artistas se agruparam, primeiro, em torno da Inchuk (Instituto da
Cultura Artística), a depois, da revista LEF, editada por Osip Brik e Vladimír
Maiakovsky.
7
O construtivismo almejava, antes de tudo, liberdade
estética e de expressão, e o posicionamento político de seus
artistas era fundamentalmente de iniciativa própria e
engajamento na revolução de 1917 e na exportação do
socialismo.
Tanto que o Estado, apesar de ter consciência da
importância ideológica da arte e sua força para com as
massas, e ter buscado transformá-la em um instrumento
para a construção do socialismo, não se intrometiam no
processo de criação dos artistas através de censuras,
repressões ou encomendas, sabendo da importância da
propaganda como resultado de uma opção consciente revolucionária dos artistas.
Realismo Socialista
Já no período posterior à morte de Lênin, e com Stalin no poder, a
liberdade artística diminui, a arte passava pelo dirigismo partidário, se
transformando em mero objeto nas mãos dos burocratas que dirigiam a nação,
uma vez que o governo contava com uma censura e repressão aos artistas.
Ideais de liberdade e socialismo universal foram transformados em
glorificação do Partido, de sua política e mais para frente, de seu líder, Stalin. A
obra de arte transforma-se em reportagem figurativa. Destacam-se os cartazes e
murais, instrumentos de divulgação do novo regime e propaganda estatal,
enaltecendo a imagem dos trabalhadores, e principalmente, dos líderes. Artistas
como Malievich e Tátlin usaram seus talentos
nesse tipo de trabalho.
Em 1934, essa política foi oficializada,
tomada como dogma e batizada de Realismo
Socialista, e quem discordasse dessas ‘leis’ era
chamado de traidor. A censura passou a
perseguir os traidores: a sátira era “antisocialista”; os intelectuais, “inimigos da classe”
e seus experimentos, “ininteligíveis às massas”.
Alguns artistas se renderam a esse
regime, outros tentavam achar ‘brechas’ dentro dele para passar suas idéias
(como Eisenstein), e outros nunca se renderam. Houve casos de migração para o
oeste, muitos foram lecionar na Bauhaus (na Alemanha) e tiveram casos mais
extremos de artistas que chegaram ao suicídio, como Maiakovsky e Essenin.
Em 1938, Trosky e Breton (grande admirador da vanguarda e
construtivismo russo), escreveram o manifesto “Por uma arte revolucionária
independente”.
8
Eisenstein: biografia
Sergei Mikhailovich nasceu em Riga, no dia 23
de janeiro de 1898. Seu pai era engenheiro civil de
origem judaica alemã e sua mãe oriunda de uma
família bastada. O constante conflito dos pais resulta
na separação e Eisenstein continua morando com o
pai. O jovem começa a se interessar por teatro, ópera
e literatura, e seu domínio dos idiomas francês, inglês,
alemão ajuda a desenvolver uma ampla cultura.Em
1915 ingressa no Instituto de Engenharia Civil de
Petrogrado. Quando a Revolução de Fevereiro de 1917 estoura, ele ingressa nas
milícias vermelhas. Só em 1918, abandona em definitivo o curso de engenharia.
Eisenstein, como a maioria dos jovens faz, sentia que era preciso virar tudo
pelo avesso e ousar empurrar a roda da História para frente. Aventurou-se na
fermentação política e de inquietação intelectual, do futurismo e do construtivismo
que a Revolução trouxe. Vê-se presente em todos os seus filme essa origem
militante, bem como a temática revolucionária.
Durante a revolução, Eisenstein começa a
demonstrar suas habilidades para o desenho e
criatividade, ajudando na decoração de comboios de
propaganda. Acaba se envolvendo com o teatro, já em
1919, tendo contato com um grupo amador. Depois
ingressa no Prolekult e começa a participar da montagem
de algumas peças, como cenógrafo. Suas idéias
inovadoras na peça O Mexicano impressionam os dirigentes e ele acaba sendo
colocado como diretor também. Daí por diante ele vai desenvolver várias teorias
através do estudo de vários teóricos. Em 1923 escreve um texto de nome A
montagem de atrações, no qual descreve o que viria a ser o conceito central de
seu cinema, dizendo que era preciso “guiar o espectador na direção desejada”1.
A atração (do ponto de vista teatral) é todo aspecto agressivo do
teatro, ou seja, todo elemento que submete o espectador a uma ação
sensorial
ou
psicológica,
experimentalmente
verificada
e
matematicamente calculada, com o propósito de nele produzir certos
choques emocionais que, por sua vez, determinem em seu conjunto
precisamente a possibilidade do espectador perceber o aspecto
ideológico daquilo que foi exposto, sua conclusão ideológica final.2
Sergei Eisenstein
1
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984, p. 107.
2
XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 189.
9
Os conflitos de Eisenstein com o Estado se iniciam ainda na época de
Lênin: suas idéias de vanguarda mostravam-se contrárias á política da cúpula
dirigente. Lênin considerava o Prolekult uma aventura pequeno-burguesa. Para
Lênin, as tarefas culturais importantes naquele momento eram a alfabetização
das massas e a formação de uma cultura da base, uma vez que achava
impossível à classe operária prescindir da tradição cultural forjada pela
burguesia.
Quando Eisenstein realiza em 1924 seu
primeiro filme, A Greve, o um sistema político vigente
já declara a ilegalidade da greve e não admitia mais
esse meio de autodefesa operária. Em O
Encouraçado Potemkin, também encontra um certo
conflito com o partido, visto que o filme tratava do
duplo tema de uma revolta de marinheiros contra a
autoridade opressora e o massacre popular nas
escadarias de Odessa.
Mas seus problemas com o Estado começam mesmo a partir de Outubro
(1927). O filme de Eisenstein sofre profundamente os feitos da luta política
daquele momento de transição, em que Stálin assume o poder. Outubro deveria
ser um ensaio sobre a revolução bolchevique de 1917, mas à medida que os
principais personagens do evento caíam em desgraça no cenário político, eles
caíam fora do filme também. Sabe-se que Stálin interveio diversas vezes nas
filmagens e ocorreu a minimização do papel de Lênin nos acontecimentos. A
figura de Trotsky é apagada de quase todas as cenas e a única restante, ele é
visto quase como um “boicotador” da revolução. Eisenstein foi chamado de
elitista por sua montagem complexa: Stálin queria filmes simples, imediatamente
decodificáveis até mesmo pelo mais rude camponês, e que ilustrassem a linha
política do partido.
Seu filme seguinte, A linha geral, teve seu
título alterado para O Velho e o Novo, já que a
política do partido não era mais essa na época de
seu término, e várias mudanças foram solicitadas
para que o filme pudesse ser exibido. Eisenstein
realizou apenas algumas mudanças no filme, o que
acabou causando problemas posteriores. Antes
mesmo que O velho e o Novo estreasse em Moscou
em outubro de 1929, provocando a ira da crítica
stalinista, Eisenstein, Alexandrov e o fotógrafo Eduard Tissé partiram correndo ,
quase fugindo, em uma viagem ao exterior, sob pretexto de estudar o cinema
sonoro.
