Edição 165 • Maio 2014

Transcrição

Edição 165 • Maio 2014
Edição 165 • Maio 2014
S umário
8 Combativa e atuante, há 15 anos
2
Justiça & Cidadania | Maio 2014
5
Carta ao leitor – 15 anos fazendo história
44
A farsa da democracia
6
Editorial – Anarquia, não! Basta!
46
7
15 anos de independência
A licitação de transporte público:
um beco sem saída
16
A mulher na política
50
Logística reversa, reciclagem
e resíduos pós-consumo
18
A legitimatio ad causam no Mandado
de Segurança
54
Dom Quixote – Um brinde às boas práticas
60
Os novos “homens de preto”
62
A suspensão de segurança como
instrumento agressor dos tratados
internacionais
68
A liberdade de imprensa
na visão do STF
23
Cento e onze dias à frente do maior
Tribunal de Justiça
24
O constitucionalismo moderno e a sua
influência sobre a economia
27
Mulheres, onde estamos?
28
Paternalismo constitucional
70
Sucessão trabalhista
31
Homenagem ao Superior Tribunal de Justiça
72
A modernização do STJ
34
A mobilidade urbana, as cidades e
a qualidade de vida que oferecem
75
Ucrânia: a fronteira da fronteira Eurasiana
36
Terrorismo judiciário
78
Insegurança jurídica no campo
38
O nascituro órfão
80
A competência universal em retrocesso
na Espanha
40
Em Foco – Violência contra jornalistas
82
Prateleira – Rompendo barreiras
Edição 165 • Maio de 2014 • Capa: Ilustração, Diogo Tomaz
C arta ao leitor
Conselho Editorial
Av. Rio Branco, 14 / 18o andar
Rio de Janeiro – RJ CEP: 20090-000
Tel./Fax (21) 2240-0429
[email protected]
www.editorajc.com.br
Bernardo Cabral
Presidente
Orpheu Santos Salles
Secretário
Adilson Vieira Macabu
Julio Antonio Lopes
André Fontes
José Geraldo da Fonseca
ISSN 1807-779X
Antonio Carlos Martins Soares
José Renato Nalini
Orpheu Santos Salles
Editor
Antônio Augusto de Souza Coelho
Lélis Marcos Teixeira
Antônio Souza Prudente
Luis Felipe Salomão
Tiago Salles
Editor-Executivo
Ari Pargendler
Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho
Arnaldo Esteves Lima
Luís Inácio Lucena Adams
Erika Branco
Diretora de Redação
Aurélio Wander Bastos
Luís Roberto Barroso
Giselle Souza (MTB: 27748 / RJ)
Jornalista Responsável
Benedito Gonçalves
Luiz Fux
Carlos Antônio Navega
Marco Aurélio Mello
Carlos Ayres Britto
Marcus Faver
Carlos Mário Velloso
Massami Uyeda
Diogo Tomaz
Coordenador de Produção
Cláudio dell’Orto
Maurício Dinepi
Dalmo de Abreu Dallari
Mauro Campbell
Thales Pontes
Assistente de Produção
Darci Norte Rebelo
Maximino Gonçalves Fontes
Edson Carvalho Vidigal
Nelson Tomaz Braga
Amanda Nóbrega
Responsável pela Expedição
Eliana Calmon
Ney Prado
Enrique Ricardo Lewandowski
Roberto Rosas
Erika Siebler Branco
Sergio Cavalieri Filho
Ernane Galvêas
Sidnei Beneti
Fábio de Salles Meirelles
Siro Darlan
Gilmar Ferreira Mendes
Sylvio Capanema de Souza
Henrique Nelson Calandra
Thiers Montebello
Humberto Martins
Tiago Salles
Mariana Fróes
Coordenadora de Arte
Correspondentes:
E
sp
SÁ eci
LV al:
IO Um
D a
E H
FI om
G e
U n
EI ag
R e
ED m
O a
Brasília
Arnaldo Gomes
SCN, Q.1 – Bl. E / Sl. 715
Edifício Central Park
Brasília – DF CEP: 70711-903
Tel.: (61) 3327-1228/29
Ano II - nº 4 - Outubro 2007
Ives Gandra Martins
Manaus
Julio Antonio Lopes
Av. André Araújo, 1924-A – Aleixo
Manaus – AM CEP: 69060-001
Tel.: (92) 3643-1200
Para acessar o site da Editora, baixe o leitor de QR code
em seu celular e aproxime o aparelho do código ao lado.
CTP, Impressão e Acabamento
Edigráfica
facebook.com/editorajc
twitter.com/editorajc
15 anos fazendo história
Orpheu Santos Salles
Editor
Tiago Salles
Editor-Executivo
Erika Branco
Diretora de Redação
Quando publicamos, em maio de 1999, a primeira edição da Revista Justiça &
Cidadania, tínhamos um sonho: tornar esse veículo abrangente e democrático, de
modo que pudéssemos ecoar as ideias e as reflexões das diferentes vozes ligadas ao
Judiciário, sempre em defesa e em prol do seu fortalecimento. Passados 15 anos
desde o início da nossa jornada, nosso sentimento maior é de termos levado a cabo
essa missão.
Com o apoio dos nossos colaboradores e do nosso Conselho Editorial,
pudemos, nesse período, contar e viver histórias marcantes. Caminhando com
importantes defensores do Poder Judiciário e inspirados pela figura do cavaleiro
andante Dom Quixote de La Mancha, personagem símbolo do Troféu anualmente
concedido pela Revista, acompanhamos e enfrentamos diversas lutas, como a CPI
do Judiciário, instituída em 1999, nosso primeiro ano de trabalho; a aprovação do
novo Código Civil, em 2002; a Reforma do Poder Judiciário, com a aprovação da
Emenda Constitucional no 45, em 2004; e a implantação do polêmico “controle
externo”, com a criação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional
do Ministério Público, em 2005.
Atualmente, somos uma das principais publicações do universo jurídico em
circulação no País, com tiragem mensal de quase 20 mil exemplares, distribuídos
gratuitamente a praticamente todos os tribunais e órgãos com atuação junto ao
Poder Judiciário brasileiro. Além disso, somos a única revista de perfil acadêmico e
informativo no Brasil que reúne em seu Conselho Editorial tão importantes nomes
do Direito e da Imprensa. O grupo, do qual verdadeiramente nos orgulhamos, é
composto por 50 nomes, dentre ministros dos tribunais superiores, magistrados e
membros do Ministério Público e da advocacia, assim como professores e juristas.
Crescemos, expandimos nossos horizontes e engajamo-nos em diversos
outros projetos, sempre voltados para a promoção da justiça e da cidadania. O
momento, portanto, é de comemoração, com esta edição especial, mas também
de planejamento para os próximos 15 anos. Ainda temos muito a fazer e,
principalmente, a informar. Continuamos acreditando que é no Poder Judiciário
que encontramos os mais preparados, competentes e comprometidos agentes
públicos deste país, os que renunciam, amam, se dedicam e lutam por uma melhor
qualidade de vida para todos nós brasileiros.
Sendo assim, não podíamos deixar de agradecer a cada um dos nossos muitos
leitores pelo interesse em nosso conteúdo e pelo incentivo ao nosso trabalho. É
para vocês e por vocês que trabalhamos incansavelmente em busca da melhoria
constante de nosso produto, com mais e melhor conteúdo, e da extensão do alcance
de nossa publicação.
Que venham mais 15 anos!!!
Apoio
Associação dos
Magistrados Brasileiros
Colégio Permanente de
Um abraço e boa leitura.
Presidentes de Tribunais de Justiça
2014 Maio | Justiça & Cidadania 5
E ditorial
15 anos de
independência
Anarquia, não! Basta!
“Hay que endurecerse sin perder jamás la
ternura”
O
Che Guevara
6
J. Bernardo Cabral
Portanto, basta de leniência, basta de tolerância. O
momento, em face ao que esta ocorrendo, é de ação e
respeito à ordem. É tempo de, sem demora e com urgência
revidar e reagir, antes que seja tarde demais.
A população já demonstrou publicamente, no grandioso movimento cívico de junho de 2013, o inconformismo
com a desconsideração do governo com os malfeitos que
têm acontecido comumente.
Na democracia republicana que está vigente no País,
mesmo assegurando pretensos e ilusórios direitos de uma
minoria desregrada, impõe-se ao governo a obrigação
de não permitir que uns poucos – os arruaceiros e
baderneiros que estão depredando bens públicos e
privados, incendiando indiscriminadamente automóveis
e ônibus – continuem abusando de um questionado
direito de liberdade para afrontar e violentar a maioria
absoluta da sociedade, constituída por cidadãos ordeiros e
conscientes dos seus direitos, que não devem nem podem
continuar assistindo as violências desmedidas e abusos
criminosos de uma horda irresponsável, causadora da
nefasta perturbação da ordem e do respeito público.
Orpheu Santos Salles
Editor
Justiça & Cidadania | Maio 2014
E
Consultor da Presidência da CNC
Presidente do Conselho Editorial
sta Revista se orgulha de produzir, há 15 anos
e 165 edições, textos em defesa da Imprensa e
do Poder Judiciário, mormente por conhecê-los
muito bem por dentro para se impressionar pelas críticas, tantas vezes injustas, que a eles fazem por fora.
É que a independência demonstrada e comprovada
da sua atuação tem como albergue a luta por uma
imprensa livre, ainda que um profissional do ramo possa
transformar casos em causos, levados pela paixão políticopartidária, religiosa ou empresarial, provocando equívocos
e eventuais injustiças para com aqueles que possam ser, ou
tenham sido, atingidos por uma verrina.
No entanto, esses deslizes ocasionais, quando ocorrem,
não podem ser invocados como instrumento de retaliação
contra o arcabouço da imprensa brasileira por meio de
modificações legais, colocando em risco o conceito da
liberdade de expressão.
Nenhum país será grande, nenhuma nação conseguirá
se desenvolver, ou viver em harmonia com seus cidadãos,
se não forem protegidos e estimulados por uma imprensa
livre. É que uma imprensa controlada pelo Estado ou pelas
elites dominantes pode permitir a eclosão de não apenas
uma, mas duas ou mais ditaduras numa mesma região.
Por motivos mais do que conhecidos, os detentores
de poder – salvo raríssimas exceções – insistem em ver
a imprensa como inimiga e não como aliada de seus
programas administrativos.
A grande verdade é que uma nação cuja imprensa é
amordaçada nela o medo prevalece sobre a esperança, o
ódio subjuga o amor e a vida perde o animo de ser vivida.
Desse caminho de independência a Justiça e Cidadania
jamais se arredará.
Foto: Ana Wander Bastos
s desmandados atos de violência e barbárie
que estão espocando pelo Brasil afora, com
a destruição de bens públicos e privados por
uma horda de baderneiros que se aproveitam
da arruaça para a prática criminosa e hedionda de ataques
indiscriminados contra a ordem pública, sob o pretexto
de uma inverossímil e presumida vingança, têm de ser
combatidos com determinação, disciplina e respeito aos
Direitos Humanos, mas com mando de ferro sob pena de
vermos instalada e instituída no País a plenipotência do
anarquismo desordenado.
Os escancarados incêndios de dezenas de ônibus
no estacionamento de uma empresa em São Paulo,
acompanhado da queima de vários veículos de transporte
no Rio de Janeiro e alhures, estão demonstrando de
forma irrefutável o descalabro cometido pela desabrida
bandidagem contra a sociedade que se queda atônita e
impotente contra a desordem que se está instalando, sem
que haja a devida e rigorosa repreensão das autoridades
constituídas e responsáveis.
A nação está assistindo o abuso escancarado de
uma malta criminosa e difusa que se espalha pelo País,
praticando uma delinquência coletiva contra a sociedade
desassistida, desamparada, já aterrorizada e, infelizmente,
também abandonada a sua própria sorte.
Não bastasse a onda de corrupção que campeia infeliz
e tristemente nos vários setores da República, com revide
de poucos e escassos criminosos de colarinho branco
cumprindo pena em regime fechado, ainda se assiste a mais
esse desgraçado bando de arruaceiros destrambelhados
agindo quase livremente na prática malsã de atos criminosos.
É hora e tempo das autoridades públicas, federais e
estaduais, responsáveis diretos pela manutenção da ordem
pública e pela tranquilidade da população, assumirem
a obrigação fundamental do modus republicano que o
povo tem direito de vivenciar sob pena, em face do que
está acontecendo no país, com o uso abusivo e pretexto do
direito da liberdade, de desembarcarmos na plenitude da
anarquia; ou o pior, correr o risco de voltarmos à ditadura.
2014 Maio | Justiça & Cidadania 7
C apa, da Redação
tes, das provas que iriam instruir o
requerimento da CPI”.
O desembargador federal Alberto
Nogueira também relatou sua preocupação com os acontecimentos na
época em seu discurso de posse como
presidente do Tribunal Regional Federal da 2a Região (TRF-2), em abril
de 1999. A íntegra foi reproduzida
na primeira edição da Revista JC. “Se
fosse jocosidade, ao se fazer a menor
menção de se investigar possíveis irregularidades ocorridas em setores
da economia do País, logo viriam os
temores anunciados de que isso poderia causar danos enormes no exterior,
prejudicando a posição do nosso País
no mercado financeiro internacional.
Mas pergunto: E uma Justiça que se
quer colocar no banco dos réus?”, indagou o magistrado.
Combativa e atuante, há
15 anos
Revista Justiça & Cidadania
completa aniversário neste
mês. Publicação deu origem
a uma série de projetos:
todos em defesa dos direitos
fundamentais e da ética
B
rasil, 1999. Nesse ano, encontravam-se a pleno vapor, no cenário nacional,
as discussões em torno da
legalidade ou não da instalação, pelo
Senado Federal, de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) para
apurar suspeitas de irregularidades
no Judiciário. Concomitantemente
às investigações, começavam também a ganhar força as propostas que
visavam à reforma deste Poder – inclusive daquelas que reivindicavam
o controle externo de todos os tribunais do País. Era um período de
incertezas.
8
E foi justamente em meio a esse
turbilhão de acontecimentos, há
exatos 15 anos, que a Revista Justiça
& Cidadania (RJC) foi idealizada e
criada pelo jornalista Orpheu Salles. A publicação foi lançada com o
selo da Editora JC em maio de 1999.
De acordo com o fundador e editor,
“para servir de fórum de debate e
reflexão acerca dos rumos que estavam a tomar a sociedade e a Justiça
brasileira”.
A CPI visava à apuração de
diversas denúncias, dentre as quais a
do desvio de R$ 169 milhões nas obras
do Tribunal Regional do Trabalho de
São Paulo. O episódio tinha como
personagens centrais o juiz Nicolau
dos Santos Neves, então presidente
da Corte, e o senador Luiz Estevão
(PMDB-DF), dono do Grupo OK,
responsável pela construção do novo
fórum da corte trabalhista.
No decorrer das investigações, as
suspeitas se mostraram verdadeiras.
Em consequência, Estevão foi preso
e teve o mandato cassado no ano
de 2000, e o juiz “Lalau” – como
ficou conhecido Santos Neves – foi
condenado à prisão domiciliar. A CPI
serviu ao seu propósito. “A questão
era que ninguém sabia de fato como
aquilo acabaria”, explicou Orpheu
Salles sobre alguns articulistas da
primeira edição se mostrarem céticos
com relação à comissão.
No artigo “A CPI e a Credibilidade do Judiciário”, publicado na
primeira edição da Revista, o então
presidente do Superior Tribunal de
Justiça (STJ), Ministro Antonio de
Pádua Ribeiro, defendeu um Poder
Judiciário transparente. Mas alertou:
“A CPI atinge em cheio a credibilidade do Judiciário e coloca todos os
magistrados sob suspeita perante a
opinião pública, ficando no mesmo
nível os honestos (a quase totalidade)
e os desonestos (alguns poucos)”. No
artigo, o ministro defendeu a apuração das denúncias, inclusive com a
“remessa, para os órgãos competenJustiça & Cidadania | Maio 2014
Capas de algumas das 165 edições que marcaram os 15 anos da Revista JC
Pautas
As avaliações acerca do futuro do
Poder Judiciário sempre pautaram e
continuam a pautar a linha editorial
da Revista Justiça & Cidadania. E essas é uma das principais razões de a
publicação congregar, em seu Conselho Editorial, importantes autoridades e especialistas dos mundos jurídico e político. Atualmente, o grupo
é composto por 52 profissionais de
renome e é presidido por Bernardo Cabral – importante jurista, que
já ocupou diversos cargos públicos,
dentre os quais o de relator-geral da
Assembleia Constituinte, ministro da
Justiça, deputado federal e senador.
Com o apoio de seu Conselho, a
Revista Justiça & Cidadania completa
15 anos de atividades com 165 edições
publicadas e mais de 2.400 artigos veiculados, muito dos quais escritos por
2014 Maio | Justiça & Cidadania 9
1999
2004
Maio
Revista é lançada
em meio à crise
do Judiciário, com
a criação de uma
CPI pelo Senado
ministros dos tribunais superiores; por
magistrados de tribunais estaduais,
federais e trabalhistas; por membros
do Ministério Público e das advocacias pública e privada; assim como
por renomados professores de Direito
e juristas de alto conceito e cultura
jurídica. Com tiragem aproximada de
20 mil exemplares, a Revista Justiça &
Cidadania é disponibilizada às instituições públicas de quase todo o País.
Troféu
Junto com a Revista, nasceram
outras iniciativas. A principal e mais
notável delas é o Troféu Dom Quixote de La Mancha, criado em 1999 para
homenagear os então presidente e vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministros Carlos Velloso e
Marcos Aurélio Mello, em uma evento
promovido pelo Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro (TJRJ).
A receptividade ao Troféu foi tão
positiva na ocasião que Orpheu Sal-
Setembro
Troféu Dom Quixote
é entregue pela
primeira vez em
evento no TJRJ
les decidiu tornar a premiação definitiva. O Troféu passou então a ser
conferido a personalidades públicas
e da iniciativa privada com atuação
reconhecida em defesa da ética, da
moral e dos direitos da cidadania. Ao
receber o prêmio, os homenageados
passam a integrar a Confraria Dom
Quixote, também presidida por Bernardo Cabral.
A escolha de Dom Quixote como
a figura símbolo da premiação não
foi aleatória. De acordo com Orpheu
Salles, o personagem criado pelo escritor Miguel de Cervantes, há mais
de 400 anos, na obra “O Engenhoso
Fidalgo Dom Quixote de La Mancha”, reúne todos os princípios que
embasam o prêmio.
O livro, considerado um dos mais
importantes da literatura universal,
narra com detalhes as características
de Dom Quixote: um ingênuo fidalgo
que, depois de tanto ler romances de
cavalaria, passou a acreditar nos feitos
Editora JC inicia
produção de
livros jurídicos e
institucionais
heroicos dos cavaleiros medievais e,
por essa razão, decidiu se tornar um
deles. Com o intuito de combater as
injustiças do mundo e homenagear sua
amada Dulcinéia, Quixote saiu pelo
mundo, andante, enfrentando situações perigosas. Sempre acompanhado
de seu fiel escudeiro Sancho Pança.
Esse segundo personagem, aliás,
também inspirou uma nova premiação da Editora JC. Orpheu Salles explicou que concebeu o Troféu Sancho
Pança para homenagear as personalidades que foram agraciadas com o
Dom Quixote e se mantiveram fiéis
à luta em defesa do direito e da cidadania. Até o momento, quase 400
pessoas receberam o prêmio.
A última cerimônia de entrega do
Troféu Dom Quixote ocorreu no dia
21 de maio de 2013, na sede do TJRJ.
Aquela foi a 23a edição da premiação.
Na entrega do Troféu, a presidente
do TJRJ, desembargadora Leila Mariano, ressaltou que a premiação era
Entrega do XXII Troféu Dom Quixote, na sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília
10
Justiça & Cidadania | Maio 2014
2009
Instituto Justiça
& Cidadania
é criado para
incentivar a
cultura
2012
2013
Inaugurado
o Passadiço
Cultural, na
Lapa (RJ)
Exposições
sobre a Justiça
inauguradas
pelo Instituto
“A escolha de Dom
Quixote como a figura
símbolo da premiação
não foi aleatória... o
personagem de Miguel
de Cervantes reúne
todos os princípios que
embasam o prêmio”
Tiago Salles (à esq.) entrega o Troféu Dom Quixote aos ministros Marco
Aurélio e Carlos Velloso (ambos à dir.), na primeira edição da premiação
“um momento alegre e oportuno
para se fazer apologia à ética sob as
figuras de Dom Quixote e Sancho
Pança”. Na ocasião, ela foi agraciada
com o Troféu Sancho Pança.
Além do TJRJ, também já sediaram a cerimônia de premiação o Tribunal Regional Federal da 2a Região,
o Tribunal Regional Eleitoral do Rio
de Janeiro, a Seccional do Distrito
Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil, o Tribunal Regional Federal da 3a Região, o Tribunal Regional
Federal da 5a Região, o Tribunal de
Justiça do Estado de Pernambuco, o
Tribunal de Justiça do Amazonas e o
Supremo Tribunal Federal.
O Troféu Dom Quixote de La
Mancha também contou com duas
edições especiais. Uma delas foi rea-
lizada em junho de 2004, no Centro
Cultural da Justiça Federal, no Rio,
em comemoração aos 400 anos da
obra de Miguel de Cervantes. Esta
variação do prêmio ocorreu durante
a conferência “Justiça e Dom Quixote
– Uma lição de Otimismo”. O evento
contou com a presença de diversas
autoridades do mundo jurídico e foi
aberto pelo então presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Edson Vidigal.
A outra edição especial foi o I
Prêmio Dom Quixote de Jornalismo,
destinado a jornalistas com atuação
e reportagens em defesa dos direitos humanos e da justiça no Brasil.
O Prêmio foi entregue em uma cerimônia realizada no TJRJ, em dezembro de 2012. Na ocasião, foram
agraciados os jornalistas Bruno Thys,
da Rádio Globo; Rodolfo Schneider,
da Rádio Bandeirantes; Rodolfo Fernandes, de O Globo (in memoriam);
Adriana Cruz, de O Dia; Maurício
Dinepi, do Jornal do Commercio;
Fernando Molica, de O Dia; Mauricio Lima, da Revista Veja; Maia
Menezes, de O Globo; e o cineasta
Breno Silveira.
Na ocasião, o então presidente
do TJRJ, desembargador Manoel
Alberto Rebêlo dos Santos, destacou
a importância para o País de uma
imprensa atuante e livre. “Aproveito
essa festa de lançamento do I Prêmio
Dom Quixote de Jornalismo para
agradecer o trabalho dos jornalistas
que convivem com a gente no
tribunal. Um País só e livre e grande
2014 Maio | Justiça & Cidadania 11
com uma imprensa atuante e livre. Aproveito para dizer
que toda a censura à liberdade de imprensa é uma afronta
ao Estado Democrático de Direito. Como todos nós
sabemos, a imprensa ainda é uma das poucas instituições
respeitadas no Brasil, e nos alegramos com isso, porque o
dia em que a imprensa se corromper estará tudo perdido.
Precisamos dela íntegra para denunciar as mazelas de
nossa sociedade, inclusive as nossas”, disse o magistrado,
na ocasião.
A Editora JC se especializou no lançamento de livros,
principalmente os institucionais e comemorativos à
fundação dos tribunais
Editora
Com o passar dos anos, a Editora JC cresceu e se
consolidou em outras áreas, principalmente na de editora­
ção de obras jurídicas. Passou a produzir livros de literatura,
didáticos e paradidáticos, além de muitos institucionais.
Um exemplo do portfólio da Editora nesta área é a obra
“TRF 3a Região: 20 Anos de Justiça, por você, por nós, pelo
Brasil”. Primeiro livro institucional publicado pela Editora,
o exemplar registra, por meio de uma narrativa linear,
os fatos históricos que contextualizaram a trajetória da
Corte. Com prefácio de Bernardo Cabral e apresentação da
desembargadora Marli Marques Ferreira, então presidente
do TRF-3, o livro faz ainda uma homenagem ao ministro
Pedro Lessa e ao desembargador Jediael Galvão Miranda.
Outros dois livros institucionais publicados são “TRT
– 15a Região: Trajetória Histórica” e “TRT – 17a Região: 20
Anos de Trabalho”, ambos produzidos em homenagem às
duas décadas das respectivas instituições. As obras trazem
detalhes sobre as estruturas física e administrativa das cortes e relatam as práticas inovadoras e pioneiras que ambas
estão empregando para promover a cidadania e a inclusão
social. Os prefácios são assinados pelo senador José Sarney
(PMDB/MA) e pelo ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Aloysio Corrêa da Veiga.
A obra “TJBA: 400 Anos Fazendo História” também se
destaca por mostrar a história da primeira capital do Brasil,
berço do desenvolvimento socioeconômico do País e que
abriga as origens do Poder Judiciário nacional. O livro,
que contém 200 páginas e está dividido em cinco capítulos,
resgata a história da Justiça no Brasil, com ênfase no Estado
da Bahia, e apresenta alguns dos casos mais marcantes
julgados pelos Judiciário baiano. O prefácio foi escrito pela
então ministra do STJ, Eliana Calmon.
A última produção da Editora JC no campo institu­
cional foi “STJ – 25 Anos do Tribunal da Cidadania”. A obra,
produzida em homenagem as 25 anos da Corte, foi lançada
na ocasião das comemorações do aniversário de criação
do Tribunal, em outubro de 2013. A publicação resgata
as realizações do Tribunal nesse um quarto de século e
conduz o leitor por uma verdadeira viagem no tempo,
desde as origens da complexa formação do Poder Judiciário
brasileiro, com o descobrimento da Terra de Santa Cruz,
12
TRF 3a Região: 20 Anos de
Justiça, por você, por nós,
pelo Brasil
há mais de 500 anos, até os dias de
hoje. Rica em imagens, o livro tem
sido considerado uma importante
referência para pesqui­sadores.
Desde o ano passado, a Editora JC vem se dedicando também ao
segmento self-publishing – ou seja, à
publicação de livros a partir da impressão sob demanda. Por meio desse
sistema, a Editora oferece a magistrados, advogados e demais profissionais
e pensadores do Direito a oportunidade de lançar suas obras a um custo muito mais acessível. O objetivo é
democratizar o acesso ao mercado
editorial, principalmente pelos autores iniciantes.
Instituto
Fomentar o estudo do Direito e o
exercício da cidadania por meio da
produção intelectual, seja com a publicação de artigos na Revista Justiça
& Cidadania ou com a editoração de
livros literários, didáticos ou paradidáticos sobre o universo jurídico
e político passou a ser o objetivo da
Editora JC. Porém, não é o único.
Junto a esse trabalho, surgiram diversas iniciativas, principalmente no
campo cultural. Para apoiar os projetos institucionais do Poder Judiciário,
principalmente com relação a captação
de recursos para executá-los, os representantes da Editora JC fundaram, em
2009, o Instituto Justiça & Cidadania
– uma associação de direito privado,
sem fins lucrativos e de natureza social
e cultural. O Instituto é presidido pelo
jornalista Tiago Salles, filho de Orpheu
Salles. A vice-presidência está a cargo
da advogada Erika Branco.
Uma das realizações do Instituto
foi a organização e montagem da
exposição “STJ: 25 Anos do Tribunal
da Cidadania”, paralelamente ao livro
homônimo, lançado pela Editora
JC, em outubro de 2013. Gratuita, a
mostra foi inaugurada em Brasília,
na sede do tribunal.
A exposição contou com diversos
painéis com fotos de época e textos
Trajetória Histórica –
Tribunal Regional do
Trabalho da 15a Região
400 Anos Fazendo História –
Tribunal de Justiça do Estado
da Bahia
20 Anos de Trabalho –
Tribunal Regional do
Trabalho da 17a Região
STJ – 25 Anos do
Tribunal da Cidadania
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Lançamento do livro comemorativo e da exposição STJ – 25 Anos do Tribunal da Cidadania, em outubro do ano passado
2014 Maio | Justiça & Cidadania 13
extraídos da obra editorial. Quatro
desses painéis apresentavam alguns
dos fatos mais relevantes da história
do Poder Judiciário brasileiro antes
da promulgação da Constituição de
1988. Outros nove traziam informações sobre o STJ: como os projetos
sociais desenvolvidos pela Corte, as
obras de arte dispostas na sede em
Brasília e dados sobre volume de processos que distribuiu e julgou.
