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7
JORNAL LABORATÓRIO DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO DA UFRJ - número 15 - 2009/1
Branca de Neve e os ...... anões
...... de setembro
crise dos ...... anos
...... mares
pela bola ......
......ª arte
a camisa ......
bicho de ...... cabeças
00 ......
abaixo dos ...... palmos
...... notas musicais
trancado a ...... chaves
...... cores do arco-íris
pintando o ......
...... anos de azar
jogo dos ...... erros
...... dá sorte
os gatos têm ...... vidas
as ...... maravilhas do mundo
2
As muitas versões de
um número místico
O número sete é aquele que se segue aos seis
e precede o oito. Mas é também muito mais do que
isso. Chamado de o “número mágico”, o sete está
presente na natureza, na ciência e em diferentes culturas e crenças de todo o planeta. São sete os dias da
semana, as cores do arco-íris, as notas musicais, os
anões da Branca de Neve, as maravilhas da Antiguidade, os pecados e até os orifícios da cabeça!
Não se sabe desde quando nem como o sete se
tornou um símbolo e adquiriu significações e atribuições tão diversas. No entanto, a explicação mais
adotada por historiadores, mitólogos e estudiosos de
religião comparada é de que o fascínio pelo número surgiu a partir da observação da natureza pelos
povos mais antigos. Ao contemplar o céu, as sociedades pré-históricas perceberam o ciclo da Lua, que
se divide em quatro fases (Nova, Crescente, Cheia
e Minguante) com duração de sete dias cada uma.
Este dado assumiu grande importância na vida cotidiana de muitos povos, como babilônios, sumérios,
hebreus, gregos e incas, pois era através da observação do céu que eles podiam prever a chegada das
estações do ano e o período correto para o plantio
e colheita.
A partir de então, o sete teria se tornado referência no dia-a-dia dessas sociedades e por extensão
ganhado significações que persistem até hoje. A semana de sete dias, por exemplo, é uma derivação do
calendário lunar e, segundo evidências arqueológicas
e históricas, teria sido utilizada pela primeira vez pelos babilônios que deram a cada dia o nome de um
dos planetas que conheciam.
Depois a semana de sete dias foi adotada pelos
hebreus durante o período em os babilônios conquistaram o seu reino, Judá, em cerca de 500 a. C.
Com a dispersão do povo hebreu, essa medição dos
dias foi incorporada pelos islâmicos e, mais tarde,
pelos gregos e romanos, que também atribuíram a
cada dia um planeta que correspondia também aos
deuses: Dies Solis (Dia do Sol), Dies Lunae (Dia da
Lua), Dies Martis (Dia de Marte), Dies Mercuri (Dia
de Mercúrio), Dies Iovis (Dia de Júpiter), Dies Veneris
(Dia de Vénus) e Dies Saturni (Dia de Saturno).
O sete também está presente em mais de um
mito de criação, sendo o mais conhecido deles a Gênese hebraica e cristã, presente no Antigo Testamento, em que Deus cria o mundo em sete dias e descansa no último, que é o sagrado Shabat dos judeus. Por
isto o sete é tido por estes povos como o número da
criação, da perfeição e da união entre Deus e a Terra.
A cultura hebraica está impregnada de significados
para o sete, a Menorah, um dos pricipais objetos litúrgicos dos judeus, é um candelabro de sete braços
que é aceso antes da oração do Shabat, quando surge
a primeira estrela no céu de sexta-feira. Além disso,
entre os cristãos, são sete os pecados, sete as virtudes
e sete os sacramentos (confissão, eucaristia, crisma,
ordem, matrimônio, batismo e extrema-unção).
Entre os egípcios, o sete também está presente:
são sete os deuses principais e sete os estágios de
purificação pelos quais a alma passaria após a morte. Na China e entre os hindus, o número está ligado aos principais chakras, canais ou aberturas do
corpo por onde circula a energia vital que o nutre.
No mundo islâmico, o sete é igualmente importante,
sendo o símbolo de perfeição e vastidão, presente
nos sete céus, véus, terras e mares. No Irã, o número
já é apresentado logo que a criança nasce. O rebento
é envolvido em uma toalha com sete espécies de frutos e de grãos aromáticos e só recebe um nome no
sétimo dia após sua chegada ao mundo.
Na arquitetura sagrada, o sete é recorrente. Os
pagodes, templos chineses, possuem por tradição
sete degraus na entrada. O mais famoso, Churingham, é cercado por sete paredes pintadas com sete
cores diferentes. No Ramayana, texto épico sânscrito de sete partes que é base da cultura indiana, sete
pátios são mencionados como parte das residências
dos reis hindus e sete são os portões que levavam
aos palácios destes reis. Em Cuzco, o antigo panteão
inca, um muro exibe, junto à figura de uma árvore
cósmica, um desenho que representa sete olhos, “os
olhos de todas as coisas”.
Para os alquimistas, este número também
possuía um significado profundo, pois eram sete
os metais com que eles trabalhavam, além de sete
os passos para se transformar qualquer matéria em
ouro. Entre os budistas, bem como entre os gregos,
eram sete os sábios reconhecidos. Na Grécia, são
muitos os mitos que envolvem o número: as sete
Hespérides, as sete portas de Tebas, os sete filhos e
as sete filhas de Niobe, as sete cordas da lira.
Na África, o sete é sinal de perfeição e unidade,
de união dos contrários (quatro é o feminino e três,
o masculino) e também símbolo da fecundação. Na
Umbanda, o sete também é reverenciado: sete são as
“Encruzilhadas do Caboclo”, bem como as etnias
que a praticam (Oriente, Omolocô, Almas, Angola,
Nagô, Gêge e Kêto).
Também encontramos o sete nas seitas e
religiões ocultistas. Entre os cabalistas, são sete os
Sephiroth, as emanações de Ain Soph (“Sem limites”,
em hebraico), que é Deus em seu aspecto mais
sublime. Elas formam a árvore da vida, metáfora da
natureza divina, ou Pleroma, princípio e fim do mundo
criado. Já no sufismo, filosofia mística do islamismo,
são sete os níveis de consciência, que correspondem
aos estados de espírito.
Na matemática o sete também se destaca. Ele
é o único número primo que não é nem múltiplo
nem divisor de um outro número entre 1 e 10. Além
disto, o resultado da divisão de qualquer inteiro
não múltiplo de 7, por 7, resulta sempre na 142857
periódica. Faça o teste!
Rafael N. Godinho
Sofia Moutinho
NO 15 - 2009/1
EDITORIAL
Sete são as colinas de Roma, os anões da Branca
de Neve, os algarismos romanos, os sábios da Grécia, as
cabeças da Hidra, os pecados capitais e os desastres do
Apocalipse. A História talvez ainda não tenha registrado,
mas sete também são os anos de existência do “Número
Zero”.
Nelson Rodrigues dizia que não há coincidências
burras. Mas a inteligência delas a gente só descobre depois
que acontecem. E foi assim, fechando as últimas matérias,
que nos demos conta de que esta edição sob o signo do
sete acontece não só no sétimo aniversário do jornal mas,
também, no fim de um ciclo em sua coordenação.
Não, nós professores não estamos enfrentando a crise dos sete anos. E, apesar de não termos nada de divino,
é justo que descansemos no sétimo ano. Não para ficar de
papo para o ar, mas para dar lugar a uma nova coordenação
que, esperamos, tenha o fôlego e as sete vidas de um gato.
Nestes sete anos, escrevemos sobre tudo: ditados
populares e clichês, esportes e religiões, a Urca e as ruas do
Rio. Sempre tendo em mente que, mais importante do que
qualquer coisa, é o espírito de experimentação – que permite, por exemplo, editarmos um número inteirinho sobre
a mística de um número.
O jornalismo não é uma das sete artes, mas permite
exercitar a cada dia a esperança, a fortaleza, a prudência,
o amor, a justiça e fé e a temperança – estas, sete, sendo as
clássicas virtudes humanas.
Sendo o sete também a conta de mentiroso, encerramos este editorial no sexto parágrafo com a sensação de
dever cumprido e muito bem arrematado aqui. Ok, sete é
também o numero da perfeição, mas, modestos que somos,
preferimos que seja aqui o número de sorte para todos nós.
O que não é pouco.
André Motta Lima, Mauricio Schleder e Paulo Roberto Pires
Universidade Federal do rio de Janeiro
reitor
Aloisio Teixeira
escola de comUnicação
direção
Ivana Bentes
coordenação do curso de Jornalismo
Ana Paula Goulart
núcleo de imprensa
Elizabete Cerqueira coordenação executiva
Cecília Castro programação visual
número 15 - 2009/1
Informativo produzido pelos alunos da Escola de Comunicação da UFRJ
orientação acadêmica e de texto
Maurício Schleder
Paulo Roberto Pires
coordenação editorial
André Motta Lima
coordenação gráfica e design
Cecília Castro
assessoria de imprensa
Elizabete Cerqueira
apoio
Divisão Gráfica da UFRJ
Este número foi produzido com matérias elaboradas pelos alunos da disciplina
Jornal Laboratório.
As fotografias e ilustrações são de responsabilidade dos alunos.
TIRAGEM: 500 exemplares
distribUição GratUita
NO 15 - 2009/1
O número da sorte
3
Nos cassinos dos EUA ou nas ruas do Brasil, a mística influencia apostadores de jogos de azar
A roleta gira pela primeira vez,
as figuras se organizam de forma
insatisfatória e os créditos diminuem. Na segunda tentativa, duas
cerejas em sequencia devolvem as
esperanças. O apostador, porém, só
vai realmente sentir-se um vencedor quando os três setes aparecerem
lado a lado, dando o prêmio máximo no caça-níquel.“Eles têm uma
verdadeira fixação no sete, principalmente nos jogos!”, conta Vitor
Alves, estudante de publicidade que
passou quatro meses nos EUA, em
intercâmbio, visitou cassinos em
Las Vegas e constatou a obsessão
dos norte-americanos com o dito
número da sorte.
“Nos caça-níqueis, tirar este
número dá direito ao prêmio máximo. Há jogos de dados em que vence quem tira o sete. Existem caras
que apostam obsessivamente neste
número, nas roletas. E os cassinos
aproveitam esta mística também nas
propagandas. Um deles tinha uma
carta de baralho gigante, com o
sete, brilhando na entrada”, prossegue ele, confirmando que a mística
do sete encontrou nos jogos de azar
o lugar ideal para ganhar ainda mais
força.
A relação entre o sete e a sorte é, de fato, bastante explorada. Os
cassinos não perdem a chance de
vincular o misticismo do número
aos jogos para atrair mais clientes.
“Quando inauguramos o cassino,
nosso gerente queria que o telefone
tivesse um número fácil. Por isso,
escolheu o sufixo 7777, porque este
é o número da sorte. Como a sorte é
um fator muito importante em jogos
de azar, é possível que isso exerça
uma influência nas pessoas”, conta
Candace Penney, do Lucky Seven
Casino, na Califórnia.
O jogo de dados pode ser considerado o principal responsável
pela força deste mito. Nele, rola-se
dois dados, e o vencedor é aquele
que somar o sete. Coincidência ou
não, a soma parte sempre dos lados
opostos do dado: 6 e 1, 5 e 2, 4 e 3.
Some a isso o fato de desde o Império Romano haver apostas baseadas
nos dados – e no tal sete - e pronto:
surge o mito do número da sorte.
Número não possui a mesma
fama no Brasil
Em terras tupiniquins, entretanto, a lenda não tem tanta força.
O professor de inglês André Diniz,
que viveu nos EUA dos quatro aos
16 anos, vê de forma clara as diferenças. “O máximo de traço que
existe aqui no Brasil são os caçaníqueis, que mostram o sete como
prêmio máximo, mas acho que as
pessoas não ligam muito para isso”,
diz. Para ele, as superstições que
relacionam o algarismo ao azar são
muito mais fortes no Brasil. “Tem a
crise dos sete anos no casamento, a
ideia de que quebrar um espelho dá
sete anos de azar. Isso tudo é muito
mais entranhado na cultura brasileira”, conclui.
Na verdade, o próprio número não ajuda. Na Mega Sena, o jogo
mais popular do país, o sete não
figura nem entre as dezenas mais
sorteadas, nem entre aquelas que raramente aparecem. Está exatamente
no meio, tendo saído apenas dez vezes nos últimos 12 meses. Para completar, até 20 de maio, não saía há
quatro sorteios. Além disso, o fato
de os jogos de azar serem proibido
no Brasil também ajuda a enfraquecer um pouco o mito.
Não à toa, no mais conhecido
jogo ilegal da nação, o sete tem uma
participação mais ativa e até gera
certa mística. No famoso Jogo do
Bicho, o carneiro, animal representado pelo número, está entre os cinco resultados mais frequentes. Além
disso, é um dos mais apostados nos
pontos espalhados país afora. Sil
vana Triani, de 40 anos, faz parte
do grupo de pessoas que deposita
sua fé no carneiro. “Depende muito
dos sonhos também. Quando sonho
com algum outro bicho, eu aposto
nele. Mas quando não acontece sempre jogo no carneiro”, conta ela, que
já chegou a ganhar duas vezes graças a sua persistência.
Outro exemplo de insistência
e superstição é Nelson Santos, um
camelô de 26 anos, que quase diariamente tenta a sorte grande. Curiosamente, ele só confia em um caça-níquel, próximo à estação de metrô da
Pavuna, para fazer a sua fé. “Eu sou
bastante supersticioso. Já tentei jogar em outras máquinas, mas nunca
consegui nada. Nesta aqui, me sinto
mais confiante, tenho mais segurança. Sei que ainda vou tirar os três
setes nela”, explica ele, apontando
para a máquina.
Entretanto, esta confiança rendeu poucos frutos a ele. “Ganhei
poucas vezes, e sempre uma merreca. Mesmo assim, procuro sempre
jogar aqui. Acho que qualquer pessoa que aposta em algum jogo tem
suas manias e neuroses. Faz parte da
graça de apostar”, acredita Nelson.
Para Laís Salomão, numeróloga
há sete anos, toda a mística religiosa e histórica do número é a grande
responsável por ele ser tido como
um algarismo da sorte. Entretanto,
no Brasil, outros fatores também influem. “Acho que é uma crença mais
pessoal, depende muito da criação
que cada pessoa recebe, da cultura em que ela está inserida”. Certo
mesmo é que o sete é, de fato, poderoso. “É um número com grande
força espiritual, dos estudos, da meditação, do isolamento em busca do
conhecimento. Geralmente, pessoas
guiadas pelo sete têm a missão de
mudar de forma significativa a vida
de outras pessoas”, explica.
Felipe Schmidt
4
NO 15 - 2009/1
Na morte, restaram quatro palmos
Superlotação dos cemitérios cariocas reduz a profundidade das sepulturas e exige novas alternativas
Sete palmos de terra. Não há quem
nunca tenha ouvido falar na expressão
que já inspirou música, poesia e até série
televisiva. Mas será que todos sabem de
onde ela vem? Equivalente a aproximadamente 1,55, metros a medida se refere à
profundidade das covas e pode estar em
vias de extinção. Os cemitérios do Rio de
Janeiro, criados há mais de 100 anos, estão com falta de espaço e quando se trata
de vencer a superlotação nem a lei é respeitada.
De acordo com o artigo 19 do Decreto “E” Nº 3.707 de 06 de fevereiro de
1970, as covas rasas devem ter medida
mínima de 1,55 metros de profundidade
por 2,10 metros de comprimento para
evitar a contaminação do lençol freático
e a expansão para a superfície de gases e
microorganismos que fazem a decomposição. No entanto, a prática é bem diferente. Segundo Carlos Pereira, coveiro há
24 anos do cemitério São Francisco Xavier, mais conhecido como Caju, a profundidade real das covas está entre três e
quatro palmos.
A mudança foi decorrente da redução dos espaços nos cemitérios que
precisaram diminuir a profundidade para
aumentar o calor, acelerar o processo de
decomposição e encurtar o tempo necessário para a exumação dos corpos de
cinco para três anos. Com a diminuição,
espaços antigos se tornaram disponíveis
em menos tempo.
A redução da profundidade das covas foi adotada, sobretudo, nos 13 cemitérios públicos da cidade que estão, desde
1851, sob administração da Santa Casa
de Misericórdia do RJ. O caráter público
vem da regulação governamental sobre a
prestação de serviços, preços dos caixões
e fiscalização dos cemitérios. Como instituição sem fins lucrativos a Santa Casa repassa o valor cobrado pelos sepultamentos para a realização de enterros daqueles
que não podem arcar com as despesas.
Construídos há mais de um século,
os cemitérios públicos e particulares precisam se adaptar à passagem do tempo e
à impossibilidade de expandir o território.
Com cerca de 250 sepultamentos por dia
dentro do município, outras alternativas
foram necessárias para atender a todas as
famílias. Empresas privadas optam pela
busca de novas áreas e construção de
cemitérios verticais. Entre os cemitérios
particulares o mais conhecido é o Jardim
da Saudade, com unidades em Sulacap e
mãe e na época procuramos o Cemitério
de Inhaúma para fazer o enterro porque
eu queria que ela ficasse no mesmo lugar
que o meu pai estava. No entanto, quando liguei para pedir uma locação por três
anos me informaram que lá não havia nenhuma disponível e que eu deveria procurar outro. Acabei escolhendo o cemitério
do Caju”, disse Vicente.
O mesmo aconteceu com um morador de Campo Grande, zona oeste do
Rio de Janeiro, que
não quis se identificar. “Meu tio morreu
subitamente e quando fomos procurar
pelo cemitério aqui
mesmo da região não
encontramos
vaga.
A princípio disseram
que talvez tivesse, mas
no final das contas tivemos que optar pelo
Jardim da Saudade de
Paciência”.
Apesar disso, Dahas Zarur, administrador da Santa Casa, diz que “não
há nada lotado em nenhum cemitério.
As caixinhas que recebem os ossos, por
exemplo, ocupam toda a parede do local e não há como acabar esse espaço”.
Acontece que passados os três anos necessários para a exumação, vagas antigas
são reabertas, como se dessem início a
um novo ciclo. A superlotação está relacionada a não existência de locais novos,
o que leva à dependência das exumações
para que novos enterros possam ser feitos. A falta de espaço, nesses casos, não
é definitiva.