Eles viajaram pela Europa dando cursos, ministrando palestras, até serem
expulsos de paris, onde o governo criticou a presença deles, chamados de
comunistas. Eles partem então para os Estados Unidos, onde Eisenstein faria
contatos em Hollywood para um filme, mas a sua preferência política acabou
causando conflitos e nenhum filme foi realizado. A viagem serviu para que fizesse
contato com um escritor de esquerda chamado Upton Sinclair, que sugeriu que
10
Eisenstein filmasse no México e arrumou
contatos para que a produção russomexicana fosse iniciada. Que Viva México!
seria o nome do novo filme de Eisenstein.
Era um dos projetos mais ambiciosos do
cineasta, abarcando toda a civilização
mexicana e sua história, desde os primórdios
astecas até hoje. As filmagens foram
canceladas por diversas interferências, mas a
gota d´água aconteceu em novembro de
1931, quando Sinclair recebeu de Stálin um
telegrama que dizendo que Eisenstein era considerado um desertor. Eisenstein foi
bloqueado na fronteira mexicana, e sem dinheiro nem apoio, custou a obter um
visto de saída para Nova York, e só o consegue para ser imediatamente enviado
de volta a Moscou.
Já de volta à Rússia, ele encontra na administração dos negócios da
cultura um burocrata assumido, de nome Andrei Jdanov, para quem a arte
deveria ser pensada em termos de rentabilidade política imediata. E ele enfrenta
mais problemas, já que sua admiração pela cultura do ocidente foi considerada
suspeita e suas idéias sobre cinema e estética em geral rejeitadas como ‘elitistas’
e alheias aos interesses do socialismo. Eisenstein se conservou fiel, senão ao
stalinismo como doutrina, pelo menos á feição tomada pelo socialismo a partir
dos anos 30.
Seu trabalho é controlado e ele fica restrito
a dar aulas. A iminência da guerra acabou
criando condições para a reabilitação de
Eisenstein. Nesse momento, A Rússia se
dedicava a um vasto plano de filmagens
destinado a preparar o espírito soviético para
enfrentar a ameaça nazi-fascista e precisava
contar com as forças disponíveis. Eisenstein se
ofereceu para dirigir Alexandre Nevski, biografia
de um dos unificadores do império russo. Alexandre Nevski era poderoso: sua
fúria antigermânica era tão explícita que, assim que os russos assinaram o pacto
germano-soviético de não agressão, retiram-no imediatamente das telas, para
colocá-lo em circulação tão logo Hitler jogou suas divisões blindadas em direção
ao leste. A fim de impedir que o cineasta retomasse os seus ‘desvarios
experimentais’, a administração da Mosfilm impõe-lhe uma nova equipe e o
obriga a dividir a direção com um co-realizador, Dimitri Vassilev, encarregado de
velar pelo respeito ao roteiro aprovado. Vassilev acabou dirigindo a maior parte
das tomadas, com base em esquemas desenhados pro Eisenstein.
Seu filme seguinte, Ivan-o-Terrível foi concebido como um tributo a Stálin,
ou pelo menos foi a partir desse argumento que Eisenstein obteve a concessão
para filmá-lo. O filme seria composto de três partes, mas quando rodava a
terceira parte, foi cancelado. A semelhança entre Ivan e Stálin acabou gerando
uma forte repreensão: Ivan era visto como um soberano paranóico, desconfiado
de todos ao seu redor, como se seu poder fosse constantemente ameaçado e seus
11
inimigos tivessem que ser eliminados. Chamado
para uma conversa com Stálin, Eisenstein foi
constrangido a fazer uma nova autocrítica que
apareceu na revista Cultura e vida de outubro de
1946 com o título: “Traí o sentido da verdade
histórica”.3 “Ivan-o-Terrível entrou para a história
do cinema por propor um modelo de dramaturgia
política que assume a contradição e, ao invés de
fustigar o inimigo de fora e objetivamente, deixa-se
absorver por ele para corroê-lo por dentro, como um câncer”.4
Nos últimos anos de sua vida, Eisenstein dedicou-se a compilação de seus
escritos e à redação de suas memórias. Ele deixou uma obra escrita imensa,
como uma compensação pelo boicote de sua produção cinematográfica. No dia 11
de fevereiro de 1948 Eisenstein morre vítima de um ataque cardíaco.
3
MACHADO, Arlindo. Sergei M. Eisenstein: geometria do êxtase. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.28.
4
idem
12
Eisenstein: teoria
O cinema soviético está atravessando agora uma nova fase – uma
fase de bolchevização ainda mais nítida, uma fase de contundência
ideológica ainda mais aguda e militante. Uma fase historicamente lógica
natural e dotada de possibilidades fecundas para o cinema como a mais
Eisenstein, 1935
notável de todas as artes.5
Para Eisenstein, a arte era, antes de tudo, produção de sentido e, por isso
mesmo, reduzi-la a um puro reflexo mecânico da natureza ou da sociedade
significava ocultar o seu papel ideológico real, que seria preencher de sentido o
mundo. Ele criticava os conservadores, dizendo que estes se sentiam mais à
vontade sob a égide do realismo, tentando imprimir uma ‘verdade’, que na
verdade era encoberta pela produção.
Quando as vanguardas chegam com a
revolução, o clima era de construtivismo, e é com ele
que Eisenstein ingressa no mundo das artes. Sem
suas incursões no construtivismo e no teatro, suas
teorias de cinema nuca teriam sido formuladas. Para
os construtivistas, o artista seria antes de qualquer
coisa um engenheiro: sua arte deveria estar apoiada
em conceitos científicos solidamente assimilados;
cada ato de criação seria um processo consciente e
racional de manipulação de seu meio de expressão.
Para aprimorar seus conhecimentos no teatro ele vai estudar diversas
outras áreas, partindo do teatro de Meyerhold. O teatro, no entender de
Meyerhold, deveria trabalhar apenas com ações, gestos e eventos claramente
decifráveis pelo público receptor e, para tanto, era preciso que o ator fosse capaz
de entender e dominar a mecânica de seu próprio corpo. Foi então estudar a
teoria das marionetes de Kleist. Segundo Kleist, o corpo do ator em cena não era
constituído apenas de movimentos irrefletidos, mas também de impulsos
voluntários que, inclusive, poderiam controlar e inibir os primeiros.
Ainda mais um teórico seria estudado: Lavater. Este tinha
um sistema fisionômico para dominar também a expressão facial
dos atores: ele queria rostos que dessem de imediato uma
impressão da figura representada. Lavater criou uma “tipagem” de
“rostos humanos profundamente transfigurados pela expressão,
fisionomias petrificadas em espasmos e enformadas pelo sentido,
como no teatro de máscaras do Japão”,6 o Kabuki, em que o
5
6
XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 218.