Passadiço
Outra importante realização do
Instituto é o Passadiço Cultural: um
corredor cultural construído com o
patrocínio da Petrobras, para interligar os fóruns trabalhistas da Rua do
Lavradio e da Avenida Gomes Freire,
ambos na Lapa, bairro do Centro do
Rio. O espaço fica aberto à circulação
do público das 7h30 às 17h. O Passadiço é resultado de uma parceria do
Instituto Justiça & Cidadania com o
Tribunal Regional do Trabalho da 1a
Região (TRT1) e a Prefeitura do Rio.
O Passadiço foi inaugurado em
setembro de 2012, junto com a exposição “Uma História para Contar”. A
mostra, produzida também pelo Ins-
tituto em parceria com o TRT1 e com
o patrocínio da Petrobras, apresentava, por meio de uma linha do tempo
composta por 11 painéis, a evolução
das relações do trabalho e da Justiça
trabalhista do Brasil, sobretudo na 1a
Região, que abrange o Estado do Rio
de Janeiro. Entre as mais de 20 imagens dispostas no corredor cultural,
estavam a reprodução da Lei Áurea e
as fotos de Getúlio Vargas durante o
anúncio oficial da instalação da Justiça do Trabalho no Brasil, em 1941,
no Estádio de São Januário.
Em abril do ano passado, o Passadiço cedeu espaço para a mostra
“CLT – 70 anos de Conquista Social”.
Também produzida pelo Instituto
Justiça & Cidadania e o TRT1, em
parceria com a Federação das Empresas de Transporte de Passageiros
do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), a exposição homenageava as
sete décadas de vigência da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Neste mês de maio, a exposição
sobre a CLT cederá lugar à mostra
“Fórum Lavradio: 10 Anos de Justiça Social”. Essa exposição contará a
história de um dos principais cen-
Antes e depois do espaço que hoje abriga o corredor cultural
14
tros de acesso à Justiça pelo trabalhador da 1a Região. A visitação será
gratuita, assim como nas duas mostras anteriores.
Legado
A Revista Justiça & Cidadania é
o legado do jornalista Orpheu Salles,
que sente orgulho do trabalho que
iniciou. “Lá se vão 15 anos de publicações mensais, tendo como princípio básico a pregação da defesa intransigente do Poder Judiciário e da
magistratura, o que temos cumprido
com coragem, ética e muito trabalho”, declarou.
As perspectivas em relação
ao futuro continuam sendo altas
para o fundador da Revista Justiça
& Cidadania. “É com a confiante
esperança de manter indeléveis as
mesmas intenções adotadas já há 15
anos que nos propomos a continuar
na mesma trincheira, defendendo
normas éticas, morais, dignas e
exemplares como as sonhadas por
Dom Quixote, defendendo a verdade
e a aplicação do Direito a favor
dos desassistidos e injustiçados”,
ressaltou o jornalista.
As Empresas Ediouro Publicações
parabenizam a Revista Justiça & Cidadania e
sua equipe por seus 15 anos.
Exposições em cartaz no Passadiço Cultural. Visitação é gratuita
Justiça & Cidadania | Maio 2014
2014 Maio | Justiça & Cidadania 15
Marco Aurélio Mello
S
Ministro do STF
Presidente do TSE
Membro do Conselho Editorial
abe-se que a população brasileira é constituída
em maior número pelas mulheres. Mas o que se
verifica, em termos de participação feminina, na
política? A minimização dessa participação.
Levantamento revela que menos de 10% das prefeituras
são dirigidas por mulheres. Nas câmaras de vereadores,
apesar de um pouco mais alta, essa percentagem
não ultrapassa 12%. Nas assembleias dos estados, o
percentual fica em cerca de 10%. Nos governos estaduais,
apenas dois estados encontram-se sob o comando de
mulheres: Maranhão e Rio Grande do Norte. Ou seja,
em torno de 7%. Na Câmara dos Deputados, de um total
de 513 integrantes, há 46 deputadas federais, alcançado,
em descompasso com o maior número, considerada a
população brasileira, a percentagem de 8%. No Senado
da República, o percentual é maior, 12%, já que são 10
senadoras entre os 81 membros. Vem, então, contraste
estimulante: o cargo maior da República está ocupado,
pela vez primeira, por uma mulher, a presidente Dilma
Rousseff.
Qual é a posição do Brasil no ranking mundial da
participação feminina na política? O 156o lugar, numa
lista de 188 países. Isso gera perplexidade e, digo mesmo,
envergonha todos os brasileiros.
Relembro minha origem como juiz: a Justiça do
Trabalho. O que havia até o advento da Consolidação das
Leis do Trabalho? A relação jurídica tomador/prestador
de serviços era regida pelo Código Civil, prevalecendo as
ideias napoleônicas sobre a liberdade de contratar. Essa
liberdade acabava por submeter o prestador dos serviços
– já que, na vida, precisamos optar e, geralmente, optamos
pela fonte do próprio sustento – ao tomador dos serviços.
16
Foto: Agência Senado
A mulher
na política
“Qual é a posição do
Brasil no ranking mundial
da participação feminina
na política? O 156o lugar,
numa lista de 188 países.
Isso gera perplexidade e,
digo mesmo, envergonha
todos os brasileiros”
A única forma de caminhar para um equilíbrio,
presentes as relações jurídicas, é ter o peso da lei, o peso de
normas que não se mostrem simplesmente dispositivas,
incidindo ao sabor da manifestação da vontade, mas
imperativas.
A Lei das Eleições, a Lei n­o 9.504, de 1997, previu
sistema que posso rotular como o primeiro passo dado:
o sistema de cota. Versou um piso – refiro-me aos dois
gêneros, masculino e feminino – de 30%. De forma
tímida, estabeleceu que a observância dessa percentagem
mínima decorreria da vontade dos partidos políticos,
consubstanciando o preceito mera faculdade. O
Congresso avançou e substituiu, em 2009, essa faculdade
pela obrigatoriedade.
Lastimavelmente, a visão machista prevalece. Surge
filtro que não é salutar, bem-vindo. É pernicioso. Repor-
Justiça & Cidadania | Maio 2014
to-me às convenções dirigidas à escolha de candidatos.
Apresenta-se, para não ser alcançado o quantitativo mínimo, justificativa inaceitável: a falta de candidatas. Quase sempre, afastada a sensibilidade dos partidos políticos,
tem-se, salvo raras exceções, a escolha de candidatas formais que, em passo seguinte, recolhem-se, deixando de
participar do certame.
Há necessidade de conscientização maior. Há
necessidade de perceber-se, até mesmo, que o Ministério
Público Eleitoral estará atento a fraudes que venham a ser
perpetradas quando da realização das convenções. Em
síntese, o País do faz de conta deve transformar-se em
um país realmente republicano, respeitando-se, acima de
tudo, a ordem jurídica.
Em 2013, sob o ângulo simplesmente pedagógico,
o Congresso aprovou o projeto que resultou na Lei no
12.891. A chamada minirreforma eleitoral inseriu, na Lei
no 9.504/97, preceito a sinalizar que o Tribunal Superior
Eleitoral, no período compreendido entre 1o de março e
30 de junho dos anos eleitorais, implementará propaganda
institucional, em rádio e televisão, destinada a incentivar a
igualdade de gênero e a participação feminina na política.
A lei foi editada no período crítico de um ano que
antecede as eleições. Mas, nessa parte, a aplicação é
imediata, porque a publicidade institucional decorre do
próprio Texto Maior, da própria Constituição Federal,
presente o tratamento igualitário.
Conclamo todos: avancemos socialmente! Observemos
a Lei das Leis, a que todos, indistintamente, submetem-se!
Avancemos culturalmente! E clamo às mulheres: façam
parte da política, façam parte da solução, esperança de um
Brasil mais sensível, mais equilibrado, mais igual!
2014 Maio | Justiça & Cidadania 17
Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF
A legitimatio ad causam no
Mandado de Segurança
Ministro do STF
Membro do Conselho Editorial
Luiz Fux
A
1. Legitimidade das partes
legitimidade das partes é, pois, condição aferida pelo juiz in abstracto visando verificar se a
ação está sendo travada entre as pessoas pertinentes. A legitimação é, portanto, questão
de dupla face, exigindo-se a legitimação quanto aos polos
ativo e passivo da relação processual, apurando-se os reais
destinatários da sentença de mérito.
Essa coincidência somente perde importância na
legitimação extraordinária, porque nesse caso o que marca o
fenômeno é exatamente a não coincidência entre os sujeitos
18
da lide e os sujeitos do processo. A relação processual
forma-se com pessoas outras que não os titulares da relação
material como, v.g., ocorre com o acionista majoritário que
em nome próprio pode demandar em favor da sociedade.
Fenômeno moderno decorrente da nova sociedade
de massa e do aparecimento dos novos direitos sociais
pertencentes a toda a coletividade ou à determinada
categoria de membros da sociedade é o da legitimação para
os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos;
matéria esta, de extrema relevância, que será mais adiante
estudada no que couber ao mandamus coletivo.
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Destarte, no que tange especificamente ao mandando
de segurança, o caput do art. 1o da nova lei, que dispõe
sobre os legitimados – ativa e passivamente – para figurar
na relação processual, não traz nenhuma mudança
substancial.
1.1. Legitimidade ativa no Mandado de Segurança
A regra geral em tema de legitimidade é a do art. 6o
do CPC analisada a contrario sensu; vale dizer: é lícito
pleitear-se em juízo, em nome próprio, direito próprio
(legitimação ordinária).
Da análise literal dos dispositivos aplicáveis ao
Mandado de Segurança (art. 5o, LXIX, da CF/1988 e art.
1o da nova Lei no 12.016/2009), extrai-se que, em linhas
gerais, é atribuída legitimidade ativa a alguém que sofra
ou esteja na iminência de sofrer violação de direito seu em
decorrência de ato abusivo ou ilegal de autoridade. Notese ainda que o constituinte brasileiro não restringiu o uso
do Mandado de Segurança à pessoa humana (como fez
com o habeas corpus).
A nova redação do art. 1o conferida pela Lei no 12.016,
no entanto, ao invés de se referir à concessão de mandando
de segurança a “alguém”, prefere a expressão à “pessoa
física ou jurídica”, que tenha sofrido ou esteja na iminência
de sofrer lesão a seu direito líquido e certo.
A alteração da expressão legislativa inaugura
polêmica a respeito do sujeito legitimado para impetrar
o mandamus. Anteriormente, sempre se concebeu que o
Mandado de Segurança poderia ser utilizado não apenas
por pessoas físicas e jurídicas, como também por órgãos
públicos despersonalizados, mas dotados de capacidade
processual (como as chefias do Executivo, as presidências
das Mesas dos Legislativos, os fundos financeiros, as
comissões autônomas e demais órgãos da Administração
centralizada ou descentralizada que tenham direitos
próprios a defender). O advento do novo texto fez exsurgir
a indagação sobre se houve restrição quanto à pessoa que
pode figurar como sujeito ativo do Mandado de Segurança.
Respeitadas eventuais opiniões em contrário, enten­
demos que não houve limitação, posto a novel redação
estar em consonância com o disposto no art. 5o, inc.
LXIX da Constituição de 1988, no sentido de que todo e
qualquer sujeito de direito, pode figurar no polo ativo da
ação constitucional sub examine.
A exegese de que o art. 1o da Lei no 12.016/2009, de
fato intentou restringir a legitimidade ativa somente às
pessoas físicas e jurídicas, não revela o melhor resultado
hermenêutico, uma vez que qualquer limitação ao exercício dos direitos fundamentais deve ser excepcional. Essas categorias de direitos reclamam do intérprete ampla
flexibilidade ideológico-vernacular apta a lhes conferir
maior efetividade, consoante “o princípio da proibição
do retrocesso”, segundo o qual uma vez alcançado determinado grau de concretização de uma norma constitucional definidora de direito fundamental, fica o legislador
proibido de suprimir ou reduzir essa concretização sem
a criação de mecanismo outro que seja equivalente ou
substituto.
Desta sorte melhor se nos apresenta a posição doutrinária que advoga a manutenção do entendimento segundo o qual ostentam legitimidade ativa, para o Mandado de Segurança, não só a pessoa física ou jurídica,
nacional ou estrangeira, residente no país ou não, como
também os órgãos públicos despersonalizados, mas com
capacidade processual (como as chefias dos Executivos
e as presidências das Mesas dos Legislativos), os agentes
públicos que detenham prerrogativas funcionais específicas do cargo ou do mandato (governadores, magistrados,
parlamentares, membros do Ministério Público) e as universalidades reconhecidas em lei, tal qual, massas falidas,
espólios e condomínios.
O que efetivamente importa para caracterizar a
legitimação ativa é, pois, a titularidade do direito subjetivo
próprio atingido, seja o impetrante pessoa física, pessoa
jurídica, órgão público ou universalidade legal.
Excepcionalmente, consagra-se uma hipótese de
substituição processual em sede de Mandado de Segurança,
em que o titular de direito recorrente possui legitimidade
extraordinária diante da inércia do titular do direito
principal, qual seja aquela prevista no art. 3o da Lei no
12.016, segundo a qual “o titular de direito líquido e certo
decorrente de direito, em condições idênticas, de terceiro
poderá impetrar Mandado de Segurança a favor do direito
originário, se o seu titular não o fizer no prazo de 30 (trinta)
dias, quando notificado judicialmente”.
O diploma anterior (art. 3o da Lei no 1.533/1951) previa
esta substituição processual, todavia, sem a estipulação de
um prazo de “provocação” do tertius.
A lei atual legitima a atuação acaso o terceiro
notificado não demandar em 30 dias da notificação,
novidade erigida pela Lei no 12.016, por isso que a
lei revogada mencionava apenas “prazo razoável” de
inércia daquele sujeito.
Outrossim, a Lei no 12.016, no § 3o do seu art. 1o,
reitera a previsão, antes contida no art. 1o, § 2o, da Lei no
1.533/1951, de legitimidade concorrente na hipótese de
comunhão de direitos. Assim, quando o direito ameaçado
ou violado couber a várias pessoas, qualquer delas poderá
requerer o Mandado de Segurança; com o que, consagrase a legitimidade de qualquer dos cotitulares de um
direito para propor isoladamente o writ, não obstante a
unitariedade da decisão.
Erguem-se vozes no sentido de que, neste caso, haveria,
em verdade, hipótese de substituição processual, sendo
2014 Maio | Justiça & Cidadania 19
1.2. Legitimidade passiva no Mandado de Segurança
O Mandado de Segurança pode ser impetrado contra
atos praticados por qualquer agente do Estado, em
qualquer nível (federal, estadual, municipal ou distrital)
e por quem atue em seu nome, isto é, entidades estatais
que não componham a administração direta, como
autarquias (incluídas as agências reguladoras), fundações
estatais, empresas públicas e sociedades de economia
mista, prestadoras de serviço público ou exploradoras
de atividades econômicas (art. 1o, caput e § 1o, da Lei no
12.016/2009).
A questão das funções delegadas é solvida pelo
entendimento pacífico de que o desempenho de funções
20
delegadas coloca o agente delegado como autoridade
coatora dês que nessa qualidade pratique o ato impugnado,
consoante o enunciado na Súmula no 510 do STF. Assim, se
uma autoridade municipal aceitar delegações do Estadomembro ou da União, responderá por essas atribuições
como autoridade estadual ou federal, perante os juízos
privativos dessas entidades.
Os particulares também poderão figurar no polo
passivo do Mandado de Segurança, desde que o ato
impugnado tenha sido praticado no exercício de função
pública. Por essa razão, é que prevalece o entendimento
na jurisprudência relativo à admissibilidade, no polo
passivo do Mandado de Segurança, v.g., do diretor de
escola particular ou de particulares prestadores de serviço
público, porquanto, o que prevalece para efeitos de
legitimidade passiva é que o ato tenha feição pública.
Quanto à administração indireta, importa ressaltar
que, em relação às sociedades de economia mista e às
empresas públicas, prevalece o entendimento de que estas
podem figurar no polo passivo do Mandado de Segurança
– independentemente de sua condição como pessoa
jurídica de direito privado, equiparando-se à autoridade
pública – sempre e toda vez que, agindo em nome do
Estado, no exercício de função pública, na forma dos art.
37, caput, II e XXI, da Constituição Federal, praticarem
ato ilegal ou abusivo, e desde que o ato não encerre mera
atividade de gestão comercial.
Doutrina e jurisprudência divergem sobre quem
efetivamente deve figurar no polo passivo da demanda;
se a “autoridade coatora”, ou a pessoa jurídica, ou o órgão
público a que esta pertence.
Há diferentes entendimentos sobre quem de fato é o
legitimado passivo no mandamus sintetizados em quatro
correntes, a saber: a primeira sustenta que a legitimidade
passiva é da pessoa jurídica a que pertence a autoridade
coatora uma vez que o agente ocupante do cargo público
é o responsável pelo ato que submete a pessoa jurídica
à condição de ré; a segunda corrente argumenta que o
próprio agente coator seria o legitimado passivo; a terceira
corrente, por sua vez, entende que há um litisconsórcio
passivo entre o agente coator e a pessoa jurídica a ele
vinculada; e a quarta e última corrente sustenta que o
agente coator é mero informador no processo.
A primeira corrente tem como fundamento o art. 2o
da Lei no 12.016/2009, porquanto referido dispositivo
assenta expressamente que as consequências decorrentes
da ilegalidade ou do abuso de poder serão suportadas
pela pessoa jurídica e não pela pessoa física que exerce a
função pública em seu nome. Nesse sentido, o Supremo
Tribunal Federal decidiu, encampando a referida tese no
julgamento do RE no 233.319, de relatoria da Exma. Mina
Ellen Gracie, publicado no DJU, 12.09.2003, p. 524.
Justiça & Cidadania | Maio 2014
A segunda corrente, consoante destacado, sustenta
que a parte legítima para figurar no polo passivo da
ação é a pessoa física (própria autoridade coatora) que
praticou o ato, e não a pessoa jurídica de direito público
a que ela pertença. Isso porque, a notificação para prestar
as informações, bem como as ordens de execução da
segurança ou da própria liminar são sempre endereçadas
à própria autoridade coatora, em que pese os efeitos
patrimoniais serem suportados pela pessoa jurídica
de direito público a ela vinculada. Essa tese, portanto,
desconsidera que a autoridade seja apenas agente da
pessoa jurídica responsável pelo desempenho da função
pública, desprezando a teoria do órgão consagrada em
nosso ordenamento jurídico.
Os defensores da terceira corrente, por seu turno, entendem que há litisconsórcio passivo entre a autoridade
coatora e a pessoa jurídica a ela vinculada, sendo, portanto, ambos réus no mandamus, à luz de alguns dispositivos
da nova lei, em especial os seus arts. 6o, caput, 7o, incs. I e
II, e 13, caput, que, de fato, sugerem ser esta a tese adotada no atual regime. Contudo, as críticas a esse posicionamento aparentemente vigente com a nova lei perpassam
pelo inconveniente inaugurado pela interpretação literal
da norma em análise, segundo a qual o Mandado de Segurança passaria a demandar, sem exceção, litisconsórcio
passivo necessário, o que culminaria em inúmeros transtornos processuais ao impetrante, evidentemente incompatíveis com a sumariedade e celeridade, pressupostos imprescindíveis deste instrumento garantístico representado
pela ação ora sub examine. O Superior Tribunal de Justiça
já havia consolidado entendimento de que não haveria litisconsórcio entre a autoridade coatora e o ente público
legitimado, pois este último é a própria parte, da qual a
primeira é mero órgão.
A quarta e última corrente aproxima-se da primeira
ao concluir que a parte ré é a pessoa jurídica, e não o
agente coator, sendo este mero fornecedor de informações
no curso do processo, razão pela qual se justifica a
necessidade de citar a pessoa jurídica (e não apenas
notificar a autoridade coatora), bem como fornecer a ela a
oportunidade própria para contestar (e não somente exigir
a prestação de informações pela autoridade coatora).
Do exposto, parece-nos que a novel lei veio dissipar
vetusta controvérsia consoante a jurisprudência predominante, bem como em consonância com os institutos
processuais básicos. Assim, é sabido que a autoridade
coatora, de regra, não detém capacidade processual nem
personalidade judiciária. É apenas a responsável pelo ato
que faz reclamar a impetração do writ. A pessoa jurídica a
que pertence, por seu turno ostenta legitimatio ad causam
e ad processum, ou seja, tem legitimação e capacidade de
ser parte e de estar em juízo.
Consequentemente, o que a lei explicitou é que a parte
é a pessoa jurídica a que pertence a autoridade coatora,
muito embora nos dispositivos já citados permita à
mesma (autoridade coatora) praticar outros atos além da
prestação de informações, reforçando a defesa da entidade
pública ou de quem lhe faça as vezes. Evidentemente
que, de acordo com os atos praticados por ambas, é que a
segurança poderá ser concedida ou denegada.
Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF
o colegitimado impetrante substituto processual dos
demais, com a extensão dos efeitos da coisa julgada aos
legitimados, substituídos. O § 3o do art. 1o da Lei no 12.016
em essência limita-se a afirmar que cada um dos cotitulares
poderá, isoladamente, impetrar Mandado de Segurança
para defender direito comum; não obstante, em nenhuma
passagem preveja que a sua atuação vinculará aos demais,
o que nos leva a concluir que não se trata de substituição
processual tout court, mas, antes, legitimidade concorrente
dos cotitulares. O que ocorre é que a concessão da ordem,
retira o interesse processual na impetração pelos demais,
sendo certo que a recíproca não é verdadeira, na hipótese
de denegação.
A vexata quaestio do tema, não enfrentada pela nova
lei, refere-se à possibilidade de a impetração de Mandado
de Segurança ser veiculada por pessoas de direito
público. Embora o Mandado de Segurança tenha sido
originalmente criado para a proteção do particular contra
ato da administração pública, não há como negar que em
algumas hipóteses a sua impetração pelos órgãos públicos
impõe-se como a única forma de se evitar ilegalidades
e abusos de poder praticados em conflitos envolvendo
poderes da União, Estados e Municípios entre si.
Ademais, direitos e garantias fundamentais não
admitem interpretação restritiva; se a Constituição da
República não fez restrições ao uso do Mandado de
Segurança por pessoa jurídica de direito público, não cabe
ao intérprete fazê-lo. Nesta linha de raciocínio, o remédio
constitucional pode ser utilizado por um ente público
contra ato de outro ente público, vedada a utilização do writ
contra ato de particular despido de caráter publicizado.
A regra da legitimação ativa no Mandado de Segurança
pressupõe que o impetrante, pessoa natural ou jurídica,
seja efetivamente o titular do direito subjetivo violado
e não que tenha “mero interesse”. Em outras palavras, o
impetrante, para ter legitimidade ativa, há de se atribuir
direito individual ou coletivo, líquido e certo, para o qual
pede proteção via Mandado de Segurança.
Luiz Fux, ministro do STF
2014 Maio | Justiça & Cidadania 21
Assim, v.g., o art. 14, § 2o, prevê o direito de recorrer
também extensivo à autoridade coatora.
Na mesma linha de raciocínio, o art. 9o, segundo o qual:
As autoridades administrativas, no prazo de 48 horas da
notificação da medida liminar, remeterão ao Ministério
ou órgão a que se acham subordinadas e ao AdvogadoGeral da União ou a quem tiver a representação judicial da
União, do Estado, do Município ou da entidade apontada
como coatora cópia autenticada do mandado notificatório,
assim como indicações e elementos outros necessários às
providências a serem tomadas para a eventual suspensão
da medida e defesa do ato apontado como ilegal ou abusivo
de poder.
22
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Cento e onze dias à frente do
maior Tribunal de Justiça
José Renato Nalini
C
Presidente do TJSP
Membro do Conselho Editorial
ompleto 111 dias à frente do maior Tribunal
de Justiça do mundo. À evidência, os desafios
são enormes. Todos os anos, o Judiciário inicia
seus trabalhos com déficit. Pois, a autonomia
administrativa e financeira do terceiro Poder da República, afirmada no artigo 99 da Constituição da República
e reiterada no artigo 55 da Constituição paulista, é mera
proclamação retórica.
Os pleitos do Tribunal são amputados pelos técnicos do
planejamento, depois passam pelos técnicos da Secretaria
da Fazenda e são aprovados pela Assembleia de acordo
com as possibilidades. Sempre aquém das necessidades.
Este ano é singularmente difícil. Em 2013, foram providos
quase 5 mil cargos de escreventes, para reposição das naturais
defecções. E foram criados dois benefícios para os servidores
– a gratificação por atividade cartorária e o adicional por
qualificação. Ambos a gerar impacto neste exercício.
A primeira preocupação da nova gestão, perfeitamente
afinada em ambos os colegiados que administram o maior
Poder Judiciário da República, tanto o Conselho Superior da
Magistratura como o Órgão Especial, foi deixar transparente
a situação financeira. Sem prejuízo de procurar junto ao governo o suprimento do caixa, além de evidenciar a contribuição da administração da Corte, fazendo a contenção possível.
Um passo importante foi chamar a sociedade a
participar da administração da Justiça. Mediante a criação
de um Conselho Interinstitucional, tão bem recebido
que teve de ser revisto várias vezes, tanta a vontade de
inclusão de organismos e de pessoas gradas. Também a
APAMAGIS ganhou assento junto ao Órgão Especial, para
atuar durante as sessões administrativas. Igual pretensão
do funcionalismo também está sendo examinada. Enfim,
são novos tempos a refletir uma efetiva atuação dos
parceiros, próximos e mediatos, pois uma Democracia
Participativa significa exatamente isso: abrir espaço para
que todos – indistintamente, todos – discutam a gestão
estatal de serviços custeados pelo povo.
Foto: TJSP
O dispositivo retrotranscrito substitui o art. 3o da Lei
n 4.348/1964 na parte em que este último previa que
o órgão judicial deveria comunicar a liminar ao órgão
de representação judicial da pessoa jurídica, estando
o mesmo agora incorporado ao texto da nova lei do
mandamus.
Deveras, embora o ato contestado pelo Mandado de
Segurança tenha sido praticado por autoridade, esta não
será a parte processual, senão a própria pessoa jurídica
que ocupa o polo passivo no processo e será esta quem
suportará os efeitos da sentença.
A indicação equivocada da autoridade coatora ainda
gera controvérsia quanto às suas consequências; discutese se o processo deve ser extinto por carência de ação,
ou se é possível a correção do vício da ilegitimidade
viabilizando o seu prosseguimento em face da verdadeira
autoridade coatora. A jurisprudência tem flexibilizado a
possibilidade de correção em homenagem aos princípios
da efetividade e da economia processual, tendo em vista
a notória complexidade dos órgãos públicos, que muitas
vezes dificulta a correta visualização jurídica do agente
que, de fato, é o coator.
Adotando-se o entendimento de que a definição
de autoridade coatora não se relaciona à legitimidade
passiva no Mandado de Segurança, o que implica grande
relevância prática: eventual erro na indicação desta
não acarretará a extinção do processo. A indicação da
pessoa jurídica a que pertence a autoridade coatora torna
indiferente o equívoco na indicação desta última, na
maioria dos casos.
O STF e o STJ vêm consolidando a jurisprudência no
sentido de que a errônea indicação da autoridade coatora
implica a extinção do processo por ilegitimidade passiva
ad causam, quando altera a competência ratione personae
não cabendo ao juiz ou tribunal determinar, de oficio, a
substituição da parte impetrada (MS no 9.450-DF, rel.
Luiz Fux, publicado no DJ, 06.09.2004). Entretanto, não
havendo essa influência sobre a competência, a efetividade
o
dessa garantia constitucional conspira em favor do
aproveitamento do writ com a correção do vício através
de mecanismo semelhante à emenda da petição inicial.
