Imprimir artigo

Transcrição

Imprimir artigo
91
REVOLUÇÃO E REVELAÇÃO: IDEOLOGIA E POÉTICA DE COMPOSIÇÃO
NA FOTOGRAFIA E NO CINEMA DO CONSTRUTIVISMO RUSSO
Thaís de Angelis Vitta1
RESUMO
O presente artigo versa acerca das influências da vanguarda construtivista russa no
percurso histórico da arte fotográfica e cinematográfica mundial, apresentando, dentre
outras referências, as óticas dos autores Aaron Scharf, François Albera e Giulio Carlo
Argan. O estudo assinala a relação entre o contexto político-social desse movimento de
propósitos contestadores e os produtos e processos criativos de seus idealizadores. A
análise se dá por meio de imagens de algumas das produções de Aleksandr Rodchenko,
Lev Kulechov e Sergei Eisenstein, para evidenciar as inovações estéticas deixadas por
estes artistas e compreender as técnicas adotadas para a concepção dessas novas ideias,
conduzidas pela Revolução de 1917.
Palavras-chave: construtivismo russo; fotografia; cinema.
ABSTRACT
This article focuses on the influences of the Russian constructivist forefront in the
historical course of world photographic and cinematography art, featuring, among other
1
Thaís De Angelis Vitta é fotógrafa formada pela Focus Escola de Fotografia, graduada em Produção
Audiovisual pelas Faculdades Metropolitanas Unidas e especialista em História da Arte: Teoria e Crítica pela
Faculdade Paulista de Artes.
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
92
references, the optical of authors Aaron Scharf, François Albera and Giulio Carlo Argan.
The study points out the relationship between the political and social context of this
movement, of contesters purposes, and creative products and processes of its creators. The
analysis is done through the aid of some productions of Aleksandr Rodchenko, Lev
Kulechov and Sergei Eisenstein, to highlight the aesthetic innovations left by these artists
and understand the techniques adopted for the design of these new ideas, conducted by the
1917 Revolution.
Keywords: russian construtivism; photography; cinema.
INTRODUÇÃO
A arte percorre junto com a história da humanidade o caminho natural de
constantes transformações. Para Proença (2004, p. 08), “a arte não é, como vemos, algo
isolado das demais atividades humanas. Ela está presente nos inúmeros artefatos que fazem
parte do nosso dia-a-dia”.
É justamente por meio desses processos históricos e das mudanças no
comportamento humano que a arte evolui e é nesse contexto que os movimentos artísticos
se desenvolvem, propondo novos estilos, finalidades e modos de concepção. Nesse sentido,
para um estudo mais profundo sobre determinada forma de arte, é de relevante valor a
identificação de suas influências, desde o momento de sua origem até os dias mais
recentes.
A fotografia e o cinema, por exemplo, para atingirem as configurações estéticas que
apresentam hoje, através do uso de uma linguagem contemporânea, passaram desde seus
primórdios, nos quais demonstravam funções predominantemente documentais, por
significativas variações, decorrentes dos pontos de vista artísticos de determinadas épocas
que prevaleceram e se consolidaram pelas próximas gerações.
A pesquisa aqui proposta baseia-se em uma dessas correntes artísticas de
consistente notoriedade: o construtivismo russo, um movimento do início do século XX,
com ideais revolucionários, que contestava a fase de instabilidade vivida pela União
Soviética (URSS) naquele momento e, ainda, propunha uma arte que tivesse utilidade na
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
93
vida das pessoas, produzida através do uso das máquinas e dos materiais industriais. Com
tanta riqueza de produção e de inovação, influenciou diversos setores artísticos desde
então.
Tendo como foco principal o estudo das contribuições de artistas da vanguarda em
questão no que tange à arte fotográfica e cinematográfica, a palavra revelação foi
empregada no título deste artigo como uma forma de alusão tanto ao processo químico —
aplicado até a chegada das câmeras digitais — que resultava na visualização das imagens
registradas em ambas as técnicas, quanto a sua relação com outros vocábulos de
significados semelhantes como, por exemplo, difundir e propagar, apontando, assim, para
os ensinamentos deixados por esses revolucionários da arte.