MACHADO, Arlindo. Sergei M. Eisenstein: geometria do êxtase. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 33.
13
caráter da personagem já vem diretamente esculpido no rosto do ator.
Para Eisenstein esse era o caminho para penetrar mais profundamente no
sentido, deixando de lado as ligações apenas episódicas exigidas pela linearidade
da narrativa tradicional. O que ele queria, no fundo, era isolar dentre todos os
movimentos produzidos pelo ator no palco apenas aqueles dotados de intenção,
aqueles capazes de interferir sobre a percepção do espectador e aos quais ele deu
o nome de movimentos expressivos.
Segundo suas teorias, o teatro
deveria ser um mecanismo gerador de
estímulos e choques, ao qual o espectador
responderia com seu entusiasmo ou com a
violência de sua indignação, mas nunca na
forma de anestesia da platéia do teatro
tradicional. Deveria criar “um máximo
controle intelectual para um máximo de
prazer afetivo”.7 Assim, surgiu o que ele veio
chamar de Teatro de Atrações. A atração
seria então a unidade de base de seu teatro,
a célula de onde decorrem as macroestruturas ideológicas da obra. Só a atração
era produtiva e essencial, por isso, um teatro voltado para a máxima eficácia
deveria simplesmente dar-se ao trabalho de montá-las. O teatro tornava-se
fábrica: economia e concisão de uma linha de montagem, racionalização e
eficiência de um cronograma de operações.
Eisenstein se insere no campo do cinema ainda na época do teatro, através
de um pequeno filme que é projetado durante uma de suas peças. Inicia logo
depois as filmagens de seu primeiro filme A greve. O filme parece partir quase
direto do teatro, de suas teorias, com atuações extremamente expressivas e uma
montagem truncada, com dificuldades para fluir. A greve é, portanto uma obra de
transição, nela Eisenstein percebeu que para evoluir do teatro para o cinema era
preciso repensar sua montagem de atrações.
Após diversos outros estudos, Eisenstein
criou sua teoria da montagem para o cinema. No
cinema, a atração não é mais o estímulo agressivo
em si, mas a confrontação de dois estímulos
diversos reunidos no ato da montagem. Para
Eisenstein, no entanto, a montagem era o
instrumento de articulação do sentido, graças ao
qual o cinema podia raciocinar e construir
associações intelectuais de alta elaboração: nasce
o seu cinema conceitual.
Os princípios de seu cinema conceitual ou intelectual, Eisenstein os foi
buscar no modelo da escrita pictórica das línguas orientais. Cinema intelectual
de Eisenstein: um cinema que, partindo do primitivo pensamento por imagens,
7
MACHADO, Arlindo. Sergei M. Eisenstein: geometria do êxtase. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 34.
14
consiga articular conceitos com base no puro jogo poético das metáforas e das
metonímias. Nos filmes de Eisenstein, a montagem é que criava sentido ao filme,
e não a sua linearidade natural. Em outras palavras a verdade não era dada
pronta à inércia do público, mas se construía à vista do espectador, exigindo,
inclusive o concurso de sua afetividade e de seu raciocínio. Era preciso que o
público refizesse o percurso do autor, para que as articulações se completassem e
fizessem sentido. O espectador de Eisenstein não é receptáculo vazio de
ideologias alheias, mas á sujeito ativo e por isso mesmo intelectualmente livre
para aceitar ou rejeitar. Mas as associações que ele forjava eram fechadas’ no
sentido de que davam corpo a um a intenção ideológica inequívoca.
O princípio da montagem para Eisenstein
deveria ser o da contradição, ou seja, o choque de
valores plásticos opostos, tanto entre dois planos
sucessivos, quanto no interior de um mesmo plano.
Montagem, para ele, era desencadeamento de
conflitos. Conflito de direções, conflito de cores ou
tonalidades, conflito de jogos de iluminação, de
volumes, de velocidades, de formas em geral: o que
importava para Eisenstein não era a reprodução
naturalista do mundo sensível, mas a articulação de imagens entre si, de modo
que a sua contraposição ultrapassasse a mera evidência dos fatos, gerando
sentido. Em sua montagem o corte transgride o acontecimento, forçando a
emergência do sentido.
Para Eisenstein: “o cinema narrativo linear busca ocultar do espectador a
manipulação, os cortes, as censuras, a reconstrução, a interpretação que estão
na base de toda representação”.8 O cinema narrativo clássico quer que os
acontecimentos pareçam “estar lá”, independentes da câmera que os captou e de
quem os manipulou.
Em seu segundo filme, O Encouraçado
Potemkin, Eisenstein radicaliza sua concepção de
montagem, quebrando programaticamente o eixo da
câmera, gerando uma complexa descontinuidade na
evolução do filme. Ao invés de ajudar a descrever o
acontecimento, a montagem multiplica-o, dilata-o,
ultrapassando-o, reduzindo a hedionda selvageria
dos cossacos à sua essência repressiva.
Eisenstein não estava interessado na verossimilhança dos eventos:
interpretar a história era para ele mais importante do que simplesmente
reconstruí-la. A evolução do acontecimento é distendida a partir de um critério
não naturalista, de modo que o evento se deixa desintegrar num espaço-tempo
descontínuo, que para Eisenstein é intelectual, pois “coloca a nu a ossatura
significante dos fenômenos”.9
8
MACHADO, Arlindo. Sergei M. Eisenstein: geometria do êxtase. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 56.
9
MACHADO, Arlindo. Sergei M. Eisenstein: geometria do êxtase. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 58.
15
Seu terceiro filme, Outubro é quase um ensaio teórico sobre essa revolução,
onde a mobilização das classes na luta pelo poder é analisada em todos os seus
ângulos e desenvolvimentos. O filme parece se dissolver, não constituir uma
narrativa.O responsável principal por essa verdadeira pulverização da narrativa é
o jogo incessante das metáforas e das metonímias: de associação em associação,
Eisenstein conduz o raciocínio nos sentido de um desenvolvimento intelectual
cada vez mais livre das conexões da realidade imediata.
Outubro foi muito criticado, pelo grau de
complexidade de suas associações, foi chamado
de elitista, e como já citado anteriormente, ele
teve muitos problemas com o Estado e suas
regras de cinema de propaganda vigentes a
partir de Stálin. Eisenstein sempre fez filmes de
propaganda. Mas a grande diferença de seus
filmes é que enquanto a propaganda
convencional se faz reconfortante e positiva, os
filmes de Eisenstein resultam demasiado
perturbadores
e
escorregadios
para
os
interesses de qualquer sistema centralizado de poder.
Uma última característica da estética eisensteiniana deve ser referida: o
seu interesse perpétuo pela caricatura, pela sátira, pelo grotesco (os artistas que
o mestre soviético apreciava particularmente eram Daumier, Toulouse-Lautrec e
Sharaku). Este gosto pelo caricato viria também a sentir-se em todos os seus
filmes.