Destaque-se, contudo, que se a autoridade apontada como
coatora prestar as informações, não questionando a sua
ilegitimidade e defender a legalidade do ato impugnado,
legítimo será o prosseguimento do mandamus por força
da teoria da encampação, fundamentada pelo princípio da
economia processual, ressalvada a vexata quaestio relativa
à alteração da competência ratione personae.
Retomando o tema central, fato é que os critérios
para a definição da autoridade coatora, no entanto, não
estavam veiculados por nenhuma regra da lei anterior.
Com a nova norma, mais especificamente em seu art. 6o, §
3o, fica sedimentado o entendimento já antes acolhido pela
doutrina e jurisprudência, segundo o qual a autoridade
coatora é aquela que tenha praticado o ato impugnado ou
da qual emane a ordem para a sua prática.
A prática judiciária permite-nos concluir que é
autoridade coatora: (i) quem ordena o ato, ainda que
incompetente para a sua prática, ou omite a prática do
ato impugnado e não o superior que recomenda, ou
baixa normas para a sua execução; (ii) quem adota o
comportamento coator por deliberação própria; (iii) o
presidente da República, uma vez por ele consumado
o processo administrativo; (iv) quem pratica o ato
considerado lesivo ao direito do contribuinte no âmbito
tributário, e não aquele que expediu resolução de caráter
genérico e abstrato; (v) aquele que tem a responsabilidade
funcional de defender o ato impugnado; (vi) aquele que
comparece aos autos para, além de atribuir a legitimidade
passiva ad causam a inferior hierárquico seu, defender
o ato objeto da impetração, fato que torna aplicável
a teoria da encampação; (vii) nos órgãos colegiados,
o presidente que subscreve o ato e responde pela sua
execução; (viii) tratando-se de atos complexos (aqueles
cujo aperfeiçoamento só ocorre com a conjugação de
vontades de duas ou mais autoridades), todos os órgãos
participantes; (ix) nos atos compostos, aquele que pratica
o ato principal; e (x) nos procedimentos administrativos, a
autoridade que preside a sua realização.
Cumpre ressaltar que, excluída a vexata questio
da identificação da autoridade coatora do âmbito da
legitimidade passiva, a mesma continua a ter importância
quanto à definição do foro competente, bem como quanto
à possível anulação de atos processuais praticados por
juízo incompetente.
A Lei no 12.016/2009, a nosso ver, de maneira acertada
e condizente com a jurisprudência já consagrada, previu
no seu art. 7o, inc. II, a obrigatoriedade da ciência do feito
ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica,
ordenada pelo despacho do juiz.
Outros sinais de que esta administração é aberta foi a
pacificação com o Ministério Público e com a advocacia. Não
faz sentido dividir uma casa já vulnerável diante da excessiva
lentidão na outorga da prestação jurisdicional. Ao contrário,
unidos, somos mais fortes. Podemos provar à sociedade
brasileira que a Justiça tem condições de ser otimizada, pois
integrada por pessoas idealistas, vocacionadas e dispostas
até ao sacrifício para resolver problemas da população.
No mais, foram preservadas todas as iniciativas exitosas
que tiveram seu curso mantido e intensificado. Assim a
informatização, a multiplicação da cultura da conciliação,
mediação e outras alternativas ao processo convencional,
a ampliação dos canais de discussão pelas redes sociais,
o estímulo ao funcionalismo para que seja cada vez mais
parceiro da administração na condução do Judiciário.
O compromisso desta gestão é o trabalho contínuo,
a prestação constante das contas, a transparência e o
chamamento à colaboração para que o Tribunal de Justiça
de São Paulo, comprovadamente o maior de todo o planeta,
se mantenha no propósito de ser um dia, para satisfação
do povo paulista, o melhor que uma justiça humana possa
vir a ser sobre a face da terra.
Artigo enviado pelo autor para publicação no dia 23/4.
2014 Maio | Justiça & Cidadania 23
Ives Gandra da Silva Martins
Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFM
Membro do Conselho Editorial
E
mbora Kant não tenha sido jurista, nem economista, nem político, mas apenas filósofo, algumas considerações que trago à reflexão dos leitores de Justiça & Cidadania, nos seus 15 anos
de magnífica atuação editorial na área do Direito, demonstram que sua obra não deixa de ter notável impacto na forma de analisar os fatos e as leis jurídicas e econômicas nos
séculos XIX, XX e XXI.
As expressões o “uso público da razão” e o “uso privado
da razão” têm, em Kant, o sentido inverso do que imaginamos, estando ligado à sua concepção de que o sublime
e a paixão, na busca de horizontes políticos e da liberdade
dos povos nas repúblicas – leia-se democracias –leva a uma
consciência coletiva, pública dos ideais buscados.
Por esta razão, entende que a autoridade pública deve
ter “uso privado da razão”, pois deve atuar de acordo com
princípios inerentes à sua maneira de ser para efeitos de
atender os objetivos do povo para o qual está a serviço.
Sua razão não é coletiva, mas é privada, na busca de
atendimento da razão coletiva do povo. Por outro lado, a
sociedade que busca, na representação, a realização de seus
ideais e objetivos, faz “uso público da razão”, no sentido de
uma busca permanente para a autoafirmação coletiva.
Nesta perspectiva, é de se compreender o forte impacto
que as duas Constituições (americana e francesa) criaram,
na maneira de ser dos povos que as produziram e da
24
Foto: Fecomercio
O constitucionalismo
moderno e a sua influência
sobre a economia
“É de se compreender o forte
impacto que as duas Constituições
(americana e francesa) criaram
na maneira de ser dos povos que
as produziram e da humanidade
em geral, pois resultante desta
consciência coletiva, manifestada
por seus representantes, para a
criação do Estado de Direito”
Justiça & Cidadania | Maio 2014
humanidade em geral, pois resultante desta consciência
coletiva, manifestada por seus representantes, para a
criação do Estado de Direito.
Kant tinha a percepção de que os ideais da revolução
francesa transcendiam, em muito, as pessoas de seus autores,
mais preocupados na condução de um movimento cuja
dimensão ignoravam e cujo controle perderam, todos eles.
O certo, todavia, é que esta consciência coletiva, esta
“razão pública” do povo francês e do povo americano,
delineou o constitucionalismo moderno, aperfeiçoando
a fantástica revolução dos barões ingleses, em 1215, a
qual proporcionou o primeiro grande documento, tido
por inúmeros constitucionalistas, como a Constituição
dos ingleses, além das Declarações de Direitos, do século
XVII, que completou o perfil do constitucionalismo inglês.
O aparecimento das duas Constituições, a americana,
com admirável estabilidade, pois em 218 anos sofreu apenas 27 emendas, e a francesa, bastante alterada nos anos
conturbados da revolução, lançou, todavia, a grande discussão sobre a representação popular, sobre a participação
do povo nos governos e a influência que estes deveriam ter
na economia, a fim de não representarem apenas o Estado
gendarme, coletor de tributos, mas sim instrumentos de
desenvolvimento e de busca de justiça social.
Assim é que a escravidão – já abolida nos países
europeus – passou a ser combatida nos países americanos,
levando todas as nações, gradativamente, a abolirem-na,
algumas de forma traumática, como nos Estados Unidos,
com a Guerra de Secessão, e outras de forma mais lenta e
gradativa, como no Brasil, em que só foi extinta no ano de
1889 (13 de Maio), pela regente princesa Isabel.
Enquanto à luz de tais ideais que tomaram conta dos intelectuais da época, conforme o país, a escravidão foi combatida, uma outra escravidão, ou seja, a escravidão urbana,
instalou-se nos países europeus industrializados, levando
também a apaixonado debate e ao surgimento das grandes
teses socialistas, que desembocaram nas encíclicas sociais.
É de se lembrar que, se o debate social, na Europa,
era levantado pelos socialistas, como Proudhom, SaintSimon, Marx e Engels, entre os mais destacados autores,
no Brasil, durante o Império, a temática era outra: o
abolicionismo, a república e o federalismo. Estas eram
as grandes teses defendidas por intelectuais como Tobias
Barreto, Ruy Barbosa, Campos Salles. De rigor, no que
diz respeito ao abolicionismo defendido pelos pensadores
nacionais, tinham eles a certeza de que representavam a
consciência coletiva ao se alinharem contra a escravidão
legal. Os autores europeus, todavia, pugnavam contra a
escravidão urbana, pois os direitos dos operários não eram
reconhecidos nem protegidos nas indústrias crescentes.
O certo é que esta consciência coletiva, sempre exteriorizada pelos intelectuais que a interpretavam, terminou
2014 Maio | Justiça & Cidadania 25
26
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Mulheres, onde estamos?
Luciana Lóssio
E
Ministra do TSE
m ano de eleições, é fundamental refletir sobre a
participação de todos os grupos sociais no processo eleitoral e decisório do País. A questão de
gênero não pode ficar de lado. No que diz respeito
à participação feminina na política, o Brasil ocupa a 156a
posição, entre 188 países, no ranking de representatividade em cargos eletivos no Poder Legislativo, elaborado pela
União Interparlamentar (IPU). Quando o cenário são as
Américas, estamos no 30o lugar, entre os 34 pesquisados.
Nós, brasileiras, possuímos o direito ao voto desde 1932,
ano de aprovação do Código Eleitoral, que, dentre outras
conquistas, instituiu a Justiça Eleitoral. Integramos a sétima
economia do mundo e a principal da América Latina.
Vivenciamos uma democracia plena há duas décadas, mas a
participação feminina na política ainda é escassa.
No Poder Legislativo federal temos apenas 10 senadoras
nas 81 cadeiras, o que corresponde a 12% de representação,
e 45 deputadas federais, de um total de 513, ou seja, apenas
8,7% na Casa que representa o povo brasileiro. É o único
dos Três Poderes da federação que ainda não foi presidido
por uma mulher.
A representatividade de mulheres eleitas deputadas
federais passou de 1,5% em 1982, quando oito foram eleitas
para o cargo, para 8,7% em 2010. Há um longo caminho
a ser trilhado pelas mulheres, como eleitoras e candidatas,
em busca da representatividade.
A fragilidade da posição do Brasil nas esferas mundial e
americana surpreende mais diante do fato de que 51,9% do
eleitorado brasileiro é composto por mulheres. Precisamos
de candidatas dispostas a abraçar a árdua disputa da
política. As cotas de gênero para candidatos (30% e 70%),
fixadas na Lei das Eleições, representam avanço legal
expressivo que assegura a participação feminina entre os
nomes submetidos à avaliação popular nas urnas, como
política afirmativa durante uma fase de transição. Mas,
na prática, elas não são cumpridas, seja pela ausência
de candidatas, seja pela falta de condições de igualdade
efetiva na disputa.
Com o resultado das eleições de 2010, as mulheres
passaram a ocupar 11% dos cargos de governador e
14% das cadeiras de deputados estaduais. Em 2012,
Foto: Arquivo TSE
na estrutura pública, identificou-se com o poder e a reprepermitindo a evolução do modelo do constitucionalismo
sentação se fez, não em função da sociedade, mas de seus
francês e americano (de liberdade e representação popudetentores, que na luta por conquistas, objetivam detê-la,
lar) para o constitucionalismo mexicano e alemão, que inna maioria das vezes, apenas para manutenção dos privitroduziram, nas leis superiores, a questão social de forma
légios de comando e de obediência dos cidadãos sujeitos.
abrangente e nova.
De qualquer forma, o próprio crescimento econômico
Com a crescente percepção de que a questão social esda sociedade e a revolta crescente da população injuriada,
tava na essência da justiça e da verdadeira liberdade, duassim como a tendência, por outro lado, de domínio por
rante o século XIX, as nações foram se preparando – prinparte dos mais ricos, levaram ao aparecimento, no fim do
cipalmente na Europa e nos Estados Unidos – para uma
século, nos Estados Unidos, da primeira lei de controle da
maior intervenção do Estado, com o que, a título de uma
concorrência e eliminação do abuso do poder econômico.
participação alargada na condução da economia, começou
E iniciou-se, por outro lado, no século XX, a valorização
a crescer o nível da imposição tributária, a ponto de Adoldo direito do consumidor. Fortaleceram-se, pois, os dois
fo Wagner, em fins do século XIX, ter lançado a teoria da
pólos de uma economia de mercado (na parte da produirreversibilidade dos gastos públicos, à luz de que as desção, o controle da concorrência e do lucro abusivo; na parte
pesas públicas tenderiam sempre a crescer, pois o poder
do consumo, a valorização do
tende sempre a gerar novas
consumidor). As economias
despesas a serem satisfeitas por
passaram a ser tanto mais ágeis
novos tributos.
“O próprio crescimento econômico
quanto menos havia interferênPrincipiou a haver, portanda sociedade e a revolta crescente
cia do governo em suas regras
to, uma tríplice preocupação,
da população injuriada, assim como a
empresariais e maior interfenos governos que se democrarência nas suas regras coletivas,
tizavam, ou seja:
tendência, por outro lado, de domínio
assim como tanto mais eficien1) uma maior participação
por parte dos mais ricos, levaram ao
tes quanto menor o peso de
nas atividades econômitributos relativamente a outras
cas, para conduzi-las a
aparecimento, no fim do século, nos
nações e o custo dos financiarealizar alguma justiça
Estados Unidos, da primeira lei de
mentos para sua evolução.
social;
controle da concorrência e eliminação
Nos países recém-liberta2) um crescimento de atividos,
no século XIX, tal probledades e funções públido abuso do poder econômico. E
mática foi mais aguda, à falta
cas, com o alargamento
iniciou-se, por outro lado, no século XX,
de uma economia evoluída,
da classe burocrática e
pois quase reduzida a venda de
política a ser sustentaa valorização do direito do consumidor.
commodities e sem um procesda pelos cidadãos, com
Fortaleceram-se, pois, os dois pólos de
so consistente de industrialimultiplicação das desuma economia de mercado”
zação, à semelhança dos Estapesas públicas;
dos Unidos e da Europa. Nas
3) um crescente aumento
nações desenvolvidas, todavia,
de tributação, agora sisas bases da economia foram lançadas, assim como a sistetematizada, para atender as necessidades públicas
matização dos regimes tributários, com imposições cresou privadas dos governantes, na sua capacidade ilicentes para atender as novas sinalizações do século XIX e
mitada de multiplicação de gastos.
princípios do século XX, onde a tecnologia começava a ser
O próprio surgimento do Tribunal de Contas, no
a grande vedete.
fim do século XIX, como forma de controlar gastos e
Na atualidade, as duas grandes crises econômicas
a responsabilidade do Estado, em seus três modelos,
de 2008/9, por incúria do setor privado dos países
revelou-se insuficiente – como continua sendo até hoje
desenvolvidos, e 2011/12, por incúria dos poderes públicos,
– por motivos que dão razão a Carl Smith e Maquiavel,
permitiram, com arcabouço constitucional e legal mais
quando sustentavam que o poder se justifica pelo próprio
adaptado depois da crise de 1929, que os países desenvolvidos
poder e a sociedade não o controla.
ultrapassassem o perigo imediato de um colapso global e os
Nada obstante, o impacto que produziram na demopaíses emergentes e menos desenvolvidos crescessem, por
cracia e na economia dos dois modelos constitucionais –
terem mercado internacional inexplorado. O certo é que
um mais voltado à pátria (americana), e outro mais voltado
a humanidade evoluiu na sua conformação jurídica que
ao cidadão (francês) – o certo é que o Estado, que deveria
garantiu estabilidade internacional antes inexistente.
servir ao povo, através do governo, seu mero representante
as mulheres conquistaram 11% das prefeituras e 13%
das cadeiras de vereadores. A pequena participação de
mulheres na política dissocia-se da realidade vivida no
Brasil na qual as mulheres exercem funções e cargos de
alta responsabilidade há tempos.
Há desinteresse das mulheres em participar do
processo político ou ainda existem freios sociais e
partidários à expansão do espaço feminino? Esse debate
é imprescindível.
No Tribunal Superior Eleitoral, faremos nossa parte.
De acordo com a legislação, a Justiça Eleitoral pode
promover, entre 1o de março e 30 de junho dos anos
eleitorais, propaganda institucional destinada a incentivar
a igualdade de gênero. A publicidade oficial irá incentivar
a participação da mulher na política. Agora, cabe a cada
cidadão entender que sua participação, além de seu voto,
pode construir um novo futuro.
2014 Maio | Justiça & Cidadania 27
Ney Prado
“
Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia
Desembargador Federal do Trabalho aposentado
Membro do Conselho Editorial
Na linguagem vulgar, paternalismo indica uma
política social orientada ao bem-estar dos cidadãos
e do povo, mas que exclui a sua direta participação:
é uma política autoritária e benévola, uma atividade
assistencial em favor do povo, exercida desde o alto, com
métodos meramente administrativos. Para expressar tal
política, nos referimos então, usando de uma analogia, à
atitude benevolente do pai para com seus filhos ‘menores’”1.
Do ponto de vista conceitual, o paternalismo é
uma forma degenerada de protecionismo e um tipo de
domínio social, econômico e político próprio dos estados
totalitários ou que mais dele se aproximam.
No Brasil, com o advento da Constituição de 1988,
parecia que o perigo do Estado paternal tivesse sido
eliminado. Mas infelizmente não souberam nossos
legisladores como evitar o condicionamento cultural
que temos neste País a tudo esperar do Estado, como se
possuísse virtude própria, fosse uma entidade divorciada
da nação, de existência concreta, onisciente e todo
poderoso, um grande pai, que têm todos a seu cargo.
Herdamos o estatismo de nossas origens, é certo, mas
em vez de reconhecer e lutar paulatinamente contra essa
distorção, a Constituição o exacerba, acabando por gerar
uma imensa e desaconselhada dependência da sociedade
como um todo.
Os constituintes queriam, sinceramente, resolver todos
os problemas do Brasil: deram detalhadas exemplificações
programáticas, mas, no momento de atribuir a
responsabilidade de encontrar os caminhos do progresso,
do desenvolvimento da nação e o bem estar material e
psicológico do brasileiro, preferiram confiar no Estado à
confiar na sociedade.
Para os nossos constituintes os brasileiros como
indivíduos e a sociedade por seus numerosíssimos grupos
secundários não tem confiabilidade e nem qualificação
28
para resolver os problemas que lhe dizem respeito. Alguém
há de tutelá-lo, no caso o Estado, única entidade, a qual se
pode confiar.
Percebe-se claramente no Texto o preconceito contra o
povo: há que cercá-lo, pensar por ele, decidir por ele, hoje
e sempre, pelo tempo que durar a Constituição. No fundo
está a descrença fundamental dos nossos constituintes,
embora inconfessada, na capacidade do homem comum
de discernir na prática constante da democracia, o que é
bom para ele e para a nação.
Como decorrência, o modelo de Estado desenhado
pela Constituição, assumiu características nitidamente
paternalistas. Ficou mais forte e demandado. Tornou-se
administrador, justiceiro, patrão, e defensor dos fracos
e oprimidos, além de produtor e provedor de recursos.
De outro lado, a sociedade ficou mais dependente e mais
inerme. Foi limitado o campo de opção do cidadão em
questões importantes de sua vida (saúde, previdência,
trabalho, educação e etc...). Reduziu-se, enfim, a
capacidade de encontrar seus próprios caminhos e de se
desenvolver pelas suas próprias decisões.
O estatismo paternalista configurado no nosso
atual modelo Constitucional resultou da teimosa
postura racionalista dos constituintes, cujo traço mais
destrutivo é a crença no poder das fórmulas escritas e a
excessiva confiança na capacidade e na boa intenção da
tecnoburocracia.
Para os sonhadores de mentalidade paternalista: “por
em letra de forma uma idéia é, de si mesmo, realizá-la.
Escrever no papel uma Constituição é fazê-la, para logo,
coisa viva e atuante: as palavras têm o poder mágico de dar
realidade e corpo às idéias por ela representadas”.
Os constituintes não atentaram para o fato, de que
grandes reformas, as reformas profundas de caráter social,
antes que legal, só sobrevêm, no exercício de um regime
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Foto: Acervo fotográfico do judiciário amazonense
Paternalismo constitucional
democrático, como produto da vivência constitucional e
não apenas da letra constitucional. (Oliveira Viana).
De fato, gozar efetivamente de liberdades e garantias
definidas na Constituição não é uma questão numérica,
mas de eficácia. Em termos quantitativos, a de 1988 foi a
mais generosa de toda a nossa história Constitucional. Na
Carta anterior eram 36 os direitos e garantias fundamentais;
hoje são 77.
O constituinte de 88, na sua tentação filantropista e
generosa, cristalizou promessas irrealizáveis e confundiu
direitos com meras expectativas. Com isso, disseminou
ilusões e exacerbou frustrações, porque uma boa parte
deste interminável catálogo de direitos ou pseudo direitos,
ainda permanece no papel.
Mas além da crença no poder das fórmulas escritas,
nossos constituintes paternalistas depositaram excessiva
confiança na capacidade e vocação pública da tecnoburocracia. Como conseqüência, a Constituição propiciou
o crescimento da burocracia oficial, pela absorção de outros poderes desenvolvidos pela sociedade. O equívoco
dos nossos legisladores é evidente, num duplo sentido. A
burocracia estatal não tem a competência que se lhe emprestou e muito menos a vocação de missionária. O que
os constituintes deveriam ter feito, ao invés de fortalecer
a burocracia, seria devolver ao homem e as entidades secundárias, econômicas e sociais, o seu legítimo espaço de
liberdade de iniciativa.
O estatismo com seu inafastável viés paternalista emascula
as sociedades que dominam e reduz-lhes a capacidade de
encontrar seus próprios caminhos e desenvolver suas próprias
soluções. Desestimula o empreendedor, quando não o pune,
e leva o homem a se acostumar a esperar resignadamente do
Estado a solução de todos os problemas e a despejar-lhe a
cornucópia de todas as benesses.
Enfim, não cabe ao legislador constituinte resolver os
problemas do cidadão, mas os da cidadania. Não lhe cabe
igualmente resolver os problemas do governo, mas criar
condições para a governabilidade.
O paternalismo apresenta outra faceta, também
censurável, o medo do exercício da liberdade de iniciativa
e o receio da competitividade social.
Há que se ter presente que livre iniciativa não significa
apenas propriedade privada dos meios de produção.
Sua dimensão maior é a liberdade nos seus múltiplos
e variados aspectos; que ela não se esgota como sistema
econômico, mas é inerente à democracia; que é possível
ter-se uma economia relativamente livre com governos
autoritários, mas nunca na história do homem se viu uma
sociedade politicamente livre que não se baseasse num
sistema econômico livre. Nunca. Não há exceções.
Contra o Estado paternalista, opõe-se o conceito de
sociedade competitiva. Empregos, favores e subsídios
“Os constituintes queriam,
sinceramente, resolver todos
os problemas do Brasil: deram
detalhadas exemplificações
programáticas, mas, no
momento de atribuir a
responsabilidade de encontrar
os caminhos do progresso, do
desenvolvimento da nação
e do bem estar material e
psicológico do brasileiro,
preferiram confiar no Estado à
confiar na sociedade”
2014 Maio | Justiça & Cidadania 29
Foto: Arquivo pessoal
“O constituinte de 88, na sua
tentação filantropista e generosa,
cristalizou promessas irrealizáveis
e confundiu direitos com
meras expectativas. Com isso,
disseminou ilusões e exacerbou
frustrações, porque uma boa
parte deste interminável catálogo
de direitos ou pseudo direitos,
ainda permanece no papel”
discriminatórios são excelentes para captar votos, mas
péssimos para criar cidadãos produtivos. Só a competição
pode fazer surgir uma geração preparada para o desafio, a
nível nacional e global, e não uma geração acomodada e
imbele, que se aninha sob as asas do Leviathan e depende
de suas migalhas. A política serve para a gestão da coisa
pública e não para a produção. Não cabe ao Estado dar,
nem mesmo o essencial, mas propiciar que se produza e
que os frutos do progresso sejam acessíveis a todos.
Enfatize-se que é perfeitamente compreensível que,
num país como o Brasil, ainda socialmente desigual, a tese
do paternalismo jurídico tivesse dominado o espírito da
maioria dos nossos constituintes.
Nas estatísticas internacionais, somos o número
oito em matéria de Produto Interno Bruto. Mas, no que
concerne ao social, o Brasil está inserido entre os mais
pobres do terceiro mundo. Nossos indicadores sociais são
realmente vergonhosos.
Mas levados pelo atrativo social do distributivismo,
constituintes paternalistas não consideraram corretamente a quantidade e erraram na dosagem. Utilizou-se
o direito como instrumento de distribuição de riquezas,
com pouca ou nenhuma preocupação com os meios necessários à implementação das medidas abundantemente
contempladas.
Não fizeram a distinção entre a norma estimuladora
do progresso e a norma que pretenda gerar um progresso
independentemente dos processos reais da sociedade.
Como nos adverte Hélio Jaguaribe: “a norma facilita ou
dificulta o progresso, mas jamais materialmente o gera. A
materialização do progresso pertence à ordem dos fatos,
não à dos preceitos”.
30
A pergunta que se impõe é a seguinte: Seriam essas
normas paternalistas, como imaginaram os constituintes,
valiosos instrumentos para eliminar o nosso subdesenvolvimento, a promover o bem-estar geral e criar uma sociedade mais livre, justa e solidária ? É válido, em nossos dias,
o modelo de Estado Paternalista?
Como a norma legal existe para ser aplicada e não
para ser admirada por suas qualidades formais, o teste
da eficácia é crucial. Se aparentemente é boa, porque
eticamente justificável, nem por isso será adequada.
A adequação exige a comprovação empírica: se as
normas dirimem os problemas sociais para a solução dos
quais foi criada; se a sua aplicação contribui efetivamente
para a valorização do trabalhador; se elas estimulam ou,
pelo menos, não tolhem a razoável expansão do mercado
de trabalho e se elas estão consentâneas com o estágio de
desenvolvimento do País: esses são os testes concretos que
podem indicar a sua adequação.
O paradoxal é que a Constituição fez uma opção distributivista, “precisamente num momento em que o mundo
anglo-saxão regressa a uma filosofia produtivista, verberando os exageros do Estado paternalista, as distorções do intervencionismo social e os abusos do poder sindical”.
Valem, aqui, as sábias palavras de Hernando de Sotto: “Um
direito formulado com fins exclusivamente distributivista não
favorece nem aos ricos nem aos pobres, mas sim os que estão
melhor organizados para aproximar-se do poder”.
Nota
Dicionário de Política, Norbeto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, segunda edição, Editora Universidade de Brasília,
verbete paternalismo, página 908
1
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Homenagem ao
Superior Tribunal de Justiça
Roberto Rosas
N
Prof. Titular da Universidade de Brasília
Membro do Conselho Editorial
este aniversário da Revista Justiça & Cidadania, nada melhor que homenagear o tribunal
da cidadania por seus relevantes esforços e
trabalhos nos últimos 25 anos, no número
de processos julgados, nas inúmeras teses aprovadas e no
aperfeiçoamento do direito brasileiro. A conclusão é assustadora: se o Superior Tribunal de Justiça não tivesse sido
criado, o Supremo Tribunal Federal não estaria hoje em
crise e sim arrasado.
A Constituição de 1988 criou o Superior Tribunal de
Justiça, que foi instalado no dia 7 de abril de 1989. Esse
fato, realmente, foi determinante para a grande mudança
na estrutura judicial, porque afastou-se do Supremo
Tribunal Federal toda a matéria infraconstitucional, exceto
a criminal, com a intenção de deixar à Corte Suprema
precipuamente constitucional.
“O Superior Tribunal de
Justiça, nesses 25 anos, tem
sido provocado com grande
intensidade, talvez como
última oportunidade dos
demandistas para a fuga dos
padrões locais e até a revisão
mais qualificada das decisões”
2014 Maio | Justiça & Cidadania 31
32
ção federal na Constituição americana e a conveniência de
sua abrangência (O Federalista, no 80).