A ausência de locais para sepultaht
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em alguns cemitérios do Rio de Jatp
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neiro afeta principalmente as pessoas de
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classe média e baixa que não têm condim
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custa no mínimo vinte mil reais. Nesses
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casos, há espaço suficiente para cai49
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1xão e ossos, não havendo risco
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de que ele se esgote um dia,
segundo informou o administrador da Santa
Casa.
Paciência, zona oeste da cidade. O estilo parque foi trazido dos EUA e oferece
apenas um tipo de sepultamento: caixa
de concreto abaixo da grama com espaço
duplo onde as pessoas são sepultadas.
Embora a violência tenha crescido
no Estado do Rio de Janeiro em 40% entre 1991 e 2000, de acordo com dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ela não é responsável pela
superlotação. “A ausência de espaço está
associada ao término da vida útil dos cemitérios, variável de acordo com o local
e as dimensões. O que está acontecendo
é que o Jardim da Saudade de Sulacap, o
primeiro que o Brasil teve no estilo parque, está praticamente esgotado. Criado há 40 anos, pode esgotar em cinco.
Estamos chegando ao período final das
vendas de sepulturas. Tudo que poderia
ser construído já foi. Já o de Paciência
tem apenas 15 anos e ainda vai durar por
bastante tempo. Esse é o ciclo normal de
qualquer cemitério. É assim nos particulares e também nos públicos como já está
acontecendo no São João Batista, um dos
mais antigos do Rio de Janeiro”, disse
Nacle Gibran Bezerra Filho, diretor do
Jardim Saudade.
O cemitério São João Batista, construído em 1851, e o de Inhaúma, datado
de 1901, estão entre os que costumam sofrer mais reclamações por quem necessita
fazer um sepultamento. Quem já passou
por essa situação foi Vicente Ferreira, 51
anos, que perdeu a mãe em fevereiro de
2008 e não encontrou local disponível no
cemitério de Inhaúma. “O espaço para sepultar existe, mas não em todos os cemitérios a qualquer momento. Perdi minha
A construção de cemitérios verticais representou uma nova forma de extinguir os sete palmos para lidar com o
espaço. Ao mesmo tempo contribuem
para a preservação, sobretudo, do lençol
freático, cuja contaminação pode levar
à proliferação de doenças para a população do entorno. No Rio de Janeiro, o
principal cemitério vertical é o Cemitério
da Venerável e Arquiepiscopal Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Monte do
Carmo, mais conhecido como Memorial
do Carmo, primeiro
cemitério vertical da
cidade, construído no
final dos anos 90, e localizado no bairro do
Caju. Tendência nos
Estados Unidos, Canadá e Europa, os sepultamentos são feitos
em jazigos horizontais
estanques de concreto
armado.
Outra solução para a falta de espaço
em cemitérios é a utilização de crematórios. Além de mais higiênica e barata do
que os demais sepultamentos, pode contribuir para evitar ou solucionar a superlotação dos cemitérios. No Rio, o índice
crematório ainda é muito pequeno por
uma questão de tradição e de religiões
como o Judaísmo e Islamismo, em que
a cremação é proibida. Segundo Dahas
Zarur, para cada 180 enterros são feitas
3 cremações.
A falta de espaço em cemitérios não
é um problema que afeta apenas a cidade do Rio de Janeiro. São Paulo, Brasília,
Rio Grande do Sul, Paraná e Niterói, no
Estado do Rio, onde está localizado o cemitério do Maruí, também são afetados.
Em Santa Catarina, a solução foi um pouco mais ousada. A lotação do cemitério
São José, no centro de Blumenau, levou
a estudos que fossem capazes de definir a
melhor solução entre construir um cemitério vertical e um crematório. Optou-se
por juntar dois em um com a criação do
Memorial Ecumênico São Francisco de
Assis, um lugar onde o resultado final é
a cremação, mas no qual as famílias têm
reservado o direito de manter suas tradições e crenças sepultando os corpos de
seus entes através da utilização de columbários para armazenamento de cinzas.
“Estamos no
período final
das vendas de
sepulturas. Esse
é o ciclo normal
de qualquer
cemitério”
Novos tipos de sepultamentos acabaram com os antigos sete palmos de terra
Miriam Paço
NO 15 - 2009/1
Ganhando novas vidas, como o gato
5
Sobreviventes contam como atravessaram os momentos que pareciam ser o fim de tudo
O gato é popularmente reconhecido
por ser um animal ousado e arisco. Pikachu, não foge a regra. Com agilidade, flexibilidade e visão aguçada põe em prática seu
instinto de sobrevivência. Sua incrível capacidade de se equilibrar sobre quatro patas o fez escapar da tentativa de homicídio
quando jogado do terceiro andar do prédio
onde mora na rua Barão de Itapagipe, após
invadir a casa de uma vizinha que temia o
coito entre o gato vira-lata e sua gatinha de
pedigree.
Pikachu só confirma o mito dos felinos possuírem mais de uma vida. Essa
capacidade relacionada ao místico número
7 foi a combinação perfeita para a criação
do dito popular “os gatos têm sete vidas”.
A partir da história do ousado bichano, sobreviventes contam como atravessaram os
momentos em que estiveram no limite entre a vida e a morte, totalizando sete vidas.
Vida 2: afogamento
No carnaval de 1998, após belos dias
de sol, a quarta-feira de cinzas amanheceu nublada. O mar estava tranquilo com
enorme faixa de banco de areia. Então,
Águida Freire resolveu se banhar. Sozinha,
ficou boiando, em profundo relaxamento.
De repente, a ela sentiu uma forte cãibra e
ao olhar ao seu redor não enxergou qualquer surfista que pudesse socorrê-la. Tentou manter a calma. Águida acenava para
a família que estava sentada em volta da
barraca de praia. “Pareceu uma eternidade. Estava tão cansada que procurei continuar boiando, pensei em muitas coisas,
cheguei a não ter esperança de conseguir
sair dali”, revela.
Após beber um bocado d’água, Águida foi trazida pelo próprio mar de volta
para o banco de areia, aonde foi socorrida
por um grupo de banhistas. “Acredito que
ele (Deus) tenha me dado uma forcinha.
Seria muito ruim morrer daquela maneira,
tão banal”, desabafou a sobrevivente. Após
os primeiros socorros, ela foi levada para
o Hospital Municipal da Mulher de Cabo
Frio. A passagem de água para o pulmão
levou à parada cardíaca. O rápido atendimento salvou a vida de Águida que recebeu
alta na semana seguinte.
Vida 3: dependência química
Com 17 anos, Ricardo Tavares criou
uma banda com mais três amigos começava a fazer shows e ganhar dinheiro com a
música. Pouco, mas o suficiente para alimentar seus pequenos prazeres. O assédio
de namoradas e novos amigos veio no mesmo instante em que conheceu as drogas.
“Nesse ambiente é muito comum o acesso
esse tipo de coisa. Em alguns meses fui da
maconha para as drogas sintéticas, passan-
do pela cocaína” confidenciou Ricardo.
Numa tarde de julho de 2001, em
casa, Ricardo consumia cocaína quando
teve parada cardíaca. Ao ver seu filho jogado no chão, a mãe o levou à emergência do
Hospital do Andaraí. “Nessa situação qualquer minuto faz toda a diferença.” Após se
livrar do risco de morte, Ricardo foi transferido para o Hospital Pasteur, no Méier,
por onde permaneceu mais 18 dias.
Quando voltou para casa, seu pai
decidiu pela internação em uma Clínica
de tratamento para dependentes químicos. “Naquelas semanas vi o sofrimento da
minha família, da minha avó. Levei o susto que precisava. Talvez não tivesse outra
chance.” Sem qualquer tratamento Ricardo
conseguiu largar o vício.
Vida 4: anorexia
Vinícius é o filho caçula de uma
típica família italiana. O pai, seu Gennaro,
é dono de padaria. A mãe, dona Eleonora,
é a típica mama. Dona de casa, cozinha
com talento inigualável. Não por acaso
os Bestalucci enfrentam problemas com
a balança. Ao chegar da escola, Vinícius
se dividia entre sua casa e a padaria.
Chegou aos 15 anos com 1,70m e 92 kg.
Era motivo de gozações no colégio. “Não
suportava aquela situação. É complicado
admitir, mas eu mesmo não gostava de
pessoas gordas”, declara o caçula.
Então descobriu uma maneira rápida
e para perder peso. “Passei a não comer.
Não aceitava nada que me ofereciam,
em casa dizia que ia comer no quarto e
jogava a comida fora. Não sentia fome,
o fator psicológico não permitia”, revela
Vinícius. Em 18 meses o rapaz passou a
pesar 48kg medindo 1,78m. “Nenhuma
mãe merece ver um filho assim” conta
dona Eleonora.
Vinícius passou a sofrer com diversas doenças em razão da baixa imunidade.
Uma infecção provocada por um corte no
pé esquerdo o deixou 20 dias no hospital.
Cogitou-se a possibilidade de amputar a
perna, visto a velocidade que a bactéria
se espalhava pelo organismo. Com tratamento psicológico e o apoio de amigos
e familiares, Vinicius conseguiu reverter
o quadro. Aos poucos vem recuperando
sua forma e finalmente consegue se ver
como realmente é.
Vida 5 : Aids
Em 1991, após um exame de sangue
de rotina, Glauber Souza recebeu a notícia
que mudaria sua vida. O exame atestou positivo para o então pouco conhecido HIV.
“Não podia me desesperar, apesar de tudo
ser desesperador. No início dos anos 1990
ainda estava se descobrindo o que era a
Aids.”
Sem familiares no Rio de Janeiro,
Glauber cria sozinho o filho que adotou e
enfrenta diariamente o preconceito, além
das divergências com o plano de saúde
para custear o caro tratamento. Porém, o
momento mais difícil de sua vida foi em
dezembro de 2003, quando sofreu uma
pneumonia.
“Estava em um período de muito trabalho com o fim do ano letivo nos três colégios que leciono, além de estar corrigindo
provas de vestibular. Não me recuperei de
uma gripe e acabei iniciando um quadro de
pneumonia.” A situação de Glauber chegou ao ponto limite entre a vida e a morte.
As complicações geradas a partir da inflamação nos pulmões são quase irreversíveis
para um paciente soropositivo.
Durante o período que esteve internado na Unidade de Tratamento Intensivo
do Hospital da Beneficência Portuguesa
aconteceu um fato curioso. “Ninguém
sabe quem inventou essa história, mas em
um dos colégios que trabalho chegaram a
acreditar que eu havia morrido. Suspenderam o meu pagamento nos dois meses
seguintes.” Muito querido pelos amigos e
alunos, Glauber aguentou as seis semanas
de internação. Com 1,68m, Glauber saiu do
hospital com menos seis quilos, pesando 44
kg. “Fui mais forte, não poderia deixar meu
filho sozinho.”
Vidas 6: sequestro relâmpago
Em dezembro de 2005, Nancy Castro mal havia chegado ao Rio de Janeiro,
após um ano em Boston, e com sua mãe
foi buscar a sobrinha Gabriela para passar
o final de semana na casa da avó. As três
seguiam de carro pelo Alto da Boa Vista no
maior bate-papo, pondo em dia as novidades de quase um ano.
De repente, um carro em alta velocidade fechou o veículo de dona Nylza.
Um homem saiu já com uma arma apontada para Nancy, que guiava o veículo. “Ele
mandou minha tia passar para o banco de
trás e logo arrancou pela Estrada Velha da
Tijuca”, relata Gabriela.
“Ele dizia a todo o momento que iria
nos matar ”, recorda. “Não sabíamos o que
ele queria, foi me angustiando. Perdei minhas forças e desmaiei”, conta dona Nylza.
Preocupadas com a o estado da senhora,
Nancy e Gabriela imploraram para que o
homem as liberasse. No entanto, o sequestrador continuava a aterrorizá-las. “Ele viu
que a minha avó estava desacordada e continuava a nos apontar a arma, além de falar
insistentemente que iria nos matar.”
Até que o bandido foi surpreendido
por uma blitz da Polícia Militar. Sem outra
opção de fuga, ele freou bruscamente o veículo e saiu correndo em meio aos pedestres.
Os policiais acionaram o corpo de bombeiros que rapidamente chegou e prestou os
primeiros atendimentos à dona Nylza. Felizmente, havia sido apenas uma queda de
pressão, rapidamente contornada.
Vida 7: acidente vascular cerebral
Dois meses após ser divulgada a sua
aprovação no concurso público para fiscal
da Receita Federal, Leonardo Monteiro
teve seu sonho interrompido por uma fatalidade. Durante a noite, seu pai chegou foi
ao seu quarto e o viu dormindo no chão, ao
lado da cama. “Tentei acordá-lo para que
fosse dormir na cama, pensei que estava
bêbado”, recorda o pai, Wagner Monteiro.
Ao soar do despertador, às 6h, Leonardo não levantou. Daí o pai desconfiou
que algo acontecera. “Ele mal apresentava
sinais vitais, entrei em pânico, com um tremendo sentimento de culpa.” No hospital
foi diagnosticado o acidente vascular cerebral isquêmico. Falta de irrigação sanguínea
no tecido cerebral em razão de arritmias
cardíacas, um problema genético.
Devido à demora ao atendimento, o
quadro de Leonardo foi considerado irreversível. Passaram-se mais de 7 horas entre
o derrame e o atendimento. “Um médico
veio a minha esposa e disse que na melhor
das hipóteses o nosso filho teria uma vida
vegetal.” Após demorado procedimento cirúrgico, veio o alívio. O jovem não corria
mais risco de morte.
“Foi só o começo dessa longa caminhada. Nesses oito anos já fiz mais de mil
horas de exercícios de fisioterapia. Valeu a
pena. Não posso reclamar de nada”, conta
Leonardo. Sua promissora carreira não foi
adiante. Ainda hoje sua vida se restringe de
sua casa à academia, onde faz sessões de
fisioterapia. Mesmo com as sequelas que
afetaram basicamente o lado direito do seu
corpo, hoje ele anda com auxílio de muletas
e apesar da dificuldade, consegue falar.
Thiago Etchatz
6
NO 15 - 2009/1
Sequestro de anões vira outra história
Intervenções urbanas deixam Branca de Neve só e promovem guerra. De travesseiros
Era uma vez sete anões que viviam felizes na floresta com a linda princesa Branca
de Neve, até que um dia foram retirados de
seu lar e obrigados a viver enclausurados em
um jardim particular. Esta historinha lhe soa
absurda? Pois saiba que nem todos a consideram pura fantasia. Surgida na França por volta de 1997 e com adeptos em diversos países,
a Frente de Libertação dos Anões de Jardim
(Front de Libération des Nains de Jardins FLNJ) é formada por gente que acredita ser
defensora dessas criaturinhas. O objetivo dos
integrantes do movimento é confrontar o establishment “libertando os anões do ridículo
e da servidão” e supostamente devolvendoos aos bosques e florestas.
Os integrantes da frente, que no
Brasil se chama Organização para a Libertação dos Anões de Jardim (OLAJ) e
possui mais de 4 mil membros filiados, se
divertem confiscando os anões e dandolhes os mais variados destinos. Em uma
de suas ações mais famosas na França, em
junho de 2002, o grupo encheu um campo de futebol na cidade de Heming com
202 anões e deixou um bilhete explicando
que aqueles seres deveriam formar a seleção de futebol nacional. Outra corrente
do movimento, influenciada pelo filme O
fabuloso destino de Amelie Poulain, opta por
tirar o anão do jardim e encaminhá-lo para
uma viagem ao redor do mundo de onde
são enviadas correspondências ao seu antigo dono contendo fotos do mascote nas
mais diversas paisagens. No Brasil, o movimento tem mais força em Curitiba, Vitória e São Paulo, onde jovens surrupiam
os anões, registram o momento com suas
câmeras e os devolvem à natureza.
— Parem com a jardinagem opressora. Milhares de anões de jardim ainda são
escravizados no mundo inteiro. Por tempo
demais suportamos nossos vizinhos usurparem os direitos destas gentis criaturinhas
da floresta – diz uma integrante da OLAJ
que prefere não se identificar.
Por sua atividade ser facilmente confundida com vandalismo, alguns dos participantes do movimento preferem manter o
anonimato. As motivações dos integrantes
são as mais diversas, da diversão simples e
pura à convicção ideológica.
— Roubar anões de jardim é um
distúrbio do cotidiano e é divertidíssimo
– diz Luís Felipe Mayorga, ex-integrante
da OLAJ que deixou o movimento por
acreditar em outras formas de intervenção
que não envolvem “danos patrimoniais ou
invasão de propriedade.”
Luís Felipe se diz indignado com a
seriedade do estilo de vida ocidental e por
isso teria aderido à OLAJ:
— Capturar anões de jardim é uma
forma de uma intervenção urbana que tem
o poder de despertar o cidadão classe média comum do estado de torpor em que a
mídia o deixa.
Além da OLAJ, existem no mundo
e no Brasil diversos movimentos de intervenção urbana que usam a brincadeira e
a piada para criar os chamados “distúrbios na percepção do cotidiano”. Outro
exemplo são os flashmobs, na tradução literal “reunião em grupo relâmpago”, uma
modalidade de intervenção urbana em que
os participantes combinam, através da internet, de se reunir em um determinado
local e horário para realizar alguma ação
inusitada em público.
O jornalista Bill Wasik, da revista
americana Harper’s, afirma ser o criador
do primeiro flashmob. Em 2003 teria mandado e-mails para cerca de 50 amigos os
convidando para um encontro em frente à
loja Claire’s Acessories em Manhattan sem
propósito aparente. O plano não deu certo, pois a loja ficou sabendo das intenções
do jornalista e chamou a polícia. Mas, dois
meses depois, Bill organizou uma nova estratégia: distribuiu, pouco tempo antes da
hora planejada, panfletos que indicavam
quatro bares onde as pessoas deveriam ir
para obter mais informações sobre o evento planejado. O flashmob aconteceu na loja
de departamentos Marcy’s, onde mais de
100 pessoas juntaram-se no andar de venda de tapetes. Quando os vendedores os
abordavam o grupo dizia que todos ali faziam suas decisões de compra juntos e que
procuravam um “tapete do amor”.