REFLEXÕES SOBRE O CONSTRUTIVISMO RUSSO
Reconhecido no contexto da história da arte mundial como integrante das correntes
de vanguarda, o construtivismo russo surgiu com propósitos revolucionários em meio a um
processo de reorganização social pelo qual passava a Rússia, em resposta a um cenário de
instabilidade.
A Revolução Russa de 1917, considerada pelos historiadores Arruda e Piletti (1996,
p. 274) “um dos acontecimentos mais importantes do século XX”, resultou na queda do
regime czarista de Nicolau II, e depois do Governo Provisório (Duma), com a chegada ao
poder do Partido Bolchevique, liderado por Vladimir Ilitch Lênin. Seus integrantes
defendiam uma revolução socialista, fundamentada nos ideais marxistas, buscando a
centralização democrática do poder, sob o conceito de que o governo deveria ser
controlado pelos operários e camponeses, que permaneciam em condições precárias, em
razão dos baixos salários consequentes da industrialização recente e da Primeira Guerra
Mundial.
O historiador de arte americano Aaron Scharf (2000, p. 148), relata em seu texto
referente ao movimento, inserido no livro Conceitos da arte moderna, que
Até o surgimento do construtivismo, nenhum movimento na evolução da
arte moderna tinha sido uma expressão tão completa da ideologia
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
94
marxista ou tinha estado tão intimamente ligado a um organismo
comunista revolucionário.
Nesse ambiente de efervescentes transformações, muitos artistas viram-se
incentivados pela ideia da criação de uma nova sociedade, prometida pelo novo regime
político. Para Scharf (2000, p. 143), o triunfo da Revolução de Outubro de 1917 gerou uma
euforia nos artistas, levando-os a “mergulhar na tarefa de criar uma arte do proletariado,
uma arte participante das oportunidades oferecidas por essa Revolução”.
Com sua origem inspirada no futurismo italiano e no cubismo francês, o
construtivismo russo propunha um estilo de arte não figurativa, libertando-se da concepção
da imitação do real. Para isso, valiam-se da composição através do uso de traços
constituídos pelas formas geométricas. Como característica formal, Rickey (2002, p. 59)
aponta que “os elementos das artes visuais tais como as linhas, as cores e as formas
possuem sua própria força de expressão, independentemente da associação aos aspectos
exteriores do mundo”.
Em relação a essa ruptura com a antiga forma de representação baseada na mimese,
Albera (2002, p. 173) afirma que
Na sociedade capitalista, a natureza anárquica e fragmentada das relações
sociais faz da arte o substituto de uma comunidade social autêntica. A
pintura de cavalete, inventada para assumir essas funções representativoideológicas, só pode produzir uma ilusão ligada a um prazer passivo e,
qualquer que seja seu tema, ela não pode subsistir em uma sociedade
proletária.
Ademais, destacam-se na proposta dos artistas construtivistas as ideias de que a arte
deveria servir à sociedade, destinando-se à criação de objetos úteis à vida do povo, por
meio de produções em máquinas e pelo uso de materiais industriais que refletiam a estética
da época, e, certamente, deveria manter-se sempre a serviço da revolução.
De acordo com Argan (1992, p. 326)
A arte deve estar a serviço da revolução, fabricar coisas para a vida do
povo, como antes fabricava para o luxo dos ricos. Qualquer distinção
entre as artes deve ser eliminada como resíduo de uma hierarquia de
classes. [...]. Não mais existem artes maiores e menores: como forma
visual, uma cadeira não difere em nada de uma escultura, e a escultura
deve ser funcional como uma cadeira. A arte deve ter uma função precisa
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
95
no desenvolvimento da revolução: a excitação revolucionária potencializa
as faculdades inventivas, as faculdades inventivas conferem um sentido
criativo à revolução. É preciso dar ao povo a sensação também visual da
revolução em andamento, da transformação de tudo, a começar pelas
coordenadas do tempo e do espaço.