A Constituição de 1891 foi alterada no capítulo do Recurso Extraordinário para reduzi-lo na sua importância. Substituição do seu cabimento sobre a aplicação da lei federal por
vigência da lei federal (Reforma Constitucional de 1926).
Ainda que Pontes de Miranda considere dispensável
no regime federativo a unidade de justiça ao contrário é
importante na integração da lei federal a uniformização
dessa lei, na sua aplicação. Foi assim até o advento
da Constituição de 1946, como proclamou Pontes de
Miranda, mas a ampliação tem sido benéfica.
Na esteira deste século, entramos em 1946, com a
quarta Constituição republicana e com ela os problemas da
jurisdição do Supremo Tribunal Federal, surgindo então,
nessa década, longos trabalhos sobre a chamada crise do
Supremo, então com cerca de 5000 processos distribuídos.
Que fazer sobre o Supremo Tribunal? Mais especificamente sobre o Recurso Extraordinário?
Para amenizar, essa crise, se comparada com o volume
atual, era insignificante. Criou-se, então, o Tribunal Federal
de Recursos (1947), com competência para os recursos
nas causas da União e autarquias, então na competência
do Supremo Tribunal Federal, aí tribunal de segundo grau
(apelação).
Estamos na década de cinquenta. Em 1956, o Supremo
Tribunal distribuiu 6.379 processos e julgou 6.126, apenas
empreendendo-se alterações procedimentais no Recurso
Extraordinário, como o juízo de admissibilidade do
presidente do tribunal a quo e da sua negação ao agravo
de instrumento, aparente restrição, porque desde essa
época, e muito mais hoje, os despachos denegatórios são
impugnados mediante agravo.
Em 1966, o Supremo Tribunal distribuiu 7.096 processos e julgou 9.175, isso antes da Constituição de 1967. Em
1969, distribuiu 8.023 processos e julgou 9.206. A aguda
crise do Supremo reuniu juristas eminentes que preconizaram, em 1965, a criação de novo tribunal para exame
do recurso extraordinário (rectius: especial) em matéria
não constitucional. A Constituição de 1967 nitidamente
restringiu o cabimento do recurso extraordinário com a
introdução da expressão negativa de vigência, sobre a qual
muito controverteu-se.
A restrição não significou a distribuição dessa jurisdição,
atribuindo a outro tribunal, nem ontologicamente queria
restringir recursos. Foi a solução da restrição na cúpula,
sem pensar no início ou no intermédio, isto é, na primeira
e na segunda instâncias.
A crise continuou, a Constituinte de 1987 debateu-a
e enfim encontrou-se a solução com a duplicidade de
jurisdições – o Superior Tribunal de Justiça e Supremo
Tribunal Federal, com a criação do recurso especial.
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Foto: ASCOM/STJ
O Superior Tribunal de Justiça, nesses 25 anos, tem
sido provocado com grande intensidade, talvez como
última oportunidade dos demandistas para a fuga dos
padrões locais e até a revisão mais qualificada das decisões.
Verificamos adiante as origens históricas dos problemas do STJ, o excesso de demandas, um panorama das
soluções e, finalmente, o futuro da corte para que não sofra dos mesmos males sofridos pelo Supremo, que foram
definidores para a necessidade de uma nova corte: o STJ.
Na oportunidade dos 25 anos de existência do Superior
Tribunal de Justiça impõe-se uma vista sobre a duplicidade
de jurisdições, e até mais de duas, quanto ao papel de um
tribunal da federação e a evolução, principalmente na
República, do prestígio da lei federal. Nesse contexto,
que se inicia no Império, passa pelo século XX e deve
ser prospectivo com vistas ao século XXI, na dimensão
federalista, e até de sua revisão ou ajuste como pregam
alguns, está valendo uma visão do Superior Tribunal de
Justiça nesse período, até no volume de causas julgadas
(três milhões e quinhentos mil processos), no seu papel de
corte federal, mas antes de tudo de tribunal nacional.
Surgiu então o Supremo Tribunal Federal com nítida
vocação para a matéria constitucional; no entanto, coarctada
por falta de espaço ou visão políticos, a propiciar, como no
nosso modelo americano, a excelência da suprema corte
para as questões excepcionais, ou somente constitucionais,
e então um tribunal nacional para as demais questões.
O projeto do Governo Provisório (1890) admitiu
a introdução do writ of error dos americanos no direito
brasileiro, com o recurso para o Supremo Tribunal das
decisões da justiça estadual contrárias às leis federais. Já
o Decreto no 848 (1890) admitiu recurso para o Supremo
Tribunal das decisões contrárias à aplicabilidade de lei do
Congresso.
A Constituição de 1891 acolheu esse recurso. Ora, o
writ of error americano tinha como finalidade a correção
de erros de direito de uma instância inferior. Chegou-se,
portanto, àquele entendimento de Pedro Lessa – aplicação
errônea da lei.
O Decreto 848 delimitou o Judiciário brasileiro na
fase republicana, porque impôs o modelo derivado do
regime para a fixação da duplicidade de jurisdições.
O Recurso Extraordinário foi criado, portanto, com a
múltipla finalidade de por cobro às decisões contrárias à
Constituição federal e a má aplicação da lei. Portanto, com
duplo objetivo: preservar a Constituição e a lei federal.
Como observou Epitácio Pessoa, em 1907, então ministro do Supremo Tribunal Federal, o Recurso Extraordinário
era o ponto de maiores controvérsias no direito constitucional, porque destinava-se a atender à jovem federação e à
preservação da lei federal, sem mutilar a autonomia estadual. Era a indagação de Alexander Hamilton sobre a jurisdi-
“Saudemos o STJ, mas
fiquemos atentos para
a crise dele, que sejam
encontradas soluções
sem desnaturar o
tribunal da cidadania”
O tempo encarregou-se da criação de um tribunal
nacional na evolução do antigo Tribunal Federal de
Recursos (e a transferência de competência do Supremo
Tribunal Federal). Esse longo caminho histórico mostra
uma verdade: o Supremo Tribunal Federal, principalmente
na fase republicana, vocacionou-se para a matéria
constitucional, aquilo que a Carta de 1988 chama de
precipuamente constitucional. Somente agora houve a
coragem para essa afirmação, sem tirar, desde 1890, de
todos os juízes o exame constitucional.
Chegou-se então a um tribunal nacional, que não pode
ser o Supremo, a quem se reservam as altas culminâncias
da proteção da Constituição. O destino exige esse tribunal,
que é, no caso, o Superior Tribunal de Justiça. Cabe-lhe,
então, a eminência infraconstitucional mais abrangente,
ainda que a constitucional seja tópica. Cabe a especulação
sobre os seus limites, sua competência. Não se lhe atribuam
excessos, porque haverá a inviabilidade de atuação.
De 1947 a 1987, 40 anos, verificou-se que o STF não
saiu da crise, e o TFR entrou na crise. Novamente soluções
e a mais contundente foi a criação do Superior Tribunal de
Justiça para conciliar as crises do STF e do TFR. Não bastava
a criação de um tribunal e sim lhe dar ossatura, feição própria
e mensagem de otimismo aos militantes no Judiciário. Abriuse a grande oportunidade do acesso das demandas a Brasília,
na conciliação do poder local, com o federalismo e a isenção
de uma corte longe dos embates locais.
O cidadão acredita na Justiça e quer acesso, mas também
quer a saída no dilema entre a prestação jurisdicional –
segura e rápida e isso não é resolvido nas eternas reformas
do Judiciário, porque sem reforma estrutural da Justiça, a
desburocratização processual e reforma do Judiciário com
objetividade, estaremos enganando a sociedade, os juízes,
os advogados e os jurisdicionados. Sem reforma processual
profunda e objetiva para a massa das demandas nada será
feito. Processo para todas as camadas, e não processo
complexo que não atinge as milhões de demandas em
curso no Brasil, e não solução para os órgãos de cúpula
do Judiciário, vítima das conseqüências de um intrincado
sistema processual, vazio de soluções para resolver,
somente na cidade de São Paulo, a mais de dois milhões de
processos que lá circulam.
Essa corte foi criada para ajudar no combate à crise.
Tem lutado tenazmente para superá-la e atender ao
cidadão, que respeita a Justiça, acredita no Judiciário, o
mais respeitado, e acatado dos Poderes, aqui e no mundo.
Necessita de meios e de fórmulas, mas o mundo jurídico
agradece a esse Tribunal pelo que fez, e fará, mas nos
unamos numa cruzada, para evitar uma chamada crise do
Superior Tribunal de Justiça.
Essas observações refletiram a preocupação dos 25
anos. Vejamos então, se as observações procediam na
superação de uma futura crise do Superior Tribunal
de Justiça. Muito esforço tem sido empreendido pelas
administrações, e o profundo entendimento dos ministros
no atingimento de metas ideais, numa corte, talvez a mais
gigante do mundo, onde cada ministro recebe cerca de
mil processos, mensalmente. Com a maior diligência, se
o magistrado julgar trinta processos por dia (inclusive
domingos e feriados), concluirá o mês com 900 processos
findos, e na prateleira, para o mês seguinte, com 100
processos. Saudemos o STJ, mas fiquemos atentos para a
crise dele, que sejam encontradas soluções sem desnaturar
o tribunal da cidadania.
2014 Maio | Justiça & Cidadania 33
A mobilidade urbana, as
cidades e a qualidade de
vida que oferecem
Lélis Teixeira
Presidente Executivo da Fetranspor
Membro do Conselho Editorial
Foto: Divulgação
34
A
oportunidade de participar deste número
especial de tão conceituada Revista muito nos
honra e alegra. São 15 anos acompanhando a
trajetória da publicação, percebendo, ao longo
do tempo, a já excelente qualidade de seus textos, impressão
e programação visual, sempre em aprimoramento
constante. Fazer parte da edição comemorativa do 15o
aniversário da Justiça & Cidadania é, pois, motivo de
grande orgulho.
O momento é de grandes mudanças em nossas
cidades, e o Rio de Janeiro está entre aquelas que sofrem
transformações radicais. Obras por toda a parte preparam
a nossa região metropolitana para um novo modelo de
transporte que certamente mudará a vida de cariocas e
fluminenses, oferecendo mais integração entre os modais,
corredores de BRT e linhas de Veículo Leve sobre Trilhos
(VLT). Em suma, oferecendo mais qualidade de vida.
Quando falamos no legado que os eventos esportivos
mundiais que aqui serão realizados deixarão para a população, falamos mais do que em transporte, mas em mobilidade e em tudo que ela implica. Há um esforço conjunto,
do poder público e da iniciativa privada, no sentido de criar
as bases para uma mobilidade urbana capaz de mudar para
melhor a vida em nossas cidades. Para tal, investimentos estão sendo feitos na revitalização da zona portuária da cidade
maravilhosa, em corredores exclusivos para ônibus, infraestrutura viária, mobiliário urbano etc.
Ao se criar um projeto de mobilidade, mexe-se, na
verdade, com o modelo de cidade e, consequentemente,
com a vida dos seus habitantes. Deslocamentos feitos
em segurança e em tempo razoável, melhor qualidade do
ar, menores índices de ruído, espaços para os pedestres,
ciclovias, facilidade de integração entre os modais tornam
os espaços urbanos moldados às pessoas e não aos veículos.
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Transformam as cidades em locais mais agradáveis de se
Ao todo, estão previstos 160 quilômetros de BRT, com
viver, facilitam a vida dos cidadãos e os tornam mais felizes.
uma frota com mais de 700 ônibus articulados, em beneAs mudanças se fazem provocando transtornos para o
fício a mais de um milhão de passageiros. Essas melhorias
trânsito e o transporte, e não há como evitá-los. Mas as
implicam grandes investimentos por parte dos operadores,
vantagens são inegáveis: a derrubada do elevado da Perinão apenas em frota, mas em comunicação, treinamenmetral, por exemplo, representa a opção pelo coletivo, em
to de grande massa de trabalhadores, equipamentos etc.
detrimento do individual. Ao ser construído, em 1950, foi
Em seu quinto ano de atividade, a Universidade Corpoolhado como exemplo de progresso. Era a primeira via elerativa do Transporte (UCT) capacita rodoviários de todos
vada do País e se destinava unicamente aos automóveis. A
os níveis, inclusive com a utilização de simuladores, para
partir daí, outras obras passaram a descaracterizar nossa
os motoristas dos corredores exclusivos, em extenso proregião metropolitana, sempre privilegiando os usuários
grama educacional, realizado por meio de parcerias com
de automóveis – a minoria –, que vieram a ocupar mais e
algumas das mais respeitáveis entidades de ensino e camais os espaços nas vias, enquanto o transporte público,
pacitação profissional do País. Uma publicação bimestral
em seus variados modais, foram relegados ao segundo plafoi criada como ferramenta de valorização dessa categoria
no, sem investimentos significativos ou políticas públicas
profissional (“Indo & Vindo – a revista do rodoviário”).
voltados para eles. O resultado da adoção dessas medidas
Sua tiragem é de mais de 100 mil exemplares, para asseequivocadas, todos conhecemos: cidades quase imobilizagurar que chegue a cada um dos integrantes do sistema. A
das pelos constantes congestionamentos, ruas saturadas de
iniciativa foi reconhecida, pela Aberje, no ano passado, em
veículos, desperdício de compremiação regional abrangenbustível, aumento da poluição
do os estados do Rio de Janeiro
aérea, deterioração de espaços
e Espírito Santo.
comerciais e residenciais, mau
Mas isso ainda não é tudo:
“A derrubada do elevado da Perimetral
uso do solo urbano.
existem esforços para minorar
representa a opção pelo coletivo,
Por tudo isso, ao ser demoo impacto ambiental causado
lido, tantas décadas depois, o
pelo transporte, como a utiliem detrimento do individual. Ao ser
elevado simboliza o fim de uma
zação de ônibus híbridos e eléconstruído, em 1950, foi olhado como
forma de planejar as cidades.
tricos, a utilização de diesel de
Os nossos governantes finalcana-de-açúcar, a participação
exemplo de progresso. Era a primeira
mente investem em urbes mais
em programas como o Econovia elevada do País e se destinava
justas, com deslocamentos mais
mizAR – em que o empresariaunicamente aos automóveis”
democráticos, que dão privilédo do Rio de Janeiro é pioneiro,
gio às vias para a maioria que
tendo feito os primeiros testes
usa o transporte coletivo nas
– e o Selo Verde. E a tecnolosuas viagens diárias entre casa
gia, que não pode ser esquecida
e trabalho, para cumprir compromissos sociais, tarefas die é utilizada para facilitar embarques, no caso dos cartões
versas e lazer. A destinação de verbas públicas para obras de
RioCard, ou para informar os clientes do sistema, como os
mobilidade urbana; a Lei no 12.587/12, que obriga os munirecentes aplicativos que já permitem aos passageiros consultarem o melhor itinerário ou a localização do seu ônibus
cípios a elaborarem seus planos de mobilidade; a colocação
pelos seus smartphones.
do tema nos debates políticos; e a implantação de alternatiA emulação para que se reflita sobre as questões da movas como o BRS, aqui no Rio de Janeiro e o BRT, o VLT e
bilidade está presente em iniciativas como o Prêmio Mobioutras, demonstram a nova tomada de posição.
lidade Urbana, que engloba cinco categorias: Jornalismo;
Há muito o empresariado de transporte por ônibus
Educação e Cultura; Responsabilidade Social e Meio Amdeste Estado, por meio da Fetranspor, defende soluções
biente; Relacionamento com o Cliente e Planejamento de
como implantação de corredores exclusivos, melhoria de
Transporte e Tecnologia, e o Congresso sobre Transporte
terminais rodoviários, racionalização das linhas urbanas,
de Passageiros (Etransport) – o maior evento da categoria
política tarifária justa, remanejamento de horários das
na América Latina, cuja 16a edição ocorrerá nos dias 5 a 7
diversas categorias de trabalhadores, entre outras, como
forma de melhorar a qualidade dos serviços prestados e
de novembro, no Riocentro e para o qual convidamos os
diminuir o tempo das viagens. As soluções que começam
leitores da Justiça & Cidadania. A mobilidade inteligente,
a ser adotadas incentivam o segmento a continuar a fazer
tema do evento, é uma forma de garantirmos às próximas
parte deste esforço em prol de cidades mais funcionais,
gerações metrópoles funcionais e acolhedoras. É isso que
com mobilidade urbana de melhor qualidade.
buscamos, incessante e incansavelmente.
2014 Maio | Justiça & Cidadania 35
Terrorismo judiciário
Siro Darlan
Desembargador do TJRJ
Membro da Associação Juízes para a Democracia
Membro do Conselho Editorial
Foto: TJRJ
E
m nome de Deus, muitas guerras “santas”
fraticidas foram declaradas; e, em nome da
Justiça, tenebrosas injustiças são praticadas.
Assim como Deus é a Luz do Mundo, a Justiça
deve ser o farol de segurança do respeito às regras de
convivência humana traçadas pela Constituição que foi
escrita para a sociedade como garantia do equilíbrio entre
os desiguais e o respeito às diferenças.
Precisamos estar atentos para os movimentos que estão
se proliferando de perseguição a determinados magistrados, colegas de primeiro grau, em razão de seus posicionamentos judiciais, pessoais, filosóficos ou doutrinários.
Na década de 80, quatro magistrados foram submetidos
a julgamentos secretos e, após expedientes indignos da
36
“Precisamos estar atentos para
os movimentos que estão se
proliferando de perseguição
a determinados magistrados,
colegas de primeiro grau, em
razão de seus posicionamentos
judiciais, pessoais, filosóficos ou
doutrinários”
Justiça, tiveram suprimidos os meios mínimos de defesa e
acabaram condenados à perda do cargo pelo simples fato de
haver contrariado interesses economicamente poderosos.
Posteriormente, as cortes superiores corrigiram essa
aberração persecutória, mas aí as forças do mal já haviam
atingido seus objetivos.
A independência do juiz é de natureza jurídicoadministrativa, fazendo parte da relação do juiz com o Estado.
Assim como as demais garantias da magistratura, está inserida
num amplo contexto, que corresponde à independência do
Poder Judiciário e à imparcialidade do magistrado.
Eduardo Couture afirma que “da dignidade do juiz
depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um
país e em um momento determinado, o que valham os
juízes como homens. No dia em que os juízes têm medo,
nenhum cidadão pode dormir tranquilo”.
A independência do juiz, primeiro, é uma garantia
do próprio Estado de Direito, pelo qual se deu ao Poder
Judiciário a atribuição de dizer o direito, direito este
que será fixado por normas jurídicas elaboradas pelo
Poder Legislativo, com inserção, ao longo dos anos, de
valores sociais e humanos, incorporados ao direito pela
noção de princípios jurídicos.
A independência do juiz, para dizer o direito, é
estabelecida pela própria ordem jurídica como forma de
garantir ao cidadão que o Estado de Direito será respeitado
e usado como defesa contra todo o tipo de usurpação.
Neste sentido, a independência do juiz é, igualmente,
garantia do regime democrático.
Importante, ademais, destacar que a questão da independência dos juízes tratou-se mesmo de uma conquista
da cidadania, pois nem sempre foi a independência um
atributo do ato de julgar.
Ora, não há dúvida que essa garantia vem sendo solapada por campanhas de desvalorização dos profissionais
Justiça & Cidadania | Maio 2014
da justiça, através de parcela de uma mídia comprometida
na prestação de serviços a setores poderosos e de políticos
interessados na impunidade e no enfraquecimento do judiciário.
Campanhas com essa finalidade acabam gerando
juízes medrosos, covardes e acanhados, com medo
de um necessário ativismo judicial, onde através de
decisões corajosas e independentes reflitam a verdadeira
independência do Poder Judiciário e não uma subserviência
aos mais poderosos midiática e economicamente.
Mas quando essa pressão ocorre dentro da própria
casa de Justiça, o fato é de uma gravidade ainda maior
porque é necessário identificar a que interesses essa ação
deletéria está a servir, além de se estar dando um tiro no pé
e armando os adversários com argumentos insuperáveis.
É preciso que a sociedade esteja atenta e acompanhe de
perto e com interesse na proteção da magistratura como
um todo.
Desmandos administrativos, comportamentos não
éticos ou condutas negligentes com os deveres constitucionais e funcionais devem sempre ser corrigidos, seja
no âmbito do controle interno, seja através do próprio
controle social; mas a perseguição sub-reptícia, a ameaça de procedimentos punitivos, ou a própria instauração de processos, tão somente em razão de decisões
proferidas no âmbito do processo judicial ou em razão
de opiniões acadêmicas, refogem inteiramente dos
próprios princípios republicanos que fundamentam a
Constituição da República.
A independência do juiz é condição basilar para a
garantia dos direitos fundamentais e não podemos deixar
que esta ou aquela administração se valha de seu mandato
temporário e fugaz para solapar, através de um terrorismo
administrativo, os próprios pilares do Estado Democrático
de Direito.
2014 Maio | Justiça & Cidadania 37
Foto: Assis Lima/TJPE
O nascituro órfão
Jones Figueirêdo Alves
D
Desembargador do TJPE
Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)
esigna-se como nascituro aquele que, concebido, há de nascer e que, em vida-intra-uterina, tem sua existência já tutelada (a
exemplo dos alimentos gravídicos), bem
como os seus direitos postos a salvo, desde a concepção;
tudo conforme a leitura concepcionista do artigo 2o do
Código Civil, embora sua personalidade civil comece do
nascimento com vida. Significa, assim, o ser já concebido
e gestado, aguardando no ventre materno o evento maior,
o de exsurgir para a vida terrestre com sua vida como
pessoa. Aquele que ainda não nasceu e haverá, por certo,
de nascer com vida.
38
Há quem sustente que o nascituro também será o ente
concebido e ainda não gestado, ou mais precisamente o
que está em vida extra-uterina, conceituado como embrião
pré-implantatório, resultado de técnicas de reprodução
medicamente assistida, ou seja, aquele de concepção “in
vitro” e crioconservado em nitrogênio líquido. Significa,
assim, que nascituro será também o embrião, como tem
sustentado, modernamente, juristas do elevado porte de
Silmara Juny Chinelato (autora da clássica obra “Tutela Civil
do Nascituro”, 1999) e Flávio Tartuce (2007). De tal ordem,
presente a figura do artigo 1.597, inciso IV, do Código Civil,
ou seja, a do embrião excedentário, havido a qualquer tempo.
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Pois bem: nessa ordem de ideias, dominante na
doutrina moderna, a teoria concepcionista, tendo o
nascituro seus direitos reconhecidos desde a concepção,
pontua-se, para o propósito do tema, a figura do nascituro
órfão, certo que essa situação insere-se em três realidades
assentadas por fatos da ciência ou da própria vida:
(i) o havido por concepção artificial homóloga “post
mortem”, por técnicas de inseminação do sêmen
(artigo 1.597, III, Código Civil);
(ii) o havido por ulterior implantação, como embrião
excedentário, quando já falecido o genitor (artigo
1.597, III, Código Civil);
(iii) o nascituro, que durante a gestação, tem a perda
superveniente do genitor (por causas diversas), não
o conhecendo ao nascer.
O tema tem sido enfrentado pela doutrina,
designadamente quanto às duas primeiras hipóteses,
quando induvidosa e admitida a paternidade póstuma,
a teor dos reportados incisos do artigo 1.597 do Código
Civil. A Resolução no 1.957, de 6 de janeiro de 2011, do
Conselho Federal de Medicina, dispõe a respeito, ao dizer
não constituir ilícito ético a reprodução assistida “post
mortem”, “desde que haja autorização prévia específica
do(a) falecido(a) para o uso do material biológico
criopreservado, de acordo com a legislação vigente”.
A fecundação “post mortem” tem tratamentos diferen­
ciado nas diversas legislações, bastando referir que a
proíbem as leis da Suécia (1985) da Alemanha (1990) e de
Portugal (Lei 32, de 26 de junho de 2006, art. 22, 1 e 2),
certo ainda que (i) a lei portuguesa admite, porém, lícita a
transferência “post mortem” de embrião, diante de projeto
parental definido por escrito antes da morte do pai (idem,
art. 22, 3) e (ii) a lei da Espanha, embora admita, impõe
prazo máximo da inseminação “post mortem”, de doze
meses após a morte do marido (Lei no 35/1988, art. 9o).
Afinal, a inseminação “post mortem” tem dois
paradigmas emblemáticos: (i) O mitológico – quando
encontra Isis reconstituindo os restos mortais de Osíris,
para fecundar a si mesma e; (ii) o humanista – quando,
por exemplo, do esforço afetivo de uma mulher enlutada,
na corrida contra o tempo, para recolher, em no máximo
trinta e seis horas, o sêmen de seu noivo Johhny Quintana,
morto por ataque cardíaco. Ela, Gisela Marrero, obteve da
corte do Bronx (NY, EUA) a autorização para a coleta.
Desde quando Corine Parplalaix reivindicou junto à
corte de Creteil (França) o sêmen de seu marido falecido,
Alain, e por ela autorizada à inseminação (8/1984),
iniciaram-se, nos âmbitos ético e jurídico, as inquietantes
peculiaridades dos seus efeitos, com debates a respeito. O
principal deles, sem dúvida, é o da criança ser gerada em
situação de orfandade.
Na terceira hipótese, a orfandade, mais das vezes,
porém, é situação imposta em decorrência de culpa de
terceiro, quando por acidentes de trabalho ou por atos
de uma criminalidade não controlada adequadamente
pelo Estado. Essa orfandade é a mais cruel e dramática,
porquanto as anteriores decorrem, como observado, de
projetos parentais que, via de consequência, asseguram a
vida a quem poderia não ter vindo ao mundo.
No ponto, assinala-se que “maior a agonia de perder
um pai, é a angústia de jamais ter podido conhecê-lo, de
nunca ter recebido um gesto de carinho, enfim, de ser
privado de qualquer lembrança ou contato, por mais
remoto que seja, com aquele que lhe proporcionou a vida”
(STJ – REsp. no 931556, j. em 17.6.2008). Nessa toada,
tem sido de há muito admitido, pelos tribunais nacionais,
que o nascituro tem direitos a danos morais, pela morte
do pai – consagrando-se a teoria concepcionista – e sem
distinção de valor indenizatório em relação aos filhos já
nascidos.
Agora, na mesma latitude, em acórdão de 03 de abril
corrente, a 2a Seção do Supremo Tribunal de Justiça de
Portugal acaba por findar séria controvérsia jurisprudencial
ao reconhecer que uma criança, hoje com sete anos, deva
receber uma indenização de 20 mil euros por danos morais
e mais 45 mil euros pela perda de alimentos, causados pela
morte do pai que nunca chegou a conhecer. O julgado
reformou decisão do Tribunal de Relação do Porto.
“Repugna ao mais elementar sentido de justiça – e
viola o direito constitucional da igualdade – que dois
irmãos, que sofrem a perda do mesmo progenitor, tenham
tratamento jurídico diferenciado pela circunstância de um
deles já ter nascido à data do falecimento do pai (tendo
16 meses de idade) e o outro ter nascido apenas 18 dias
depois de tal acontecimento fatídico, reconhecendo-se a
um e negando-se a outro, respectivamente, a compensação
por danos não patrimoniais próprios decorrentes da morte
do seu pai”, subscreve o Relator Álvaro Rodrigues (Proc.
436/07.6TBVRI.P1S1). A decisão invocou o art. 26o da
Constituição Portuguesa, para dar uma interpretação não
limitativa ou discriminativa ao art. 496o do Código Civil,
superando, destarte, o art. 66o, II, do mesmo estatuto civil.
(Web: http://www.stj.pt/jurisprudencia/basedados).
Diante de indicadores sociais de mulheres grávidas
que perderam os seus maridos por mortes provocadas pela
insegurança pública do Estado, impotente em preservar a
vida do cidadão comum, segue-se, então, considerar, que
os nascituros órfãos serão havidos filhos do Estado. Com
essa condição, merecedores de indenização civil pela
perda do pai e ao direito a uma vida digna, como a vida
deve ser em sua dignidade existencial, indistintamente,
a cada um.