Em entrevista ao site Mother Jones
em 2007, Bill contou que sua idéia era criar
situações completamente absurdas de cerca de 10 minutos, sem nenhuma ideologia
política. “Quando ouço falar em usar os
flashmobs para fins políticos, meu primeiro
pensamento é que a pessoa não sabe do
que está falando. Os flashmobs são um espaço de absurdo em meio a um universo
social tecnológico que pode ter o poder de
ser revolucionário”, defende Bill.
Esse tipo de mobilização já chegou
ao Brasil, onde há vários tipos, alguns mais
espontâneos e formulados democraticamente entre os participantes e outros que
ocorrem ao mesmo tempo em todo o planeta, como o Zumbie Flashmob, em que
todos se vestem de mortos-vivos e saem
pelas ruas; o Follow Me, em que é formada de repente uma fila gigantesca em meio
ao caos da cidade e o Pillow Fight, em que
o grupo promove uma enorme guerra de
travesseiros em meio aos espaços urbanos.
Recentemente, no dia 4 de abril, foi
a vez do Pillow Fight que teve adeptos em
mais de 300 cidades em todo o mundo,
dentre elas Amsterdã, Atlanta, Budapeste,
Caracas, Moscou, Zurique, Atlanta, Nova
York, Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e
Rio de Janeiro. A versão carioca concentrou cerca de 200 pessoas munidas de seus
travesseiros no Largo do Machado. Nada
comparado à guerra paulistana que contou
com cerca de 1500 participantes reunidos
em torno do Obelisco Ibirapuera.
No Rio, até mesmo os meninos de
rua participaram da bagunça. Um gari assistia a tudo dando muitas risadas apesar
do chão repleto de plumas e espuma dos
travesseiros que se desfaziam. Os flashmobs
possuem regras rígidas e entre as do Pillow
Fight Rio estava a limpeza do local ao final,
além de outras como: não bater em quem
não tiver um travesseiro, não manifestar
opiniões políticas e a cínica regra número
10 que diz. “Se houver imprensa presente, a resposta oficial a qualquer pergunta é
“Acabei de comprar almofadas. Passei aqui
e de repente me jogaram no meio disto.”
Embora o flashmob tenha sido originalmente concebido como apolítico, é inevitável que haja uma ideologia por trás de
qualquer movimento.
— Além de ser um ato divertido, é
uma forma de resgatar os espaços urbanos.
Vivemos numa sociedade “carrocrata”,
os espaços públicos são desprezados e as
ruas funcionam apenas como uma rápida
passagem entre dois pontos. Esse resgate
das praças e ambientes urbanos em geral,
de uma forma lúdica é, portanto, uma forma de contestação à política majoritária
em vigor – argumenta Arlindo Pereira Jr.,
organizador do flashmob Pillow Fight Rio e
estudante de Sistemas de Informação na
Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UniRio).
Além destes grandes movimentos
organizados, se multiplicam nas metrópoles de todo o planeta os distúrbios de cotidiano de menor proporção e individuais,
incorporados como parte do cotidiano dos
indivíduos que os praticam. Para fazer este
tipo de intervenção não é preciso de nenhum instrumento, mas apenas de iniciativa pessoal e criatividade. São realizados os
mais diferentes tipos de “distúrbio”, um
exemplo é a idéia de Daniel Marimbondo,
estudante de Psicologia da Universidade
Federal Fluminense (UFF), que incomodado com o que chama de “condição de
quase-não-lugar” dos ônibus da cidade,
faz uma espécie de atuação em que desperta a atenção dos passageiros.
Durante o trajeto, Daniel se levanta
e começa a falar como se fosse um vendedor ambulante, mas ao invés de pedir
ajuda financeira ele pede algo inesperado:
um abraço ou aperto de mão. “Então, eu
queria pedir pra quem puder tá ajudando
com um abraço, ou até mesmo um aperto
de mão, eu agradeço do fundo do coração.
Mas quem não puder, eu agradeço da mesma maneira, sabe?” discursa ele.
— Como a maioria das intervenções
que faço são espontâneas, elas são sempre adaptadas ao momento. Intervenção
urbana pra mim significa intervir para trazer à tona problemáticas urbanas ou que
se engendraram a partir de modos de vida
travados na cidade. Sejam essas problemáticas verbalizáveis, sejam elas uma questão
de sensibilidade – diz Daniel que também
costuma fazer intervenções em coquetéis
e vernissages como parte do que ele e alguns amigos chamam de MOVOC, Movimento de Ocupação de Coquetéis.
Sofia Moutinho
Da floresta ao jardim
O costume de adornar jardins com estátuas de anões surgiu na cidade alemã de
Gräfenroda, localizada no Vale da Gera Selvagem, ao lado da Floresta Thüringer. Em
1874, o artesão Philipp Griebel fundou uma pequena fábrica onde criou as primeiras
estátuas de cerâmica inspiradas na mitologia alemã, em que os anões eram considerados
habitantes do interior da terra e guardiões de seus tesouros. Alguns anos antes, em 1812,
os Irmãos Grimm publicaram a mais conhecida versão do conto infantil da Branca de
Neve e os Sete Anões a partir de contos populares que circulavam na Europa à época. Na
história os anões são mineradores, gênios da terra, e seriam sete pela correspondência aos
metais conhecidos então: ouro, prata, mercúrio, cobre, ferro, estanho e chumbo.
NO 15 - 2009/1
Agentes não tão secretos assim
7
Concursos públicos e cursos à distância espalhados pelo país formam os 007 tupiniquins
Thales é detetive há 25 anos e atende em uma pequena sala na Rua Evaristo
da Veiga, no Centro. Quem chega no endereço, atraído por um pequeno anúncio
feito diariamente em um jornal carioca,
se vê nas páginas de um livro policial:
sala pequena, ventilador barulhento,
plaquinha sobre a mesa com a inscrição
“Detetive” e… uma lupa. Graduado em
engenharia, Thales exibe na parede seu
diploma de detetive, conseguido através
do extinto Instituto de Investigações
Científicas e Criminais. Agora precisa de
diploma para ser detetive? Na verdade,
o diploma é uma exigência informal, já
que não há regulamentação oficial para a
profissão. A boa notícia é que ela é aberta à todos, basta ser maior de idade e não
ter antecedentes criminais.
Hoje existem diversas agências e
institutos que fornecem o material para
estudo, que é todo feito a distância. O
aluno paga, recebe as apostilas em casa,
faz uma avaliação – também em casa – e
quando aprovado, recebe seu certificado
e uma credencial, e já está pronto para
sair investigando por aí. O Conselho
Nacional de Detetives, sediado em Juiz
de Fora, é uma das instituições que oferecem o curso. A entidade informou que
muitos que se inscrevem o fazem para
adquirir conhecimento, ou até mesmo
por curiosidade, e não para se iniciar na
carreira. Sobre a possibilidade de abrir
um curso presencial, Jorge Filtsoff, representante da entidade, disse que não
pensam nessa hipótese, pois seria muito
difícil conseguir reunir uma turma, já que
eles atendem alunos de todo o país. Diferente do 007, os detetives tupiniquins
não precisam de uma licença especial da
realeza para exercer a profissão.
Voltando ao detetive Thales, ele
conta que já atendeu muitos figurões da
TV, política e indústria, mas não revela
os nomes por nada. “Discrição é fundamental para a profissão”, justifica. De
acordo com ele, anos atrás os serviços
de um detetive particular só podiam ser
contratados por gente da alta sociedade,
os únicos com cacife para bancar vários
dias de investigação. Com o passar do
tempo, o ofício se popularizou – para
ele, graças à mídia – e hoje uma maior
parcela da população pode ter acesso
ao serviço. Mesmo assim, contratar um
investigador particular não sai tão barato. Uma diária pode custar até 700 reais,
em casos mais complicados. O serviço
Agência abriu 190 vagas. Na época, a
relação candidato/vaga para o concurso foi de 726,7 e 415,5 respectivamente.
Foram milhares de brasileiros querendo
bancar o detetive. Só 190, entretanto,
chegaram até a etapa final. Será que o
prêmio de consolação foi um filme de
James Bond?
Juliana Siqueira
Agente do crime
completo, que inclui cinco dias de investigação costuma ficar por volta dos 2 mil
reais. “Hoje em dia já está mais acessível,
mas mesmo assim não podemos reduzir
tanto nossos preços, para não banalizar
nosso trabalho.” Entretanto, ele avisa
que quem quer fazer o curso achando
que vai ficar rico se dá mal. “Vida de detetive não é nada fácil.”
De pai para filho
O gosto pela profissão muitas vezes está no sangue. Mesmo com os apelos do pai para que se formasse em Direito, o filho de Thales, Pablo Menezes,
decidiu acompanhá-lo na empreitada.
Aos 32 anos, concluiu há nove o curso
do mesmo Instituto que formou Thales.
Ele conta que até hoje o pai insiste que
retome os estudos, mas Pablo garante
que não quer outra vida.
Juntos, os dois se tornaram sócios
na agência que hoje conta com quatro
funcionários, todos agentes de investigação que fazem o trabalho de campo
junto com Thales. Entretanto, só pai e
filho atendem os clientes: os agentes não
têm nenhum contato com o contratante,
e nem sabem quem são. Tudo para não
comprometer a qualidade do serviço.
Quando uma investigação é contratada, Thales delega o caso a um agente, que trabalha seis horas por dia na rua.
Dependendo do caso, mais de um agente pode ser mobilizado para o serviço,
que pode demorar de cinco dias a vários
anos. Anos? “Estou trabalhando em um
mesmo caso há quase seis anos”, revela
Thales. Infelizmente, ele não pôde fornecer nenhuma informação.
Os casos mais comuns, os de investigação conjugal, que atualmente são
cerca de 50% dos casos recebidos pela
agência, tem a duração média de cinco
dias. Para Thales, quando uma pessoa
tem um amante, dificilmente ficará mais
de cinco dias sem o visitar.
Falta de regulamentação:
principal dificuldade
Os detetives brasileiros são unânimes: a falta de uma regulamentação
profissional é o maior percalço que o
profissional pode enfrentar. Atualmente,
o que a lei brasileira garante é o reconhecimento da profissão, porém não há
nada que especifique quem pode exercer
a função, nem nenhuma entidade oficial
que represente os detetives.
Para acabar com o problema, em
2007 o deputado José Genoíno criou um
Projeto de Lei em que estabelece uma
regulamentação para o profissional da
investigação. A proposta estabelece que
para o exercício do cargo será necessário
uma autorização da Agência Brasileira de
Inteligência (Abin), funcionando como
a carteira da OAB para os advogados.
Seria um progresso e tanto para a dura
profissão de detetive, se o projeto não
estivesse parado na Câmara, esperando
ser aprovado.
Uma saída para os que temem a
instabilidade da profissão é fazer um
concurso público para trabalhar na Abin.
Quem quiser se tornar um Agente ou
Oficial de Inteligência, o que talvez não
tenha o mesmo charme de um detetive
particular, só precisa ser graduado em
qualquer curso, de qualquer instituição
reconhecida pelo MEC. Ao passar pelo
concurso, o candidato terá que fazer o
Curso de Formação em Inteligência. No
último concurso, realizado em 2008, a
Certa vez, um senhor foi à agência de Thales pedir uma investigação
sobre sua mulher, que ele achava que
estaria o traindo. O resultado apontou
que as suspeitas do cliente estavam certas. Seria mais um caso normal de investigação conjugal, se o tal amante da
esposa infiel não fosse um dos próprios
agentes de Thales! “Foi uma situação
embaraçosa, mas tive que contar para o
cliente o resultado.”
Quando o crime
mora ao lado
Em outro caso similar, Thales
colocou um agente de campana, ou
seja, de tocaia, perto da residência do
objeto de investigação, para descobrir o
suposto amante. Passado os cinco dias,
o resultado foi que não se havia registrado nenhum movimento suspeito
da esposa. Incorfomado, o marido pediu que a investigação continuasse. Aí
que está o pulo do gato: desconfiado,
o agente se infiltrou como funcionário no prédio onde a esposa do cliente
residia e descobriu o porquê da ausência de movimentos suspeitos: a esposa
não precisava sair do prédio para pular
a cerca, já que a traição se dava dois
andares abaixo do seu, com a vizinha
do 8° andar. Ou seja, além da traição,
descobriu-se que ela se dava no mesmo
prédio e ainda com uma mulher! Foi o
fim do casamento.
Proposta indecente
Também já aconteceu de o
objeto de investigação – um homem,
que estava sendo investigado a pedido
da mulher – ir até a agência sem saber
de nada para pedir também uma investigação, sobre a esposa. “Claro que tive
que recusar. E ainda contei à minha
cliente, sua esposa, sobre o pedido do
marido.”
8
NO 15 - 2009/1
A oitava arte criada pela tecnologia
Críticos, especialistas e espectadores apostam no cinema 3D como a nova referência para próximos anos
O som da música, o movimento da dança, a cor da pintura, o volume
da escultura, a representação do teatro
e a narrativa da literatura. Essas eram as
seis características que davam ao cinema
o seu reconhecimento como sétima arte.
Hoje, porém, com o advento das novas
tecnologias e a implantação dos sistemas
digitais, o cinema ganha uma nova característica: a magia das projeções tridimensionais. Desta forma, surge o cinema 3D.
As instalação de salas de cinema em
3D são a grande novidade do novo cinema. No Brasil, essa realidade chega aos
poucos. Segundo a Agência Nacional de
Cinema (Ancine), no início do ano somente 25 salas estavam equipadas com os projetores 3D e a previsão é que até o final
do ano esse número ultrapasse os 100 cinemas. Diferentemente
da moda dos filmes 3D,
lançados com pouco
sucesso em meados da
década de 1950 e também usavam óculos
coloridos, agora, com
a migração da película
para o sistema digital,
os novos filmes tridimensionais possuem
uma maior qualidade
na imagem, diminuindo o cansaço visual e
proporcionando mais
realismo às cenas. Desta forma, promete se tornar mais atrativo para o público.
A indústria cinematográfica aposta
nisto. Os exibidores veem essa nova forma de projeção como um modo de fazer
os espectadores voltarem às salas escuras.
Aqui no Brasil, a maioria dos exibidores
utilizam a tencologia Dolby 3D. Apesar
de serem tecnicamente semelhantes à
Real D – utilizada nos Estados Unidos -,
pelo fato de o Dolby 3D possuir óculos
reutilizáveis, ou seja, o espectador precisa devolvê-los após o final da sessão para
que eles sejam higienizados, esse formato
se torna mais caro que o outro (aqui no
Brasil somente o Cinemark optou pelo
Real D que possui óculos descartáveis
bancados pelo distribuidor dos filmes e,
por isso, é mais barato). Outra vantagem
apontada por especialistas é o fato de essa
nova tecnologia implantada nos filmes 3D
ser uma arma potencial contra a pirataria, já que envolve uma série de tecnologias difíceis de copiar. Ademais, estima-se
que o acesso doméstico da tecnologia 3D
aconteça somente dentro de dez anos.
No Rio de Janeiro, já é possível encontrar salas com esse tipo de projeção.
Michael Jonathas, auxiliar de operações
múltiplas do Kinoplex Shopping Tijuca,
diz que desde a inauguração do cinema, as
salas sempre ficam cheias. Para o funcionário, isso ocorre porque as pessoas gostam de novidade. Segundo ele, por exemplo, no dia do feriado de Tiradentes – dia
21 de abril – 4.200 pessoas passaram pela
sala. Acrescenta ainda que, normalmente,
as novidades ficam somente em uma sala,
como forma de experimentação. Assim,
não crê que haverá a transformação das
demais salas. Especialista no assunto, André Brasil, professor de Teoria da Imagem
na PUC de Minas, também acredita nisto.
Para ele, somente algumas produções serão exibidas em salas de formato 3D. “Eu
acho que o cinema vai estar lá. Eu não
acredito numa substituição. Acho que são
experiências diferentes
mesmo. A experiência
da sala escura te traz
uma série de questões
para a subjetividade,
para a estética, para a
poética, que está tão lá
e que, em minha opinião, vão permanecer.”
A interatividade
proporcionada pelas
salas 3D é o principal
atrativo para o público. Rompendo com a
bidimensionalidade da
imagem, o filme traz a impressão de sair
da tela. Desta forma, prende o público e
levanta reações maiores às cenas do filme.
Pedro M. V. Chaves, projecionista do Cinesystem do Shopping Iguatemi, em Florianópolis, percebe nas sessões as diferentes reações do público. “No início do filme
Monstros Vs Alienígenas, tem a imagem
de uma esfera que salta da tela em direção ao público. Em quase todas as sessões, nessa cena, o pessoal grita e aplaude,
independente da idade. É até engraçado.”
Para o projecionista, nesse tipo de
filme, o atrativo não está somente no fato
de ser novidade. O principal seria a qualidade da imagem. “Os comentários depois
da sessão são muito bons com relação à
qualidade da imagem. Por ser projeção
digital, a qualidade das imagens é muito superior. No filme em película, a cada
sessão, há um desgaste. Já no projetor
digital, não tem esse problema.” Enfatiza
ainda o fato de as projeções tridimensionais não serem exageradas e cansativas.
“Uma coisa que percebi é que não é em
todos os momentos que as imagens saem
da tela. Na maior parte do filme, o efeito 3D é mais sutil, mas está sempre lá.”
“Você não
assiste, está lá.
Se sente parte
do filme. É uma
experiência que
mexe com
vários sentidos”
Imagem retirada do site: http://www.barco.com/projection_systems/images/pr_kinepolisOost01_l.jpg
Salas escuras ganham novas projeções tridimensionais, embora continue a necessidade de óculos especiais
Deborah Fernandes, comunicóloga
e realizadora de curta-metragem, teve sua
primeira experiência como espectadora
do cinema 3D no Universal Studios, Los
Angeles, em março deste ano. “Ao final da
experiência, soube exatamente como foi o
fascínio daquelas pessoas nos primórdios
do cinema, quando tudo era impressionante e novo. Para nós, que nascemos em
tempos de grandes produções e efeitos
especiais, é maravilhoso poder acompanhar a última grande revolução da linguagem cinematográfica.” Afirma ainda que
a interatividade é o diferencial neste tipo
de cinema. “Definitivamente é um jeito
fantástico de assistir o cinema de entretenimento. Até porque
você não assiste, está lá.