A vanguarda russa, como manifestação artística, foi desautorizada em meados de
1930, com a morte de Lênin e, consequentemente, com a ascensão de Stalin ao poder.
Tornou-se, então, estabelecido como novo estilo oficial o Realismo Socialista, que
restringia a função da arte a um mero instrumento de propaganda política. Todavia, as
contribuições dos artistas construtivistas não se perderam e nem foram consideradas em
vão. No livro Eisenstein e o construtivismo russo: dramaturgia de forma em "Stuttgart",
François Albera (2002, p. 185) menciona que os setores em que a influência do
construtivismo foi marcante são numerosos, podendo-se ressaltar, dentre outros, a indústria
têxtil, a arquitetura e o urbanismo, a fotografia, o cinema, o grafismo e a tipografia.
A FOTOGRAFIA MODERNISTA DE RODCHENKO
Um artista completo. Assim era considerado Aleksandr Mikhailovich Rodchenko,
uma das principais figuras da arte soviética, detentor de reconhecido talento na realização
de diversos trabalhos como escultor, artista plástico, designer gráfico e fotógrafo, além de
ser um dos fundadores do movimento construtivista na Rússia, junto do amigo Vladimir
Tátlin.
Dispondo de um perfil inquieto, estava sempre em busca de caminhos
transformadores, experimentando diversas técnicas de expressões artísticas pelas quais
retratava o espírito revolucionário do período em que vivia.
Nascido em 1891, passou a sua infância em uma casa de teatro em São Petersburgo,
chamada Clube Russo, onde seu pai trabalhava. Vem também de seu pai um importante
incentivo para seu desenvolvimento criativo: não lhe dava brinquedos quando criança e,
para brincar, Rodchenko desenvolvia ao máximo sua imaginação.
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
96
Aleksandr Lavréntiev2 (2010, p. 205) relata que no início do ano de 1916, morando
em Moscou, o artista participou de uma exposição futurista na qual apresentou suas obras
fundamentadas em abstrações geométricas, colagens e pinturas, através de uma linha de
expressão que se introduzia no desenvolvimento da vanguarda soviética. É nesse período,
mais especificamente no ano seguinte, que é fundado o construtivismo russo.
Os novos materiais industriais e a máquina, afirmam eles, continham em
si mesmos uma beleza especial que lhes era própria. Esse primitivismo
arquitetônico refletiu-se de forma admirável na obra de Alexander
Rodchenko, que, a partir de 1915, executou desenhos apenas com a régua
e o compasso, para lançar-se depois, sem reservas, num esforço
construtivista. (SCHARF, 2000, p. 141)
Em 1923, Rodchenko introduz em seu repertório experiências com fotomontagens,
resultado de seu profundo interesse nas artes produzidas pelos dadaístas alemães. No
início, utilizava fotografias já elaboradas junto a outras ilustrações, símbolos e textos,
transformando-os em uma composição final que, na maioria das ocasiões, estavam
relacionadas a uma comunicação voltada para a revolução. Mas, é a produção de suas
próprias fotografias durante três décadas, a partir de 1924, que o definiria como um dos
importantes inovadores do processo artístico fotográfico.
Ao considerar que a fotografia foi invadida por Aleksandr Rodtchenko, Olga
Svíblova (2010, p. 07), diretora do Museu Casa da Fotografia de Moscou, afirma que
O resultado dessa invasão foi uma mudança fundamental nas ideias sobre
a natureza da fotografia e o papel do fotógrafo. O pensamento conceitual
foi introduzido na fotografia, que deixou de ser mero reflexo da realidade
e se tornou um dispositivo de representação visual de construções
intelectuais dinâmicas.
Rodtchenko introduziu a ideologia construtivista na fotografia e
desenvolveu métodos e instrumentos para aplicá-la. Os procedimentos
que ele descobriu se difundiram rapidamente. Foram utilizados por
alunos e praticantes com afinidades de pensamento, mas também por
adversários políticos e estéticos.