2014 Maio | Justiça & Cidadania 39
Foto: Rosane Naylor/TJRJ
E m foco, Giselle Souza
Violência contra jornalistas
Em meio ao aumento do número de agressões
a profissionais, evento promovido pelo STF
e pela ONU ressalta os desafios do Poder
Judiciário para assegurar a liberdade de
expressão e de imprensa no Brasil
O
Brasil amargou a segunda posição no ranking
mundial dos jornalistas assassinados em razão da profissão, foi o que revelou uma pesquisa da organização internacional de defesa
da liberdade de imprensa Press Emblem Campaing (PEC),
divulgada em meio às comemorações do Dia do Jornalista,
dia 7 de abril. Infelizmente, esse não foi o único estudo
publicado na data a reafirmar o aumento de agressões contra os profissionais da imprensa. O fato chamou a atenção
e acabou sendo um dos pontos nevrais do seminário “A
Liberdade de Expressão e o Poder Judiciário”, promovido
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em parceria com as
Relatorias Especiais de Liberdade de Expressão das Nações
Unidas (ONU), a Organização dos Estados Americanos
(OEA) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), na sede do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), nos últimos
dias 7 e 8 de abril.
O ministro Joaquim Barbosa, presidente do STF e
do CNJ, participou da abertura do seminário e em seu
pronunciamento, ao ser questionado sobre os ataques
cada vez mais frequente a jornalistas, se solidarizou com
os profissionais que participavam do evento ao afirmar que
“no Brasil, o número (de agressões) é expressivo”.
Dados apresentados por representantes do Conselho de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão
ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, reforçam a constatação do ministro. Segundo
um levantamento feito pelo órgão, o número de agressões
contra profissionais da imprensa cresceu 232% em 2013.
40
Manifestações
De acordo com o relatório produzido pelo Conselho, os
casos de violência saltaram de 41 em 2012 para 136 no ano
passado. A maior parte deles ocorreu nas manifestações
populares que tomaram contas das ruas a partir de junho
de 2013. Uma contagem feita pela Associação Brasileira
de Jornalismo Investigativo (Abraji) também confirmou o
aumento da violência com o início dos protestos. De 10
de maio do ano passado até o fechamento desta edição, a
entidade registrava agressões a 169 jornalistas. A maioria
ocorreu durante as coberturas das manifestações e partiu
de autoridades policiais.
Com relação ao número de jornalistas assassinados, a
pesquisa citada no início da reportagem mostrou que o Brasil
vem logo depois do Iraque, que ocupa o primeiro lugar no
ranking. Segundo o estudo, dos 27 profissionais executados
nos três primeiros meses deste ano no mundo todo, quatro
eram brasileiros. Os iraquianos somavam cinco. Segundo
constatou o relatório da organização internacional PEC, o
número de mortes no Brasil foi superior ao verificado na
Síria, país que se encontra em guerra civil e registrou o
assassinato de dois jornalistas no trimestre; e o Afeganistão,
que contabilizou três mortes no período.
O Brasil tem sido apontado por entidades ligadas à
defesa da liberdade de expressão como um dos países mais
perigosos do mundo para exercer o jornalismo. Também
em 2013, o País foi considerado o mais fatal para a profissão
em todo o continente, com um total de cinco assassinatos,
segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras.
No seminário sobre a liberdade de expressão realizado
no TJRJ, o presidente do STF e do CNJ analisou o contexto
das agressões contra os jornalistas no Brasil. Segundo
Joaquim Barbosa, antes dos protestos que ganharam as
ruas, a grande maioria dos casos se dava nos rincões do
País “nas periferias e nas áreas onde os apóstolos dessa
violência contra os comunicadores vivem com conforto”.
O aumento da violência contra jornalistas também
tem preocupado os organismos internacionais. Catalina
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa (centro), defende a criação de um marco legal para a imprensa. “Temos que ter balizas”, disse.
Botero, relatora especial para a Liberdade de Expressão da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ressaltou
na abertura do seminário, que a liberdade é imprescindível
aos países democráticos. “Não temos direitos políticos
quando não temos liberdade de expressão”, destacou.
Frank la Rue, relator especial das Nações Unidas para
a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião
e de expressão, explicou que esse direito se caracteriza
pela garantia que a sociedade tem de obter e disseminar
informações. Ele lembrou que essa liberdade sempre é a
primeira a ser atacada pelos governos autoritários. “Creio
que uma Justiça forte e a liberdade de se expressar são
fundamentais a uma democracia. Devemos defender
a participação, assim também como são as limitações
legítimas desse direito, para que não sejam convertidas em
censura”, destacou.
Guilherme Canela, assessor regional da UNESCO para
Comunicação e Informação no Mercosul e Chile, frisou
que a liberdade de expressão não é somente um direito de
jornalistas. “É central para a governança das instituições
públicas. E em relação a esse tema, há velhos e novos
desafios sobre a mesa e sobre os quais o Poder Judiciário
pode desempenhar um papel fundamental”, afirmou.
Punição
Em mensagem pronunciada no ano passado, em
saudação ao Dia Mundial da Liberdade de Imprensa,
comemorado em 3 de maio, o secretário-geral da ONU,
Ban Ki-moon, e a diretora-geral da Unesco, Irina Bokova,
alertaram que 90% dos casos de violência contra jornalistas
ficam sem punição.
No que se refere ao Brasil, o presidente do STF e do CNJ
afirmou que o Poder Judiciário precisa intensificar a atuação
nesses casos. “Lamentavelmente, o Brasil tem testemunhado
atos de violência contra comunicadores e jornalistas. Isso
deve ser combatido de forma prioritária”, frisou.
Garantir a punição nos casos de agressões ou mesmo de
assassinatos de jornalistas constitui-se um importante lado
da atuação cobrada por Joaquim Barbosa dos tribunais no
campo da liberdade de expressão, mas não é o único. O
ministro destacou a necessidade do Judiciário dar maior
atenção a essa temática.
O ministro lembrou que a liberdade de expressão é um
direito de primeira geração, que se encontra presente em
mais de 90% das Constituições do mundo. “Trata-se de um
direito fundamental para a construção de uma sociedade
democrática. É o melhor antídoto para desmandos e para
que a sociedade forme sua própria opinião”, ressaltou.
Um dos problemas do Judiciário brasileiro para efetivar
esse direito, porém, está na falta de preparo. A presidente
do TJRJ, desembargadora Leila Mariano, lembrou que
nem todos os magistrados viram, na faculdade de Direito,
disciplinas específicas sobre liberdade de expressão e de
imprensa. “O Poder Judiciário do Rio tem tradição na
análise de questões ligadas à liberdade de expressão. Nossa
jurisprudência se alarga dia a dia. Também no dia a dia,
2014 Maio | Justiça & Cidadania 41
42
Foto: Rosane Naylor/TJRJ
buscamos complementar a formação dos magistrados.
Muitos sequer tiveram contato com essas matérias nos
bancos das faculdades”.
Joaquim Barbosa confirmou essa realidade. Segundo
afirmou, ele mesmo só veio a estudar esses temas com mais
profundidade na pós-graduação. “Eu tive a felicidade de
vê-los, mas somente na pós-graduação. Por aí, verificamos
a gravidade: o magistrado sequer é educado para apreciar
essas questões”, lamentou.
Na avaliação do ministro, esse quadro vem mudando
substancialmente nos últimos anos com a atualização
da grade curricular dos cursos de Direito por muitas
universidades. No entanto, a falta de leis específicas para
regular os diversos aspectos que abrangem o direito à
liberdade de expressão e de imprensa acabam por colaborar
com um certo caos nesse campo. A principal norma
sobre a comunicação no Brasil continua a ser o Código
Brasileiro de Telecomunicações, de 1962. Na época em que
a legislação foi editada, o País não contava com telefonia
fixa nem internet tão disseminadas entre a população.
Joaquim Barbosa defendeu um marco legal para a
imprensa brasileira. “Na vida social, temos necessidade
de estabelecer balizas. E isso é importante porque ajuda
o magistrado que está para resolver os conflitos. Sem
um marco legal, o juiz, na maior parte das situações,
não vai saber o que fazer”, destacou. O Ministro citou
como exemplo uma série de questões contraditórias
que podem chegar ao Poder Judiciário. Uma delas diz
respeito à prevalência do direito à liberdade de expressão
e à informação. Ele reforçou que nenhum dos dois são
absolutos. Portanto, embora estejam assegurados na
Constituição, estes não podem se sobrepor a outros direitos
também constitucionais, como os direitos à intimidade e à
vida privada.
À discussão acerca da prevalência dos direitos,
o Ministro somou outras que também podem gerar
polêmicas nos tribunais. Ele citou como exemplo o “boom
do jornalismo via internet”, ressaltando que “ao mesmo
tempo em que fortalece o pluralismo de opiniões, a internet
pode permitir também a circulação de informações
produzidas com baixa qualidade e precariedade”. O
marco legal da rede ainda se encontra em apreciação no
Congresso Nacional.
Segundo o Ministro, a falta de normas específicas é
um desafio para o Judiciário. “O grande desafio do Poder
Judiciário residirá nas circunstâncias em que determinadas
decisões podem ou não ser aplicadas. É grande a
contribuição de eventos como esses. É por meio da análise
e de diálogos sobre a liberdade de expressão e a atividade
de jornalismo no Brasil que poderemos refletir sobre a
liberdade de imprensa”, disse. E destacou: “Falta de norma
só serve ao mais forte, a quem detém o poder e a quem
“O Brasil tem sido apontado por
entidades ligadas à defesa da liberdade
de expressão como um dos países
mais perigosos do mundo para exercer
o jornalismo… o País foi considerado
o mais fatal para a profissão em todo
o continente, com um total de cinco
assassinatos, segundo a organização
Repórteres Sem Fronteiras”
tem dinheiro. Não estou defendendo a censura, mas a vida
social é feita de constantes choques e embates de direitos
de pessoas e grupos. Sem balizamento, seja do Estado
ou mesmo dos próprios integrantes de um determinado
sistema produtivo, aquele que tem a competência para
resolver os conflitos que surgirem entre essas pessoas ou
grupos, tem dificuldade para fazê-lo. Daí a necessidade
de sempre termos um mínimo de balizamento. Não pode
haver um vazio, pois isso vai favorecer justamente o mais
forte”, acrescentou.
Democratização
Sobre os desafios para a imprensa brasileira, e para o
Poder Judiciário no caso de ser chamado a intervir a fim de
garanti-los, Joaquim Barbosa destacou a democratização
dos meios de comunicação. “Falta diversidade que
expresse todo o espectro complexo da sociedade brasileira,
em especial na diversidade racial, que não se encontra
espelhada no panorama audiovisual brasileiro. Há também
ausência de minorias em liderança e controle da maior
parte dos meios de comunicação desse País”, alertou.
O seminário abordou diferentes aspectos da liberdade
de expressão ao promover um debate acerca de temas
tais como a violência contra jornalistas e a obrigação do
Estado de proteger e investigar os crimes cometidos, o
acesso à informação e internet e o Poder Judiciário, assim
como o Direito Penal e liberdade de expressão. O evento,
que contou com a moderação de jornalistas de veículos
nacionais, se propôs a reforçar a importância da liberdade
de expressão para a construção de uma democracia
plena e a realçar o papel da Justiça para a preservação e o
fortalecimento desta liberdade.
Justiça & Cidadania | Maio 2014
2014 Maio | Justiça & Cidadania 43
Foto: Arquivo JC
A farsa da democracia
Antonio Carlos Martins Soares
A
Procurador Regional da República na 2ª Região
Membro do Conselho Editorial
democracia tal como é hoje praticada nos países ocidentais e imposta ao resto do mundo
como modelo de regime político se apresenta
como um verdadeiro embuste.
A começar pelo acesso aos mandatos eletivos, passando
pelo espaço nos veículos de comunicação, a disputa entre
candidatos se mostra inteiramente desigual.
Por outro lado, a defesa intransigente da democracia
pela maioria dos veículos de comunicação se deve mais
a interesses próprios do que por convicção ideológica. É
que o acesso e a manutenção do poder nas democracias
ocidentais depende decisivamente do desempenho da
mídia nos períodos eleitorais. Dessa interação espúria
entre eleitos e a imprensa audiovisual nasce uma relação
de cumplicidade, tornando ambos parceiros inseparáveis
do jogo político.
A opinião pública é um fenômeno social, pelo qual a
maioria dos membros de um grupo ou de uma comunidade
adota como verdadeira determinada orientação a respeito
de qualquer assunto. E o domínio da técnica para formá-la
e orientá-la tornou-se, por assim dizer, uma das maiores
invenções do século XX, pela sua força de persuasão: a
propaganda.
No começo, a liberdade de imprensa era a manifestação
da liberdade individual de expressão e opinião. No
entendimento liberal clássico, assevera Vital Moreira
(O direito de resposta na comunicação social, editora
Coimbra, pag. 9/10 ), a liberdade de criação de jornais
44
e a competição entre eles asseguravam a verdade e o
pluralismo da informação e proporcionavam aos veículos
de expressão, por via da imprensa, a todas as correntes de
opinião. Mas a seguir, prossegue, se revelou que a imprensa
era também um poder social, que podia afetar os direitos
dos particulares quanto ao seu bom nome, reputação,
imagem etc. Por outro lado, a liberdade de imprensa
tornou-se cada vez menos uma faculdade individual de
todos, passando a ser cada vez mais um poder de poucos.
Hoje em dia, como é notório, os meios de comunicação
de massa deixaram de ser a expressão de liberdade e autonomia individual dos cidadãos, antes revelam os interesses comerciais e ideológicos de grandes organizações empresariais,
institucionais ou de grupos de interesses. Daí porque o acesso
aos veículos de comunicação de massa passou a ser determinante na disputa entre candidatos em qualquer eleição.
Nesse aspecto, a legislação eleitoral favorece demasiadamente os partidos com longa permanência no poder,
em detrimento da indispensável renovação dos quadros,
tanto no Legislativo, quanto no Executivo.
A lei no 9.504/97, ao disciplinar a matéria, conferia
a cada partido ou coligação que tenham candidato
e representação na Câmara dos Deputados, assim
distribuído: 1/3 igualitariamente; 2/3, proporcionalmente
ao número de representantes na Câmara dos Deputados,
considerado, no caso de coligação, o resultado da soma
do número de representantes de todos os partidos que a
integram ( art. 47, inciso VI, § 2a, da Lei no 9.504/97).
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Essa fórmula se justificaria, segundo os partidos
majoritários, porque o acesso e o tempo de exposição
na mídia deve ser proporcional em cada pleito eleitoral
ao número de representantes no parlamento, verificado
na última eleição. Ora, se assim devesse ser, cada eleição
deveria ser um prolongamento da anterior, para justificar
essa flagrante e injusta desigualdade. Ao contrario, a cada
quatro anos, em cada eleição, todos os candidatos devem
partir em rigorosa igualdade de condições a fim de que
todos tenham as mesmas oportunidades para exporem
os seus programas de governo, exercerem o seu direito de
crítica e, por fim, permitirem ao eleitorado exercer o seu
direito de escolha.
A recente mudança na legislação eleitoral (Lei no
12.875/13, que deu nova redação ao art.47, § 2a, incisos I
e II, da Lei no 9.504/97) ao reduzir o acesso aos palanques
eletrônicos em até 67% das denominadas legendas
nanicas, agravou ainda mais esse desequilíbrio. A nova
regra determina que apenas 11% do tempo destinado
a propaganda eleitoral nos veículos de comunicação
será reservado aos partidos nanicos, em vez dos 33%
anteriormente concedidos.
Essas regras, a toda evidencia, afrontam o postulado da
igualdade de oportunidades que deve orientar todo regime
que se pretenda democrático.
A melhor maneira de se escolher um candidato é facilitar
a sua exposição na mídia: quanto maior a sua inépcia ou a sua
eficiência, isso vai depender dele próprio.
“Hoje em dia, como é notório,
os meios de comunicação
de massa deixaram de ser
a expressão de liberdade e
autonomia individual dos
cidadãos, antes revelam
os interesses comerciais
e ideológicos de grandes
organizações empresariais,
institucionais ou de grupos
de interesses”
2014 Maio | Justiça & Cidadania 45
Darci Norte Rebelo
A
Advogado
Membro do Conselho Editorial
Lei no 8.666/93 foi concebida por engenheiros
para obras de engenharia e não para compras
de bens e serviços de consumo usual pela
administração e muito menos para delegação
de serviços públicos em que a administração nada
despende. A primeira carência foi suprida pela Lei do
Pregão; a segunda, para obras da Copa do Mundo, Jogos
Olímpicos e Paraolímpicos, infraestrutura de aeroportos e
outras, pela lei do Regime Diferenciado de Contratações.
Mas para a terceira, delegação de serviços públicos, a
única solução é adaptar a roupagem da Lei no 8.666 e fazêla entrar, apertada ou frouxa, conforme o caso, no corpo
estranho das concessões e permissões de serviços públicos.
A Lei no 8.987/95, pelo menos, criou algumas regras
específicas mas também não fez vestimenta completa, sob
medida, para os serviços públicos.
No entanto, ainda assim, seria possível encontrar
respostas, mesmo que não plenamente satisfatórias, para
dar solução a diversas perguntas que essa deficiência
da legislação de licitações e concessões apresenta para
o caso de delegação de serviços públicos e o destino
dos trabalhadores e das empresas com a cessação da
atividade destas. Mas as soluções esbarram (a) na própria
administração que, nos editais de licitação, não estabelece,
podendo fazê-lo, condições para resolver essas questões;
(b) no Ministério Público que, de Norte a Sul, pressiona a
46
Foto: Arquivo pessoal
A licitação de transporte
público: um beco sem saída
administração com a propositura de ações civis públicas
com objetivo licitatório; (c) no Poder Judiciário, a partir
do STJ, que alimenta a irresponsabilidade do poder
público, abonando condutas danosas por este praticadas
sob fundamento de que a inexistência de licitação priva
as empresas de qualquer direito como a indenização de
prejuízos por tarifas políticas e violação da regra básica
da delegação, a regra do equilíbrio. Ressalva feita ao STF
que ignorou corretamente tais pressupostos nos casos
Transbrasil e Varig. Nenhuma delas passou por essa pia
batismal da licitação. De resto, também as mais recentes:
Tam, Gol, Azul e outras.
O Distrito Federal tentou, por conta própria, dar uma
resposta, ainda que parcial, à situação dos trabalhadores das
empresas afastadas no processo licitatório. O Ministério
Público do Trabalho, sensível ao problema, celebrou um
TAC com os diversos atores em que se estabelecia que os
vencedores re-empregariam os empregados despedidos
sem que isso caracterizasse sucessão trabalhista e o
Governo do DF, por sua vez, assumiria o compromisso
de indenizar os trabalhadores do transporte público.
Para cumprir a sua parte, o DF obteve aprovação da
Lei no 5.409/2013, que abria crédito orçamentário para
pagamento de indenizações, importando a despesa a cerca
de R$ 120 milhões. Entre outros, o fundamento legal do
TAC era o do art. 486 da CLT, o chamado “fato do príncipe”,
Justiça & Cidadania | Maio 2014
“O edital, portanto, é a
única oportunidade que o
administrador público tem
para regular as regras de
saída dos trabalhadores e
das empresas alijadas pela
licitação. A verdade, porém, é
que o poder público nada faz,
quer na órbita interestadual,
quer na estadual ou distrital,
quer na municipal”
segundo o qual “no caso de paralisação temporária ou
definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade
municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei
ou resolução que impossibilite a continuação da atividade,
prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a
cargo do governo responsável.” Ocorreu, então, que o
Ministério Público Estadual e a OAB/DF ajuizaram ação de
inconstitucionalidade contra essa lei e o Conselho Especial
do Tribunal de Justiça do Distrito Federal concedeu
liminar suspendendo-a. Um dos fundamentos é o de que
a regra do art. 71 e seu § 1o da Lei de Licitações, estabelece
que o contratado é responsável pelos encargos trabalhistas,
“resultantes da execução do contrato” (sic), não podendo
serem eles transferidos para a administração pública (§
1o). Os encargos em discussão, porém, não são encargos
de execução, mas encargos de extinção do contrato. O fato
gerador é outro e outras são as regras a serem observadas.
A extinção dos contratos unilateralmente rescindidos é
regida pela Lei no 8.666/93, no art. 58, II; 78, XII a XVII
e 79, § 2o , inc. III, e, além do direito a ressarcimento de
prejuízos regularmente comprovados, o permissionário
ou concessionário tem direito “ao pagamento do custo
de desmobilização” (art. 79, § 2o, inc. III), entre os quais
se incluem as indenizações por rescisão dos contratos
de trabalho para os trabalhadores, e, para as empresas,
indenizações típicas de serviço público delegado, como
2014 Maio | Justiça & Cidadania 47
a de bens reversíveis, investimentos não amortizados ou
depreciados efetuados em razão do serviço e até mesmo
perdas provocadas por condutas ilegais da adminis­
tração pública. Como sintetiza Marçal Justen, “isso
não significa indenização restrita a danos emergentes.
Também os lucros cessantes devem ser indenizados”...,
além do custo de desmobilização que inclui a liberação
do passivo trabalhista” (CF. Lei no 8.666/93, art. 79, § 2o
e inc. III) [Comentários à Lei de Licitações e Contratos
Administrativos, p. 787]. A Lei das Concessões também
estabelece algumas regras para a hipótese de extinção
dos contratos. O poder concedente, extinta a concessão,
deve proceder aos levantamentos, avaliações e liquidações
necessários (Lei no 8.987, art. 35, § 2o). Nos casos de
advento do termo ou de encampação, os levantamentos
se destinam a indenizar o concessionário (Lei 8.987,
art. 35, § 4o). Mas somente no caso de encampação a lei
é clara ao exigir lei autorizativa e prévio pagamento da
indenização (Lei no 8.987, art. 37) que deve incluir parcelas
dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não
amortizados ou depreciados, que tenham sido realizados
com o objetivo de garantir a continuidade e atualidade
do serviço concedido” (Lei no 8.987, art. 36). Nenhuma
palavra, porém, sobre a desmobilização das pessoas. Nova
redação dada ao art. 42 da Lei no 8.987 pelo art. 58 da Lei
no 11.445/2007, também omite a existência de pessoas nas
relações a serem extintas. Não há nenhuma palavra sobre
as indenizações trabalhistas, embora seja evidente que o
Estado, pelo “fato do príncipe”, que provocou a extinção da
delegação, deva ser responsável (CF, art. 37, § 6o) por essas
obrigações conforme determina a CLT, no mencionado
art. 486.
O edital, portanto, é a única oportunidade que o
administrador público tem para regular as regras de saída
dos trabalhadores e das empresas alijadas pela licitação.
A verdade, porém, é que o poder público nada faz (fez)
quer na órbita interestadual, quer na estadual ou distrital
quer na municipal. Como péssimos exemplos, aí estão
os recentes editais da ANTT (70.000 trabalhadores); os
do Distrito Federal (12.000), acima referido, e o de Porto
Alegre (8.000), também omisso quanto ao destino dos
trabalhadores do setor e ao de uma dúzia de tradicionais
e boas empresas locais, referências nacionais de bons
serviços prestados. Estima-se que são necessários R$ 80
milhões somente para as rescisórias trabalhistas. Essa
verba simplesmente não existe porque as planilhas, de
onde emergem as tarifas, jamais contemplaram provisão
para a hipótese de despedida em massa e nem poderiam
fazê-lo em nome da regra da modicidade (Lei no 8.987,
art. 6o, § 1o). Como o serviço é essencial e da titularidade
do município (CF, art. 30, inc. V), compreende-se que
ou ele próprio indeniza ou transfere o ônus, via licitação,
48
para o vencedor desta, assim como pode transferir as
demais obrigações resultantes da cessação das relações de
delegação relativamente às empresas afastadas.
Como o edital é omisso a tudo isso, na ausência de
qualquer regra, resta o socorro ao direito constitucional
à jurisdição (CF, art. 5o, XXXV). Aqui, porém, entra o
(pre)conceito: a leitura de vários despachos judiciais
mostra que os juízes, sinceramente, pensam que a crítica
das empresas é apenas uma forma de ganhar tempo e
perpetuar-se nos serviços. Não acreditam na malícia das
entrelinhas dos éditos e em suas impropriedades. No
caso de Porto Alegre, o modelo de transporte não está
concluído (em fase de construção a infraestrutura dos
BRTs – sistema de ônibus rápidos – e a proximidade do
metrô no curso da concessão), mas despacho do Tribunal
de Justiça determinou que se fizesse a licitação de
qualquer maneira. Resultado: a aceleração do parto pode
produzir a morte do feto, sem condições de viabilidade
(vida-hábil). Com a pressa, o edital foi lançado com
falhas gritantes, exigências de garantias milionárias,
bom negócio para bancos e seguradoras, multas de um
milhão e meio para meras desobediências à fiscalização,
manutenção da empresa de economia mista, controlada
pelo Município e alimentada por generosos subsídios
anuais, consumidos pelos prejuízos constantes. Uma
ofensa à isonomia com ofensas desproporcionais ao
objeto licitado. O Poder Executivo, por sua vez, não
recorreu da decisão judicial e não defendeu o direito
constitucional básico da separação de poderes, violado
quando o Judiciário se transformou em administrador.
De resto, o poder público está paralisado pela ação
do Ministério Público, do Tribunal de Contas, dos
black blocs, dos estudantes, da opinião pública. Em “O
fim do Poder”, o jornalista venezuelano Moisés Naim
mostra como o exercício desses micropoderes pode
provocar a paralisia da administração pública. Michel
Foucault, anteriormente, em a “Microfísica do Poder”, já
demonstrara que existem formas de exercício de poder
diferentes da do Estado, poderes periféricos, capazes de
influir no subconsciente das decisões das autoridades.
Lênio Streck, severo crítico do ativismo judicial, adverte
que, para precaver-se, o intérprete tem de aproximar-se da
realidade. A hermenêutica é a hermenêutica da faticidade
e “toda interpretação jurídica exige aproximação com o
caso concreto” (Verdade e Consenso, p. 322). Sintetiza
ele: “não interpretamos para compreender, mas, sim,
compreendemos para interpretar” (Verdade e Consenso,
285, 404 e 446). Enquanto o Judiciário não compreender
a realidade dos transportes públicos e despir-se dos
(pré)conceitos com que o trata, trabalhadores e seus
empregadores – se saírem perdedores na licitação –
estarão num beco sem saída. Sem regras de saída.
Justiça & Cidadania | Maio 2014
2014 Maio | Justiça & Cidadania 49
Logística reversa, reciclagem
e resíduos pós-consumo
Uma abordagem sob a ótica
da Lei 12.305
Renato Monte Alto
evolução do pensamento ecológico da sociedade brasileira, após um longo período de
maturação, vem, enfim, tomando contornos
mais definidos e começando a surtir os efeitos
positivos que foram inicialmente imaginados.
A introdução de disciplinas escolares focadas na
conscientização ambiental de nossas crianças, que
encontra amparo no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (Lei no 9.394/96), já faz parte da
realidade educacional dos grandes centros urbanos.
Medidas de cunho educativo, idealizadas em diferentes
formatos (artigo 2o, X, da Lei no 6.938/81), vem difundindo
os conceitos ambientais para uma expressiva parcela da
população que não se encontra mais em idade escolar e,
em muitos casos, tem apresentado resultados práticos até
mais eficazes do que alguns dos mecanismos de controle
ambiental implementados pelo poder público.
A crescente participação da sociedade em programas de
reciclagem e as inovações tecnológicas que vem permitindo,
cada vez mais, tornar os processos de reaproveitamento
dos resíduos pós-consumo viáveis sob o ponto de vista
econômico-financeiro, também se amoldam aos princípios
que orientam nossa Política Nacional de Meio Ambiente.
De toda sorte, em que pesem tais considerações, não
resta dúvida de que ainda há muito a ser feito em prol da
formação de uma consciência ambiental crítica e realmente
esclarecida em boa parte da população brasileira.