Se sente parte do filme.
É uma experiência que
mexe com vários sentidos.”
A mudança proporcionada pelo avanço
tecnológico desperta, não
só o interesse do público
em geral, mas também dos
estudiosos da área multimídia. Ronaldo Entler, jornalista e professor
credenciado do programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes
da Unicamp, percebe a importância das
mudanças ocorridas no cenário cinematográfico. “As novas tecnologias propõem
questões importantes para a arte cinematográfica, com relação às possibilidades de
interatividade e sugestões de novos espaços
para fruição dessas experiências cinematográficas como, por exemplo, a Internet.”
É fato ser inevitável o desenvolvimento e a implantação de novos recursos
tecnológicos em todas as áreas. Sempre
haverá experimentações com intuito de
facilitar e chamar atenção da sociedade.
Quando se pensa em cinema, é possível
perceber que muito já foi mudado e ainda está mudando. Entler chama atenção,
porém, para os problemas que esse avanço pode ocasionar ao cinema como, por
exemplo, a perda deste como arte. Para
ele, a diferença narrativa de um filme em
película e em digital não é resolvido somente através de “pirotecnias”. “Eu acho
que isso faz parte de certo deslumbramento com relação à tecnologia. A tecnologia
por ela mesma. Você vai ao cinema não
necessariamente para ver uma obra, mas
para ver uma espécie de
estágio tecnológico que é
encantador por si. Então,
neste sentido, a gente tem
uma espécie de espetáculo que contribui muito
pouco para o crescimento do cinema como arte.”
Pensa da mesma
maneira o professor André Brasil. E, apesar de reconhecer esse tipo de manifestação como
uma possibilidade de abrir um campo grande na produção de imagens, enfatiza que
se sente incomodado com essas questões.
“Eu gosto de pensar essa manifestação deslocando o máximo possível destas questões
meramente tecnológicas. Pensar como elas
já trazem em si mesma algo que já estava
na história do cinema e como elas projetam
essa história para outra coisa, mas nunca
pensar a tecnologia como o centro disso.”
Especialistas
se preocupam
com a perda
da qualidade
artística
Júlia da Escóssia
NO 15 - 2009/1
9
Bagunça das ruas continua nas telas
Agitação dos jogos eletrônicos competem com brincadeiras tradicionais na infância dos novos “gamers”
Marion Villas Boas, professora ras de Educação Física ensinam e incenaposentada, além de editora e escritora tivam brincadeiras populares. Segundo
de literatura infantil, diz que a criança Ana Patrícia Mendonça, professora da
isolada não estabelece regras de com- Sociedade Educacional da Taquara,
portamento espontaneamente; precisa para os alunos do primário, que são mesempre do outro. “Assim, o jogo é a nores, as atividades concentram-se nos
forma pela qual uma comunidade recria “piques”, jogos com corda, amarelinha,
ou exercita suas regras, seus padrões de ou seja, brincadeiras mais antigas. A surconvivência. Na brincadeira com regras, presa é em relação aos estudantes do 6º
a criança, ao mesmo tempo em que se ao 9º anos, pois a professora afirma que
diverte, manipula as regras de sua reali- também dá essas atividades mais tradidade sociocultural.”
cionais e os alunos adoram, chegam a
Valéria sabe que, se não por limte brigar pela escolha da brincadeira. Pono tempo em que seus filhos brincam rém, nesse caso, aplica como forma de
em videogames e computadores, eles aquecimento aos jogos esportivos.
poderão tornar-se crianças sedentárias.
“A escola mantém algumas traÉ por esse motivo, também, que os pais dições, é até uma função dela, resgatar
matriculam as crianças em inúmeras ati- brincadeiras infantis, festa junina e ouvidades extras. O esporte, além de con- tras festas, como tentativa de interação
sumir o tempo dos filhos como tentati- entre as crianças ou entre pais e filhos.
va de suprir a ausência de alguns pais, O problema maior hoje é uma relação
ainda é benéfico para as crianças em familiar”, diz Adriana Silva – pedagoga.
termos físicos. Victor pratica judô, caPara José Ricardo da Silva Ramos,
poeira, além de ter que autor do livro Dinâmicas, brincadeiras e
cumprir com responsa- jogos educativos, o objetivo da escola é
bilidades como a escola utilizar essas atividades e trabalhar no
e o Kumon.
aluno o reconhecimento do próprio
“Os jogos eletrô- corpo, provocando a memória lúdica
nicos têm profundos re- da comunidade escolar. O jogo é um
flexos na saúde infantil, fato cultural e social, com ele é possível
tanto no aspecto físico entrar, num dado momento, na histócomo no neuropsicoló- ria da existência humana, com seus vagico. A criança precisa lores simbólicos e pedagógicos. Além
da atividade física, de disso, a criança apropria-se de tudo que
movimentar e exercitar a cerca por meio de suas ações corpotanto os grandes como rais, podendo, dessa forma, conhecer a
os pequenos múscu- si mesma e a sociedade com a qual se
los. A posição sentada relaciona.
em frente à TV ou ao
Alguns pais, como a própria Vacomputador, se demo- léria, apontam a violência como prinrada, pode causar sérios cipal desculpa para a não deixar os fitranstornos posturais e lhos jogarem na rua e incentivarem as
enfraquecimento mus- brincadeiras domiciliares. No entanto,
cular”, afirma Marion. ao prender seus filhos em casa, podem
Ramon Sampaio, 12 anos, prefere sair de casa
No colégio, as professo- estar prejudicando mais que ajudanlá”, diz ele. Entre suas brincadeiras preferidas também está jogar videogame e
freqüentar lan houses, mas sempre com
Definido...
Segundo o Dicionário das Origens das Frases Feitas de Orlando Neves (Lello &
seus amigos.
Irmão – Editores, Porto), a expressão “pintar o sete” tem significado semelhante ao da
Já Victor, de 9 anos e Yasmin, de
frase “pintar a manta”, ou seja, fazer grande alarido, diabruras, desordens.
7, filhos de Valéria Oliveira, preferem
Acrescenta ainda, que esta é uma das mais controversas expressões quanto à sua
jogos eletrônicos. A mãe afirma que
origem. É possível relacioná-la a outras frases feitas e todas se interligam, umas mais,
estimula esse tipo de brincadeira por
outras menos, mas todas no mesmo sentido, na idéia de aprontar.
medo da violência urbana. Por isso,
Por exemplo, “Pintar a bexiga” que significa andar na pândega, na baderna, na
seus filhos tendem a brincar sozinhos
folia.
Ligam-se entre si expressões como: pintar a macaca, pintar a manta, pintar o
dentro de casa. “Se deixar, Victor fica o
caneco, pintar o caramujo, pintar o diabo, pintar o diabo a quatro, pintar o sete, pintar
dia inteiro jogando videogame, quer até
o burro.
comer dentro do quarto”, afirma.
Há algum tempo as crianças “pintavam o sete”, brincavam de escondeesconde, corda, amarelinha, pique bandeirinha, queimado, passaraio, pique
cola,... Talvez as brincadeiras tradicionais estejam tão em desuso quanto a
expressão. Hoje elas já não pintam mais
o sete, preferem jogos eletrônicos e se
autodefinem como “gamers”. Ramon
Sampaio, 12 anos, mora no Merck, área
humilde da Taquara, Zona Norte do Rio
de Janeiro, é uma exceção na sua idade,
por ser um menino que adora brincar
na rua, aprontando bastante. “Ramon é
muito levado, assim que chega da escola
já quer logo ir correndo para a rua brincar”, afirma a mãe Dalila Sampaio.
Ramon adora jogar bola, brincar
de queimado, andar de bicicleta e soltar pipa na rua com seus amigos. “Na
rua que eu moro tem sempre criança.
O que eu mais gosto de fazer é brincar
do, pois não permitem que as crianças
aprendam a lidar com o mundo. O mais
curioso é que a mãe de Victor sabe que
não está agindo de forma correta, mais
admite que o medo da violência é mais
forte. Já a mãe de Ramon, diz que também tem medo do perigo da rua, mas
sabe com quem seu filho está brincando
e, às vezes, quando tem uma pausa no
trabalho vai procurá-lo para ver como
ele está. “O importante é dar liberdade
para a criança”, conta.
Na opinião de algumas mães o
desejo pelas novas tecnologias parte
da própria criança influenciada pelos
meios de comunicação. Dalila Sampaio
disse que seu filho em um determinado natal havia pedido um videogame.
“Ele quis porque estava em evidência.
Na época, todo mundo tinha”. Porém,
os jogos eletrônicos não fazem mal a
criança, o que pode trazer malefícios
à saúde infantil é o exagero do tempo
em que utilizam esse brinquedo, é o que
diz a especialista na área Marion Villas.
Afirma, ainda, que privar uma criança
do mundo das atividades eletrônicas é
privá-la da realidade em que vive, na
medida certa estes jogos estimulam o
pensamento e a rapidez de ação.
É uma ilusão acreditar que as
crianças de hoje não gostam de jogos
populares, a pedagoga Adriana Silva
afirma “eles adoram computador, mas
também adoram essas brincadeiras”.
Ana Patrícia concorda – “eu nunca tive
problemas com isso. Todas as crianças
participam das brincadeiras”. Talvez, se
dada à oportunidade, a criança de hoje
ainda pintaria o sete, mas também brincaria com videogames e computadores.
A professora de Educação Física
chega a afirmar que as preferidas são pique bandeirinha e queimado, ambos jogos de alta intensidade motriz, ou seja,
exigem dos participantes: velocidade,
agilidade, noções de espaço e tempo,
capacidade aeróbica, força,... São inúmeros os benefícios que as brincadeiras
populares e tradicionais podem trazer.
“Acho que as crianças gostam e, se tivessem oportunidade, ainda brincariam
de roda, pique atrás, esconde-esconde,
passaraio e tantas outras brincadeiras
que ajudam a viver e conviver nesse
mundo turbulento que habitamos”, diz
Marion.
Aline Nastari
10
NO 15 - 2009/1
O craque da camisa número...
Garrinha, Jairzinho, Tulio... marketing ganha espaço no futebol e jogadores perdem a marca em comum
enquanto Figo, jogador português, tem
esta camisa cativa na Inter de Milão.
Na década de 90, em uma grande
jogada de marketing, o Botafogo foi patrocinado pela Pepsi, que estampou na
camisa alvi-negra o seu produto “Seven
Up”, aumentando ainda mais o valor
do número para a equipe. Essa não foi
a única vez em que uma empresa criou
uma estratégia de marketing para aplicar
no futebol carioca. Também nos anos
90, Juninho Pernambucano, craque do
Vasco, vestiu a camisa 31 em alusão ao
possível patrocinador do time, que seria a Telemar, empresa de telefonia que
tinha o 31 como seu número para ligações à distância. Já Roger,
jogador do Fluminense,
usou a 23 pelo mesmo
motivo, sendo que o patrocinador no caso seria a
Intelig.
Recentemente,
Adriano, em seu retorno
ao Flamengo, foi apresentado com uma camisa que tinha
uma interrogação no lugar do número.
Especulou-se que seria mais um caso de
marketing no futebol carioca, mas a estréia do craque chegou e ele jogou com
o número 27, com o qual havia começado no futebol. Após algumas atuações
ruins, o jogador passou a adotar a camisa 90 e o marketing do Mengão perdeu
uma ótima oportunidade de faturar com
a imagem do Imperador do Rio, como
está sendo chamado o craque.
As grandes empresas estão sempre atentas as oportunidades que surgem no mundo do futebol, não apenas
para patrocinar clubes. A fornecedora de
material esportivo, Nike, por exemplo,
aproveitou a importância que a camisa
10 ganhou nos últimos anos e baseou
uma campanha no sonho dos jovens em
vesti-la, o “Joga10”. O slogan “A 10 você
não veste, você conquista” representa
exatamente o que este número tornouse para o mundo do futebol. Não é pra
menos. Dos últimos 18 jogadores eleitos
melhores do mundo pela FIFA, 10 deles vestiam a camisa 10 em suas equipes.
Isso porque esse prêmio não existia na
época de Pelé e Maradona.
Até a década de 90, havia uma
regra que obrigava as equipes a definir seus titulares com números de 1 a
11.Convencionalmente a camisa 7 pas-
“Este ponta
habilidoso
está em
extinção”
Foto: globoesporte.com
A relação do jogador de futebol
com o número que ele usa vai além
superstições. O uruguaio Acosta, por
exemplo, viveu um dos melhores momentos de sua carreira vestindo a 25,
no Náutico. Chegando ao Corinthians,
o jogador recebeu a 9 e não conseguiu
marcar nenhum gol, até voltar a usar a
25. Sorte? O que dizer do número 13?
Sinônimo de azar para muitos, o número
é considerado um amuleto por Zagallo,
único a estar presente em todos os títulos da Seleção Brasileira de Futebol.
Coincidência?
Pela Seleção, enquanto jogador,
Zagallo vestiu a camisa 7, que anos depois seria eternizada por
Garrincha. Mané, como
era chamado, teve grande
importância para o Brasil
em seus títulos mundiais,
mas ficou ainda mais marcado no Botafogo, onde é
considerado o maior ídolo
da historia do clube. Jogando pelo alvinegro carioca, o gênio
das pernas tortas deu início a uma mística que perdura até os dias de hoje, a mística da camisa 7. Além dele, Jairzinho,
Mauricio, Túlio, Donizete, Jorge Henrique e outros craques tiveram o prazer de
usar esta camisa. Todos com passagens
marcantes pelo alvinegro carioca e com
participação fundamental em títulos do
clube.
Para Marcelo Ferreira, assessor do
Botafogo, “a camisa 7 está para o Glorioso como a 10 está para todos os outros
no mundo. Quando a diretoria monta a
equipe, pensa carinhosamente em quem
irá vesti-la, pois não pode ser um jogador qualquer”.
Mas o número 7 não tem importância apenas no Botafogo. O Manchester United cultua esta camisa, pois os
principais craques do time a vestiram,
como George Best, Eric Cantona, David Beckham e, o atual melhor jogador
do mundo, Cristiano Ronaldo. Um dos
maiores ídolos do Corinthians, Marcelinho Carioca, usou a 7 em todos os títulos
do clube paulista no fim da década de 90.
Já no Santos, o craque Robinho vestiu a
7 até ser transferido para o Real Madri.
Pelo Milan, Shevchenko fez historia com
este número, que agora é usado por Alexandre Pato. O maior ídolo da historia
do Real Madri, Raul, veste a número 7,
Adriano em sua reapresentação no Flamengo, promoveu a dúvida do número
sou ser usada pelo ponta habilidoso,
geralmente um driblador nato, que atormentava a zaga adversária. Para Rafael
Oliveira, comentarista esportivo, “este
ponta habilidoso está em extinção”. Segundo ele, “alguns jogadores deveriam
assistir vídeos com lances do Garrincha.
Quem sabe assim reaprendam a arte do
futebol?”.
Entretanto, desde que a FIFA retirou esta regra, alguns jogadores adotaram números diferenciados, principalmente na Europa, onde os atletas
passaram a ter números fixos durante
toda a temporada. Kaká, por exemplo,
ao chegar no Milan, não pôde escolher a camisa 10 e optou pela 22, dia
do seu aniversário, e agora, ao se transferir para o Real Madrid, deverá jogar
com a 16, primeira camisa que utilizou
no São Paulo, clube que o revelou. Ronaldo e Ronaldinho Gaucho, também
no Milan, preferiram vestir a 99 e a 80,
respectivamente. Thierry Henry, craque
francês que foi algoz brasileiro na Copa
de 2006, usa a 14 em todos os clubes
por onde passa. A camisa 12 também
é “aposentada” em alguns clubes, não
em homenagem ao goleiro reserva, mas
ao décimo segundo jogador de todos os
times, à torcida, como forma de reconhecer a importância do torcedor para
o time.
Para Jorge Delou, produtor do
Campeonato Italiano do Esporte Interativo, “a numeração fixa utilizada na Europa é ótima, pois facilita a vida dos comentaristas e da própria torcida, já que
a identificação do atleta passa a ser feita
somente pelo seu número”.
Como podemos ver, no mundo do
futebol, os números têm grande valor
para todas as equipes. Diante deste fato
e seguindo a tradição de esportes norteamericanos, alguns clubes passaram a
aposentar um número como forma de
homenagear um atleta que tenha uma
identificação com o time.
No Milan, da Itália, por exemplo,
Maldini tem o número 4 guardado em
sua homenagem. Apenas seu filho, que
está treinando nas camadas de base, poderá vestir a mesma camisa. O brasileiro Aldair foi homenageado pela Roma,
com a aposentadoria da camisa 6. Raul,
quando abandonar o futebol, receberá a
mesma glória com a 7 do Real. E o Vasco, recentemente, foi o primeiro clube
brasileiro a aderir a moda aposentando a
camisa 11 de Romário. A seleção Argentina aposentou a camisa 10 junto com o
Maradona.
Já Pelé e Garrincha não receberam
a mesma homenagem nem na Seleção,
nem nos clubes em que fizeram historia
no Brasil. Na opinião de Vinicius Carvalhosa, botafoguense, “a camisa 7 do
Botafogo, assim como a 10 do Santos,
deveriam ser aposentadas, ou pelo menos protegidas para que apenas grandes
jogadores a usassem”. Segundo ele, dessa forma, figuras como o argentino Zárate, com passagem apagada pelo Fogão,
não vestiriam essas camisas.
Thiago Brandão
11
NO 15 - 2009/1
Poder terapêutico da escala musical
Aliando arte e psicologia, musicoterapia usa a harmonia dos sons até para esquizofrenia
A música é capaz de comover, alegrar,
irritar. E são vários os aspectos que podem
despertar esta ou aquela emoção. Fatores
como harmonia, andamento e ritmo
interferem diretamente na impressão que
temos de determinada música. Presentes
na tonalidade, nos acordes e na melodia,
as sete notas musicais não ficam para trás.
Agindo em conjunto, podem sugerir as mais
diversas sensações, às vezes até de provocar
a imaginação.