Em síntese, ele escreveria:
"O Teatro de Arte de Moscovo é meu inimigo mortal. É a antítese total de
tudo o que tento fazer. Nele amarram-se emoções umas às outras para dar uma
ilusão contínua de realidade, enquanto que eu tiro fotografias da realidade para
depois as seleciona de modo a produzir emoções... Não sou um realista, sou um
materialista. Creio nas coisas materiais, creio que a matéria fornece a base de
todas as nossas sensações. Afasto-me do realismo para ir à realidade”.
16
Que Viva México!
Em 1929 Eisenstein parte numa viagem à Europa, Estados Unidos e
México, aonde viria a filmar Que Viva México!, um filme ao qual se ligou
obsessivamente e do qual perdeu o controle, não podendo nunca terminá-lo.
Grigory Alexandrov, após a morte de Eisenstein, retomou as filmagens e montou
a obra.
A idéia de fazer um filme no México foi
sugerida por Upton Sinclair, um escritor de
esquerda que Eisenstein conheceu nos Estados
Unidos. Como as filmagens que realizaria naquele
país não pareciam dar certo, principalmente por
sua postura política, ele aceitou a sugestão de
Sinclair.
O México encaixava-se na visão
revolucionária de Eisenstein; ele poderia estudar a
ampla e sincrética cultura mexicana, além de
explorar o tema da Revolução de 1910, colocando mais uma vez o povo como o
centro de seu filme, o povo como o realizador das mudanças sociais.
Que Viva México!, é um gigantesco mural cinematográfico
da revolução mexicana. Eisenstein conseguiu convencer os
produtores da Paramount a investir no projeto Que Viva
México!, concebido em quatro partes, das quais apenas duas
foram filmadas, sendo que a terceira ficou pela metade e a
quarta não foi iniciada.
Que Viva México! conta a história da mudança das culturas, uma
sociedade matriarcal, que quase alcançou o comunismo por meio da revolução na
primeira década deste século.
Depois
de
um
ano,
os
produtores
interromperam as filmagens sem dar muitas
explicações à equipe. Eisenstein era acusado de
comunista pelos norte-americanos e traidor pelos
russos. O diretor viu a problemática política criada
ao seu redor interferir na ação cinematográfica.
Eisenstein nunca teve acesso aos negativos. Alguns
dizem que as filmagens foram interrompidas por
problemas financeiros. Desolado, o cineasta só
tinha uma saída: voltar para seu país e tentar
recolocar-se entre os meios stalinistas.
Que Viva México! deveria ser uma ampla sinfonia sobre o México, uma
epopéia em seis atos que envolvessem o passado e o presente, a realidade
contemporânea e a extraordinária civilização dos ancestrais, passando pelas fases
intermediárias da colonização espanhola e das guerras revolucionárias pela
17
emancipação.Seria uma experiência com arte sincrética, uma fusão de elementos
culturais diferentes ou até mesmo antagônicos num único todo.
Reconhecidamente,
a
seqüência
mais
eloqüente é a que corresponde ao epílogo.
Eisenstein recupera todo o significado cultural das
raízes carnavalescas. O carnaval era um rito
genuinamente popular, que operava numa inversão
dos valores impostos pela aristocracia dominante.
Todos os valores sagrados, tais como o temor a
Deus, o respeito aos mortos, a submissão à
hierarquia dirigente, tudo isso era carnavalizado, ou
seja, invertido, satirizado, negado.
Os mexicanos comemoram o dia dos Finados com um verdadeiro carnaval,
desmistificando a gravidade da morte com danças e comilanças sobre os túmulos.
Eisenstein transforma isso num curioso jogo de simbologias. Nesse dia eles
invertem o status quo e tomam o lugar dos poderosos, através da sátira e do riso
da morte. Finados para os mexicanos acaba sendo o
dia em que os pobres podem rir e criticar abertamente
os ricos, tomando o lugar deles e subvertendo a ordem.
Eisenstein regressou à União Soviética e ouviu
críticas das autoridades quanto ao conteúdo e à forma
de seus filmes. Impedido de fazer duas produções,
lecionou no Instituto do Cinema.
Quando regressa à União Soviética entrava-se já na linha dura que levaria
aqueles dez anos de liberalismo e explosões culturais ao Realismo Soviético.
Eisenstein torna-se suspeito por seu entusiasmo e admiração pela cultura
ocidental (entre outras coisas, admirava ao máximo e buscava dos grandes
cineastas americanos, em especial Griffith). Isola-se em estudos e começa a dar
aulas no Instituto de Estudos Cinematográficos.
18
Cinema e política na União Soviética
A história do cinema soviético desenvolveu-se como a história do
relacionamento entre o cinema e a política. Os filmes têm seu conteúdo
impregnado pela mitologia oficial do momento. Os filmes depois da revolução
mostravam o proletariado transformando, destinados. Mas à medida que a
revolução se afastou, eles foram ficando cada vez mais suaves, com Lênin virando
uma figura gentil, quase um pequeno burguês, enquanto os próprios
acontecimentos eram apresentados sob a luz mais doce.
O cinema deveria se transformar na nova
forma artística para o povo de um país em que a
maioria da população não sabia ler ou escrever e
onde o teatro político fracassara completamente
em atingir as massas. Para a maioria dos
cineastas a lealdade política ao novo regime era
axiomática. O tema principal era a revolução e a
luta contra a contra-revolução. Muita coisa se
inspirava mais nas diretrizes do partido do que
em talento criador e estava marcada pelo
didatismo pastoso que parecia acompanhar a
propaganda de rotina. Claro, que havia exceções e Eisenstein foi uma delas. Ele
transformou as massas, o povo como um todo, em heróis de seus filmes; ele tirou
os indivíduos como massas e os colocou no lugar de honra. Paradoxalmente, os
filmes de Eisenstein nunca eram aceitos pelo povo, apesar de mostrarem
heroísmo da massa.
O crescente controle ideológico dos filmes soviéticos dizia respeito à
ortodoxia, tanto artística como política. Em 1924 o Prolekult decretou que
nenhum estilo específico podia ser encarado como particularmente representativo
do Partido. Assim, a vanguarda recebeu um reforço que o cinema utilizou. Este
teve a vantagem adicional de ser dirigido ideologicamente pelo Comissário para a
informação, Lunacharsky, e grande entusiasta do cinema. Embora suas
tendências fossem pelo tradicional, a sua atitude geralmente aberta garantiu
ampla liberdade artística durante a primeira década da revolução.
A instauração do cinema sonoro na URSS coincide com a aplicação, neste
meio artístico, do Realismo Socialista, fórmula narrativa teoricamente herdada do
novelista Maxim Gorki e que, em linhas gerais, postulava o
seguinte: exemplaridade da história, quer dizer, esta deveria
servir ao espectador como modelo a ser imitado; heróis positivos,
sem
ambigüidades;
repulsa
ao
individualismo
e
ao
sentimentalismo burguês, isto é, nada de anedotas sentimentais
segundo a linha americana boy-meets-girl; e, finalmente,
absoluta clareza expositiva, realizada certamente sem devaneios
formalistas que afetassem a compreensão da mensagem.