50
Foto: Arquivo pessoal
A
Advogado
Aquele modelo inicial que buscou levar ao conhecimento da sociedade as preocupações básicas relacionadas à questão ambiental precisa ser paulatinamente
repensado e substituído por uma sistemática mais moderna, onde os princípios que norteiam a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei no 6.938/81) e a recente
Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei no 12.305/10)
possam ser absorvidos de uma forma mais efetiva pelos
cidadãos.
A tábua axiológica que serve de alicerce para todas
as normas que integram a ordem jurídica nacional
ainda precisa ser compreendida, com a profundidade
necessária, por uma significativa parcela da sociedade,
viabilizando, assim, uma leitura correta do atual estágio
de desenvolvimento de nosso sistema de proteção do meio
ambiente e garantindo uma contribuição mais concreta da
população nos mecanismos de controle implementados
pelo Poder Público.
Como exemplo, podemos citar o próprio conceito
de desenvolvimento sustentável (artigo 4o, I, da Lei
no 6.938/81), que precisa ser difundido e introduzido
de modo mais coerente no pensamento ecológico do
cidadão, enquanto tenta compatibilizar o desenvolvimento
econômico-social do País com o equilíbrio do meio
ambiente, utilizando as inovações tecnológicas disponíveis
e os programas de controle ambiental economicamente
viáveis como suas principais ferramentas.
Artigo 4o – A Política Nacional do Meio Ambiente visará:
I - à compatibilização do desenvolvimento econômico-social
com a preservação da qualidade do meio ambiente e do
equilíbrio ecológico;
As linhas gerais desse princípio foram delineadas
inicialmente em 1983, no Relatório Brundtland da
Assembleia das Nações Unidas, tendo sido ainda bem
sintetizadas na recente Conferência Rio+20 como
“o modelo que prevê a integração entre economia,
sociedade e meio ambiente. Em outras palavras, a noção
de que o crescimento econômico deve levar sempre em
consideração a inclusão social e a proteção do meio
ambiente.”
É o desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades
da geração atual, sem comprometer a capacidade
das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias
necessidades, significa possibilitar que as pessoas, agora e
no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento
social e econômico e de realização humana e cultural,
fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos
da terra e preservando as espécies e os habitats naturais.
(Relatório Brundtland – Comissão Mundial sobre o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento da Assembleia das Nações
Unidas – 1983).
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Na mesma linha, urge a necessidade de se promover
uma conscientização de toda a sociedade no que diz
respeito à dicotomia existente entre a destinação adequada
que deve ser dada ao simples resíduo urbano, isto é,
ao “lixo” produzido todos os dias em nossas casas e na
varrição das vias públicas, e ao resíduo pós-consumo que
pode ser objeto de um processo economicamente viável de
reciclagem ou reaproveitamento.
Mais do que isso, faz-se necessário conscientizar as
pessoas que não é todo o resíduo resultante das atividades
humanas em sociedade que será objeto de um processo
de reaproveitamento, cabendo a realização de estudos
prévios de viabilidade técnica e econômica com o
objetivo de se apurar o benefício ambiental que poderia
ser eventualmente alcançado ao final de cada mecanismo
implantado.
Artigo 3o – Para os efeitos desta Lei, entende-se por:
...
XV - rejeitos: resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas
as possibilidades de tratamento e recuperação por processos
tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis, não
apresentem outra possibilidade que não a disposição final
ambientalmente adequada;
De nada adiantaria gastar milhões e milhões de reais
na implantação de uma estrutura de coleta diferenciada,
ou de reciclagem de determinado resíduo, se o atual estado
de nosso desenvolvimento tecnológico e industrial ainda
não dispõe de nenhum método que seja economicamente
viável para reaproveitá-lo.
O dispêndio financeiro, o consumo energético e as
emissões de gases causadores do efeito estufa durante o
processo de reciclagem, aliados aos custos de obtenção da
matéria prima e de deposição do produto, ocasionariam
certamente um impacto ambiental muito maior do que
sua disposição final adequada no meio ambiente.
Esse exemplo poderia ser dado apenas como ilustração,
para uma série de resíduos urbanos em relação aos quais
as tecnologias até aqui desenvolvidas ainda são apenas
experimentais, incipientes ou não permitem um método
ecoeficiente e economicamente viável de reciclagem
em larga escala (fraldas descartáveis usadas, restos de
cerâmica, gomas de mascar, bitucas de cigarro, papéis
parafinados, entre muitos outros).
Em decorrência disso, revela-se de fundamental
importância a conscientização do próprio consumidor
acerca do papel preponderante que desempenha ao
promover o descarte adequado desses rejeitos, cooperando
e viabilizando que os serviços públicos de limpeza urbana
possam promover sua posterior coleta, transporte e
disposição final, prevenindo, desta forma, qualquer
possível impacto adverso ao meio ambiente.
2014 Maio | Justiça & Cidadania 51
Fato é que, em muitos casos, o impacto ambiental
visando a reciclagem ou reaproveitamento do resíduo
pós-consumo é maior do que aquele oriundo de eventual
destinação final ambientalmente adequada. Nesse sentido,
fica claro que a participação ativa e a conscientização da
população exercem um papel fundamental na busca de
soluções ambientais viáveis e profícuas.
Como se vê, para que o ente titular dos serviços
públicos de limpeza urbana e manejo de resíduos possa
dar cumprimento à obrigação prevista no artigo 36, VI,
da Lei no 12.305/10, a adoção de medidas socioeducativas
que sejam aptas a promover uma efetiva conscientização
da sociedade sobre a real importância que o correto
descarte desses rejeitos desempenha revela-se essencial
para o funcionamento do sistema de responsabilidade
compartilhada estatuído pela Política Nacional de
Resíduos Sólidos.
Artigo 3o – Para os efeitos desta Lei, entende-se por: ...
XVII – responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida
dos produtos: conjunto de atribuições individualizadas e
encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e
comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços
públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos,
para minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos
gerados, bem como para reduzir os impactos causados à
saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo
de vida dos produtos, nos termos desta Lei;
Recentemente, a municipalidade carioca deu um
grande passo nessa direção, divulgando as diretrizes do
Programa Lixo Zero, que visa conscientizar a população
sobre a importância de não jogar qualquer tipo de lixo nas
vias públicas, contribuindo para a melhoria da qualidade
dos serviços de limpeza urbana na cidade, bem como para
o regular funcionamento do sistema de responsabilidade
compartilhada previsto em nossa legislação.
Na esfera ambiental, tais medidas educacionais,
impõe-se repisar, possuem um aspecto valorativo ainda
mais profundo, eis que, além de servirem como um
eficiente difusor dos conceitos básicos de proteção ao
meio ambiente, também tem apresentado, em muitos
casos, resultados práticos mais fulgentes do que certos
mecanismos de controle implementados pelo Poder
Público.
Tão relevante quanto os assuntos acima abordados, a
necessidade da formação de uma consciência crítica que
consiga compreender, de forma precisa, os acertos e os
limites da atuação do poder público na esfera ambiental
em face da incidência dos princípios da prevenção,
do desenvolvimento sustentável, da ecoeficiência e da
proporcionalidade, também se aparenta premente.
52
Nesse horizonte, destaca-se o princípio da proporcio­
nalidade, pois caso não fique demonstrada uma adequação
razoável entre os motivos suscitados pelo poder público, a
viabilidade técnico-econômica da metodologia proposta
e, por fim, o benefício que tal medida poderia trazer de
modo efetivo ao meio ambiente, o mecanismo de controle
ambiental a ser implementado não se mostra adequado ao
nosso sistema legal.
Em sua ideia central, o princípio da proporcionalidade traz ínsito que a autoridade administrativa, em seu
poder discricionário, não deve limitar-se apenas ao aspecto formal da lei, impondo-se uma análise sistemática
de todas as variáveis envolvidas, devidamente integrada
pelos conceitos e valores que também compõe a ordem
jurídica e, por tal motivo, precisam ser ponderados em
conjunto, dentro de um critério de razoabilidade, para
encontrar a melhor solução para o interesse público vislumbrado.
Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello vemos
que “as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais
ao que seja realmente demandado para o cumprimento da
finalidade de interesse público a que estão atreladas. Segue-se que os atos cujos conteúdos ultrapassem o necessário
para alcançar o objetivo que justifica o uso da competência
ficam maculados de ilegitimidade, porquanto desbordam
do âmbito da competência, ou seja, superam os limites que
naqueles caso lhes corresponderiam”.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, não destoa, lecionando
que a atividade discricionária será ilegítima quando não
guardar “uma proporção adequada entre os meios que
emprega e o fim que a lei deseja alcançar, ou seja, que
se trate de uma medida desproporcionada, excessiva em
relação ao que se deseja alcançar”.
Ademais, faz-se necessário frisar que, ainda que se
proceda com uma análise fria da legislação pertinente,
diversos são os requisitos a serem atendidos para que se
estabeleça eventual sistema de coleta diferenciada para
um resíduo específico. O art. 33 da PNRS possui um rol
taxativo, sendo que eventual acréscimo – que deveria se
dar mediante lei federal – deve atender a uma séria de
exigências fundamentais.
Nesse contexto, resta evidente que a implementação de
qualquer programa de coleta diferenciada ou mecanismo
de controle ambiental que não tenha sido precedida dos
estudos técnicos necessários e não atente para uma visão
sistemática da ordem legislativa em vigor não se mostra
congruente com os princípios que servem de norte para a
Política Nacional de Resíduos Sólidos (artigo 6o da Lei no
12.305/10).
O presente artigo, por óbvio, não tem a intenção de
esgotar os debates sobre tão controvertida matéria, mas
Justiça & Cidadania | Maio 2014
apenas de ressaltar aos leitores que a formação de uma
consciência ambiental crítica e realmente esclarecida, hoje,
é uma questão que se impõe.
Não devemos mais nos concentrar, portanto, apenas
naqueles conceitos elementares, já há muito difundidos
e absorvidos por grande parte do povo brasileiro, mas
sim nos valores e princípios que servem de base para
nossa Política Nacional de Meio Ambiente; em uma
conscientização efetiva da sociedade acerca do papel
preponderante que desempenha no funcionamento
adequado dos serviços públicos de limpeza urbana e
manejo de resíduos; e, por fim, no desenvolvimento de um
senso crítico (artigo 5o, III da Lei no 9.795/99) sobre quais
são as medidas de controle ambiental e social propostas
que se revelam, de fato, razoáveis e atendem as finalidades
de nossa ordem constitucional.
O progresso do pensamento ecológico de nossa
sociedade é evidente e, qualquer retrocesso, hoje, seria
impensável.
Mesmo assim, ainda há muito a ser feito na busca
da formação de uma consciência ambiental realmente
esclarecida por parte da grande maioria da população
brasileira, o que, sem receio de dúvida, já desponta como o
nosso próximo desafio.
Em suma, podemos afirmar:
1) Há casos nos quais o impacto ambiental de eventual processo de reciclagem é mais nocivo do que
eventual destinação final considerada ambientalmente adequada;
2) O artigo 33 da PNRS possui um rol taxativo, sendo
que qualquer alteração deve observar os ditames
legais e ambientais aplicáveis;
3) Mesmo aos itens listados no referido artigo é
necessário um estudo prévio de viabilidade – não
só financeira, mas também ambiental;
4) Nem todo item pós-consumo pode ser considerado
resíduo. Existem itens que assumem a qualidade de
rejeito, não sendo passíveis de reciclagem no atual
estado da arte.
Base legislativa e referências bibliográficas
Política Nacional do Meio Ambiente (Lei no 6.938/81);
Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei no 12.305/10);
Política Nacional da Educação Ambiental (Lei no 9.795/99);
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei no 9.394/96);
Meirelles, Hely Lopes de. Direito Administrativo Brasileiro. Ed. Malheiros. 33a Edição (2007);
Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Editora Atlas.
24a Edição (2008).
Experiência e tradição
de mais de 80 anos
Rio de Janeiro
Brasília
[email protected]
Av. Rio Branco, 133 - 12º andar
SHS quadra 06, Centro Empresarial Brasil XXI
www.linsesilva.adv.br
Centro - RJ 20040-006
Bloco A, sala 301, Asa Sul - DF 70316-102
Tel.:2014
+55 (21)
2224-8726
/
Fax:
+55
(21)
2232-1012
Tel.:
+55
(61) 3321-1971 / Fax: +55 (61) 3051-3722
Maio | Justiça & Cidadania
53
[email protected]
[email protected]
D om Quixote, Giselle Souza
Fotos:Alternativa
Marco Zaoboni
Foto:
amunam
Da esq. para a dir.: Luís Adams, advogado-geral da União; Gilmar Mendes, ministro do STF; Felix Fischer, presidente do STJ; Eduardo
Cardozo, ministro da Justiça; Carlos Ayres Britto, ministro aposentado do STF; e Marcus Vinicius Furtado Coêlho, presidente da OAB nacional
e promover estes trabalhos do que em receber prêmio em
dinheiro”, afirmou Renault.
Apesar da expectativa com relação aos trabalhos
inscritos, principalmente nos dias que antecederem ao
fim do prazo, Renault destacou que mais importante que o
número de inscrições é a qualidade das práticas que forem
indicadas. “Em todos esses anos, o Innovare tem recebido
inscrições de práticas que realmente trazem melhorias
significativas para o funcionamento da Justiça”, ressaltou.
Tema livre
Assim como em edições anteriores, o tema desta
11a edição do Innovare será livre para as categorias
Juiz, Tribunal, Ministério Público, Defensoria Pública
e Advocacia. “Em várias outras edições, o tema foi livre
como forma de estimular o maior número de pessoas a
apresentarem suas inscrições”, afirmou Renault.
De acordo com ele, o tema livre não traz grandes implicações às escolhas da banca examinadora. “Os critérios
a serem adotados pelo corpo de jurados do Innovare são
os mesmos desde a primeira edição e estão definidos no
regulamento do Prêmio”, explicou.
Na categoria Especial, por sua vez, o tema será “Sistema
Penitenciário Justo e Eficaz”. Assim como na edição do ano
anterior, poderão concorrer a esse prêmio profissionais
graduados em qualquer área de conhecimento. Na 10a
edição, o Prêmio Especial foi concedido ao mestre em
Ciência da Computação William Guimarães, servidor do
Ministério Público de Goiás.
O profissional apresentou uma monografia em que
sugeria a criação de uma nuvem comunitária entre o
Judiciário e o Ministério Público para hospedar o Processo
Judicial Eletrônico, desenvolvido pelo Conselho Nacional
de Justiça e em fase de implantação nos tribunais do País.
A medida visa a aumentar a eficiência do sistema. Nessa
edição, porém, a prática inscrita para a categoria especial
já deverá estar em desenvolvimento.
Renault afirmou que a intenção da organização do
Innovare, ao eleger o sistema carcerário como tema,
é contribuir para a solução de alguns dos problemas
verificados atualmente. “Esse é um tema de inegável
atualidade. O sistema penitenciário brasileiro é algo que
envergonha a todos e precisa ser modificado para garantir
segurança à sociedade e tratamento digno aos presos.
Acreditamos que o Innovare pode contribuir, identificando
práticas já testadas na realidade dos presídios e que tenham
resultados positivos”, ressaltou.
É que o princípio da iniciativa é justamente reconhecer
práticas inspiradoras. “O Innovare procura privilegiar
práticas que, além de inovadoras e – se possível – inéditas,
Um brinde às boas práticas
Prêmio Innovare é lançado. Os interessados
têm até 31 de maio para se inscrever. A
premiação será realizada em dezembro
P
rofissionais que desenvolvem projetos voltados
para a promoção da cidadania e da justiça precisam se apressar. Termina no próximo dia 31
de maio o prazo de inscrições do Premio Innovare, um dos mais respeitados reconhecimentos das boas
práticas realizadas no âmbito do Poder Judiciário. Podem
se inscrever magistrados, advogados e membros do Ministério Público e da Defensoria Pública. Há também uma
categoria destinada a bacharéis em qualquer área de conhecimento.
54
Esta será a 11a edição da premiação, que será realizada
em dezembro, em data ainda a ser definida. Sérgio Renault,
presidente do Instituto Innovare, contou à Revista Justiça
& Cidadania ser grande a expectativa do Instituto com
relação ao prêmio. “Nossa expectativa é que tenhamos um
número significativo de práticas inscritas, como vimos
ocorrer em todos os outros anos”, disse.
Renault conta que, apesar do fim da premiação em
dinheiro no ano passado, em atendimento a uma resolução
do Conselho Nacional de Justiça, o Instituto Innovare
registrou a inscrição de 464 trabalhos. O número foi 12%
maior que na edição anterior.
“O Innovare está consolidado como um prêmio que
escolhe trabalhos que efetivamente representam opções de
modernização e aumento da eficiência da Justiça. Quem
se inscreve no Innovare está mais interessado em divulgar
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Lançamento da 11a edição do Prêmio Innovare, na sede do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília
2014 Maio | Justiça & Cidadania 55
Fotos: Marco Zaoboni
Eduardo Cardozo: “A transformação depende de ideias e é nesta perspectiva que o Prêmio Innovare ataca com brilho”
“Lançado em 2004, o prêmio já
recebeu inscrições de todas as
regiões do País e contou com
uma edição internacional, em
2010. Ao todo, 138 trabalhos
foram premiados. Segundo
uma pesquisa, mais de 90%
dessas iniciativas continuam
sendo desenvolvidas pelos
autores e/ou foram replicadas
em outras regiões”
56
tragam benefícios concretos para o cidadão. Outro critério
importante é a possibilidade de a prática ser replicada: isto
é, poder ser implantada em outra localidade”, frisou.
De acordo com Renault, o Innovare hoje é um projeto
consolidado e que goza de credibilidade e respeitabilidade
no meio jurídico do País. Daí a importância da iniciativa.
“As práticas premiadas se tornam conhecidas e valorizadas
e, na maior parte das vezes, acabam sendo replicadas. O
Innovare é, sem dúvida, um importante instrumento
de divulgação e disseminação de projetos que tornam o
judiciário mais eficiente, acessível e justo”, acrescentou.
Lançamento
Neste ano, o Prêmio Innovare foi lançado em duas
cerimônias, realizadas nos dias 2 e 8 de abril, respectivamente nas sedes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). O primeiro contou com a participação de diversas autoridades
do mundo jurídico, dentre as quais o ministro da Justiça,
José Eduardo Cardozo, que chamou a atenção para o tema
eleito para a categoria Prêmio Especial.
Cardozo disse que o sistema penitenciário brasileiro
precisa urgentemente de mudanças. “Temos muitas situações
de impunidade e de má execução da pena. A paralisia neste
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Gilmar Mendes destacou a importância do sistema penitenciário como tema do Prêmio Especial: “Esse é um campo com poucas ações efetivas”
setor se prende à falta de projetos. A transformação depende
de ideias e é nesta perspectiva que o Prêmio Innovare ataca
com brilho, ao permitir aos profissionais da área do direito
que as apresente para a classe jurídica. Ideias de inovação,
de modificação, que podem gerar energia capaz de superar
desavenças corporativas”, destacou na ocasião.
O presidente do Conselho Superior do Instituto
Innovare, o ministro aposentado do Supremo Tribunal
Federal (STF) Carlos Ayres Britto, acrescentou que o
cárcere brasileiro tem corroborado para o aumento da
criminalidade. “O sistema penitenciário brasileiro tem
sido um acelerador de criminalidade. E isso é inadmissível
e intolerável. Nas penitenciárias, os seres humanos se
desumanizam. Precisamos sair dessa inércia. E é nesse
sentido que o Innovare está vindo colaborar”, afirmou.
O ministro Gilmar Mendes, do STF, também destacou
a importância do tema escolhido. “Esse é um campo com
poucas ações efetivas. O quadro é preocupante. Nossa taxa
de reincidência hoje é umas piores do mundo, chega a
70%”, afirmou.
Inscrições
Os interessados em participar da 11a edição do Prêmio
Innovare devem se cadastrar no site www.premioinnovare.
com.br. No portal, estão disponíveis o regulamento da
premiação e o passo a passo para efetuar a inscrição.
A seleção dos trabalhos envolverá a visita de consultores
do Innovare para avaliar a eficácia, abrangência e a
capacidade de multiplicação da prática em outras áreas do
País. As impressões serão consolidadas em relatórios que
serão apreciados pela comissão julgadora. O resultado do
prêmio será divulgado em novembro.
Lançado em 2004, o prêmio já recebeu inscrições
de todas as regiões do País e contou com uma edição
internacional, em 2010. Ao todo, 138 trabalhos foram
premiados. Segundo uma pesquisa, mais de 90% dessas
iniciativas continuam sendo desenvolvidas pelos autores
e/ou foram replicadas em outras regiões.
O Prêmio Innovare é realizado pelo Instituto
Innovare, com o apoio da Secretaria de Reforma do
Judiciário, da Associação de Magistrados Brasileiros,
da Associação Nacional dos Membros do Ministério
Público, da Associação Nacional dos Defensores
Públicos, da Associação dos Juízes Federais do Brasil, do
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil,
da Associação Nacional dos Procuradores da República,
da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do
Trabalho e das Organizações Globo.
2014 Maio | Justiça & Cidadania 57
Invista
em Itaboraí
A capital dos bons negócios.
Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí
é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para
empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo
Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e
Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o
seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará
a 1 milhão de habitantes nesse período.
Itaboraí
Esses empreendimentos estão
atraindo empresas de diversos
segmentos, pois hoje com a nova
administração municipal, Itaboraí
mostra um cenário de progresso
e de modernização da cidade.
Seu território faz divisa com Tanguá
e Maricá, municípios que serão beneficiados
pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via
de escoamento que integrará uma importante região do
estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o
desenvolvimento integrado de toda essa região.
58
Conheça Itaboraí, a cidade que será a
segunda capital do estado e o melhor
lugar para sua empresa.
www.itaborai.rj.gov.br
Justiça & Cidadania | Maio 2014
2014 Maio | Justiça & Cidadania 59
Os novos “homens de preto”
Sylvio Capanema de Souza
Desembargador aposentado do TJRJ
Membro do Conselho Editorial
H
á muitos anos passados, as ruas das principais
cidades brasileiras conheceram um novo
e estranho personagem: homens trajando
um berrante uniforme vermelho, encimado
por um boné onde se lia “cobrador”, apresentavam-se
nas portas das casas, lojas e apartamentos, para receber
uma dívida não paga pelo morador e ali permaneciam
por horas, ou regressavam nos dias subsequentes, até que
lograssem receber o crédito, ou, pelo menos, até que todos
na vizinhança passassem a saber que ali vivia um devedor
inadimplente, com o qual era preciso ter cuidado.
É evidente que o “método de cobrança”, ainda que em
muitos casos se mostrasse eficiente, foi logo proibido e hoje
seria inimaginável, após o advento do CDC e do princípio
maior da preservação da dignidade humana.
Mas a recente pesquisa divulgada pelo CNJ, a revelar
que das 92 milhões de ações judiciais em curso no
Brasil, mais de 30 milhões se referem a execuções fiscais,
especialmente para cobrança de IPTU e taxas municipais,
nos leva a uma dolorosa conclusão.
Os antigos “homens de vermelho” hoje vestem o preto
das togas, convertidos os juízes em meros cobradores de
tributos, como os antigos e execrados coletores medievais;
e ficam à serviço de autoridades municipais, preguiçosas
e/ou incompetentes, que atiram sobre o Judiciário a tarefa
incômoda de cobrar seus créditos fiscais.
A judicialização absoluta da cobrança de impostos,
solução cômoda para a União, Estados e Municípios, é
hoje uma das principais responsáveis pelo desgaste da
imagem do Judiciário.
Retornando à análise dos números apocalípticos da
pesquisa do CNJ, constatamos que só na 12a Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital do Rio de Janeiro,
acumulam-se hoje 810 mil execuções fiscais.
Mas não é só! Há muito mais!
Cidades pequenas, do interior do Estado, ostentam
números inacreditáveis quando se trata de execuções
fiscais, ou ações em curso.
60
A bucólica São Pedro d’Aldeia, dormitando placidamente às margens da Lagoa de Araruama, suporta um estoque de 81 mil processos, e sua população não deve ser
muito maior do que isto.
No Estado de São Paulo, as execuções fiscais municipais
já atingiram o patamar de 1 milhão e 600 mil ações.
Quando exercíamos a 1a Vice Presidência do TJRJ, recebemos, ao final de um dia, a ligação de um procurador-geral
de um dos menores municípios fluminenses, desculpando-
Justiça & Cidadania | Maio 2014
-se e avisando que chegariam ao 2o grau, na semana seguinte, cerca de 19.500 recursos de apelação interpostos contra
sentenças que reconheceram a prescrição de igual número
de execuções de IPTU, por ele ajuizadas.
Assim procedendo, como Pôncio Pilatos a lavar as
suas mãos, os municípios se livram do incômodo acervo, e
ainda das sanções impostas pela Lei de Responsabilidade
Fiscal.
Não abrem mão de receitas, não anistiam, mas também
não cobram, com um mínimo de eficiência.
Certamente se dirá que os maiores culpados e vilões
são os contribuintes, que não cumprem suas obrigações
tributárias e que o brasileiro desenvolveu a cultura do não
pagamento de impostos.
Isto, em parte, é verdadeiro.
Mas a crescente inadimplência também não traduzirá
o desalento e a indignação dos contribuintes que sangram
suas economias para pagar o IPTU e as taxas e quase
nada recebem em troca, traduzido pela implantação com
melhoria de serviços básicos, capazes de mitigar as agruras
de suas sacrificadas vidas?
Não haverá, quem sabe, até mesmo uma inconsciente
resistência contra a corrupção endêmica que corrói todos
os poderes da República?
Será que, após os números do CNJ, continuaremos
inertes e silentes, avestruzes com as cabeças enterradas na
areia, para não ver o perigo que se aproxima?
Será preciso nascer um outro Cícero para clamar
contra Catilina: “até quando abusarás da nossa paciência”?
Quando crescem os estoques de impostos não pagos
e se aproxima a prescrição, que lhes acarretará sanções
legais e políticas, a maioria dos prefeitos convoca suas
procuradorias e comanda: chamem os homens de preto!
Pena é que os nossos homens de preto não persigam
apenas extraterrestres, o que seria bem mais fácil.
O resultado desta política é a transferência do caos
para os abarrotados cartórios e salas de audiência:
milhares e milhares de contribuintes e imóveis nem sequer
são encontrados, para que se proceda a citação; em muitas
das ações, a pretensão já está prescrita, mas tem que ser
proclamada por sentença; em outras tantas, o autor nem
sabe bem qual é o crédito exato, e o Judiciário que o calcule!
E o que é ainda mais perverso: quando o município
consegue, quase por milagre, receber o crédito, nem
se dá ao trabalho de comunicar ao juízo, que prossegue
inutilmente na cobrança.
Descritos os sintomas da insidiosa doença, perguntarão
os leitores, se é que tiverem chegado até aqui: O que, então,
sugere o autor, para curar tão grave patologia social?
É claro que nos estreitos limites de um artigo, para ser
publicado em edição especial e comemorativa, não haverá
espaço para prescrever e ministrar os remédios adequados.
Nossa intenção foi a de atuar como um agente provocador, até porque as possíveis soluções demandarão enorme
esforço de toda a sociedade, incluindo o Legislativo.
Mas não será preciso ser um gênio político para
perceber que é imperioso desjudicializar o mais possível
a cobrança dos créditos fiscais, alforriando os juízes de
seu jugo e criando mecanismos administrativos mais
eficientes de mediação e de cobrança, além de medidas
extrajudiciais, de coerção indireta, como a imediata
inscrição dos contribuintes inadimplentes nos cadastros
de proteção ao crédito, como SPC e Serasa.
Será preciso flexibilizar a Lei de Responsabilidade
Fiscal, para autorizar o arquivamento, nas prefeituras, de
cobrança de valores muitas vezes menores que o custo
operacional das ações judiciais.
Estas medidas nem sequer representam grandes novidades.