É partindo dessas qualidades que a
musicoterapia usa a música para fins terapêuticos. “Há muitos casos para aplicação
da musicoterapia”, afirma Martha Negreiros, que já tratou de adolescentes, idosos
portadores de Alzheimer e crianças. Na
Maternidade Escola da UFRJ, onde trabalha com o musicoterapeuta Albelino Carvalhaes, atua em sessões com gestantes e
recém-nascidos prematuros. Além disso,
trabalha com pacientes esquizofrênicos,
cuja comunicação verbal é dificultada.
Segundo Martha, a música é uma
linguagem, um código específico com
qualidades específicas. “Um conceito fundamental na musicoterapia é o de história
sonora musical. Cada um de nós tem uma,
formada desde a vida intra-uterina, e depois com todos os sons do meio em que
vivemos”. Segundo ela, vão-se formando
registros sonoros que, carregados de afeto,
ficam impressos em cada pessoa de maneira diferente. “Por isso, para cada um a música dirá algo diferente, pois será da ordem
do vivido”, afirma. “A partir daí, exclui-se a
idéia do receituário musical: sem conhecer
sua história, jamais saberei o que tal música
pode significar para você. Não posso dizer:
para isto, use tal música”.
Por outro lado, não basta apenas
saber sobre a vida do paciente. É preciso conhecer a música profundamente para saber
o que ela pode produzir. “Você pode muito
bem usar uma peça de Bach, mas terá que
conhecer igualmente seu objetivo”. Ainda
assim, afirma ser impossível criar uma
teoria universal infalível sobre os efeitos
da música, que são inúmeros. “A forma
musical sugere uma gama de emoções, mas
não determina”. Dá o exemplo do Requiem,
música erudita para missas funerais. “Não
necessariamente você pensará: morte. Em
vez, pode pensar em céu aberto ou dia
nublado. A música não terá significado a
priori. Você atribui sentido à música no
momento da execução.”
Apesar disso, assegura que, sendo
acústica, e, portanto, física, a música
sem dúvida interfere, por exemplo, na
frequência cardíaca do paciente. “Tensões
na harmonia, que não se resolvem, deixam
a pessoa tensa. Alguém escuta música
Violão, chocalhos, pandeiros: instrumentos para o
tratamento
erudita contemporânea? Não, porque elas
não se resolvem! Esse tipo de música é
pouquíssimo veiculado nas rádios... ela é
muito angustiante!”, diz Martha. “A música
produz um impacto sensorial, e somos
afetados pelos sons o tempo inteiro. Não
temos pálpebras nos ouvidos. O silêncio é
um princípio teórico.”
musicoterápico é entrelaçamento do biológico, psíquico e social. “A pessoa, ouvindo
música em casa, não pode se tratar sozinha.
A terapia só existe na relação terapeuta-paciente. Auto-ajuda é outra coisa”, afirma.
Há um leque de músicas para cada
pessoa e cada situação. Se ela não fala,
recorre-se às músicas de sua época. Pode
ser marchinha de carnaval, samba, valsa.
Assim, será estabelecida uma comunicação.
No caso do portador de Alzheimer, procura-se ativar o que foi preservado em sua
memória. “No HD cognitivo”, diz Martha,
“a memória musical é a última a ser apagada”.
“Nem todo músico é terapeuta, mas
todo musicoterapeuta é músico”, explica
Márcia Gavinho, formada em musicoterapia há 29 anos pela CBM, esclarecendo
uma confusão acerca da faculdade. Multi-
Ut-Re-Mi-Fa-Sol-La... Si
O nome das notas musicais remonta à Idade Média,
especificamente ao Hino a São
João Batista, de Paolo Diacono, na época muito popular.
Cantado por meninos, o hino
pedia a intercessão de São João
Batista para a proteção das
cordas vocais, e, pela melodia,
ajudava os cantores a identificarem os graus da escala.
O monge beneditino Guido
d’Arezzo, músico italiano do
século XI, extraindo as duas
primeiras letras dos versos,
nomeou os 6 graus musicais
de então, ou vozes. Os alunos
de d’Arezzo, como outros, tinham dificuldades para decorar
o som de cada grau, e esse foi
o primero passo para resolver
um grande problema, não só
deles, mas da música ocidental: precisar a altura exata de
cada nota.
Ut queant laxis
Resonare fibris
Mira gestorum
Famuli tuorum
Solve polluti
Labii reatam
Inicialmente chamada ut,
a nota dó receberia esse nome
apenas em 1963, por intermédio
de Giovanni Batista Doni, que,
como outros músicos, achava a
sílaba difícil para o solfejo. Entretanto, países como a França,
ainda a chamam ut.
A sétima nota
Embora a nota si já existisse, seu nome só surgiria
tempos depois, pela junção das
iniciais de “Sancte Iohannes”, o
“Para que teus servos possam próximo verso daquele Hino a
cantar as maravilhas dos teus atos São João. Antes, geralmente não
admiráveis, absolve as faltas dos era utilizado, pela impressão
sonora que causava em certas
seus lábios impuros”.
situações.
De acordo com ela, a cada som
musical corresponde um universo de
sentidos, que, embora amplo, não é irrestrito.
Por isso é possível uma comunicação.
“Isso é interessante sobretudo no caso do
esquizofrênico: ele rompe com os códigos
sociais compartilhados. ‘Mesa’ não é mesa
necessariamente. ‘Cadeira’ não é cadeira. As
muitas maneiras de tocar um instrumento,
por sua vez, permitem uma comunicação
com o esquizofrênico, porque estabelecem
uma linguagem comum”.
Para que possa ocorrer, os recursos musicais devem ser compatíveis com
a situação mental do paciente. “Às vezes,
uma música que se adora produzirá o efeito contrário. Não adianta, quando se está
triste, ouvir sambinha para alegrar. Tudo o
que pode emergir durante a música vem de
um tecido musical que está por baixo. As
reações não serão por acaso.”
Ainda segundo Martha, o tratamento
disciplinar, trata-se de um curso de 4 anos,
com prova específica e uma entrevista. Nos
primeiros anos, o aluno estuda neurologia,
sociologia, psicologia, antropologia, anatomia. E, juntamente, música. Além disso, dispõe de aulas de folclore, expressão
corporal, impostação de voz. O curso se
divide em área musical e médica.
“Ele precisa saber tocar um instrumento, porque ele será o elo com paciente;
mas não significa que não haja gravações e
objetos improvisados”. Ainda segundo ela,
o nome é musicoterapia, mas as intervenções não serão sempre pela música estruturada, e sim pelos parâmetros dos sons em
geral (timbre, intensidade, altura etc.), instrumentais ou não. “Se o paciente usa só alguns sons, é a partir deles que o tratamento
irá começar. Uma música maravilhosa nem
sempre servirá para pacientes em estado
tão primitivo de comunicação”.
Há relações diretas entre notas mu-
sicais e as emoções, mas não com notas
isoladas. “Costuma-se dizer que tons menores tendem a provocar introspecção,
enquanto os maiores, alegria. Nem sempre
é assim. Notas fazem melodias, que levam
a recordações, então deve-se ter cuidado”.
Por isso, explica, antes do tratamento faz-se
uma ficha com as preferências musicais do
paciente e da família. Isso ocorre também
no sentido de encontrar músicas que estejam ao nível intelectual do paciente. “A harmonia está ligada à inteligência. Se a pessoa
tem um deficit intelectual, não vai conseguir
processar uma harmonia complexa”. Segundo ela, isso seria indesejável, já que “a
musicoterapia atua sobretudo em casos em
que há problemas de comunicação.”
Professora de educação artística no
Instituto de Educação desde 2000, Márcia
também tem pacientes em consultório, entre elas uma criança cega com problemas
de locomoção. “Adora o piano, fica mais
de uma hora. No início, só batia no instrumento, agora está bem mais desenvolvida”.
Trabalho de coordenação motora com os
instrumentos musicais, adaptações de instrumentos... Conta que também há uma
criança tetraplégica: nesse caso, usa instrumentos que estimulam os movimentos.
“Se ela não consegue pegar a baqueta do
tambor, é estimulada a segurar. Mais tarde,
isso ajudará ao apanhar uma colher”. A intenção também é melhorar a auto-estima,
fundamental para quem está numa cadeira
de rodas. Por isso, fazem festa quando o paciente se supera, diz.
Mas a musicoterapia não é restrita
a pessoas cegas, autistas, tetraplégicos ou
portadores de Alzheimer. Márcia conta
que também há espaço para pessoas sem
deficiências. Desejando se comunicar
através da música, vão ao consultório de
um musicoterapeuta.
A profissão, que completa 31 anos no
Brasil este ano, já existe formalmente, mas
ainda não foi regulamentada. A medida foi
recentemente vetada pelo Presidente da República, após chegar à última instância. Segundo Martha Negreiros, porque “a música
não é propriedade de ninguém. Há muitos
profissionais que usam música, sua utilização como terapia que é uma classificação
específica”. Fez comparação com a Educação Física, que, apesar dos problemas, foi
regulamentada, mas não os professores de
capoeira.
Infelizmente, nenhuma delas soube
dizer por que a música é tão pouco valorizada em nosso país. Mas é certo que, segundo
Márcia Gavinho, as músicas da Xuxa estão
entre as mais pedidas.
Rafael N. Godinho
12
Maravilhas listadas
NO 15 - 2009/1
Rio coleciona cartões postais, mas só uma é pode ser chamada de maravilha
Torre Eiffel? Estátua da Liberdade? Nada disso. O Cristo Redentor derrubou grandes monumentos e foi escolhido, em uma campanha mundial que
deu continuidade à tradição, como uma
das sete maravilhas do mundo moderno,
em 2007. Além do monumento carioca,
foram escolhidos: a Grande Muralha
da China, na China, Petra, na Jordânia,
Machu Picchu, no Peru, a Pirâmide em
Chichén Itzá, no México, o Coliseu de
Roma, na Itália e o Taj Mahal, na Índia.
Pegando carona na iniciativa da
ONG Suíça 7 New Wonders, a Infoglobo Comunicações promoveu uma
eleição no Rio de Janeiro para escolher
as sete maravilhas do estado. Porém, ao
contrário da campanha original, a ideia
fez pouca diferença para o turismo da
cidade maravilhosa.
Este tipo de eleição pode ser aumentar de forma significativa o turismo
da cidade. O Cristo Redentor atrai turistas de todo o mundo e coloca o Rio na
lista das maravilhas mundiais. O monumento é divulgado nas feiras de turismo internacional e se torna um ponto
essencial nos pacotes turísticos, sendo
uma porta de entrada para a visitação
dos outros pontos. “Esses pacotes são
feitos pelas operadoras a partir dos lugares que a cidade oferece como atração. Eles são vendidos, quase sempre,
sem alteração pelas agências de viagem.
Assim, as operadoras participam, junto com os órgãos governamentais, da
legitimação dos pontos relevantes de
uma cidade porque acabam decidindo o
que é interessante ou não para o turista visitar”, explica a agente de turismo,
Daniela Lopes. Não há dúvidas que o
Corcovado é um ponto legitimado.
Segundo Ana Cristina Fiedler,
assessora chefe da assessoria de Co-
Cristo
Rendentor:
eleito uma
das sete
maravilhas
do mundo
moderno
municação Social da Riotur, é possível
ver um aumento na visitação do Cristo
Redentor, mas, ainda assim, esses números não são exatos. Isto porque o
acesso dos visitantes pode ocorrer de
três formas: a pé, no próprio veículo ou
através do trem do Corcovado, e apenas
este último pode ser contabilizado, por
conta da venda de ingressos. Ao contrário do que ocorre com as maravilhas do
Rio: “É impossível contabilizar o efeito
desta eleição porque ela partiu de uma
iniciativa privada e não foi oficializada
pelo Governo do Estado”, explicou.
Para o estudante de Turismo da
Unirio, Rafael Ávila, para uma eleição
deste tipo dar um retorno turístico para
a cidade, seria necessário uma forte
campanha de marketing: “Tudo depende da divulgação que vai ser investida
no monumento. As pessoas passam a
saber da existência de um ponto turístico a partir da divulgação direcionada
O mundo antigo também teve as suas
A origem da lista das sete maravilhas do mundo é duvidosa. O documento mais conhecido é a obra De septem orbis miraculis, atribuída a
Filon de Bizâncio (Philon of Byzantium, um engenheiro grego que listou no século III a.C., as maravilhas da Antiguidade escolhidas pelos
gregos, todas construídas entre os anos de 2.500 a 200 a.C. Hoje, apenas
as Pirâmides do Egito resistiram ao tempo. Também estavam na lista: O
Farol em Alexandria, no Egito, os Jardins Suspensos da Babilônia, no
Iraque, a Estátua de Zeus e o Colosso de Rodes, na Grécia, o Templo de
Ártemis e o Mausoléu em Halicarnassus, na Turquia.
a ele pelo governo”. No caso do Cristo,
foi investido 1,5 milhão em ações de divulgação durante a candidatura.
A Riotur reconhece o Cristo Redentor e acredita que a publicidade gerada depois da eleição foi positiva. O
Aeroporto de Londres, por exemplo,
estampa uma foto do Cristo em uma de
suas paredes. “É uma publicidade gratuita para o Rio e que dá super certo
porque está em um lugar por onde passam pessoas com poder aquisitivo, que
podem viajar de férias para outro país”,
analisa Ana Cristina.
Falta de reconhecimento
O órgão municipal é responsável
pelo turismo no município do Rio de Janeiro, enquanto a Turisrio é responsável
pelo turismo em todo o Estado, cuidando apenas de duas das sete maravilhas
eleitas: Ilha Grande e Museu Imperial
de Petrópolis. Enquanto isso, a Riotur
é responsável pelas outras: Aterro do
Flamengo, Praia de Copacabana, Teatro Municipal, Jardim Botânico e Pão
de Açúcar. Porém, nenhum dos dois
órgãos utiliza o título de maravilha na
divulgação destes lugares porque a campanha não foi promovida pelo Estado.
Para a turismóloga Rubia Simões,
a falta de reconhecimento desta campanha não atrapalha no turismo na cidade, ainda que os turistas tenham pouco conhecimento sobre o que a cidade
oferece. “Nenhuma empresa usa as sete
maravilhas como marketing porque não
faria diferença alguma. A campanha foi
pouco divulgada, assim como os resultados. Normalmente os turistas vêm em
busca das praias e sabem que querem ir
ao Cristo e ao Pão de Açúcar. Claro que
isso depende do perfil do visitante, mas
eu estou falando da maioria. O fato das
pessoas conhecerem pouco sobre o que
vão encontrar na cidade é culpa do próprio estado, que divulga a ideia de que
o Rio significa carnaval, samba e praia
lá fora”.
Roberto Oliveira é taxista há quinze anos e faz ponto em frente a um hotel de Copacabana. Ele conta que costuma levar os turistas aos mesmos lugares
e que sugere alguns pontos da cidade,
quando é possível: “Eu não sabia que
tinham sete maravilhas no Rio. Sabia
do Corcovado e, quando é possível,
falo para os turistas irem visitá-lo. É um
privilégio para os cariocas ter uma maravilha do mundo aqui do nosso lado!
Temos que incentivar a visitação”.
O problema não está na forma
que a eleição foi realizada. Rafael acredita que a escolha tem credibilidade,
ainda que não tenha o aval do governo, porque é resultado da opinião da
maioria. Para ele, a lista seria arbitrária
se as maravilhas fossem escolhidas por
algum órgão. “A Riotur, por exemplo,
as elege, de alguma forma. Quando
eles escolhem alguns atrativos turísticos
para divulgar, eles estão escolhendo as
maravilhas do ponto de vista deles”,
justifica.
Louise Palma
NO 15 - 2009/1
Levantando as cores do arco-íris
13
Em Ipanema, a bandeira colorida do movimento gay demarca um território livre de preconceitos
Vivemos um momento em que o
homossexual está livre para “sair do armário” o quanto quiser. Quem gostou
da idéia foi Felipe Martins, comerciante da praia de Ipanema. Ele é um cara
que literalmente “dá bandeira”, já que
presenteia os donos de barracas da ala
gay da praia com bandeiras do arco-íris.
O território, considerado o paraíso homossexual, está consolidado há
mais de 20 anos na altura da rua Farme de Amoedo. É o lugar mais livre
de preconceitos, onde gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transexuais podem se sentir à vontade, na garantia
de que seus direitos serão respeitados.
De acordo com Felipe Martins, as
bandeiras fazem parte do cenário da praia
gay há cerca de 12 anos. “Eu as confecciono e dou para os donos das barracas
hastearem, para demarcar melhor nossa área. É um símbolo que tem como
finalidade o reconhecimento”, explica.
Para ele, o arco-íris representa alegria,
liberdade e espontaneidade. “Acho que
reflete bem nossa tendência”, observa.
As bandeiras de Felipe são conhecidas internacionalmente. “Revistas de
turismo do mundo todo dizem que é fácil
identificar a ala gay de Ipanema através
delas”, destaca. Os turistas que visitarem
a praia ainda podem levar de lembrança da área gay a sunga com estampa de
arco-íris, uma das mercadorias de Felipe.
“Vejo a ala gay como o lugar onde
as pessoas podem namorar, conversar, se
encontrar, viverem como são, sem serem
julgadas por isso”, avalia Felipe Martins.
Segundo ele, a sociedade precisa de visão
e tolerância em relação ao homossexual.
“Temos leis contra o preconceito, mas
deveria ser criada uma lei específica para
homossexuais”, expõe o comerciante.
Como funciona o Direito
Sylvia Amaral, advogada e especialista em direitos dos homossexuais,
explicou que não existe lei que criminalize a homofobia, nome dado ao
preconceito contra homossexuais, transexuais ou travestis. Um projeto de lei
sobre o assunto ainda tramita. “Para punir os homofóbicos, usa-se a Constituição Federal, que proíbe a discriminação
de uma forma geral”, esclarece Sylvia.
De acordo com Sylvia, os direitos
conferidos aos homossexuais são quase todos provenientes do Poder Judiciário, que vem dando mais atenção ao
segmento e reconhecendo o direito à
igualdade. “Certamente o maior número
de decisões favoráveis ao homossexual
proferidas pelos julgadores vem de uma
pressão de parte da sociedade”, aponta
a advogada. Ela acredita que apenas a
criação de leis poderia trazer igualdade.
“Mesmo assim, enquanto algumas pessoas tiverem preconceito, a igualdade
não será ampla como deveria”, afirma.