2
Aleksandr Lavréntiev é neto de Aleksandr Mikhailovich Rodchenko e o responsável pela organização da
biografia oficial do artista, publicada em 1999.
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
97
Desenvolveu uma competência criativa que resultou em um estilo e uma linguagem
visual singular. Sua conhecida fotografia Moça com uma Leica (Figura 01) exemplifica
diretamente como o fotógrafo aprimorou o seu olhar, estudando o alinhamento das
sombras, a penetração da luz em objetos translúcidos e, principalmente, como destacou a
perspectiva e a profundidade ao definir a óptica de enquadramento.
Figura 01 - Moça com uma Leica, 1934
Impressão vintage em gelatina e prata, 45 x 29,5 cm – Coleção Particular
Fonte: RODCHENKO, 2010, p. 85
Nas imagens Escada de incêndio (Figura 02) e Reunião para uma manifestação
(Figura 03), podem-se identificar os ângulos considerados excêntricos, geralmente a partir
de pontos muito acima ou muito abaixo do olhar humano, que ficaram conhecidos como
Ângulos de Rodchenko. Lavréntiev (2010, p. 211) explica que a escolha do fotógrafo
soviético no uso desses pontos de vista inesperados em suas composições se dá pelo fato
de que “antes raramente eram usados e porque pareciam moderníssimos”. Além de
transmitir a ideia da profundidade e a escala do espaço urbano retratado.
Figura 02 - Escada de incêndio, 1925
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
98
Impressão em gelatina e prata, 41 x 30,3 cm – Museu Casa da Fotografia de Moscou
Fonte: RODCHENKO, 2010, p. 63
Figura 03 - Reunião para uma manifestação, 1928
Impressão vintage em gelatina e prata, 40 x 27 cm - Museu Casa da Fotografia de Moscou
Fonte: RODCHENKO, 2010, p. 73
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
99
Junto à composição angular de característica expressiva, o fotógrafo também utiliza
como recurso estético em suas obras as imagens constituídas por formas abstratas, muitas
delas produzidas pelo foco nos detalhes de cenas urbanas, conforme se nota na obra
Degraus (Figura 04).
Figura 04 - Degraus, 1929
Impressão vintage em gelatina e prata, 39 x 56 cm – Coleção Particular
Fonte: RODCHENKO, 2010, p. 84
Para o artista, a aplicação desses recursos na estruturação de suas fotografias tinha a
finalidade de expandir a percepção visual do observador e motivá-lo a criar novas formas
de enxergar o mundo, além de representar a sociedade moderna que surgiria com as
conquistas da revolução.
Todos esses cuidados na escolha dos elementos estruturais para a elaboração da
imagem fizeram com que Aleksandr Rodchenko elevasse a linguagem fotográfica a um
novo patamar: transformou a fotografia documental em arte. Segundo Lavréntiev (2010, p.
209)
Os trabalhos de Rodtchenko influenciaram o surgimento de todo um novo
movimento de fotografia experimental, à semelhança de sua pintura
experimental e da arte gráfica dos anos 1910. Seus trabalhos dos anos
1920 marcaram um estilo especial da fotoarte, encorajando a formação da
“fotografia de esquerda”, do fotoconstrutivismo. Seus companheiros de
pensamento, discípulos e seguidores não o imitavam exatamente, mas
tratavam de trabalhar na mesma linha. Contudo, Rodtchenko mostrou que
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
100
era capaz de expressar as fórmulas, peculiaridades e regras do novo estilo
de modo mais conciso, incorporando elementos como a perspectiva
espacial com instantâneos angulares, a diagonal principal, estrutura
geométrica, escolha clara de projeção – frontal, perfil, vistas de cima ou
de baixo.
A partir deste período, em que os propósitos da vanguarda russa alcançaram a
prática da fotografia, artistas das gerações seguintes, influenciados pelas obras de
Aleksandr Rodchenko, modificaram seus olhares e ampliaram suas formas de compor uma
imagem, alterando, assim, o percurso da atividade fotográfica e inserindo-a,
definitivamente, na história da arte.