19
No Simpósio do Partido sobre cinema, em 1928, as autoridades definiram a
função da arte como instrumento político. Não queriam mais vanguardas,
formalismo ou experimentação, sem importância direta para o povo Todos os
filmes tinham que ser compreendidos e apreciados por milhões, e sua tarefa
única era a glorificação do nascente estado soviético. No início dos anos 30, o
realismo socialista era o único estilo permitido no cinema soviético. Os portavozes do realismo social queriam propiciar uma espécie de arte genuinamente
acessível ao povo. Ao mesmo tempo a arte foi convocada para ajudar na criação
da nova sociedade, ela deveria ser uma ferramenta educacional para o ensino do
socialismo.
Pouco a pouco, o cinema soviético foi se
convertendo em um contínuo sermão que lembrava
aos cidadãos o que eles deveriam ou não fazer,
além de explicar-lhes os fatos históricos por uma
perspectiva claramente tendenciosa. Ademais,
devemos lembrar que, diferentemente dos italianos
e com um critério, todavia, mais intervencionista
que os alemães, na recém-criada URSS, o Estado
faz-se responsável de forma absoluta pela produção
de películas, de modo que estas não necessitassem se preocupar com a vil
bilheteria como nos degenerados países capitalistas, senão apenas obedecer ao
comando das instruções do komissar de turno.
O cinema era a mais importante das formas artísticas, falava Lênin, e com
a ajuda dos filmes, as pessoas seriam então levadas ao pensamento comunista e
entusiasmadas para a realização de grandes tarefas: tomariam parte na
construção da realidade do futuro, desfrutando ao mesmo tempo das variadas
vantagens do estímulo artístico. Os diretores mais jovens queriam explicar o que
era a luta de classes, mais através de análise política do que de “sugestão
metafísica”.10 Por outro lado, queriam substituir os filmes “sem história”, por
filmes sobre o indivíduo na massa: uma nova sociedade exigia um novo cinema, o
realismo social. Mas o Realismo Socialista virou dogma.
Em 1934, no I Congresso de Escritores Soviético, foi formulado o princípio
do Realismo Socialista: “a transmissão sincera da realidade tal como apanhada
em sua dinâmica revolucionária”.11 Lunacharsky já havia lembrado aos
realizadores que o realismo não se ligasse, apenas, à
realidade visível, mas também às metas para as quais o
socialismo estava trabalhando: um estado soviético
emergente não podia ser representado tal como aparecida,
porque sua inerente perfeição estava no futuro. Na medida
em que oi realismo social se tornou o único estilo aceitável,
o cinema soviético foi esvaziado de sua vitalidade artística,
porque qualquer coisa diferente, pessoal ou de vanguarda,
era identificada e esmagada. O cinema deixou de ser a
expressão de mentes livremente criativas.
10
11
FURHAMMAR, Leif & ISAKSSON, Folke. Cinema e política. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 20
idem
20
No entanto, o Realismo Socialista falhou como instrumento de instrução,
porque os filmes raramente conseguiam atrair a atenção das massas a que eram
endereçados. O povo já não tinha interesse pelas experiências estilísticas mais
simples antes, mas a alternativa que lhe deram consistia numa propaganda
padronizada, aborrecida e sem imaginação. Por ser chato, raramente era
apreciado pelo povo, e ao falsificar a realidade embelezando romanticamente a
luta, parecia desprezar a verdade e humilhar o povo.
O Realismo Soviético criou então o “herói positivo” – “o
novo homem soviético”. Ele era a virtude personificada: um
líder sólido. De todos os heróis positivos, o maior era Stálin.
O culto à sua personalidade no cinema alcançaria o ponto
máximo depois da II Guerra Mundial. Stálin, personaficado
como herói, aparecia como protagonista conduzindo a nçaõ
para um futuro próspero. Por vezes ainda se colocava no
papel de pai, aconselhando o povo e “mostrando” o que era
melhor para ele, no caso seguir os mandamentos do partido.
Nesse filmes, Stálin era mostrado como o sucessor natural de Lênin.
De forma semelhante ao que ocorria no Terceiro Reich, a figura de Stálin
serviu como modelo para uma série de filmes biográficos, sendo que, neste caso,
apenas se recorria a políticos e militares que haviam engrandecido a "Grande
Pátria Russa". Curiosamente, Stálin não era russo e sim georgiano; entretanto,
isso não o impedira de ser um fervoroso centralizador e inimigo de qualquer
atitude nacionalista que ameaçasse a unidade do Estado soviético. Em Bogdan
Jemelnitski (1940), homenageava-se um capitão cossaco, como defensor da
independência da Ucrânia frente aos polacos, mas não contra o czar de Moscou,
de quem ele se reconhecia como o mais fiel servidor; logicamente, a beligerância
antipolaca estava totalmente justificada pelo ano de realização do filme, quando
Stálin e Hitler repartiram amigavelmente os despojos desse infortunado país (em
relação à divisão da Polônia, convém lembrar que já havia sido produzido, um
ano antes, um outro filme, intitulado Chors, de um nível artístico muito superior
ao acima citado, por ter sido realizado pelo ilustre Alexandr Dovzenko, mas
igualmente abjeto em sua motivação primordial).
Por volta do fim da década de 30, aumentou fortemente a tendência
nacionalista no cinema russo e casos domésticos abriram caminho para temas a
respeito da política exterior. A crescente hostilidade contra outros países era
refletida de maneira cada vez mais aguda. Desde que Hitler chegara ao poder
houvera a produção constante de filmes antifascistas
nos quais, o comunismo era representado como o
adversário positivo e direto do fascismo. Em 1938
uma grande quantidade de filmes antinazistas foi
produzida, entre eles Alexandre Nevski. Esses filmes
foram rapidamente postos retirados de cartaz
durante a aliança russo-alemã, mas começaram a
serem relançados assim que Hitler atacou a União
Soviética em 1941.
21
Diferentemente do cinema nazista, o
chefe maior do país não aparecia no filme
apenas refletido nos heróis do passado, mas
também pessoalmente, ainda que encarnado
por um ator, quase sempre um tal de Mijail
Guelovani, que fez da sua caracterização de
Stálin uma especialidade similar à de Otto
Gebühr com Federico da Prússia. Desta
forma, todos os filmes que reconstruíam
aspectos da Revolução não descuidavam
nunca de apresentar o papel chave
desempenhado por Stálin nesse acontecimento.