Se um casal heterossexual pode
manifestar afeto publicamente, respeitando limites impostos pela sociedade,
os casais homossexuais também têm
esse direito, dentro dos mesmos limites.
“É um artigo previsto na lei, mas que,
infelizmente, só tem alcance no Estado de São Paulo”, observa a advogada.
Outro problema enfrentado por
homossexuais é que a legislação brasileira não prevê o casamento, nem a
união estável, entre pessoas do mesmo
sexo. No entanto, casais vêm formalizando o fato de viverem juntos através
de uma escritura de união estável, feita
em cartório. “O Poder Judiciário pode
ou não aceitar a escritura como válida. Ela vem sendo feita há uns 5 anos.
A escritura, aceita ou não, e o testamento, são os únicos documentos que
protegem os casais homossexuais, por
isso devem ser feitos”, informa Sylvia.
Segundo a advogada, o Estatuto da
Criança e do Adolescente não proíbe a
adoção por casais homossexuais, porém,
em comparação a casais heterossexuais, eles passam por dificuldades muito
maiores para adotar um filho. Da mesma forma, a legislação brasileira não veta
expressamente o registro de uma criança
como filha de duas pessoas de mesmo
sexo. Mas o registro civil direto de um filho só é concedido ao casal homossexual em determinadas situações e através
de autorizações, obtidas judicialmente.
Foto: Cília Monteiro
Posto 9 da praia de Ipanema: o lugar onde homossexuais se sentem à vontade
Essa é uma vitória de Michele
Kamers e Carla Regina Cumiotto, professoras universitárias, que conseguiram o direito de registrar como filhos
das duas o casal de gêmeos concebido
por Carla, fruto de uma inseminação
artificial. A decisão foi da Justiça de
Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Primeiro caso no Brasil
Michele e Carla foram as primeiras no Brasil a conseguirem registrar filhos nascidos de inseminação
artificial. “Nos já tínhamos uma história de 11 anos. Assim, não foi difícil demonstrar ao juiz que já éramos
uma família”, relata Michele Kamers.
A vontade de ter filhos veio primeiro de Carla. “A partir disso, comecei
a sonhar também. Aí sim, tornou-se um
desejo meu”, conta Kamers. Ao planejar
Símbolo gay inspirado nas sete cores do arco-íris
O arco-íris é um fenômeno óptico constituído por sete cores, que se formam devido à refração da luz solar. Sua beleza inspirou o artista plástico Gilbert Baker a criar a
bandeira do arco-íris, em 1978, eleita como símbolo do movimento homossexual. Foi
usada pela primeira vez no mesmo ano, numa parada gay em São Francisco.
A pluralidade de cores representa a diversidade para os homossexuais. Na composição do símbolo, foram adotadas seis cores do arco-íris, que remetem a um significado espiritual. Estampadas na bandeira, elas aparecem na seguinte ordem: vermelho
representa a vida, laranja, a cura; amarelo, a luz do sol; verde para calma e natureza, azul
para harmonia e arte; e violeta, para o espírito. A sétima cor seria o índigo, excluído pela
dificuldade de confecção.
a família, Michele concluiu que não aceitaria apenas a adoção das crianças. “Só
seria uma possibilidade se a Carla fosse infértil, mas não foi o caso”, diz ela.
Carla e Michele não foram vítimas de preconceito. “Temos uma
posição privilegiada. Somos psicanalistas, professoras universitárias e
ocupamos um lugar de autoridade na
cidade em que vivemos. Outra questão, é que temos muito bem resolvida nossa escolha”, afirma Kamers.
No entanto, antes do caso passar por Porto Alegre, a justiça de Santa Catarina, estado em que vivem, alegou em uma consulta informal que o
pedido ia contra as leis de deus e da
biologia. “Mas como pode alguém
do Direito julgar em nome de crenças pessoais?”, questiona Michele.
“Quem vive a maternidade é a
Carla, eu vivo a paternidade no processo. São lugares diferentes, por isso
as nomenclaturas também são diferentes. Eu sou ‘pami’ e Carla é ‘mamãe’”, explica Kamers. O casal espera
que o caso sirva de exemplo e resulte
numa mudança social. “Já tivemos nazismo, fascismo e escravidão como
provas de que a diferença, na medida
em que suscita questionamentos, provoca rechaço. Por isso, é necessário
inscrevê-la no social como uma possibilidade no campo da cultura, que não
é regra nem exceção”, conclui Michele.
Cília Monteiro
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NO 15 - 2009/1
Muitos mares de histórias
Navegantes que atravessam o mundo revelam a curiosa vida dos que passam anos longe da terra firme
“Já está provado que quem é marítimo por muitos anos dificilmente consegue se adaptar a vida em terra”, garante
Erik Azevedo, que tem 32 anos e há 11
é marinheiro mercante. Erik navegou por
toda a costa brasileira, conheceu a Itália,
Holanda, Espanha e Portugal dentre outros países em viagens que chegaram a durar meses. Diversas pessoas passam dias,
meses e até anos navegando. O embarque
pelos 7 mares revela um mundo desconhecido para àqueles que, desde muito
cedo, buscam na marinha sua profissionalização. Contudo, o sonho de viajar pelo
mundo, conhecer novas terras, mergulhar
em novas aventuras e de alguma forma ser
útil ao país, traz também consigo dificuldades: árduas rotinas a bordo, a solidão
de quem vive em um confinamento e o
surgimento de uma série de novidades até
então inimagináveis.
“Cada navio é uma marinha, é um
velho ditado”, diz Erik. O marítimo conta
que começou na profissão em um navio
sísmico que fazia varreduras geológicas e
mapeamento do leito do mar em busca de
petróleo. Erik ainda acrescenta que, pelo
fato de o navio ser de bandeira norueguesa, os tripulantes eram servidos de um
ambiente bastante confortável a bordo, o
que não acontece com alguns oficiais da
marinha de guerra que são submetidos,
muitas vezes, a acomodações inadequadas
e desconfortáveis.
Em navios de guerra, a rotina diária é estruturada de modo a realizar uma
divisão das tarefas em grupos, chamadas
“quartos de serviço”. Existe sempre um
quarto efetivamente de serviço, um que
estará de folga e outro que será o “retém”,
ou seja, fornecerá reforço para cobrir faltas eventuais.
As tarefas a bordo são realizadas
dividindo-se as 24 horas do dia em períodos de quatro e três horas. Dessa forma,
o dia de trabalho do marinheiro é contado
diferentemente do dia do homem de terra.
Fora disso, o tempo é livre para se fazer o
que quiser, desde que não tenha nenhum
exercício estabelecido pelo comandando
durante as viagens. O baralho, os livros,
as conversas e até as festas são freqüentes
nas embarcações para que o tempo possa
passar mais rápido.
Com as divisões, o navio está
pronto para fazer frente aos trabalhos que
envolvem toda a gente de bordo, ou parte
dela, para um fim específico. Nas fainas, os
marinheiros cumprem tarefas que envolvem o preparo para suspender, fundear,
montar ou desmontar toldos, inspecionar
materiais entre outras diversas atividades.
Francisco Tomaz é marinheiro
de guerra há 30 anos e conta que teve dificuldades para se acostumar com a vida
no mar. “Períodos de confinamento, com
pouco espaço a bordo, guarnição estressada pelos dias de mar (quando mais de 10
dias consecutivos), uma vontade grande
de falar com a família todos os dias e não
tinha como”.
A ausência de TV e de internet
em algumas embarcações, que realizam
longas viagens, é um grande empecilho a
esses profissionais, que se vêem privados
das informações que acontecem no mundo. A comunicação com familiares, muitas vezes, é restrita ou inexistente pois não
há sinal de celular em alto mar. Algumas
embarcações e plataformas tem um sistema de comunicação com terra via satélite.
Porém, isso só acontece em embarcações
bem sofisticadas e em plataformas de petróleo, pois o custo desse sistema é bem
elevado.
Erik encontrava-se embarcado
quando sua prima faleceu e não ficou
sabendo. “Eu perdi uma prima quando
estava no mar. Naquele tempo, eu ficava
50 dias em um rebocador de suprimentos.
Ninguém me avisou nada mas também
não adiantaria. Eu só soube que ela tinha
falecido quando cheguei em casa”.
Francisco, assim como Erik,
também já realizou grandes viagens pela
marinha de guerra. Esteve na Costa do
José Maria, em 2004,
como sub-chefe da polícia marítima
Marfim, na Nova Guiné, na Nigéria, enfim, em todos os países da costa africana.
Na Europa, viajou por Portugal e Espanha. Apesar de ter passado por algumas
dificuldades, chegando até ser preso a
bordo por não comparecer ao serviço
em dia determinado, não se arrepende de
ter escolhido a marinha como profissão.
“Todo o esforço foi compensador”.
Por e-mail, Francisco conta que
uma das viagens mais marcantes da carreira foi a sua primeira viagem de Recife
à Fortaleza como grumete. “Marcou porque estávamos com nossa turma juntos,
mais de 250 amigos que se reuniam em
internato desde seis meses atrás. Fortaleza
foi uma festa, íamos à cidade para namorar com as gatinhas filhas da terra, éramos
jovens e descobríamos o mundo. Nunca
tivemos limites na imaginação, sabíamos
das dificuldades que a Marinha nos impunha, mas sonhávamos em conquistar o
mundo e transformá-lo. Era o nosso sonho ser marinheiro e para isso lutávamos.
Depois de 30 anos, muitos morreram,
outros chegaram à atingir o oficialato e
outros, não obstante a todas as passagens,
continuam sonhando, mas agora como
homens, não mais como adolescentes”.
Reza a lenda que marinheiro que
é marinheiro deixa um amor em cada
porto. Há quem diga que, antigamente,
a ocorrência desses romances era muito
mais comum do que hoje em dia. Em
Recife, por exemplo, lavadeiras ficavam
dispostas no porto e, ao encontrarem com
os marujos, acabavam se apaixonando
ou mesmo ofereciam suas filhas com
a esperança de um casamento bem
sucedido. Os tempos mudaram mas a
lenda permanece.
Erik diz que esses romances repentinos acontecem sim, e com mais freqüência nas dragagens, embarcações que
ficam próximas a costa e que desempenham funções de manutenção da profundidade dos cursos d’água. Quem trabalha
nas dragas, costuma ficar no porto durante meses podendo até descer todos os
dias. “O cara em terra todo dia, só gasta,
se não tiver juízo, torra tudo na farra e
não vai pra frente nunca. Já ouvi muitas
estórias de marinheiros que largam família e tudo mais pra montar casa para as
primas”, diz Erik.
Francisco também confirma a tendência de romances nos portos, “mulheres no porto, quase sempre o marujo se
apaixona (e a mulher também), mas depois esquece”. E José Maria ainda acrescenta, “Quem não tem romances naquela
idade E eu nunca tive vocação para santo.
Um deles resultou num casamento mal
sucedido”.
José Maria tem 71 anos é português e sub-chefe da polícia marítima.
Quando ingressou na marinha, tinha apenas 14 anos e começou como telegrafista
até chegar a agente da polícia marítima
em trabalhos que envolviam missões sigilosas.
Hoje, aposentado, José Maria se
recorda dos romances em cada porto, do
balanço do mar, das rotinas diárias, da comida de bordo enfim tudo deixa um resquício de saudades. “São muitas lembranças, às vezes alegres outras nem tanto,
mas nada que eu pudesse dizer que não
compensou, ou melhor, digo que tudo
valeu muito a pena. E como valeu...”
Bianca Mina
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NO 15 - 2009/1
Vestibular: bicho que perde cabeças
Enem, como forma de ingresso no ensino superior, ganha força e alivia pressão sobre os estudantes
Conta a Mitologia Grega que caloura de Comunicação Social na
Hidra de Lerna era um monstro com Universidade Federal do Rio de Janeiro
sete cabeças que, ao serem cortadas, (UFRJ), discorda que o vestibular seja
renasciam. Matar esse ser foi um dos um bicho de sete cabeças: “Acho que
doze trabalhos do semi-deus Hércules. se você se preparou bem, cumprindo
Na acepção contemporânea, o bicho um plano de estudos, você consegue se
de sete cabeças passou a simbolizar sair bem. É mais a cabeça da pessoa
algo de grande complexidade e com que cria isso”.
exagerada dificuldade.
Os traumas
Mesmo não sendo A origem do mito causados pela proum trabalho para os
O bicho de sete cabeças tem origem na va não são pequedeuses, o vestibular é Mitologia Grega. Segundo o mito, Hidra nos em alguns dos
encarado por grande de Lerna era uma espécie de serpente “sobreviventes”:
parte de nossa juven- que habitava obscuras e fantásticas par- “Eu não quero pastude como um bicho agens e cujas sete cabeças renasciam ao sar nunca mais por
de sete cabeças. “Não serem cortadas. Matar esse animal foi isso. Não gosto de
exatamente um bicho um dos famosos Doze Trabalhos do vestibular”, declara
semi-deus Hércules. Na acepção conde sete cabeças, mas temporânea, um bicho de sete cabeças Thales
Pereira,
é uma das fases mais passou a simbolizar algo de grande com- 20 anos, também
importantes na vida plexidade e com exagerada dificuldade. calouro de comude um estudante por
nicação da Fedcausa da pressão de
eral. Já sua colega
ter o futuro nas mãos. É claro que po- de turma, Lívia da Costa, de 17 nos,
demos sempre tentar no ano seguinte, afirma que depois de aprovada mudou
mas fica aquela sensação de ter um totalmente sua visão sobre o exame:
ano perdido”, conta Antônio Lucas de “Quando você faz vestibular, pensa
Lima, 17 anos, aluno da escola estadual que é muito complicado, que é coisa
Brigadeiro Schorcht.
para gênio. Depois que você é aprovaO vestibular, que atormenta a do, vê que não é tão complicado assim,
vida de muitos jovens, já pode ser passa a olhar sob outra perspectiva”.
eliminado dos critérios seletivos para
Indagados sobre o porquê da
2010, mas muitas universidades ainda existência do mito em torno do prodiscutem a adoção do novo sistema cesso de admissão das universidades,
que aproveita as notas de avaliação do os “vestibulandos” e os calouros de
Exame Nacional do Ensino Médio, ex- Comunicação Social da UFRJ - que
ecutado em etapas, para definir os ap- acabaram de passar pelo “turbilhão”
tos a cursar o ensino superior.
– enumeraram alguns motivos: por ser
O momento único propiciado uma prova com um grau de dificuldade
pelo vestibular costuma tirar o sono considerável, o nervosismo do aluno, a
de grande parte da juventude brasile- pressão dos colégios e a concorrência
ira que almeja cursar o ensino supe- são alguns dos mais freqüentes. Thalrior num país onde o índice de estu- es Pereira, contudo, salientou que muidantes de 18 a 24
tas vezes o aluno
anos com acesso
vem despreparado
à Universidade é
do ensino médio,
de apenas 13%.
principalmente os
E, quando se fala
de rede pública, e
em ensino público,
completa: “como
esse índice cai para
o vestibular é uma
3%. Carlos Eduaravaliação do que
do Lopes, também
eles aprenderam e,
daescola estadual Brigadeiro Schorcht, como o ensino não está bom, eles talvez
acredita no mito por trás do vestibular fiquem com mais medo por isso”. Se o
e afirma que sua existência se deve ao vestibular é um bicho de cabeças para
fato do processo ser muito concorrido grande parte da juventude, imaginem
e difícil. Já Natália Menezes, 17 anos, para aqueles que não podem pagar por
“Quando você faz
vestibular, pensa
que é muito complicado, que é coisa
para gênio”
um ensino de
qualidade em
sua
formação?
Em entrevista recente à imprensa,
o reitor da
UFRJ, Aloísio
Teixeira, discorreu contra
os métodos
de acesso à
universidade
existentes no
país e afirmou que, apesar de parecer
um “mal necessário”, o vestibular é, na
verdade, um mecanismo perverso de
exclusão e promoção da desigualdade.
O reitor declarou ainda que o método
atual de inserção no ensino superior
brasileiro incentiva o que ele chama de
“indústria do vestibular”, em cujo centro estão os famosos cursinhos prévestibulares. Através da voz do reitor
de uma das maiores universidades do
país é possível perceber que os problemas que envolvem o vestibular ultrapassam a esfera do pessoal e perpassam pela questão social do país, que
influi diretamente nos cinco milhões
de jovens que se preparam para uma
etapa crucial na vida de um estudante.
Esse ano os alunos brasileiros
esperam por grandes novidades no
vestibular: o Ministério da Educação
(MEC) lançou a maior mudança feita
no concurso desde 1911. Trata-se do
“Novo Enem” que, baseado no SAT,
sistema estadunidense de vestibular,
pretende transformar o exame numa
prova unificada em todo o Brasil, o
que aumentaria as chances dos alunos
pleitearem vagas em outros estados, diminuiria a pesada carga horária de provas, entre outros benefícios enumerados pelo MEC. Segundo o Ministério,
a consolidação de um sistema nacional
de admissão atende às novas necessidades do ensino superior no país, que
cresce a cada ano.
A revista Veja, em matéria especial sobre o Novo Enem, noticiou
que as quatro maiores redes de cursos
pré-vestibulares do país já afirmaram
fazer adaptações nas aulas e no mate-
rial didático de modo a treinar os alunos para o novo exame. Questionados
se estão estudando de maneira específica por causa dessas mudanças, cerca
de 90% dos alunos entrevistados do
3º ano do colégio estadual Brigadeiro
Schorcht afirmaram que não. A aluna
Camila Silveira, por exemplo, disse
que está estudando “normalmente” e
que pretende fazer um cursinho prévestibular ano que vem, opinião compartilhada por muitos colegas.
O Reitor Aloísio Teixeira, otimista quanto à nova prova, também
afirmou à imprensa que a idéia lançada
pelo MEC de um Exame Nacional do
Ensino Médio como subsídio para o
acesso às universidades federais pode
ser o ponto de partida para a revogação
do mecanismo do vestibular, para a democratização do acesso e ainda para a
consolidação do caráter público dessas
instituições. A maior parte dos entrevistados, contudo, não concorda com
o reitor. “Não acredito que o vestibular se torne mais democrático, já que
o problema real não será resolvido. Só
quando os candidatos da rede pública
tiverem acesso ao mesmo ensino dado
nos colégios particulares, os candidatos menos favorecidos poderão disputar de igual para igual com os outros
concorrentes”, afirma Cintia Silva, de
22 anos, aluna de um curso pré-vestibular. O estudante Adair Pacheco, do
colégio estadual Brigadeiro Schorcht, é
taxativo: “Antes de pensar no terceiro
grau, deveríamos nos preocupar com o
ensino médio, que hoje é um lixo.