ESCOLA SOVIÉTICA DE MONTAGEM CINEMATOGRÁFICA
O filme fotográfico não foi o único artifício utilizado durante o período de
efervescência política e artística da Revolução Russa. A ele aliava-se o poder de
comunicação do filme cinematográfico.
Apontado como representante de uma sociedade moderna, muitos consideram o
cinema como a arte do século XX. Para o líder do Partido Bolchevique não era diferente.
Lênin via no cinema uma poderosa ferramenta de divulgação, capaz de fortalecer a
revolução e, por isso, além de reconhecê-lo como arte, nacionalizou o antigo cinema
czarista.
Em meados de 1907, o cineasta norte-americano David W. Griffith desenvolvia e
aprimorava a técnica de montagem narrativa criada por seu compatriota Edwin S. Poter, a
qual consistia na ideia da organização de planos para formar uma continuidade de tempo e
espaço. Para Carlos Canelas (2010, p. 04), essas produções, ao chegarem à União
Soviética, entusiasmaram os cineastas russos que, ao mesmo tempo em que visavam à
continuidade desses processos de criação, “preocupavam-se com a função dos filmes na
luta revolucionária”. Nota-se tal propósito no filme Outubro, do cineasta Sergei Eisenstein,
que retrata, como evidente forma de homenagem à Revolução de 1917, o mês em que os
bolcheviques assumiram o poder na Rússia.
Nas palavras de Albera (2002, p. 207)
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
101
O cinema, arte industrial, mecânica, anônima, ligada à sociedade e ao
mundo reais, tanto pelo fato de filmar as coisas existentes como em razão
de seu destinatário de massa, o cinema, arte da reprodução, coincidia em
mais de um ponto com certo número de “valores” futuristas e
construtivistas.
Na montagem soviética, o precursor da nova estética foi Lev Kulechov, que
defendia a ideia de “um cinema autoral, baseado na criação plástica” (MASCARELLO,
2012, p. 116). Durante algumas décadas lecionou na Escola Nacional de Cinema. O
cineasta ficou conhecido pela realização da experiência que ganhou o nome de Efeito
Kulechov (Figura 05), respaldada na justaposição do mesmo plano de um ator com
expressão neutra com outros três planos diferentes.
Figura 05 - Efeito Kulechov
Fonte: Instituto Nacional de Tecnologías Educativas y de Formación del Profesorado 3
Como resultado, Kulechov notou na interpretação do público percepções distintas
nas relações dos planos — tristeza, fome e desejo —independente do fato de a imagem do
ator ser a mesma durante toda a exibição. Canelas (2010, p. 06) destaca que “Kulechov
3
Disponível em:
http://www.ite.educacion.es/formacion/materiales/24/cd/m2_2/fundamentos_psicolgicos.html . Acesso em
31-05-2015.
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
102
descobriu a arte de ligar material sem nenhuma relação entre si e que, quando dois planos
são colocados em conjunto, o significado pode surgir ou acentuar a diferença entre eles”.
A partir dos ensinamentos de Kulechov, outros cineastas russos deram sequencia na
formulação de novas teorias, entre eles destacam-se Vsevolod Pudovkin, Sergei Eisenstein
e Dziga Vertov.
Vsevolod Pudovkin comparava o cinema à literatura, seguindo o pensamento de
que cada fragmento de imagem estaria relacionado à palavra e a combinação dessas
imagens, a montagem, à frase completa. Para ele os planos poderiam ser selecionados e
relacionados entre si para a construção sequencial do filme. Robert Stam (2009, p. 56), em
seu livro Introdução à teoria do cinema, ressalta que
Pudovkin elucidou os princípios básicos da continuidade narrativa e
espaço-temporal, fundamentalmente do ponto de vista do realizador. [...].
Para ele, a chave do cinema estava em seus protocolos para organizar o
olhar e controlar as percepções e os sentimentos por meio da montagem,
da encenação e de técnicas retóricas como o contraste, o paralelismo e o
simbolismo (Pudovkim 1960).