Nas produções dos anos 30, Stálin ainda não aparecia, freqüentemente,
como protagonista, já que esta categoria era atribuída galantemente a Lênin (que
já estava morto e de sua tumba poderia oferecer perdão a todas as trapaças de
seu astuto discípulo), em elaboradas evocações como Lênin em Outubro (1937); O
bairro de Viborg (1939) ou Lênin em 1918 (1939). Durante a Segunda Guerra, a
indústria cinematográfica se esqueceu de Lênin e Stálin, concentrando-se em um
agressivo discurso patriótico e convertendo as críticas ao nazismo — anteriores
ao Pacto Germano-Soviético — em autêntica fobia anti-alemã.
Depois da guerra, muitos dos grandes
diretores viram-se novamente nas listas negras de
Stalin: como “elementos cosmopolitas” eram
cassados na União Soviética do mesmo modo que o
“antiamericanismo” nos Estados Unidos. Eisenstein
foi constantemente perseguido por suspeitas
enquanto fazia a segunda parte de Ivan, o Terrível,
até que teve as filmagens da terceira parte
suspensas.
O filme de Mark Donskoi, Arco-íris (1943), recria as atrocidades nazistas na
Ucrânia de uma forma que poderíamos chamar de hiper-realista, dada a doentia
complacência do roteiro nos aspectos mais repulsivos, como, por exemplo, cenas
de tortura de crianças e de uma camponesa grávida, que após o parto, vê seu
bebê ser assassinado com um tiro de pistola por um sádico oficial. No campo dos
documentários, também é fixada a evidência da infinita crueldade das hordas
nazistas, desta vez baseada na ligação de imagens aparentemente desconectadas,
como o gesto grotesco de um soldado alemão guardando a pistola no cano da
bota seguido por um plano de cadáveres de crianças, cena que pode ser vista no
filme A luta por nossa Ucrânia soviética (1943).
Finalizada a Guerra e consolidado seu poder absoluto até níveis
inacreditáveis, Stálin já não tinha nenhum empecilho para promover custosas
produções nas quais lhe era atribuído o papel principal, sobretudo no que se
refere a sua atuação na denominada Grande Guerra Pátria que foi exibida em
celulóide como triunfo pessoal do dirigente. Como Stálin não se achava
capacitado para exercer as funções de diretor, procurou um cúmplice, seu
patrício Mijail Chiaureli, que montou uma série de panegíricos ambientados tanto
22
na Guerra como no período de formação do Estado soviético: A promessa (1946),
A queda de Berlim (em duas partes, 1949), O inesquecível 1919 (1950), os dois
últimos a cores.
Para a desgraça dos historiadores, essas obras, que
refletem o auge da megalomania de Stálin, foram retiradas
de circulação depois da morte do ditador, quando sua
figura foi objeto de uma total revisão pelas mãos da
equipe de Kruschev. Ao invés da conseqüência mais ou
menos lógica do devir histórico, Stálin se converteu em
uma incômoda cova no limpo caminho traçado pelo
grandioso Lênin. Em uma operação tão radical como
havia sido a anterior, o papel de Stálin na história da
URSS foi reduzido a nada, não de maneira simbólica e sim
absolutamente literal: se as películas em que exercia o papel de protagonista
foram vergonhosamente escondidas, as em que aparecia em funções secundárias
foram meticulosamente remontadas a fim de eliminar o menor indício de sua
presença, inclusive a custo de complicados trabalhos de laboratório nos quais se
chegou ao extremo de se retocar diretamente à mão os fotogramas nos quais se
reconhecia o inconfundível bigode do proscrito personagem, o antigo ditador.
23
A propaganda política no cinema
As teorias russas sobre a montagem partilharam as proposições
subjacentes dos filmes de propaganda em geral: de que através da manipulação
da imagem cinematográfica da realidade é possível também se manipular os
conceitos do espectador sobre a realidade, isto é, os conceitos sobre os quais
fundamenta suas atitudes e ações.
A propaganda se dirige ás emoções e não
ao intelecto, vide os discursos em O Triunfo da
Vontade. Confiando no fato de que as pessoas
em estado de excitação são receptivas as
influências que de outro modo seriam
esquadrinhadas, os propagandistas fazem tudo
que podem para provocar emoções, para que
mais facilmente possam conduzi-las à sua meta
política. Devido ao modo como se desenvolveu a
propaganda, a capacidade para aumentar a tensão emocional se tornou mais
importante do que o conhecimento político.
A forma em crescendo é própria para filmes de propaganda. Ajudadas pelo
ritmo das imagens e a música, as emoções são despertadas, reunidas e
exacerbadas até um clímax. Eisenstein explicou como utilizou este método em O
Encouraçado Potemkin: “de um pequeno organismo celular do navio de guerra ao
organismo de todo o navio; de um pequeno organismo celular da esquadra ao
organismo da esquadra inteira – assim atravessa o tema o revolucionário
sentimento de camaradagem”.12
Um tema de propaganda favorito e que parece funcionar com a mesma
força emotiva cada vez que reaparece, tem sua origem no eficiente uso que o
cinema russo faz da multidão. Um pequeno grupo de pessoas vem junto e anda
em direção a um objetivo. A eles vem se juntando um número crescente até que o
pequeno grupo vira uma grande
massa deslocando-se para frente. As
emoções dessas pessoas atingem o
espectador e o prendem de um modo
que só pode ser explicado como uma
experiência
de
solidariedade
instintiva, não necessariamente com a
proposta das pessoas, mas com seu
entusiasmo, e parece como se o
elemento ativo fosse o crescimento de
grupo para a multidão, como uma
experiência.
12
FURHAMMAR, Leif & ISAKSSON, Folke. Cinema e política. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1976, p.
152.
24
Os filmes de propaganda são em si mesmos figuras de retórica. Desde que
o objetivo do gênero é criar determinadas generalizações a parir dos incidentes
isolados exibidos, os acontecimentos e os personagens principais sempre
representam mais do que apenas a si mesmos.
Os objetos na tela também têm uma forte carga emocional, devido a
associações sentimentais que adquirem no decorrer do filme. Os mais
importantes objetos na propaganda já possuem, entretanto, uma carga emocional
firmemente estabelecida e mesmo uma certa significação mágica: símbolos
patrióticos em geral. Eisenstein tentou aumentar o efeito emocional da bandeira
no Encouraçado Potemkin colorindo-a, à mão, de vermelho.
As associações morais de claro escuro
nos filmes de propaganda são usadas não só em
seu modo usual, como o claro representando o
bem e o escuro o mal, numa explícita visão
maniqueísta. O contraste de luz e escuridão tem
exemplos mais elaborados, como Alexandre
Nevski, onde a luz representa o inimigo e a
sombra os heróis. Essa acentuação de
contrastes talvez seja o recurso estilístico mais
importante na propaganda. Contrastes fortes
dão uma força emocional maior do que um sombreado sutil, falam com mais
clareza e dirigem com mais certeza as simpatias da platéia. Não surpreende que
os escritos teóricos de Eisenstein abordem também a significação dos contrastes
na estética cinematográfica, pois para ele, o conflito era a própria essência da
arte, como já foi dito.