Raquel Gonzalez
16
NO 15 - 2009/1
Sem hora para o grito de independência
Cresce o número de jovens que prefere o conforto da casa dos pais em vez da busca da autonomia
Aos 23 anos, D.Pedro I deu o
grito de independência de um país
inteiro. Mariana Moraes, de 47 anos,
deu o seu aos 24. Gabriela Leite, de
25 anos, tornou-se independente há
2 meses. Gustavo Areal, de 26, diz
que está planejando como fará isso e
Sandra Pereira, de 45 anos, se considera
independente mesmo morando com
os pais. Para alguns, a independência
é conquistada após um longo processo
de amadurecimento. Para outros, ela
acontece repentinamente.
Este último foi o caso de Mariana. Ela saiu de casa após brigar com
os pais por eles não aceitarem seu namoro com um homem casado. “Meus
pais, totalmente tradicionais e conservadores, não aceitaram o fato de eu
namorar um homem casado e com filhos. Então eles me falaram: ou você
termina com ele ou sai de casa. E eu
escolhi sair de casa. Desde esse dia,
meus pais me diziam que eu não existia mais.” – conta ela, que atualmente
fala com os pais normalmente.
Casada com o homem que a tirou
de casa e com dois filhos, ela confessa
que sair não foi muito difícil por ter
o apoio de seu irmão mais velho, que
além de ajudá-la financeiramente,
cedeu um apartamento para ela morar
temporariamente: “Eu já trabalhava,
mas o dinheiro não era suficiente
para meu sustento. Depois que meu
namorado se separou da mulher,
fomos morar juntos e não precisei
mais pedir dinheiro para o meu irmão,
que me ajudou muito enquanto isso
não aconteceu.” – disse Mariana. Ela
diz que só se sentiu independente
depois que não recebeu mais ajuda
do irmão: “Independência é quando
o dinheiro que se ganha mensalmente
consegue pagar os custos obrigatórios
como água, luz e telefone, e também
os extras, como lazer. A partir do
momento em que eu não precisei da
ajuda de ninguém para viver, me senti
independente” – explica.
Mariana acha que a saída da casa
dos pais faz parte da lei natural da
vida e diz que não vai tentar evitar a
saída de seus filhos de casa: “Se eles
souberem o que estão fazendo, se
tiverem como se sustentar e forem
responsáveis e maduros o suficiente
para enfrentarem dificuldades, não
tenho como ser contra. É algo
natural.”
Para Gabriela Leite, que
mora sozinha há apenas 2 meses, a independência foi algo
mais racional: “Eu sempre
quis morar sozinha, mas essa
decisão só foi tomada após
eu ter condições de arcar financeiramente com ela.” Ela
conta que sua maior dificuldade é ter que resolver algum
problema doméstico durante
o horário comercial por causa
do trabalho e que, apesar de
não ter com quem dividir suas
dificuldades, as vantagens em
morar sozinha são inúmeras:
“Posso fazer o que quero, do
meu jeito, na hora que me
convém.”
Além de todas essas
vantagens, Gabriela conta
que o relacionamento com
a sua família melhorou
bastante: “Tenho o cuidado de não
me afastar; nossos encontros são
sempre muito agradáveis. Além
disso, os desentendimentos naturais
da convivência foram extintos.” Ela
aconselha os jovens que desejam
sair da casa dos pais muito estudo:
“Não dá para achar que o emprego
maravilhoso vai cair do céu e você vai
ganhar rios de dinheiro com ele. E
se acontecer, só vai dar para mantêlo se tiver conhecimento para isso.
Portanto, estude!”
Entretanto, a juventude atual
está menos inclinada a se tornar independente. Isabella Zappa, pedagoga, explica que além do dinheiro, a
baixa auto-estima influencia no retardamento do processo individual de
Gustavo Areal, 26, o mimado
independência, pois o jovem não se
sente capaz de viver por conta própria. Porém, ela ressalta que a peçachave no atraso da independência é
o superprotecionismo: “Quanto mais
superprotegido e mimado foi o jovem
quando criança, mais difícil será sua
saída da casa dos pais. Ele se sente tão
conectado àquilo que tem medo da
solidão ou de não se sentir tão bom
quanto os pais.” – explica Isabella.
Mimado assumido, Gustavo
Areal, 26 anos é Procurador Geral
do Estado e ainda mora com os pais.
Entretanto, ele afirma que pensa em
morar sozinho desde os 16 anos.
“Para morar sozinho, você depende
da independência financeira, que só
Independência aos olhos da justiça
A representação jurídica mais próxima da independência é a emancipação de
menores. Esse mecanismo permite que um menor de idade adquira alguns direitos
civis idênticos aos dos adultos. O pensamento que baseia este conceito é a idéia de
que adolescentes amadurecem em idades diferentes, não apenas biológica, mas mental, emocional e socialmente. No Brasil, a emancipação pode ser adquirida acima dos
16 anos por vontade dos pais, por vontade própria, por auto-suficiência econômica e
devido ao casamento – abaixo dos 16 anos, a emancipação é permitida em casos de
gravidez ou para evitar o cumprimento de pena criminal. Entretanto, algumas proibições continuam vigorando para os emancipados, como por exemplo, atividades pornográficas ou de prostituição, que só são permitidas após os 18 anos.
consegui em 2007. Eu já posso sair
de casa se for alugar um imóvel, mas
eu quero comprar e ainda não tenho
dinheiro para pagar à vista ou dar uma
boa entrada. Por isso estou esperando
juntar mais dinheiro.” – justificou.
Gustavo também contou que
está economizando para poder
sair de casa o mais rápido possível:
“Decidi transferir meu trabalho
para o interior do Estado porque se
ganha mais. Eles me dão um extra
para ajuda de custo, então consigo
economizar mais dinheiro por mês.”
– explicou.
Apesar desse esforço para sair de
casa, ele sabe que enfrentará muitas
dificuldades quando isso acontecer:
“Eu sempre tive empregada, então,
vou sentir muita dificuldade em ter
que gerir uma casa, mas isso é um
motivo a mais pelo qual eu quero
morar sozinho. Eu tenho que criar
essa responsabilidade de administrar
as contas de água, luz, gás, telefone...
Toda pessoa precisa passar por isso,
porque é um crescimento pessoal.”
Mesmo com um bom salário
e emprego estável, Gustavo não se
sente completamente independente.
Ele afirma que a independência é um
processo lento e gradual, e que passar
no concurso foi mais uma etapa:
“Considero essa minha conquista na
procuradoria como mais uma etapa.
Não me senti independente em um
dia específico. Com certeza a fase
final deste processo de independência
vai acontecer quando eu for morar
sozinho e gerir a minha própria casa.
É só o que falta.”
Já a professora de História Sandra
Pereira, de 45 anos, ainda mora com
os pais, mas diz que é independente.
“Sair de casa não significa nada. Tem
muita gente que mora sozinha, mas
ainda é extremamente dependente
dos pais, tanto emocionalmente
quanto financeiramente.” Ela conta
que já morou sozinha duas vezes, para
trabalhar e estudar, mas não gostou da
experiência: “Adoro chegar em casa e
ver tudo pronto e organizado. Além
disso, adoro meus pais. Eles sempre
me deram muita liberdade. Vou sair
para quê?”
Barbara Gazal
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NO 15 - 2009/1
O mito da crise com data marcada
Dificuldades em relacionamentos ignoram o ‘prazo de validade’ do casamento no imaginário popular
Em seu apartamento, em Botafo- das, pois a mulher era a parte que tigo, confortavelmente deitada na cama nha que “abrir mão”, dentro da relação.
de seu filho mais velho, a professora de Enquanto isso, a maioria dos homens
português Lúcia Soares conta que seus continua esperando a imagem da mudois primeiros casamentos (ela passou lher que foi construída ancestralmente.
por três) “foram relações completa- “Ele espera da mulher mais do que ela
mente diferentes, mas deram exata- ta dando hoje em dia e do que ela ta
mente no mesmo”. No primeiro, ela ti- disposta a ‘suportar’ porque a posição
nha 18 anos e teve um filho. O segundo de quase vassalagem da mulher em refoi sem filhos e com uma pessoa mais lação ao homem acabou”
jovem que ela. Nos dois, Lúcia descoIsso pode ser confirmado pelas
briu, aos sete anos de casada, que esta- estatísticas de Marcelo Pinheiro. O psiva sendo traída e terminou a relação.
cólogo diz que, geralmente, a proposta
O psicólogo Marcelo Pinheiro de separação vem da mulher, pois os
não conhece estatísticas relacionadas a homens se acomodam mais. Para Maruma crise dos sete anos de casamento. celo, o mito dos sete anos pode ter relaApesar disso, confessa que ele e sua es- ção com a fase em o casal se encontra.
posa viveram alguma dificuldade, nessa Na maioria dos casos, nessa época, o
época: “A gente conversou: ‘pô, a crise casal está tendo o segundo filho, a atendos 7 anos...’, mas não sei se essa crise ção para as crianças vai aumentando e,
foi diferente aos 4, 5...”. Marcelo ex- para o parceiro, diminuindo. “O surplica que há, sim, uma diminuição na gimento dos filhos é uma grande protendência à separação com o passar do va para os casais porque os filhos são
tempo. “Casais que estão juntos há dez importantes para os dois (em pessoas
anos têm uma probabilidade de separar normais)”. Quando duas pessoas intemuito menor do que recém-casados”.
ragem, a relação se torna mais difícil, se
As duas relações de Lúcia que há uma terceira que exige um consenduraram sete anos terminaram por ini- so. Não dá para os dois lados mostraciativa dela. A professora conta que os rem pontos de vista opostos para uma
criança. Quando
dois maridos afirmao casal passa por
vam que não queriam
esse desafio e chea separação, pois gosga a um acordo,
tavam dela. Lúcia deiele cria uma cultuxa a questão: “Gostara própria daquela
vam como, se estavam
família. Se a voncom outra?” Para ela,
tade de um dos
quando acontece a
lados prevalece e
traição, é porque o
Marcelo Pinheiro
a outra pessoa fica
casamento já não está
acuada, isso pode
bem.
Denise, muito bem casada há sete gerar uma crise. Todas as questões preanos, concorda com Lúcia sobre a di- cisam ser discutidas. Como as tarefas
ficuldade de um casamento: a convi- serão divididas? “Tem que trocar fralvência, naturalmente. Aliás, parece ser da!”, lembra o psicólogo. Às vezes, o
a única coisa em comum entre as duas. homem tem a expectativa de que a muDenise acha que crise pode acontecer lher faça essas coisas e ela não pretende
a qualquer momento e diz já ter passa- fazer.
No caso de Lúcia, os filhos não
do por algumas, que foram superadas,
segundo ela, com o amor. Para Denise, interferiram tanto nas separações.
este é o elemento que ajuda o casal a Num dos casamentos que acabou aos
sete anos, teve filho, no outro não. No
lidar com as diferenças do outro.
Para Lúcia, suas separações são terceiro, ela cedeu à maternidade mais
características do perfil de mulher atu- por uma vontade do marido, com quem
al. Ela acredita que, se tivesse outra ficou durante 17 anos, do que por um
concepção de casamento, como a de desejo próprio. Denise ainda não tem
mulheres de gerações anteriores, essas filhos, mas o primeiro está planejado
duas relações não teriam sido rompi- para este ano. Ela acredita que, quando
“O surgimento
dos filhos é uma
grande prova para
os casais”
o bebê é planejado e “feito com amor”,
não causa problemas.
No último casamento de Lúcia,
a crise dos sete anos não passou nem
perto. Era a época em que Maria Lúcia, a filha mais nova, era pequena e as
marido tinha horror a discutir relação.
Quem vive com uma mulher tem que
saber discutir relação”. Lúcia acha que,
se eles tivessem feito terapia de casal, a
relação poderia não ter acabado.
“As mudanças que acontecem
Lúcia: “Casar de novo, só se morar separado”
Para Denise, tudo se resolve com amor
preocupações estavam voltadas para
ela, não houve nenhum tipo de tensão
por conta das experiências anteriores.
A crise dessa última relação aconteceu,
aí sim, nos últimos sete anos. O último
rompimento não foi tão tempestuoso
quanto os outros, muito por causa da
maturidade. “A gente vai aprendendo,
né? Três casamentos, a gente tem que
aprender alguma coisa...”.
O relacionamento de Denise não
foi sempre tão tranquilo. Foi preciso a
interferência da terapia para controlar
o ciúme do marido, que, na época, até
colaborou para que ela se afastasse do
emprego. “Ele viveu num mundo de
neuroses com a ex. Quando nos conhecemos, ele era controlador, ciumento
demais. Em resumo, fazia comigo tudo
o que ele não suportava que ela fizesse
com ele. Daí, falei da terapia, ou então
nem me casaria com ele”. Hoje, Denise
diz que seu marido “é um homem maravilhoso”, com o ciúme controlado.
Lúcia fazia terapia há 11 anos,
quando se separou pela última vez, e
acredita que isso pode ter interferido
no fim do casamento. “O autoconhecimento fez com que eu, como esposa,
me desligasse um pouco do relacionamento”. Ela chegou a propor ao marido que eles fizessem terapia de casal, mas ele se recusou. “Meu terceiro
com a terapia são mudanças diante da
vida. Sua forma de lidar com o mundo
é modificada com a terapia em várias
áreas, inclusive na área afetiva”, explica
Marcelo Pinheiro. “Se uma pessoa buscou um conhecimento pessoal e outra
não, isso pode acirrar um descompasso
entre os dois”. Marcelo conta que, na
terapia de casal, um chega pensando
que o terapeuta vai mostrar ao outro
como ele está errado. “Se meu marido/
minha esposa mudasse, nossa relação
seria perfeita...” Mas não é isso que é
feito. Se o terapeuta opta por um dos
lados, estará reproduzindo a dificuldade que levou o casal à terapia. O objetivo é facilitar que cada um enxergue sua
responsabilidade dentro do problema.
“É muito difícil mudar o outro. É mais
fácil mudar a si mesmo”. Se cada um
colabora, os dois conseguem encontrar
soluções. Mas Marcelo avisa: “Terapia
de casal não é cola pra colar as pessoas,
quem sou eu para saber que o melhor
para aquelas pessoas é estar junto e não
separado? Ninguém pode saber isso...”
Lúcia só casará de novo, se for
para morar separado. E Denise afirma
para quem quiser ouvir que, caso se separe, não se casará nunca mais.
Carolina Berger
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NO 15 - 2009/1
Chaves que protegem do medo
Como não podem acabar com a violência, cariocas se trancam das mais variadas formas em busca de segurança
No século XIII, em Portugal, baús com
quatro fechaduras eram a maneira mais segura
que a nobreza conhecia para guardar seus objetos de valor. As quatro chaves capazes de abrir
tais baús eram distribuídas cada uma para um
alto funcionário do reino português, garantindo a segurança dos artigos guardados. Com o
tempo, o procedimento foi caindo em desuso, e
a mística do número sete, originária de religiões
primitivas babilônicas e egípcias, acabou gerando a expressão dos dias de hoje, quando algo
é guardado a sete chaves, ao invés de quatro.
Claft, claft, claft, claft. Curiosamente, não
eram sete as chaves de João Neves, 66, mas quatro,
exatamente como há oito séculos atrás. A incrível
coincidência parecia confirmar que se tratava de um
“maníaco por segurança”. João mora com a esposa
numa casa de classe média no bairro da zona norte
do Rio, próximo ao sempre “movimentado” morro dos Macacos. Sem condições de se mudar para
um lugar melhor tamanha a desvalorização que o
imóvel teve desde que foi comprado por ele, nos
anos 80, Seu João tem que conviver com os constantes tiroteios e arrastões na região. Numa noite
de 2001, seu neto, à época com apenas dois anos
de idade, quase foi atingido por uma bala perdida
que chegou a entrar no quarto do menino. “Esses
problemas começaram por aqui quando a polícia
começou a prender os bicheiros da região. Com
a diminuição do poder do jogo do bicho, os traficantes tomaram conta da região”, acredita João.
Amedrontado depois do assalto em algumas casas próximas à sua, o professor de português aposentado mandou instalar mais duas
trancas na porta de sua residência, para tentar dificultar um pouco a vida dos assaltantes.
“Graças a Deus eu nunca precisei delas”, diz.
Além das fechaduras extras na porta, João
tomou outros cuidados mais “tradicionais” para
afastar os criminosos. Um cachorro e uma cerca
elétrica protegem a pequena varanda da residência.
“Antigamente, o muro tinha apenas cacos de vidro
para impedir a entrada dos bandidos, mas resolvi investir e comprar uma cerca elétrica. O cão eu
sempre tive, mas também considero uma espécie de
“segurança permanente” para a minha casa” conta.
As precauções para proteger sua casa não foram as únicas tomadas pelo aposentado. Apesar de
ter direito a andar de ônibus de graça, João raramente utiliza o transporte coletivo. Os casos de violência
contados pelos vizinhos fizeram com que Seu João
mudasse seus hábitos para se sentir seguro. “Tive começar a sair menos de casa. Mesmo nos tempos em
que eu pagava a passagem no ônibus, ela saía muito
mais barata do que uma corrida de táxi. Mas não me
arrependo”, afirma. Indignado, João conta que um
de seus amigos chegou a ter um revólver apontado para sua cabeça durante um assalto a um ônibus.
Diferentemente de João, Luiz Antônio, 53, nunca chegou a passar por uma situação de risco relacionada à violência. Mesmo assim, morador de um prédio no Catete, se protege como pode dos criminosos.
Luiz chegou a tentar convencer seus vizinhos de que
medidas mais extremas de segurança – câmeras de vigilância, presença de porteiros 24 horas por dia etc eram necessárias ao edifício. Não conseguiu, e não foi
por falta de insistência, garante. “Eu falava dos casos
de violência que a TV mostra todo dia, mas os moradores me ignoravam. Passei algum tempo brigando
por isso, mas não adiantou”, lamenta o advogado.