A portaria MF no 75, de 22 de março de 2013, que
dispõe sobre a inscrição de débitos, na Dívida Ativa da
União, determina “o não ajuizamento de execuções fiscais
de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado
seja igual ou inferior a R$ 20.000,00”.
Também se autoriza o cancelamento de débitos
inscritos quando o valor remanescente é igual ou inferior
a R$ 100,00.
A Lei no 10.512/2002, que dispõe sobre o Cadastro
Informativo de Créditos não quitados, em seu artigo 20,
também determina o arquivamento, ainda que sem baixa
na distribuição, dos autos das execuções fiscais de débitos
inferiores a R$ 10.000,00.
No âmbito estadual, louve-se a corajosa iniciativa
do Pará, que, pela Lei no 7.772/13, dispensa a cobrança
judicial de créditos tributários iguais ou inferiores a 2000
UPF/PA.
Outra sugestão fácil de se implantar, nos municípios, é
a criação de câmaras especiais de mediação, convocandose os contribuintes inadimplentes para que a elas
compareçam para expor sua situação, visando a adoção
de soluções factíveis para o pagamento, inclusive com o
oferecimento de outras garantias, pessoais ou reais.
Estas câmaras poderiam ser compostas por um procurador do município, um advogado, indicado pela OAB
local, um defensor público, se houver, e um representante
da comunidade, a ser escolhido.
Finalmente, poder-se-ão editar leis autorizando, no
âmbito municipal, o não ajuizamento de execuções fiscais
cujo crédito seja igual ou inferior a um valor a ser fixado,
de acordo com as peculiaridades de cada município.
Mas ainda há muito a se fazer, bastando a vontade
política de romper a preguiça que nos embala.
E deixemos, finalmente, que nossos sacrificados
“homens de preto” possam se dedicar a tarefas bem mais
relevantes, para assegurar a paz social.
2014 Maio | Justiça & Cidadania 61
A suspensão de segurança
como instrumento agressor
dos tratados internacionais
Antônio Souza Prudente
a conjuntura atual de uma globalização
econômica cada vez mais insensível em seus
projetos de acumulação de riqueza material em
poder dos mais fortes e dominadores, numa
ação gananciosa e aniquiladora dos valores fundamentais
da pessoa humana e dos bens da natureza, há de se exigir,
por imperativos de ordem pública, na instrumentalidade do
processo civil, atualizado aos reclamos dos novos tempos,
uma ação diligente e corajosa de um Judiciário republicano
e independente, na defesa de uma ordem jurídica justa para
todos, no exercício de uma tutela jurisdicional oportuna
e efetiva, visivelmente comprometida com a defesa dos
direitos e garantias tutelados pela Constituição da República
Federativa do Brasil, na dimensão dos tratados e convenções
internacionais.
Com a edição da Medida Provisória no 2.180-35, de 24
de agosto de 2001, revigorando os cadáveres normativos do
regime de exceção, para assegurar a política governamental
das privatizações de empresas estatais, e agora também, o
programa energético do Governo Federal, devastador das
florestas brasileiras e, sobretudo, do bioma amazônico, bem
assim, de seu patrimônio sócio-cultural, instalou-se no
ordenamento processual do Brasil o terror jurídico-ditatorial
da suspensão de segurança, no perfil arrogante da ideologia
capitalista neoliberal, em permanente agressão ao princípio
da proibição do retrocesso no Estado Democrático de Direito,
com respaldo, na contraditória Emenda Constitucional no 32,
de 2001, publicada no Diário Oficial de 12 de setembro 2001,
62
que, embora visando conter o abuso na edição dessas medidas
provisórias, com proibição expressa para tratar de matéria de
direito processual civil, dentre outras ali elencadas, permitiu
expressamente que as medidas provisórias editadas em data
anterior à publicação dessa Emenda continuassem em vigor
até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente
ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional (art. 2o
da EC no 32/2001).
A infeliz Medida Provisória no 2.180-35, de 24 de
agosto de 2001, corrompeu visceralmente o ordenamento
jurídico-processual brasileiro, com a blindagem protetiva
de caráter permanente, que obtivera logo após sua abusiva
edição, ante o comando contraditório e inconstitucional do
prefalado art. 2o da Emenda Constitucional no 32, de 11 de
setembro de 2001, em manifesta agressão à cláusula pétrea
de proteção dos direitos e garantias individuais, coletivos e
difusos, constitucionalmente protegidos (CF, art. 60, § 4o, IV
c/c os §§ 1o e 2o do art. 5o da mesma Carta Política Federal),
afrontando expressamente as garantias fundamentais do
pleno acesso à justiça (CF, art. 5o, XXXV), da segurança
jurídica, que resulta da proteção constitucional do ato
jurídico sentencial perfeito e da coisa julgada formal (CF,
art. 5o, XXXVI), da proibição expressa do retrocesso ao
juízo de exceção (CF, art. 5o, XXXVII), do devido processo
legal (CF, art. 5o, LIV), das tutelas de segurança e de
urgência dos mandados de segurança individual e coletivo,
nos marcos regulatórios de suas hipóteses de incidência
constitucional (CF, art. 5o, LXIX e LXX, a e b), da razoável
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Foto: Arquivo pessoal
N
Desembargador Federal do TRF da 1ª Região
Membro do Conselho Editorial
duração do processo e dos meios que garantam a celeridade
de sua tramitação (CF, art. 5o, LXXVIII) e da eficácia
plena e imediata dos direitos e garantias fundamentais,
expressos em nossa Carta Magna e de outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte (CF, art. 5o, §§ 1o e 2o).
O rol de agressões ao texto constitucional republicano,
que resulta do terror jurídico-ditatorial da suspensão de
segurança no contexto normativo da malsinada Medida
Provisória no 2.180-35/2001 em manifesta afronta ao
princípio da proibição do retrocesso no Estado Democrático
de Direito, expressa-se no aditamento abusivo ao texto
historicamente agressor da Lei no 8.437, de 30 de junho
de 1992, que passou a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 4o (...) – § 3o – Do despacho que conceder ou negar a
suspensão caberá agravo, no prazo de cinco dias, que será
levado a julgamento na sessão seguinte à sua interposição. §
4o – Se do julgamento do agravo de que trata o § 3o resultar
a manutenção ou o restabelecimento da decisão que se
pretende suspender, caberá novo pedido de suspensão ao
presidente do tribunal competente para conhecer de eventual
recurso especial ou extraordinário. § 5o – É cabível também
o pedido de suspensão a que se refere o § 4o, quando negado
provimento a agravo de instrumento interposto contra a
liminar a que se refere este artigo. § 6o – A interposição do
agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações
movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica
nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão a que
se refere este artigo. § 7o – O presidente do tribunal poderá
conferir ao pedido efeito suspensivo liminar, se constatar,
em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a
urgência na concessão da medida. § 8o – As liminares cujo
objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única
decisão, podendo o presidente do tribunal estender os
efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante
simples aditamento do pedido original. § 9o – A suspensão
deferida pelo presidente do tribunal vigorará até o trânsito
em julgado da decisão de mérito na ação principal.”
De ver-se, assim, que o texto normativo em referência
estrangula, com requintes de crueldade, a garantia
constitucional do devido processo legal e da segurança
jurídica, em tons de violência autoritária, próprios dos
regimes ditatoriais, anulando-se o juízo natural das
instâncias judiciais singulares e colegiadas (CPC, art.
512)1, com o propósito indisfarçável de enfraquecer e
intimidar os magistrados do Brasil, ao restabelecer o
império do juízo de exceção na suspensão de segurança,
no âmbito monocrático das decisões presidenciais de
nossos tribunais, que só tardiamente se manifestam em
sessão de julgamento colegiado sobres essas suspensões,
quando já se tornam irreversíveis e com danos irreparáveis
ao interesse público, ante situações de fato consolidadas
pelo decurso do tempo no processo. Aniquila, ainda, a
segurança jurídica que resulta das decisões colegiadas dos
tribunais de apelação, que não mantenham essas odiosas
suspensões, anulando-se o fenômeno preclusivo das
referidas decisões, a permitir, qual “fênix malignamente
renascida”, a reedição da mesma pretensão de segurança
perante a presidência dos Tribunais Superiores (STJ e STF).
Busca, também, nesse propósito, anular, por ato político
ditatorial da suspensão de segurança, o exercício da
jurisdição colegiada dos tribunais de apelação no Brasil e a
eficácia imediata de suas decisões, a permitir a instauração
do pleito de suspensão da decisão judicial impugnada,
quando já confirmada ou a se confirmar pelo juízo natural
do órgão jurisdicional competente do próprio tribunal
(CPC, art. 512), contrariando, assim, sábia orientação
jurisprudencial do colendo Superior Tribunal de Justiça,
no sentido de que “em havendo superposição de controle
judicial, um político (suspensão de tutela pelo presidente
do tribunal) e outro jurídico (agravo de instrumento) há
prevalência da decisão judicial” (REsp. 47469/RJ. Segunda
Turma, julgado em 20/03/2003. DJ de 12/05/2003, p. 297),
2014 Maio | Justiça & Cidadania 63
a não se permitir qualquer relação de prejudicialidade do
agravo de instrumento, em virtude de decisão proferida
pela presidência do tribunal, em sede de suspensão de
segurança, posto que se afigura juridicamente impossível o
ajuizamento de pedido de suspensão de segurança perante
a presidência do tribunal de apelação, para cassar os efeitos
da decisão judicial de qualquer dos órgãos fracionários do
próprio tribunal, a negar vigência ao postulado normativo
do mencionado artigo 512 do CPC.
Nessa visão hermenêutica, o Supremo Tribunal Federal já
decidiu que “as contracautelas extraordinárias estão disponíveis apenas ao Poder Público, que não as pode utilizar como
sucedâneo recursal nem como imunização à observância de
decisões judiciais proferidas segundo o devido processo judicial regular” (SL 712/MG –DJ-e de 28/08/2013).
Contrariando essa inteligência jurisprudencial da
Suprema Corte, a referida Medida Provisória no 2.18035/2001 atinge o grau máximo desse terror jurídicoditatorial na suspensão de segurança, quando determina
que “a suspensão deferida pelo presidente do tribunal
vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na
ação principal”, nulificando, assim, em sua aplicação literal,
a eficácia imediata das decisões judiciais impugnadas e
dos direitos e garantias fundamentais por elas tutelados,
abrindo, dessa forma, espaço odioso às intermináveis
protelações recursais do poder público e de seus agentes
64
Foto: Depositphotos
“A Carta Política Federal, que preordena
a República Federativa do Brasil em
suas relações internacionais a respeitar,
dentre outros relevantes princípios, o
da prevalência dos direitos humanos...
passou a exigir um novo perfil de juiz,
com postura republicana, legitimado
pela soberania popular no grau de sua
coragem e indeclinável independência,
na determinação das tutelas de urgência,
em defesa dos direitos humanos
fundamentais e do desenvolvimento
sustentável, como garantia maior das
presentes e futuras gerações”
sem escrúpulos, na busca irrefreada da consolidação de
situações de fato pelo decurso do tempo no curso do
processo, sobretudo naqueles feitos judiciais que envolvem
interesses coletivos e difusos, contrariados e agredidos por
mal intencionadas políticas governamentais de natureza
fiscal-tributária, econômica e ambiental.
Observe-se, por último, que a Lei no 12.016, de 7 de agosto
de 2009, ao disciplinar o mandado de segurança individual
e coletivo, desgarrou-se de seu perfil constitucional, pois
fora contaminada, também, pelo vírus letal da suspensão
de segurança, nos parâmetros agressivos da aludida medida
provisória no 2.180-35/2001, como se vê nas letras do art. 15
e respectivos §§ 1o a 5o do referido texto legal.
A todo modo, não há como se admitir a inteligência
adotada, no âmbito de suspensão de segurança, pela
presidência do tribunal de apelação, pretendendo que sua
decisão política deva prevalecer até o trânsito em julgado
da decisão final, no processo jurisdicional, sem observância
dos marcos regulatórios da competência funcional absoluta,
posto que, se assim o for, estaria a presidência do tribunal
de apelação já cassando, por antecipação, a eficácia de
possíveis decisões jurisdicionais dos Tribunais Superiores,
confirmatórias dessa decisão judicial, agredida pelo ato
abusivo da contracautela de suspensão, em manifesta
agressão à competência funcional e absoluta do Superior
Tribunal de Justiça (guardião maior do direito federal) e do
Justiça & Cidadania | Maio 2014
próprio Supremo Tribunal Federal (máximo guardião da
Carta Política Federal).
Não se pode olvidar, nesse contexto, que, uma vez
submetida a decisão do juízo singular, quer em nível de
decisão liminar ou de mérito, ao crivo jurisdicional da corte
revisora do tribunal, a referida decisão é integralmente
substituída, no âmbito do recurso processual, pela decisão
colegiada do órgão fracionário competente, nos termos
do art. 512 do CPC, a não se permitir a pretensiosa ultraatividade de uma decisão monocrática de natureza política
da presidência do tribunal, no sentido de esvaziar a eficácia
plena dessa decisão colegiada de cunho jurisdicional,
submetida, apenas, ao controle revisor de possíveis decisões
judiciais a serem tomadas pelas cortes superiores.
O entendimento contrário da presidência dos tribunais
de apelação, em grau de suspensão de segurança, agride,
frontalmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948,
que, assim, dispõe: “Toda pessoa tem o direito de receber dos
tribunais nacionais competentes recurso efetivo para os atos
que violem os direitos fundamentais, que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei” (Artigo VIII).
E nesse contexto, o Programa Nacional de Direitos
Humanos – PNDH-3, aprovado aqui no Brasil pelo Decreto
no 7.037, de 21 de dezembro de 2009, estabelece em sua
Diretriz 6 “promover e proteger os direitos ambientais como
Direitos Humanos, incluindo as gerações futuras como
sujeitos de direitos”.
Nessa linha de compreensão, a suspensão de segurança,
como vem sendo praticada abusivamente aqui no Brasil,
também, agride o “Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos”, aprovado através do Decreto no 592, de 6 de julho
de 1992, e que, no mesmo tom, determina: “Os Estados partes comprometem-se a: a) garantir que toda pessoa, cujos
direitos e liberdades reconhecidos no presente Pacto hajam
sido violados, possa dispor de um recurso efetivo, mesmo
que a violência tenha sido perpetuada por pessoas que agiam
no exercício de funções oficiais; b) garantir que toda pessoa
que interpuser tal recurso terá seu direito determinado
pela competente autoridade judicial, administrativa ou
legislativa ou por qualquer outra autoridade competente
prevista no ordenamento jurídico do Estado em questão e a
desenvolver as possibilidades de recurso judicial; c) garantir
o cumprimento, pelas autoridades competentes, de qualquer
decisão que julgar procedente tal recurso” (art. 2o, § 3o, 1,2,3).
(...) – “Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos
direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes
em qualquer Estado – parte no presente Pacto em virtude de
leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto
de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça
em menor grau” (artigo 5o, § 2o).
O instrumento da suspensão de segurança, na dimensão
abusiva da Medida Provisória no 2.180-35, de 24 de agosto
de 2001 e da Lei no 12.016, de 7 de agosto de 2009, agride
ainda a Cláusula de Proteção Judicial da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da
Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, promulgada no
Brasil pelo Decreto no 678, de 6 de novembro de 1992, nos
termos seguintes: Artigo 25 – 1. Toda pessoa tem direito a
um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso
efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a
proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais
reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente
Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por
pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções
oficiais. 2. Os Estados-partes comprometem-se: a) a
assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema
legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que
interpuser tal recurso; b) a desenvolver as possibilidades
de recurso judicial; e c) a assegurar o cumprimento, pelas
autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha
considerado procedente o recurso”.
Há de se considerar, finalmente, que a proliferação
abusiva dos incidentes procedimentais de suspensão de
segurança, como instrumento fóssil dos tempos do regime de
exceção, a cassar, reiteradamente, as oportunas e precautivas
decisões tomadas em varas ambientais, neste país, em
defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado para
as presentes e futuras gerações, atenta contra os princípios
regentes da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei no
6.938/1981), prestigiada internacionalmente pelo Projeto
Redd Plus (Protocolo de Kyoto, COPs 15 e 16 – Copenhague
e Cancún) e a garantia fundamental do progresso ecológico
e do desenvolvimento sustentável, agredindo, ainda, os
acordos internacionais, de que o Brasil é signatário, num
esforço mundialmente concentrado para o combate às
causas determinantes do desequilíbrio climático e do
processo crescente e ameaçador da vida planetária pelo
fenômeno trágico do aquecimento global.
Nessa linha de práticas abusivas da suspensão de segurança nos tribunais do Brasil, restam agredidos, também,
os princípios dirigentes da Declaração do Rio sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e as normas da
Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre povos indígenas e tribais, promulgada
pelo Brasil, através do Decreto no 5.051, de 19 de abril de
2004, sobretudo, quando determina que “os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias
prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças,
instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que
ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na
medida do possível, o seu próprio desenvolvimento eco-
2014 Maio | Justiça & Cidadania 65
nômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão
5o, §§ 1o, 2o e 3o), sob a orientação autorizada de Gomes
participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos
Canotilho e Jorge Miranda, nestas letras: “Aplicação direta
e programas de desenvolvimento nacional e regional susnão significa apenas que os direitos, liberdades e garantias
cetíveis de afetá-los diretamente” (Artigo 7o, 1). (...) “os
se aplicam independentemente da intervenção legislativa.
governos deverão adotar medidas em cooperação com os
Significa também que eles valem directamente contra a lei,
povos interessados para proteger e preservar o meio amquando esta estabelece restrições em desconformidade com
biente dos territórios que eles habitam” (Artigo 7o, 4); (...)
a Constituição” (Canotilho – Direito Constitucional, p.186).
“os direitos dos povos interessados aos recursos naturais
E “o sentido essencial da norma não pode, pois, deixar de ser
existentes nas suas terras deverão ser especialmente proeste: a) salientar o caráter preceptivo, e não programático,
tegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a
das normas sobre direitos, liberdades e garantias; b) afirmar
participarem da utilização, administração e conservação
que estes direitos se fundam na Constituição e não na lei;
dos recursos mencionados. Em caso de pertencer ao Esc) sublinhar (na expressão bem conhecida da doutrina
tado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subalemã) que não são os direitos fundamentais que se movem
solo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na
no âmbito da lei, mas a lei que deve mover-se no âmbito
terras, os governos deverão
dos direitos fundamentais”
estabelecer ou manter proce(Jorge Miranda – Manual de
“O entendimento contrário da presidência
dimentos com vistas a conDireito Constitucional, v.4, p.
sultar os povos interessados,
282-283).
dos tribunais de apelação, em grau
a fim de se determinar se os
Afigura-se, assim, inade suspensão de segurança, agride,
interesses desses povos seceitável a postura incoerente
frontalmente, a Declaração Universal dos
riam prejudicados, e em que
e abusivamente autoritária
medida, antes de se emprede presidentes de tribunais
Direitos Humanos... que, assim, dispõe:
ender ou autorizar qualquer
que cassam, reiteradamenToda pessoa tem o direito de receber dos
programa de prospecção
te, em nível de suspensão de
ou exploração dos recursos
segurança, com argumentos
tribunais nacionais competentes recurso
existentes nas suas terras. Os
surrados e sem razoável base
efetivo para os atos que violem os direitos
povos interessados deverão
jurídica, contrariando a sufundamentais, que lhe sejam reconhecidos
premacia do interesse públiparticipar sempre que for
co ambiental, as bem fundapossível dos benefícios que
pela Constituição ou pela lei”
mentadas decisões de juízes
essas atividades produzam, e
lotados e desestimulados nas
receber indenização equitativaras ambientais, por aquelas mesmas contraditórias preva por qualquer dano que possam sofrer como resultado
sidências, pois a Carta Política Federal, que preordena a
dessas atividades” (Artigo 15, 1 e 2), em cumprimento
República Federativa do Brasil em suas relações internaao princípio 22 da Conferência das Nações Unidas sobre
cionais a respeitar, dentre outros relevantes princípios, o
Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro, em junho de
da prevalência dos direitos humanos (CF, art. 4o, II), eri1992, com a declaração de que “as populações indígenas
e suas comunidades, bem como outras comunidades logindo os tratados e convenções internacionais sobre direicais, têm papel fundamental na gestão do meio ambiente
tos humanos a nível constitucional (CF, art. 5o, § 3o) e dese no desenvolvimento, em virtude de seus conhecimentos
tacou o meio ambiente, em sua norma – matriz (CF, art.
e práticas tradicionais. Os Estados devem reconhecer e
225, caput), como direito humano difuso e fundamental,
apoiar de forma apropriada a identidade, cultura e interesessencial à sadia qualidade de vida de todos os seres vivos,
ses dessas populações e comunidades, bem como habilitápassou a exigir um novo perfil de juiz, com postura repu-las a participar efetivamente da promoção do desenvolviblicana, legitimado pela soberania popular, no grau de sua
mento sustentável.”
coragem e indeclinável independência, na determinação
Há de se observar, na dimensão do princípio da
das tutelas de urgência, em defesa dos direitos humanos
prevalência dos direitos humanos, que a República
fundamentais e do desenvolvimento sustentável, como gaFederativa do Brasil deve assegurar, no território nacional
rantia maior das presentes e futuras gerações.
e nas suas relações internacionais, a aplicação imediata das
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais,
Nota
expressos em sua Carta Política Federal e nos Tratados
e Convenções internacionais sobre Direitos Humanos,
1
CPC, art. 512: O julgamento proferido pelo Tribunal substituirá a
equivalentes às emendas constitucionais (CF, art. 4o, II e
sentença ou a decisão recorrida no que tiver sido objeto de recurso.
66
Justiça & Cidadania | Maio 2014
2014 Maio | Justiça & Cidadania 67
Foto: Mário Oliveira
A liberdade de imprensa
na visão do STF
Júlio Antonio Lopes
É
Membro da Academia Amazonense de Letras
Diretor Jurídico do jornal A Crítica, de Manaus
Membro do Conselho Editorial
fato: muita gente ainda não se debruçou sobre
a decisão proferida pelo STF nos autos da
ADPF no 130/09, que retirou do ordenamento
jurídico pátrio a Lei no 5.250/67. Digo
isto porque, na prática, na condição de advogado de
jornalistas e de órgãos de comunicação, percebo que os
julgadores, em bom número, ainda definem algumas
questões, sobretudo as de danos morais, com base em
conceitos doutrinários ou jurisprudenciais superados
pelo entendimento da Corte Maior do País. E o que é
mais intrigante, partindo da premissa falsa de que os
direitos de expressão do pensamento e de comunicação,
quando em confronto com os direitos à honra, imagem,
intimidade e privacidade, a estes devem ceder.
O discurso contido em algumas sentenças e acórdãos
tenta disfarçar esta, digamos assim, inclinação, mas a
verdade é que, mesmo invocando a técnica de hermenêutica
apropriada, a ponderação, acabam por identificar abusos e
fantasmas em quase tudo o que a imprensa veicula, como se,
em seu seio, os profissionais estivessem sempre engendrando
fórmulas para denegrir o protagonista da informação.
A Lei no 5.250/67 era um dos mecanismos daquilo que
se convencionou chamar de “entulho autoritário”, eis que
concebida em plena a ditadura militar instalada no Brasil
a partir de 1964 para servir, mesmo, de elemento de tutela
e de coerção à liberdade de expressão do pensamento e de
68
“Não há dúvidas de que o
constituinte de 1988, refletindo
os anseios da sociedade, quis
devolver-lhe, de forma plena,
aquilo que lhe fora roubado: a
liberdade de pensar, de expressar
seu pensamento, de comunicar-se,
de informar-se e de ser informado,
enfim, por qualquer meio ou
veículo, sem receio de censuras ou
quaisquer outras punições”
comunicação. Ela atendia aos interesses e ao contexto de
um regime de força, sendo incrível que sobrevivesse por
42 longos anos, 21 anos ainda depois do retorno do País
ao Estado Democrático de Direito, com a promulgação da
Constituição Cidadã!
Não há dúvidas, portanto, de que o constituinte de 1988,
refletindo os anseios da sociedade, quis devolver-lhe, de
forma plena, aquilo que lhe fora roubado: a liberdade de
pensar, de expressar seu pensamento, de comunicar-se, de
informar-se e de ser informado, enfim, por qualquer meio
ou veículo, sem receio de censuras ou quaisquer outras
punições. Daí porque a Constituição de 1988 tornou-se a
portadora de um grande bloco normativo, inserido tanto
no capítulo dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivas
quanto no capítulo da Comunicação Social, a revelar-lhe,
com eloquência, a primazia em nosso ordenamento jurídico.
O STF, nos autos da ADPF 130/09, deu a última palavra
a respeito do assunto, fixando os parâmetros a serem
observados, a partir de então, dentre os quais destaco:
a) não é possível haver censura prévia aos meios de
comunicação. Qualquer controle judicial se deve
dar a posteriori e, em apenas uma hipótese, pode-se
restringir o noticiário: quando decretado o Estado
de Sítio;
b) há um bloqueio normativo para a existência de
uma “nova lei de imprensa”, que venha a cuidar
Justiça & Cidadania | Maio 2014
de suas coordenadas de tempo e de conteúdo. De
igual sorte, não pode haver legislação criminal
diferenciada para jornalistas;
c) os veículos de comunicação se devem autorregular,
vedado o disciplinamento através de órgãos estatais.
“É a imprensa que controla o Estado; não o Estado
que controla a imprensa”, diz em inspirado trecho,
o relator Ayres Britto;
d) no caso concreto, deve o intérprete, em primeiro
lugar, garantir o gozo dos sobredireitos de expressão
do pensamento, de informação e de comunicação,
para, somente depois, a ocorrência de eventuais
abusos aos demais direitos da personalidade
(honra, imagem, privacidade e intimidade). A isto
se chama calibração cronológica de princípios;
e) o homem público está sob permanente vigília dos
cidadãos e, em especial, da imprensa. A proteção
de sua honra deve ser mais débil que a do homem
comum. Isto se dá porque o servidor público trata
de assuntos e interesses da coletividade, a quem
precisa prestar contas. Está, portanto, sujeito às
críticas mais acerbas e duras possíveis. É o que o
STF chama de “valor social da visibilidade”;
f) a imprensa não é a Casa da Moeda. O eventual
quantum indenizatório deve ser morigerado;
não pode ser motivo de enriquecimento ilícito,
sem causa. Deve atender, além dos princípios da
proporcionalidade e da razoabilidade, à necessária
cláusula de modicidade, não podendo ter qualquer
influência na definição de valores o fato de o
suposto dano ter ocorrido por meio da imprensa;
g) a expressão do pensamento e a informação veiculados por meio da rede mundial de computadores, por
meio digital, enfim, gozam das mesmas prerrogativas constitucionais deferidas à imprensa pelo texto constitucional de 1988. E, em época de eleições,
quando mais se robustece a democracia, nas palavras
do STF, é que a imprensa deve ter maior liberdade de
atuação, para que o eleitor possa conhecer em profundidade àqueles que pretendem representá-los;
h) a decisão tem efeito erga omnes e imediato. Em
seu eventual descumprimento, cabe reclamação à
corte. Não há vácuo. Aplica-se a legislação federal
existente.
Falta, agora, que juízes, tribunais e operadores do
direito em geral revisitem com maior frequência esta
decisão, a fim de que possam “trabalhar” as questões que
lhes chegam às mãos, de maneira alinhada, na medida dos
fatos sob exame, ao que pacificou a nossa Suprema Corte,
para quem, não tenho dúvidas, os direitos de expressão do
pensamento, da informação e da comunicação possuem
um caráter preferencial.
2014 Maio | Justiça & Cidadania 69
Sucessão trabalhista
José Geraldo da Fonseca
Desembargador Federal do TRT da 1a Região
Membro do Conselho Editorial
O que o Direito entende por “ponto”
“Ponto”, para o direito comercial, é o lugar onde
o empresário estabelece a sua empresa. Empresa é a
atividade do empresário (CLT, art.2o). Empregado é
toda pessoa física que, pessoalmente, presta serviço
subordinado e oneroso ao empregador (CLT, art.3o). Se
o empregador é a empresa, e empresa é a atividade do
empresário, o empregado presta serviços a essa atividade,
e não ao empresário mesmo. É só por isso que os arts.