O cinema de propaganda geralmente se destina a uma platéia que já
compartilha seus valores. A essa platéia oferece ficções que satisfaz em
necessidades preexistentes. As necessidades são bastante específicas nos
períodos em que aparece a maioria dos filmes de propaganda, mas a indústria
cinematográfica não deixa de ser uma fábrica de sonhos em tempos de guerra.
Em épocas de guerra, a propaganda no cinema se volta primeiro para
frente interna onde não se travam batalhas, mas há uma necessidade definida de
agressividade. Isso é satisfeito fornecendo na tela objetos legítimos e concretos
para odiar.
Os filmes de propaganda russos foram longe
no desenvolvimento das perseguições, como no caso
do inimigo às crianças. A greve tem um plano geral
em que um cossaco sobre um viaduto suspende uma
criança e segura-a sobre um abismo antes de
cometer o intuito final de maldade lançando-a na
estrada embaixo. Há uma visão mais próxima na
seqüência da escadaria de Odessa do Encouraçado
Potemkin, quando um garoto que cai baleado e
pisoteado, é erguido para a platéia, enquanto um
carrinho de bebê desce a escada aos solavancos em meio a uma chuva de balas.
25
Os filmes de propaganda, de modo algum, atingem consistentemente seus
objetivos, mas quando conseguem isso e quando atingem uma platéia cujas
emoções já estão sensibilizadas pelos objetivos do filme, estão aptos a oferecer
um grau de êxtase emocional que nenhum outro gênero pode conseguir. “Todas
as tensões são acirradas para se resolveram geralmente num clímax orgástico
que reúne o fervor de todas as fontes numa vibração em uníssono pela causa”.13
13
FURHAMMAR, Leif & ISAKSSON, Folke. Cinema e política. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1976, p.
159.
26
Análise
Partindo do pressuposto que o homem do século XX se tornou Homo
videns, segundo Giovanni Sartori, o cinema na Rússia revolucionária se encontra
como um importante meio de divulgação. As imagens de propaganda processadas
para essa massa de milhões que não sabem ler, não tem apenas cunho educativo,
mas ideológico e dominador.
Na Rússia depois da revolução, irá se
desenvolver primeiro o cinema de vanguarda e
depois o que se chamou de Realismo Soviético.
Este último se insere no campo da Indústria
Cultural, enquanto o primeiro tem seu caráter
divulgador de arte, segundo as concepções de
Walter Benjamin, mas as duas estéticas
cinematográficas vão abordar fundamentalmente
o cinema político.
Quando a expressão artística passa a ser produzida com qualquer
intenção que não seja a de expressão livre e pessoal de um ou vários artistas,
essa se torna menor, e seu impacto numa sociedade acaba sendo ameno e
alienatório. A indústria cultural sai do pressuposto de que sabe o que as massas
querem, e que é isso que produz, mas na verdade o acontece é uma especulação
sobre o estado de consciência e inconsciência das massas, transformando-as em
mero elemento de cálculo. O consumidor não é o sujeito da indústria e sim seu
objeto. As massas não são a medida, mas a ideologia da indústria cultural, e tudo
que possa ter poder transformador, a mudança, de qualquer forma, é excluída.
O cinema que se estabelece na União Soviética depois que Stálin toma o
poder é um industrial, voltado para as massas. Elas não opinam, nem o devem,
já que o partido é que diz o que é certo e errado, como devem agir. Mas a criação
imagética é elaborada de modo que a população pense que o que está sendo
representado é a resposta real de suas aspirações.
Os filmes do Realismo Socialista tentam se mostrar
como visões individuais do pensamento pós-revolucionário,
mas não conseguem: aparecem como repetições dos ideais
morais, cansando inclusive a massa para a qual é dirigida. As
informações transmitidas por este cinema são redundantes,
determinando padrões de comportamento para o povo.
Segundo Adorno, “pátria alguma sobrevive à sua
apresentação nos filmes que a celebram e que homogeneízam
até tornar confundível o inconfundível de que se nutre”.14
14
ADORNO, Theodor W. Theodor W. Adorno: sociologia. São Paulo: Ática, 1994, p.97.
27
O cinema político tornou-se conformista depois que as vanguardas foram
abolidas. O que é passado nestes novos filmes de propaganda é o status quo,
aquilo que o partido determinava, padrões de comportamento. O povo não
aparece mais como membro de mudanças sociais: essa força contestatória é
personificada primeiro na imagem de Lênin e depois Stálin; o povo torna-se mero
coadjuvante.
Adorno diz que a Indústria Cultural “vive,
em certo sentido, como parasita sobre a técnica
extra-artística da produção de bens materiais,
sem se preocupar com a determinação que a
objetividade dessas técnicas implica para a forma
intra-artística, mas também sem respeitar a lei
formal da autonomia estética”.15 Assim, os filmes
de Eisenstein não se aplicam à Indústria Cultural,
visto que ele desenvolve sua própria estética visual, através de seu cinema
intelectual, com sua função geradora de sentido. Ainda que o governo tenha
reprimido esses instintos, ele tentou resistir aos automatismos didáticos
impostos.
No Realismo Socialista o cinema tem a única finalidade de divulgação das
ideologias do partido. O cinema de propaganda tem uma relação de poder e
dominação, uma dominação simbólica. Com a criação do herói positivo,
personificado na figura de Stálin. Ele representava o conjunto de qualidades do
novo homem soviético e a alegria de viver, ausente, na realidade da vida de
milhões de pessoas. Mas essa relação de dominação só se dá com aqueles que
nela querem acreditar, que estão dispostos a ouvir, estabelecendo assim uma
relação de cumplicidade. Nas palavras de Bourdieu: “a lógica da política é a da
magia, ou se preferirem, a do fetichismo”.16Stálin torna-se assim objeto de culto e
de consumo no cinema socialista.
A massa aceitava sem questionar esses filmes: mesmo
muitas vezes tendo uma visão clara de que aquilo era
fabricado, eles queriam acreditar naquela ideologia, dandolhes uma orientação diante da nova realidade comunista. Os
filmes criavam uma felicidade ilusória. A inversão do real
fazia com que a realidade ditatorial de Stálin parecesse falsa.
A realidade era substituída por uma imagem. Pode-se assim
dizer que o Realismo Socialista é também uma representação
da sociedade do espetáculo.
A construção de um líder político é equivalente à comercialização de um
produto, com a mesma necessidade de exaltar as virtudes e esconder os defeitos.
O ídolo se torna um bem de consumo. Há então um fetichismo da mercadoria, nas
palavras de Debord. A imagem de Stálin, ou Lênin, dependendo do período,
torna-se fetiche.
15
16
ADORNO, Theodor W. Theodor W. Adorno: sociologia. São Paulo: Ática, 1994, p.95.
BOURDIEU, Pierre. O campo econômico: a dimensão simbólica da dominação. Campinas:
Papirus, 2000, p.62.