Apesar de nunca ter presenciado um assalto,
Luiz evita riscos quando sai de casa, e se protege
em seu apartamento, seu porto seguro. Com medo
de que ladrões entrassem em sua casa pela janela que dá pra rua, o advogado instalou uma grade
alumínio, praticamente abdicando da vista. Mesmo morando no terceiro andar, Luiz decidiu tomar essa medida depois de se assustar com alguns
casos na televisão. “Cansei de ver, na TV, histórias
de casas invadidas por bandidos. Prefiro parecer
maluco a me expor a esse tipo de risco”, diz, reclamando da forma como é tratado pelos amigos.
Apesar de não ter dúvidas da qualidade de suas
amizades, Luiz não gosta do jeito como alguns de seus
amigos e até sua esposa se referem a ele em alguns
momentos. “Sempre fui o mais precavido do nosso
grupo, mas eles gostam de me chamar de maluco, paranóico etc”. O modo como é tratado não é à toa. São
as manias do advogado que irritam os companheiros.
Uma delas é curiosa e inconveniente: Luiz não gosta
de pedir nada por telefone para não ter de abrir a
porta para estranhos, mesmo quando identificados.
A psicóloga Cassilda Soares confirma o
que muitos percebem no dia-dia: os casos de violência frequentemente apresentados pela mídia
acabam aumentando a sensação de insegurança, e a necessidade por mais proteção. “Esses fatos acabam entrando para o imaginário da sociedade, que fica impressionada com os tiroteios,
assaltos, assassinatos. Vem daí também essa busca
por câmeras de vigilância, carros blindados etc”.
Cassilda explica também que o medo dos criminosos tem a ver com a necessidade da sociedade
de se afirmar através da negação do diferente, do
outro, no caso, os bandidos, os facínoras, sanguinários etc. O traficante é, portanto, o bárbaro carioca
do século XXI. “Sem identificar o outro, o diferente,
eu também não consigo me identificar, não existo. O
“errado” é essencial para que se conheça o “certo”.
Este é o princípio da alteridade”, diz a psicóloga.
Cassilda não põe a culpa da paranóia por
proteção nos tempos de hoje nos veículos de co-
municação, mas reconhece que ela exerce importante papel. “É algo até certo ponto natural. A influência da mídia na construção dessa sensação
de insegurança é inegável, mesmo que não seja de
forma proposital. Embora os meios de comunicação escolham o que deve ou não ser noticiado, eles
não criam fatos violentos, apenas os divulgam”.
Para ela, pessoas como o advogado Luiz Antônio são os principais afetados por essa sensação de constante insegurança vivida no Rio de Janeiro. Isolado de um contexto social, o medo da
violência dificilmente atingiria uma pessoa que
nunca enfrentou situações de real risco. Já na realidade, o caso de Luiz parece apenas mais um entre muitos cariocas assustados com o que vêem
na TV, escutam no rádio ou lêem no jornal.
Enquanto isso, a psicóloga não vê muita influência da mídia no medo de João Neves, que mora
numa região reconhecidamente perigosa da cidade.
“No caso dele, a sensação de que vive no meio de uma
guerra é real, não é psicológico. As pessoas que moram nesses locais de risco precisam de proteção, e vão
atrás dela até onde sua condição financeira permitir”.
Como não têm como fugir, pessoas como
João aprenderam a evitar os perigos. Já com a entrevista terminada, com o relógio marcando quase
22h, o ex-professor deu um conselho sobre a viagem de volta do repórter para casa, em Laranjeiras. “Vai de táxi, os ônibus por aqui não são seguros” alertou Seu João. Talvez em busca de alguma
adrenalina, a reportagem decidiu “pegar” um 432.
Rodrigo Paradella
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NO 15 - 2009/1
Espelho quebrado, sorte em pedaços
A história por trás das crendices e simpatias que afetam o dia-a-dia da população brasileira.
Da superstição à tradição religiosa, a mitologia sobre os espelhos
é associada ao azar ou a morte. A origem dessa crença remonta aos gregos
e seu costume de ler o futuro a partir
da imagem de uma pessoa refletida
sobre uma tigela com água, se o pote
quebrasse era sinal de azar. Os romanos herdaram o hábito e acrescentaram que a má sorte se estenderia por
sete anos, contudo para os judeus os
espelhos significam a vaidade. Durante o luto, todas as superfícies polidas e
espelhos da casa são cobertos a fim de
evitar que os vivos se distraiam com
figuras de beleza e do mundo físico,
além disso, a lei judaica proíbe orar
diante de espelhos.
Assim como o espelho, todos os
comportamentos supersticiosos têm
uma história, seja ela de cunho pessoal ou cultural. A estudante de jornalismo Lorena Simões, 20, por exemplo,
conta sobre a sua superstição com o
número sete. “São muitas as coincidências que me levam a crer que o número me traz sorte: Passei pra UFRJ
no 17º lugar com 40,17 pontos, nasci
no mês sete, meu namorado faz aniversário no dia 27, meus dois últimos
relacionamentos começaram no dia
17, comecei a trabalhar com 17 anos”,
explica a estudante.
Ninguém precisa acreditar 100%
numa simpatia para executá-la nem
ser um legítimo esotérico para ter um
cristal em cima da mesa. Basta acreditar um pouquinho que já está valendo. O comerciante Severino Ramos,
50, não acredita em superstições, mas
admite que não abre mão de algumas
simpatias, rituais e objetos para pro-
teger o seu estabelecimento da inveja alheia. “No
bar tenho as imagens de
Nossa Senhora de Fátima
e São Jorge, além de olhode-boi, arruda, espada de
São Jorge e comigo ninguém pode”, conta.
As superstições são
tão antigas quanto a humanidade e todos nós cedemos a elas em alguns
momentos de nossas vidas.
“Elas podem ser saudavéis
na medida em que ajudam
o individuo a encarar os
desafios e a crer que no final tudo vai acabar bem”,
explica a psicóloga Marta
de Oliveira, 56 anos.
Porém a crença exagerada nestes recursos
pode gerar danos à autoconfiança do indivíduo. Quebrou um espelho? A superstição prega que serão sete
Por exemplo, quando trans- anos de má sorte.
ferimos a responsabilidade
por nossas ações para algum
fator externo que, supostaportanto nunca deixo de fazê-las no
mente, nos atrai o azar ou quando reveillon para que toda a prosperidadeixamos de realizar alguma atividade de do ano anterior se repita no novo
por medo de que aquele “sinal” seja ano”.
um aviso de que algo pode dar erraA interpretação subjetiva altera
do.
o valor das crenças. Até hoje não há
É inegável que as superstições nada que comprove a má fama do núexercem determinado poder na vida mero treze, mas muita gente prefere
das pessoas que as praticam. A dona evitá-lo, inclusive algumas construções
de casa Rosa Maria Alves, 56, é um no Brasil, Japão e Estados Unidos não
exemplo disto. Ela não dispensa a possuem o 13º andar. Contudo, para
oportunidade de fazer uma simpa- o ex-coordenador técnico da seleção
tia. “Acredito piamente que as sim- brasileira Mário Jorge Lobo Zagallo, o
patias que realizo atraem para mim e treze sempre foi sinal de sorte. Após
para minha família energias positivas, uma operação no estômago em 2005,
Superstições mais comuns e suas origens
Escada: Esta crendice está relacionada com o medo ao cadafalso, local onde se aplicava a forca aos condenados. Antigamente,
devido à grande altura que este costumava ter, era necessária uma escada para colocar a corda do enforcamento na posição correta,
bem como para retirar depois o cadáver do condenado. Qualquer um que passasse por baixo da escada corria o perigo de dar de frente
com o morto.
Gato preto: Na idade média, acreditava-se que os gatos pretos eram bruxas transformadas em animais. Por isso a tradição diz
que cruzar com gato preto é azar na certa.
Número 13: Sua provável origem está nos mitos nórdicos, como o de Loki, espírito maligno que apareceu sem ser convidado
em um banquete celestial onde havia 12 convidados. A má fama do número ganhou força com o relato bíblico da Última Ceia, em que
13 pessoas se reuniram à mesa na véspera da crucificação de Jesus e que Judas, o traidor, era o 13º convidado.
Bater na Madeira: Essa superstição está associada à crença de que as árvores eram a morada dos deuses. Sempre que se sentiam
culpados de algo, os povos primitivos pagãos, batiam no tronco para invocar as divindades e pedir perdão. Os celtas, também tinham
um costume parecido. Seus sacerdotes, os druidas, batiam na madeira para afugentar os maus espíritos, pois acreditavam que as árvores
consumiam os demônios.
ele foi treze vezes à Igreja de Santo
Antônio, santo de sua devoção, cujo
dia é comemorado em 13 de junho.
Várias coisas tornam a superstição altamente sedutora. A principal,
sem sombra de dúvidas, é a curiosidade. Tendo consciência disso, os meios
de comunicação exploram o assunto
como podem. A maioria dos grandes
jornais impressos possui uma seção
dedicada, pelo menos, ao horóscopo.
Na rádio Globo, durante o programa
“Show do Antônio Carlos”, a radialista Aldenora Santos, mais conhecida como Pudica, ensina aos ouvintes
rituais para conseguir um trabalho,
atrair a pessoa amada, afastar doenças
etc. Na Internet a quantidade de sites
que oferecem serviços desta qualidade é imensa.
Religião e superstição
É difícil não apontar características supersticiosas dentro de
praticamente todas as religiões. Um
exemplo clássico na igreja católica é
Santo Antônio. Conhecido como santo casamenteiro, as mulheres impõem
a sua imagem diversas provações, por
exemplo, colocando o de cabeça para
baixo dentro de um copo d’água e só
o retiram quando encontram um namorado pretendente a marido.
Diferentemente da religião, a
superstição tem fins específicos. Apelamos para ela quando precisamos
de uma ajuda a mais, venha ela de
onde vier. È um equivoco confundir
as duas coisas, como explica o padre
Jairo Bittencourt, da paróquia Nossa Senhora Auxiliadora, em Niterói:
“Religião não é magia. Enquanto uma
prática supersticiosa, como uma simpatia ou um talismã traz um benefício
imediato, a religião busca a paz divina,
envolvendo normas éticas e códigos
de conduta”.
De fato, a maioria das pessoas tem consciência de que nada lhes
acontecerá se contrariarem uma superstição. No entanto estas crenças
ainda exercem influência e dão ênfase ao velho ditado espanhol: “Yo no
creo en las brujas, pero que las hay, las
hay” - Não creio em bruxas, mas que
elas existem, existem.
Juliana Xavier de Araújo
20
NO 15 - 2009/1
O momento decisivo da bola final
Da sinuca para a vida, a pressão da última tacada define sucessos e fracassos de pessoas e negócios
O médico retornou à sala com os
resultados na mão. José Manuel Lopes
Landeira suava frio. Apesar de esperançoso, ele sabia que o diagnóstico não
seria agradável. Afinal, desde a adolescência, nunca mais recebera notícias
positivas em suas consultas médicas. O
resultado anunciado pelo doutor constatou o óbvio: o vício do cigarro havia
destruído seu sistema respiratório. A
partir daquele momento, o empresário
de origem espanhola teria que decidir
entre mudar totalmente a sua rotina e
largar o fumo, ou manter um estilo de
vida com fim já datado. O caso dele é
um entre muitos em que uma resolução
de grande importância tem que ser feita, senão o desfecho é desagradável. É
matar ou morrer. É quando se está pela
bola sete.
A expressão popular vem da sinuca. No famoso jogo de bilhar, a decisão
de uma partida empatada até o final se
dá na disputa pela última bola, no caso
a sete (preta). Errar a tacada pode significar uma simples derrota ou a perda
de todo o dinheiro que se apostava. O
lance, de tão emocionante, caiu nas graças do povo e virou um jargão bastante
conhecido.
No caso de José Manuel, que tem
54 anos e é dono de dois estacionamentos na Tijuca, a solução não veio numa
fração de segundos, mas sim com uma
mudança drástica de comportamento,
reforçada a cada dia. Ele parou de fumar a dois anos, desde a última visita ao
médico, em junho de 2007. José comentou como foi estar na jogada que vale
a última bola. “Meu médico deu a sentença: os pulmões estavam totalmente
acabados. Ou eu parava de fumar assim
que saísse do consultório, ou só iria
reencontrá-lo no céu. Precisei de muita
força de vontade, afinal, fumava desde
os 14 anos. No começo, ninguém acreditou em mim, acho que nem eu mesmo
levava muita fé. Porém, consegui largar
o vício e hoje estou aqui para mostrar
como estive realmente pela bola sete”.
Assíduo freqüentador da Sinuca da
Lapa, um dos berços da boemia carioca,
Ricardo César de Oliveira, estudante de
Educação Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também
entende muito bem o que é estar pela
última bola. Nos fins de semana, além
de “brincar no tapete verde”, Ricardo é árbitro de futebol amador. Nessa
profissão, a ameaça da catástrofe é algo
rotineiro. “Todo mundo sabe que apitar
jogo de futebol não é fácil, ainda mais
em várzea. Nessas ligas pequenas, não
há proteção. Em um campeonato em
março, fui obrigado a marcar um pênalti
a favor do time da casa. A torcida estava
toda à beira do campo, me ameaçando
constantemente. Pra se ter idéia, quatro
torcedores cercavam o meu carro, me
esperando caso a equipe deles perdesse.
Tive que tomar uma decisão rápida. Foi
a correta? Não. Mas tive que fazê-la”,
relata.
Mas o que pode levar uma pessoa
a ter tal infortúnio? Incompetência, preguiça, falta de atenção e azar são algumas das causas apontadas por Ricardo.
“O indivíduo geralmente se encontra
na iminência de algo ruim porque provocou isso em um momento anterior.
Contas não pagas e revisão do carro são
exemplos que eu citaria. Mas, no meu
caso, como foi visto, a falta de sorte
também influencia. E muito!”, destaca.
Existem também contextos ou
lugares específicos que aumentam esses
fatores. Juliana Alves do Nascimento,
gerenciadora de investimentos de 29
Por dentro das caçapas
A sinuca é um jogo de mesa, com taco e bolas, variante do snooker, inventado em 1875 na Grã-Bretanha. Neste jogo dois adversários tentam colocar num
dos seis buracos da mesa as bolas coloridas (não brancas) na seqüência definida pelas regras. Numa mesa de 2,84 m X 1,42 m (medida brasileira), são colocadas oito bolas, com pontuação de 1 (vermelha) a 7 (preta) mais a bola branca.
A bola branca é utilizada para impulsionar as outras. Denomina-se bola da vez
a bola colorida de menor pontuação presente na mesa. Ela é livre, isto é, o jogador
não perde pontos caso erre quando tenta encaçapar essa bola. Feito isso, ela não retorna à mesa e dá direito ao jogador de jogar livremente qualquer outra bola. Esta
segunda, se encaçapada, retorna à mesa e o jogador deve a seguir jogar a nova bola
da vez. Com exceção da tacada inicial, é permitido jogar uma outra bola no lugar
da bola da vez, porém com castigo, isto é, com perda de 7 pontos em caso de erro..
Ficar pela bola preta, a última da sinuca, se transforma no lance que determina a vitória.
anos, aponta o sistema financeiro como
um deles. “O mercado de ações não é
tão estável assim, previsível. Com isso,
já passei por vários momentos em que
estive na iminência de me dar mal, de
perder muito dinheiro”. Ainda segundo suas palavras, esse tipo de tacada
são mais freqüentes em tempos difíceis
na economia. “Em um dia do final de
outubro do ano passado, com a crise a
pleno vapor, eu estava com um título
em decadência na mão. Sorte que decidi
e consegui vendê-lo rapidamente. Uma
possível demora representaria a desvalorização do papel na minha mão. E
isso, ninguém quer.” afirma.
Para Juliana, nesses momentos
conturbados, o importante é estar preparado para dar a tacada certa: “Estou
sempre estudando, porque facilita na
hora de avaliar as possibilidades, ver
qual é a menos suscetível ao fracasso.”
Porém, ela faz uma ressalva interessante: “É verdade que muito depende de
cálculos e variáveis, mas não é só isso.
Ter a sorte ao lado também é requisito
para o sucesso”.
O cotidiano da cidade também
proporciona outros cenários em que
o indivíduo está pela última bola. Para
Antônio Carlos Honorato, de 38 anos,
a derrota pode significar a perda de
uma vida. O sargento do Destacamento
Bombeiro Militar do bairro do Catete já
participou de diversos salvamentos ao
longo dos seus 18 anos de profissão. “Já
houve situações em que a vida da pessoa
dependia da minha decisão. Uma vez,
num acidente de trem, ou se amputava
a pessoa rapidamente ou tentávamos
retirá-la, sob o risco de morte. A decisão foi feliz, porque a vítima sobreviveu
ao acidente, implantou próteses e agora
vive bem”, conta Honorato.
Mesmo praticando esse tipo de
jogada no dia-a-dia do quartel, o bombeiro já deu tacadas que não mataram a
última bola. “Cinco anos atrás, precisava comprar um carro, e acabei pedindo
um empréstimo de quantia razoável a
um amigo. Quando chegou a data do
pagamento, não tinha dinheiro na mão
suficiente para quitar a dívida. Naquela
ocasião, estava realmente pela bola sete.
Fui acreditar na sorte e apostei o pouco que tinha para tentar conseguir mais.
Não deu certo, foi tudo pelo ralo. Infelizmente, pago essa dívida até hoje”,
revela.
A vida é recheada de decisões.
Desde que roupa vestir até que carreira seguir, o indivíduo é constantemente obrigado a fazer escolhas. Mas são
aquelas nas quais corremos perigo que
marcam a vida do indivíduo. Na maioria das vezes, a iminência do desastre
nos impulsiona a direcionar o taco e
arriscar sem pensar muito. Nessas situações, conseguir acertar a tacada quando se está pela bola preta depende de
destreza, mas essencialmente de sorte.
Sorte essa que pode “encaçapar” o problema e garantir a vitória, ou que pode
se transformar em azar e levar à derrota
tanto nas partidas na sinuca como no
jogo da vida.
Rodrigo Nunes Lois

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