Sergei Eisenstein foi um dos principais teóricos do cinema russo e, pela ampla
utilização de suas teorias nas produções de seus filmes, foi o cineasta que posteriormente
obteve maior reconhecimento por parte do público. Para ele, segundo Paiva (2011, p. 42),
o princípio da montagem está presente em toda criação artística.
Diferente das técnicas elaboradas por seu antigo mestre, Eisenstein não se utilizava
do recurso da montagem para dar continuidade e contar uma história, mas sim para
provocar no espectador comoções, sensações e ideias, por meio do conflito entre os planos.
Em sua carreira cinematográfica, desenvolveu cinco novos tipos de montagens:
métrica, rítmica, tonal, atonal e intelectual.
A montagem métrica é fundamentada na extensão e na proporção dos fragmentos.
Eisenstein (2002, p. 79), nas escritas do livro A forma do filme, explica que “os fragmentos
são únicos de acordo com seus comprimentos, numa fórmula esquemática correspondente
à do compasso musical. A realização está na repetição desses compassos”. Essa
composição pode ser verificada na sequência do lezginka, uma dança popular da região das
Montanhas do Cáucaso que no filme Outubro aparece como forma de comemoração após a
libertação dos presos.
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
103
Podendo ser analisada na sequência da escadaria de Odessa do filme Encouraçado
Potemkin (Figura 06), a montagem rítmica, apresenta como característica a presença do
fluxo no conteúdo do fragmento como um elemento determinante na passagem de um
quadro para o outro.
Aqui, o comprimento real não coincide com o comprimento
matematicamente determinado do fragmento de acordo com uma fórmula
métrica. Aqui, seu comprimento prático deriva da especificidade do
fragmento, e de seu comprimento planejado de acordo com a estrutura da
sequência. (EISENSTEIN, 2002, p. 80)
Figura 06 - Sequência da escadaria de Odessa - Filme Encouraçado Potemkin
Fonte: Site YouTube4
Na montagem tonal, de acordo com Eisenstein (2002, p. 82), “o movimento é
percebido num sentido mais amplo. O conceito de movimentação engloba todas as
sensações do fragmento de montagem”. Ao citar essas sensações do fragmento, o teórico
engloba, por exemplo, as vibrações da luz e as composições gráficas, podendo ser notadas
a olho nu, como uma forma de comparação emocional. Como exemplo para esse tipo de
montagem, destaca-se a sequência do nevoeiro, no filme Encouraçado Potemkin (Figura
07).
Figura 07 - Sequência do nevoeiro - Filme Encouraçado Potemkin
4
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GZOFRtmMj8o . Acesso em 31-05-2015.
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
104
Fonte: Site YouTube5
Para atingir o propósito de causar um efeito emotivo no espectador, a montagem
atonal reúne a natureza das três montagens citadas anteriormente e a manipulação do
tempo de cada fragmento.
Já o último tipo de montagem, a intelectual, ficou conhecida como montagem de
conflito. “A montagem intelectual é a montagem não de sons atonais geralmente
fisiológicos, mas de sons e atonalidades de um tipo intelectual, isto é, conflito-justaposição
de sensações intelectuais associativas”. (EISENSTEIN, 2002, p. 86)
Dziga Vertov apresentava como ponto central de sua teoria o cine-olho (kino-glaz).
Para este cineasta, a matéria-prima da prática cinematográfica era a realidade e apenas a
documentação da verdade poderia ajudar no avanço revolucionário que era o autêntico
objetivo daquele período. Por esse motivo, defendia firmemente que as produções não
deveriam conter qualquer tipo de encenação ou reconstituição. Expondo esse
posicionamento rígido, foi duramente contestado por outros cineastas compatriotas,
conforme cita Mascarello (2012, p. 134)
A variedade e a intensidade dos procedimentos empregados no cine-olho,
mais vertiginoso e inorgânico que os experimentos de Eisenstein, deram
ensejo às recorrentes acusações de formalismo, tanto por parte de colegas
de vanguarda como por parte dos conservadores formais que viriam a
tornar o realismo socialista ideologia oficial.