28
O espetáculo na União Soviética do período stalinista é concentrado. A
ideologia como mercadoria suprema é a compensação pelo fraco desenvolvimento
econômico; “seu ponto culminante é a obrigação para todos de se identificarem
com” 17o chefe, no caso Stálin.
O espetacular concentrado é pouco flexível e, em ultima
instância, governa graças à sua polícia. Sua imagem negativa
tem, no entanto, sua função na divisão mundial das tarefas
espetaculares: a burocracia soviética e suas ramificações nos
países ocidentais, isto é, os partidos comunistas, representam
ilusoriamente a luta contra o espetacular difuso. 18
Guy Debord
O espetáculo criado pelo governo soviético é uma forma
de alienação, na abstração do Estado como poder. As
pessoas se tornavam cada vez menos agentes, menos questionadoras. A falta de
unidade numa nação tão repleta de culturas e povos diferentes era compensada
pela sensação de unidade que os filmes de propaganda tentavam passar.
Mas é preciso lembra o que foi dito anteriormente: antes do Realismo
Socialista veio o cinema político de vanguarda. Este cinema ia contra os ideais do
partido para a divulgação das idéias: não se mostrava de modo claro e pronto.
Era um cinema de reflexão, rico esteticamente, com valiosos indícios sociais. Não
vinha com uma fórmula pronta para a educação política do povo, não se
mostrava extremamente didático, e pior (para o partido), não tentava encobrir os
mecanismos de montagem e feitura do filme. Os filmes de Eisenstein se
enquadram perfeitamente neste tipo de cinema.
A arte, através do cinema de vanguarda,
consegue atingir as massas. Para Walter
Benjamin, o comunismo mostrava a politização
da arte e essa característica de “força de
persuasão,
dimensão
do
fantástico,
do
miraculoso” 19 era o sentido do cinema. A arte
contemporânea eficaz devido a sua capacidade de
reprodutibilidade.
Os filmes de Eisenstein são uma clara expressão das idéias de Benjamin.
Aparece como um cinema de idéias, elaborado não para iludir as massas, mas
para transmitir idéias e causar reflexão. O público não deve assim aceitar
passivamente as imagens que recebe, mesmo porque, o conflito presente em seus
filmes serve não apenas para causar comoção e envolver, mas também para que o
espectador questione aquilo que está vendo, que se coloque no lugar do
17
JAPPE, Anselm. Guy Debord. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 23.
18
Idem.
19
LIMA, Luiz Costa. Teoria da Cultura de Massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 177.
29
elaborador das imagens e não aceite o que vê como se fosse a verdade absoluta.
A presença das massas em seus filmes mostra a reprodução das massas e dá
chance do homem comum se ver na tela, direito esse retirado com o movimento
do Realismo Socialista.
Uma última reflexão de Benjamin, quanto ao cinema pode ser inserida no
cinema de Eisenstein:
O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e
reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez
mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do
nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica
cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido.20
20
LIMA, Luiz Costa. Teoria da Cultura de Massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 174.
30
Uma questão Ética: Eisenstein e Riefenstahl
A influência desses dois cineastas não pode ser
desprezada no campo de estudos cinematográficos, mas as
razões que os levaram a fazer propaganda política acabam
por cair no campo da ética. Claro que os dois se
mantiveram fiéis aos seus valores morais, mas Eisenstein
nunca deixou de admitir que fazia filmes de cunho político
e socialista, enquanto Leni Riefenstahl negou até o último
instante depois da guerra, e continua a fazê-lo, a sua
influência na propaganda nazista.
Enquanto Eisenstein sempre tentou ser um artista de vanguarda, criando
um cinema político de reflexão, onde o espectador deveria participar ativamente,
Leni se encaminhava pela montagem clássica, linear, limpo, onde o espectador
senta e recebe quase passivamente o que lhe é transmitido. Embora seu cinema
seja classificado como documental, suas obras, O Triunfo da Vontade e Olympia
são tão ficcionais quanto qualquer filme de Eisenstein: os dois manipulavam as
imagens para criar uma nova realidade e assim reafirmar suas ideologias.
Leni ajudou a criar um herói, Hitler como o
salvador da nação, auxiliada pelo ministro da propaganda
nazista, Joseph Goebbels. Não se pode dizer que ela
tenha criado esta imagem, mas que auxiliou a se
estabelecer isso sim. Não, só isso, em seus filmes, o ideal
nazista da limpeza racial, de uma nação superior é
ressaltado. Não temos o povo como elemento principal da
narrativa, o povo é um apenas um exemplo de como o
Füher construiria uma nação.
Já na Rússia antes e depois da guerra, Eisenstein se recusou a colocar
Stálin ou Lênin como heróis em seus filmes. Para ele, o povo era o elemento
essencial e motor da ação, dos grandes acontecimentos, era este que deveria ter
um papel primordial. Contrariando o departamento de propaganda, ele não
tentava criar um modelo de como o povo deveria agir, mas demonstrando como o
povo se manifestou para realizar mudanças. Em Alexandre Nevski e Ivan o
Terrível, a imagem de um líder salvador acaba sendo distorcida, ao passo que este
salvador não é perfeito e não pode ser tomado como modelo. Eisenstein sempre
tentou divulgar o socialismo como um ideal, não se vinculando necessariamente
ao partido, como o fez Leni na Alemanha.
Mesmo que Leni e Eisenstein tenham feito propaganda política para a
divulgação de uma ideologia, seus caminhos se divergem. O uso do cinema que
Leni fez durante e guerra ferre nossos conceitos morais e éticos: a divulgação de
uma ideologia de extermínio. Ele, por nossos padrões iluministas, não foi ética.
Eisenstein, por outro lado, foi perdoado, pois nunca tentou ser um fiel cooperador
da política vigente, sempre foi fiel a seus ideais, não ajudando a criar um herói.
31
Para ele, os grandes líderes também poderiam ser
criaturas sombrias, como demonstra em Ivan, o Terrível.
Qualquer semelhança com Stálin não é mera coincidência.
Sua crítica o salvou dos julgamentos éticos poderíamos vir
a utilizar contra ele.
Eisenstein foi mais do que um simples garoto de
propaganda socialista: seus filmes são obras primas e seu
método de montagem continua a influência pessoas de
todo o mundo. Ele ficou para a história como um a artista
e não um mero fantoche na indústria da propaganda
política.
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Filmografia de Eisenstein:
1923 - O diário de Glumov
1924 - A Greve (Stratchka)
1925 - O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin)
1927 – Outubro (Oktiabr)
1926/1928 - A linha geral/ O Velho e o Novo (Generalmaia Linnia/ Statroie i
Novoie)
1930/1931 – Que Viva México! (Que Viva México!)
1936/1937 – O Prado de Bejin (Bezhine Lovj)
1938 – Alexandre Nevski (Aleksandr Nevsky)
1942/1945 – Ivã, o Terrível (Ivan Grozny)
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