5
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=h0ilVmplT3Y . Acesso em 31-05-2015.
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
105
Todas as inovações geradas por essas teorias e, principalmente, a visão de Sergei
Eisenstein em que a justaposição de planos resultava em uma forma poderosa de expressão
e não apenas um uma sequência de imagens - levando-o a um notável acervo de produção
fílmica — introduziu a escola soviética na lista dos maiores e mais respeitáveis
representantes do cinema mundial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A percepção da conexão existente entre a evolução humana e social com a arte que
se produz em certo período é o ponto de partida vital para o profundo entendimento de
determinada obra e seu realizador. Verifica-se nas leituras de Ernst Gombrich a concepção
de que uma criação só firmará sua importância na história da arte em um tempo posterior a
sua laboração, quando for possível entender, através desse distanciamento, sua importância
e colaboração para tal condição na sociedade e na arte.
A partir dessa pesquisa, fundamentada em observações e estudos dos conceitos da
vanguarda construtivista russa, associada a uma verificação do contexto histórico e político
do momento em que se desenvolvia, foi possível identificar e analisar as renovações de
artistas que representaram esse movimento nos campos da fotografia e do cinema.
Na fotografia, o estudo destacou a importância de um novo olhar praticado e
estimulado por Aleksandr Rodtchenko, que mudou a história da composição estética
fotográfica através de elementos geométricos e de seus ângulos considerados fora do senso
comum para a época.
No que se refere ao cinema, valendo-se de um poderoso recurso de comunicação
em massa, os cineastas soviéticos criaram por meio de diversos experimentos e teorias uma
nova linguagem na montagem cinematográfica, sem perder o foco principal: a Revolução
Bolchevique.
Todas essas contribuições, tanto na fotografia quanto no cinema, colaboraram para
a estética encontrada até hoje, nas produções mais recentes desses setores, enfatizando,
assim, a noção de que o construtivismo russo revolucionou definitivamente a arte, através
das práticas inovadoras de seus artistas que estavam em busca dessa nova era na sociedade
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106
106
soviética e, por isso, é considerado um importante e decisivo movimento artístico
modernista.
REFERÊNCIAS
ALBERA, François. Eisenstein e o construtivismo russo: dramaturgia de forma em
"Stuttgart" (1929). São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a história: História geral e história
do Brasil. 4.ed. São Paulo: Editora Ática S.A, 1996.
CANELAS, Carlos. Os fundamentos históricos e teóricos da montagem cinematográfica:
os contributos da escola norte-americana e da escola soviética. BOCC / Biblioteca Online
de Ciências da Comunicação. 2010 [suporte eletrônico]. Disponível em:
http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-canelas-cinema.pdf . Acesso em 09/05/2015.
GOMBRICH, Ernst Hans. A história da arte. 16.ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
LAVRÉNTIEV, Aleksandr. Aleksandr Ródtchenko: começos da vanguarda fotográfica na
Rússia. In: RODTCHENKO, Aleksandr Mikhailovich. Revolução na fotografia. São
Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo; Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2010.
MASCARELLO, Fernando. História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2012.
PAIVA, Cristina. Além da teoria da montagem de Eisenstein: princípios gerais da
construção de obras de arte.Tessituras & Criação. No. 2 Dez 2011 [suporte eletrônico]
Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/tessitura>. Acesso em 24/05/2015.
PROENÇA, Graça. Descobrindo a história da arte. São Paulo: Ática, 2004.
RICKEY, George. Construtivismo: origens e evolução. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
SCHARF, Aaron. Construtivismo. In: STANGOS, Nikos. Conceitos da arte moderna. Rio
de Janeiro: Zahar, 2000.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema; tradução Fernando Mascarello. Campinas:
Papirus, 2009
SVÍBLOVA, Olga. Gerador de arte. In: RODTCHENKO, Aleksandr Mikhailovich.
Revolução na fotografia. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo; Rio de Janeiro:
Instituto Moreira Salles, 2010.
ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 91-106