10 e 448 da CLT dizem que a modificação na estrutura
70
Foto: Arquivo pessoal
Q
uem milita na Justiça do Trabalho conhece
este calvário: o empregado é dispensado e
nada recebe da empresa. Move ação, ganha,
mas na hora de receber, o antigo patrão já não
está mais no endereço onde foi citado. Feita a diligência,
o oficial de justiça certifica que no lugar da empresa A está
a empresa B. Ouvido, o empregado diz que a empresa B
é sucessora da empresa A, e o juiz do trabalho autoriza
a execução contra os bens da empresa B apenas porque
está instalada no lugar onde antes estava a empresa A.
A empresa B embarga a execução dizendo que nunca
contratou aquele empregado nem tem nenhuma ligação
com a empresa A. O CNPJ é outro, o objeto social é outro,
os sócios são outros. O juiz despreza suas razões e diz
que a empresa B é sucessora de A porque está no mesmo
endereço.
Quando decidem assim, os juízes demonizam o ponto,
isto é, espargem sobre o ponto comercial uma espécie de
maldição, como se todos os futuros empresários que ali se
estabelecerem devessem pagar todos os débitos deixados
pelos antigos empresários, ainda que não haja entre eles
nenhuma ligação jurídica ou contratual nem tenham
em tempo algum contratado os empregados que agora
reclamam seus direitos.
jurídica da empresa não afeta o contrato de trabalho nem
os direitos dos empregados.
Quando há sucessão no Direito do Trabalho
Para que haja sucessão no Direito do Trabalho dois
requisitos são imprescindíveis: a atividade de uma
empresa tem de passar das mãos de um para as de outro
empresário, e os contratos de trabalho dos empregados da
antiga empresa têm de continuar com a nova empresa, sem
qualquer interrupção.
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Quando não há sucessão no Direito do Trabalho
Dissemos que, para haver sucessão, é preciso que a
atividade de uma empresa passe para outra empresa e que
os contratos de trabalho da antiga empresa sejam mantidos
pela nova. Se a atividade de uma empresa é transferida
para outra, no todo ou em parte, mas os empregados da
empresa antiga não continuam trabalhando para a nova,
não há sucessão. Esses empregados têm de buscar seus
créditos junto à antiga empresa ou junto a seus sócios.
Por outro lado, se a atividade da antiga empresa não foi
transferida para a nova empresa, pouco importa se os
empregados da antiga empresa continuaram ou não
trabalhando para a nova. Não haverá sucessão, mas novos
contratos de trabalho celebrados com o novo empregador.
novo empresário, embora a atividade da empresa (motel)
tenha sido a mesma. Esses empregados nada poderão
reclamar dos sócios do novo motel, mas apenas dos
sócios do motel antigo.
Nesse exemplo hipotético, somente haverá sucessão
trabalhista se, no mesmo ponto comercial, um motel (atividade) for sucedido por outro motel, e se os empregados
do antigo motel tiverem passado a trabalhar para o novo
motel sem qualquer interrupção.
Se a atividade da nova empresa é outra ou se os
empregados da antiga empresa não passaram a trabalhar
para a nova, pouco faz quem ocupe o ponto ou aproveite o
maquinário e a clientela. Não haverá sucessão. A maioria
dos juízes do trabalho, contudo, não pensa assim.
Pondo os pingos nos “is”
Um exemplo talvez ajude. Dissemos que ponto é
o lugar onde o empresário se estabelece para exercer
sua atividade econômica. Imaginem que, nesse ponto,
o empresário tenha se estabelecido com um motel. A
atividade empresária é um motel. Depois de certo tempo,
esse empresário decide deixar o ponto e vende o prédio
para um pastor evangélico, que monta ali uma igreja
para professar a sua fé. A atividade empresária desse
novo negócio é uma igreja. Nunca haverá ali sucessão
trabalhista entre a antiga empresa (motel) e a nova (igreja)
porque a empresa(isto é, a atividade do empresário) de
um (o motel) é inteiramente distinta da outra (a igreja).
Onde antes havia um motel há agora uma igreja. Duas
atividades inteiramente distintas, portanto. Mesmo que os
empregados do antigo motel tenham passado a trabalhar
para a igreja não haverá sucessão porque a atividade não é
a mesma. Os empregados do antigo motel devem reclamar
seus direitos dos sócios do motel e não dos pastores
evangélicos. Para os empregados do antigo motel, que
passarem a trabalhar na igreja como empregados, haverá
um novo contrato de trabalho porque os antigos contratos
de trabalho se encerraram com o fechamento do motel.
Continuemos no exemplo. Digamos que os donos
daquele antigo motel tenham vendido o ponto para uns
sujeitos e esses novos empresários tenham decidido
aproveitar a estrutura do negócio e o fundo de comércio
e montar ali um outro motel. Nesse caso, a atividade dos
antigos empresários (motel) continuou a mesma. Se os
empregados do antigo motel continuarem trabalhando
para o novo motel haverá sucessão porque a atividade
(motel) passou de um para outro empresário e os
contratos de trabalho dos empregados do antigo motel
não foram interrompidos com o novo motel. Mas, se os
empregados do antigo motel não passarem a trabalhar
para o novo motel não haverá sucessão trabalhista
porque os contratos de trabalho não continuaram com o
Cortando na carne
O juiz do trabalho somente vai se dar conta da atecnia
da sua decisão quando se puser no lugar do empresário.
Do ponto de vista ético, juiz não pode ser dono de
cursinho, mas o art. 36, I, da Lei Orgânica da Magistratura
Nacional, não o proíbe de ser sócio, acionista ou quotista
de qualquer empreendimento comercial, desde que não
exerça cargo de administração. Imaginemos, então, que
esse nosso juiz seja sócio de um cursinho preparatório
para concursos públicos. Lá, um dia, com o sucesso dos
negócios, ele e seus sócios decidem ampliar a empresa
e comprar um amplo edifício abandonado, onde antes
funcionara uma academia de ginástica. A academia cerrou
as portas e os donos sumiram, deixando sem pagamento
a recepcionista, o limpador de piscinas, o faxineiro, a
telefonista, os professores de musculação, a professora de
dança de salão, a moça da cantina e o vigia da noite.
Assim que o cursinho preparatório desse nosso juiz
hipotético se instalar ali, é quase certo que os advogados
dos ex-empregados da academia ajuizarão dezenas de
ações trabalhistas afirmando que o cursinho preparatório
é sucessor da academia de ginástica porque está
estabelecido no mesmo endereço. Um juiz dirá, citando
talvez o precedente do próprio colega, que o raciocínio
dos ex-empregados da academia é rigorosamente exato.
O cursinho, obviamente, nunca contratou nenhum dos
empregados da academia. Os sócios são outros, o CNPJ é
outro, o objeto social é outro. Por má fortuna, o cursinho
foi se estabelecer no mesmo endereço onde antes estava a
academia de ginástica.
Como será que esse nosso juiz se comportaria no
processo? Invocaria, em defesa de seu patrimônio, as
mesmas razões das empresas que ele tantas vezes desprezou
e condenou a pagar débitos que não contraíra? Ou pagaria
todo o passivo trabalhista, previdenciário e fiscal deixado
pela academia de ginástica porque é isso o que ele fez com
os outros empresários a vida inteira?
2014 Maio | Justiça & Cidadania 71
A modernização do STJ:
Criação da Constituição de 1988
Sidnei Beneti
Ministro do STJ
Membro do Conselho Editorial
Foto: STJ
72
O
Superior Tribunal de Justiça foi criado pela
Constituição Federal de 1988, destinado à
interpretação do Direito Federal Infraconstitucional.
Na Sessão Solene do Senado Federal do dia 8 de abril
de 2014, em que se celebraram os 25 anos do Tribunal, o
Presidente Felix Fischer noticiou a assombrosa produção
de julgamento de quase quatro milhões de processos.
Imagine-se se não houvesse o Superior Tribunal de Justiça!
O Tribunal franqueou acesso efetivo à justiça recursal
de caráter nacional, outrora inacessível ao Supremo
Tribunal Federal. Liberou via de conhecimento da
ampla variedade de litígios fundados nas milhares de leis
infraconstitucionais, de interesse para o dia a dia civil e
criminal das pessoas físicas e jurídicas do país. Assumindo
o ingente lavor do exame e julgamento da carga imensa de
recursos relativos a todos os ramos do Direito, o Superior
Tribunal de Justiça enseja que o Supremo Tribunal Federal
reserve forças à definição de temas constitucionais,
reservado o multifário da ordem jurídica ao Superior
Tribunal de Justiça.
Comparado com os congêneres europeus – especial­
mente a Cour de Cassation francesa, a Corte di Cassazione
italiana e o Bundesgerichtshof alemão, o Superior Tribunal
de Justiça julga em dobro, pois não só julga o tema jurídico,
mantendo ou reformando a tese submetida, mas, ainda, revê
o caso concreto, em dupla tarefa. Bem mais simples seria a
tarefa de apenas julgar a tese e devolver a complexidade da
justiça do caso concreto ao tribunal de origem, algo à moda
de simplesmente anular, genericamente, grande quantidade
de processos sem examinar os detalhes concretos em que se
Justiça & Cidadania | Maio 2014
controvertem as partes, obrigadas a prosseguir no litígio na
origem!
Para atender às necessidades do seu gigantesco
campo jurisdicional, o Superior Tribunal de Justiça vê-se
constantemente às voltas com a alteração do instrumental
operacional, que são as leis processuais a ele pertinentes e os
recursos materiais e humanos necessários à movimentação
do maquinismo de prestação da Justiça.
Quem repete o fácil refrão falso do imobilismo do
aparelhamento judiciário não terá tido olhos para ver
o que se passa no Superior Tribunal de Justiça. Tribunal
modelar, bem instalado, com servidores de alto nível
profissional e humano, em imensa maioria vencedores dos
pesados concursos públicos de Brasília.
O problema é a astronômica quantidade de recursos,
gerada por sistema processual fragmentário, que
transforma cada decisão mínima em cada um dos milhões
de processos do país em recurso para os tribunais, com
direito a obter dose dupla, via embargos de declaração
e grande quantidade de recursos internos, para julgar
de novo o já antes muitas vezes julgado! Para ficar nos
números do ano passado, 2013, o Superior Tribunal de
Justiça recebeu 366.488 recursos novos e julgou mais que
esse número, ou seja, 384.182 recursos.
Inimaginável proibir recursos, garantia de acesso à
Justiça, mas, sim, de racionalizar o sistema processual,
para evitar múltiplas decisões em um mesmo processo,
que provocam verdadeira tautologia recursal e decisória,
a qual, por sua vez, leva à opacidade da compreensão do
processo, fazendo perder de vista a razão de ser da vinda
a juízo, mediante a transformação do litígio em sibilino
exercício de incidentes e ciladas, como se o processo, e não
o direito das partes, estivesse em julgamento. O Tribunal Superior de Justiça, modelar na organização
administrativa, já aprofunda úteis experiências visando
à redução da massa recursal sem recorrer à ilusória
tentativa de cancelamento de hipóteses de processos ou à
criação de obstáculos miúdos, que geram mais hipóteses
recursais.
Profissionais experientes e independentes no observar,
certamente poderão detectar consequências da mudança
em marcha. Por ora, nas aperturas deste escrito, produzido
em breve tempo retirado do dever de julgar, destaquemse três instrumentos, já implantados e a produzir bons
frutos, quais sejam: a) a informatização; b) o recurso
representativo de controvérsias e c) o núcleo de recursos
repetitivos – NURER.
a) Informatização – A informatização dos processos
representa revolução judiciária única no mundo. Seria
inacreditável, não fosse a evidência dos fatos, mas os
processos são já informatizados. Em programa pioneiro
implantado sob a presidência do Ministro Cesar Rocha,
“Para atender às necessidades
do seu gigantesco campo
jurisdicional, o Superior Tribunal
de Justiça vê-se constantemente
às voltas com a alteração do
instrumental operacional,
que são as leis processuais a
ele pertinentes e os recursos
materiais e humanos necessários
à movimentação do maquinismo
de prestação da Justiça”
definitivizado pelas gestões dos Ministros Ari Pargendler
e Felix Fischer, digitalizaram-se de início, um a um, folha
a folha, mais de 350.000 processos existentes, seguindose a digitalização de cada processo novo, em experiência
justamente vencedora do Prêmio Innovare – e, ressaltese por Justiça, trabalho realizado mediante inserção
social de admirável equipe de funcionários deficientes
auditivos, aos quais o Tribunal e todo o meio jurídico
nunca encontrarão suficientes palavras para agradecer e
homenagear. O produto positivo principal da informatização no
núcleo do serviço judiciário assombra. Permite ela a
consulta a qualquer tempo, elimina o deslocamento de
autos, petições e atos cartorários, afasta o risco de extravio
de peças, permitindo a disponibilização de relatórios
e projetos de votos a todos os julgadores, de modo a
aprimorar a qualidade da análise colegiada, com redução
de pedidos de vista, fornecimento de cópias integrais
magnéticas a advogados. Permite a comunicação imediata
aos tribunais e juízos, inclusive para aceleração de desfecho
de conflitos de competência, reclamações e liminares,
praticamente aniquilando a praga dos tempos mortos
do aguardo das intimações judiciais, que tantos males já
causou à efetividade da Justiça – e segue-se imensa gama
de consequências que seria impossível exaurientemente
pormenorizar. O produto acessório da informatização, atingindo
a capilaridade do sistema judiciário, é imenso. Extraordinárias e inimagináveis as consequências positivas,
próximas e remotas, da informatização. Recuperação
de informações, objetivização de dados da correcionali-
2014 Maio | Justiça & Cidadania 73
74
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Ucrânia: a fronteira da
fronteira Eurasiana
Aurélio Wander Bastos
Lier Pires Ferreira
Professor Titular do Iuperj e da Unirio
Membro do Conselho Editorial
Professor do Iuperj, do IBMEC e do CP2
Foto: Ana Wander Bastos
repetitivos foi a criação, pela Presidência do Tribunal,
dade ante a deixa de vestígios de cada ato, inserção de
do NURER – Núcleo de Repercussão Geral e Recursos
pesquisas de bibliotecas e acervos informatizados, busca
Repetitivos (Resolução STJ n. 11/2013, do Presidente
de informações complementares ao julgamento nos “siMin. Félix Fischer, aprofundando organização anteriortes” de tribunais envolvidos e de mananciais legislativos,
mente implantada – Resolução STJ n. 2/2013, e Resoludoutrinários, jurisprudenciais ou informativos de setores
ção STJ n. 3/2008, do Presidente Humberto Gomes de
da administração, das corporações, de valores e negócios
Barros), forte no exemplo dos Tribunais estrangeiros,
envolvidos – e vai daí em diante, o caráter benfazejo da
que desenvolveram o conceito de irrecebilidade recurinformatização.
sal, como consequência da permissão para recorrer (“leb) Recursos Repetitivos – O enfrentamento dos
ave to appeal”, “permission pour appeller”, “zulässigkeit”
temas repetitivos, dado o procedimento de recursos
etc), para recursos sobre temas já pacificados ou recurrepresentativos de controvérsia (CPC, art. 543-C, com a
sos mal-formados que, por defectivos, não devem ser
redação da Lei 11.672, de 8.5.2008) abriu a esperança de
conhecidos, para que não venha a, com base em contraque o Tribunal venha progressivamente a transformarditório inepto, formar-se jurisprudência que impeça o
se naquilo a que a Constituição Federal o destinou, isto
conhecimento de aprofundado debate futuro, com funé, um Tribunal definidor da interpretação das grandes
damento em contraditório de fôlego, tão necessário aos
teses infraconstitucionais para toda a sociedade brasileira,
Tribunais Superiores.
forrando-se ao reexame por milhares, e, na sua história,
Ainda há muito que fazer,
milhões de vezes, da mesma tese
para alcançar a desejada celerisurgida em diferentes processos
dade, com qualidade, na presta– restando o desafio do que fazer
“O Superior Tribunal de Justiça,
ção jurisdicional a cargo do Sucom os processos suspensos na
modelar
na
organização
perior Tribunal de Justiça. Será
origem para o enfrentamento,
preciso, por exemplo, enfrentar
no terrível “day after” da
administrativa, já aprofunda
alguns desafios organizacionais
experiência nacional no trato
úteis experiências visando à
da Corte, para a mais célere e
dos processos repetitivos, o
redução da massa recursal sem
segura formação de jurispruque será assunto para outra
dência nacional – estabelecendo
oportunidade, se houver!
recorrer à ilusória tentativa de
a função de cada engrenagem
Os processos individuais,
cancelamento de hipóteses
no grande maquinismo de julmuitas vezes tornam-se, no
gamento que é o Tribunal.
fundo, simples, é certo, pelo
de processos ou à criação de
Mas há renovação e, conrepetir-se dos temas, mas são
obstáculos miúdos, que geram
sequentemente, esperança. Em
igualmente avassaladores, pormais hipóteses recursais”
escrito que homenageia o Emique obrigam, sempre, a exame
nente Relator da Constituição
de processo a processo, incluFederal de 1988, BERNARDO
sive para identificação de tese
CABRAL, Ex-Presidente do
eventualmente idêntica – com a
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil,
dificuldade especial do processo brasileiro, que sempre
pareceu interessante ressaltar algo do que vem sendo feiajunta mais de um capítulo por julgar, nem que seja o
to pelo Superior Tribunal de Justiça. Deve-se incentivar
referente a honorários advocatícios, que são autônomos e
a renovação e deve-se manter a esperança na solução dos
de delicada avaliação.
problemas existentes. É o que se faz ao iniciar a busca da
O instrumento recursal representativo de controvérsia
solução de um mal, por maior que seja. Afinal, é como
permitirá exterminar essa verdadeira chaga nacional, que
há séculos Ésquilo fez Prometeu responder à angustiané o número tsunâmico de processos, que tanto mal faz à
te pergunta do coro, representante, sempre, do povo no
qualidade da prestação jurisdicional brasileira, levando,
teatro grego:
não raro, à dispersão de precedentes, incompreensível em
Coro – Que remédio encontraste para esse mal?
um Tribunal Superior nacional, e impediente da detecção
Prometeu – Concedi-lhes imensa esperança no futuro”
da tese firme, pelos juízos de instâncias inferiores e, mais,
(“Ésquilo, Prometeu Acorrentado”).
do claro aconselhamento dos advogados a seus clientes e,
por fim, do agir seguro dos cidadãos e entidades na prática
dos atos jurídicos da vida extrajudicial.
c) O Núcleo de Recursos Repetitivos – Relevante
Escrito para a Revista Justiça & Cidadania, volume em homenagem a
contribuição à efetividade do julgamento dos recursos
BERNARDO CABRAL, Eminente Relator da Constituição de 1988.
Aurélio Wander Bastos
E
m Borderland: a journey through the history of
Ukraine, a jornalista Anna Reid conta que dentre as hordas cossacas que outrora ocuparam a
Ucrânia as mais selvagens habitavam a ilha de
Zaporozhian Sich, no rio Dnieper. Esses grupos fortemente armados reuniam-se na Rada (atual denominação do
Parlamento da Ucrânia), uma assembléia popular onde
todos tinham direito de voz e as decisões eram tomadas
por aclamação. Sem uma liderança política formalmente
constituída os cossacos de Sich viviam em bandos de aproximadamente 100 guerreiros denominados Sotnias, cada
qual liderado por um Sotni.
Em 1648, Khmelnitsky, um desses Sotnis, comandou
o levante contra os poloneses, considerado o primeiro
movimento independentista da Ucrânia. Reid assevera que
a derrocada cossaca, entre os séculos XVII e XVIII, não os
alijou do imaginário ucraniano. Ao contrário! Vistos como
guerreiros nacionalistas, violentos, de hábitos simples eles
são as referências dos atuais rebeldes ucranianos. Para Reid,
os cossacos estão para o inconsciente popular da Ucrânia
ou, nas dimensões históricas de cada povo, observando
como na Vianna Neoog, os bandeirantes e pioneiros estão
para a expansão e conquista territorial do Brasil.
Até bem pouco tempo ausente do interesse brasileiro,
a Ucrânia é hoje parte de nosso debate midático. Mas
que país é esse? Com 603.628 Km2 e aproximadamente
45 milhões de habitantes, a Ucrânia está situada entre
Rússia; Bielorrúsia; Polônia, que dominam o seu norte/
nordeste; Austria; Eslováquia; Hungria; Bulgária; Romênia
e Moldávia, pelo sudoeste; e, no leste remoto, a Alemanha.
Aberta a sul e a sudeste para o Mar de Azov e para as
2014 Maio | Justiça & Cidadania 75
76
Foto: José Geraldo da Fonseca
águas quentes do Mar Negro, está em sua maior dimensão
situada na Europa, mas sobre ela desponta o leste russo,
base de origem e formação de seu povo, língua e religião.
A importância geopolítica da Ucrânia para a Europa é
ressaltada pela alta fertilidade de suas terras (que motivou
o Lebenshaum nazista), forte potencial nuclear (energético
e militar), elevada capacidade científica e tecnológica
(mantendo inclusive uma parceria espacial com o Brasil).
Este país tem uma grande malha gasífera, em cujos
gasodutos vão da Rússia para o sul europeu, sendo ela
própria dependente deste gás (60%) Europeu. Sua capital,
Kiev, está localizada no centro-norte do país, onde vivem,
especialmente, ucranianos étnicos, russos, bielorrussos
e romenos, há apenas 100 kilômetros de onde ocorreu o
desastre de Chernobil.
A geopolítica ucraniana é um dos pilares de sua relevância
histórica; todavia, a base do seu drama atual, como o fora no
passado recente, com reflexos no seu atual quadro político.
Isso ocorre tanto em função da antiga influência da Rússia,
país que cobre toda região norte e o entorno nordeste
da Ucrânia, quanto pelo cerco político e econômico que
impede que o seu próprio oeste, de religião russo-ortodoxa,
domine as riquezas comerciais e marítimas que transpassam
o Mar Mediterrâneo e, cruzando os estreitos de Bósforo e
Dardanelos, espraiam-se para o sul da Europa e para as
conexões árabes e africanas. Assim, cumpre sublinhar desde
já que o “mundo das riquezas” (econômicas e estratégicas) da
Ucrânia não está no oeste pró-europeu, mas no leste, onde
estão os olhos, as ambições e a dependência européia, em
particular na península da Crimeia, entregue aos ucranianos
como reservatório de riquezas.
Este território foi destinado em 1954 pelo dirigente soviético ucraniano (como o fora também Liev Trotsky), Nikita
Khrushchov, que recentemente retornou a integrar o território russo com plebiscito em votação quase unânime. Por
isso, em sua própria formação política, econômica e social a
Ucrânia é um país cindido entre o (seu) oeste, mais pobre e
de maioria étnica ucraniana, mais suscetível à influência européia, e o leste, mais próspero, de maioria étnica russa, como
não poderia deixar de ser, suscetível à influência Russa, inclusive de suas remanescentes tradições soviéticas. Este é o
dilema ucraniano: o que interessa a Europa é o seu oeste de
influência russa, o que interessa à Ucrânia é a Europa alemã,
mas o que interessa à Rússia é o mesmo que à Europa (o oeste
ucraniano). Este é o foco da crise e, também, o risco separatista, pois o seu leste já fora o celeiro europeu do trigo e do
milho, e não o é necessariamente da Rússia.
Todavia, a complexa estrutura geopolítica ucraniana
desautoriza qualquer interpretação intempestiva sobre a
crise do país, dividido entre o mercado comum europeu,
que se abastece com o gás e o petróleo de domínio russo e
do seu próprio celeiro agrícola e a “nova” Eurásia, de onde
Lier Pires Ferreira
vem as suas próprias condições de sobrevivência. Por isto
mesmo, mas dominada pela liderança histórica, alguns
analistas tem caracterizado lideranças rebeldes pró-Europa
provisoriamente no poder como de influência neonazistas
e os governistas como membros do aparato oligárquico
pró-Rússia (oprichnick), em tese neocomunistas. É certo
que tais grupos estão presentes no cernário político
ucraniano, mas o reducionismo não ajuda a compreender
a luta nacional em curso. Então, por onde começar?
As motivações da crise na Ucrânia vêm por certo de
fora. Se assim não fosse o levante social, teria iniciado
nos anos de 1990, como ocorreu na Yugoslávia e na
Tchecoslováquia, mas não se pode desprezar a sua
volumosa dívida, cujos socorros vem sucessivamente da
Rússia. Assim, cumpre asseverar que o conflito provém
do Ocidente, fomentado por Bruxelas e Washington, que
procuram atrelar a Ucrânia ao Eurogovernment. Mas,
por outro lado, não se pode esquecer de suas diferenças
endógenas e, também, dos velhos ideais europeus da jovem
Ucrânia, principalmente que a jovem nação sobreviveu
cindida durante a 2a Guerra dominada pelo Governo Geral
Alemão (até sua incorporação pela URSS após a guerra).
Essa dissensão entre as expectativas européias e do
oeste ucraniano, cujo indicador recente foi a suspensão
pelo antigo PresidenteYanukovitch (eleito em 2010 com
50% dos votos) das negociações que levaram a uma
aproximação com a União Européia, não apenas pode
empurrar a Ucrânia para uma guerra civil, com riscos
de intervenção internacional, como também para o
Justiça & Cidadania | Maio 2014
separatismo, sobrevivendo a (seu) oeste uma pequena
Ucrânia, e a leste um amplo protetorado russo. Os interesses
do bloco ocidental são nítidos neste conflito. Bruxelas
busca expandir sua influência captando no leste mercados
e fatores de produção (mão-de-obra barata e qualificada,
matérias primas, etc.) necessários para a retomada
econômica europeia. Os EUA (sem prejuízo das questões
econômicas) procuram atrair a Ucrânia para a OTAN, o
que lhes permitiria fixar bases militares na fronteira com
a Rússia (necessárias para a futura desestabilização russa),
como já vem ocorrendo nos países do Báltico e na Polônia.
Neste contexto, sem que atue diretamente na Ucrânia
(como fez no Iraque e no Afeganistão) os EUA agem
através de sua principal agência de inteligência, a CIA, e
por meio de ONGs que procuram alimentar o sentimento
anti-Moscou no oeste do país onde está visível a influência
Russa entre os “milicianos”. Os EUA tem evitado qualquer
posição interventiva direta e, como um enxadrista
experiente, deixa a arrumação do conflito para os “peões”
da Europa, muito especialmente a Alemanha, que no
passado sonhou com a Ucrânia do governo geral (alemão).
Por outro lado, a Rússia evita o conflito direto, mas conta
com o adesismo da população ao projeto anexeonista, com
forte expectativa de crimeialização do leste ucraniano. Não
se deve esquecer, todavia, que a Criméia depende (70%)
da energia elétrica ucraniana, o que aumenta os laços de
interdependência interna.
Os rebeldes da Ucrânia, genericamente abrigados sob
a identidade Euromaidan, eles são predominantemente
ucranianos étnicos que hoje se organizam sobre bases
independentistas e populares, pretensamente imunes aos
interesses das elites. Seus confrontos com as tropas leais
ao presidente deposto Víktor Yanukóvytch deixaram um
rastro de ódio e morte na Praça da Independência, em Kiev,
e permitiram o assalto ao poder na forma do clássico coup
de main, de Mussoline. Ultranacionalistas, eles refutam as
velhas estruturas organizacionais do Exército Vermelho,
tido como imperialista, e dos movimentos nacionalistas da
primeira metade do século XX, muitos dos quais lutaram
alternadamente ao lado de nazistas e soviéticos. Em busca de
referências, eles se voltam para o Rus de Kiev e para as sotnias
cossacas, antigas estruturas organizacionais dessa etnia mítica
da Ucrânia e, paradoxalmente, da própria Rússia.
Considerando que os partidários de Yanukóvytch,
em grande parte de origem russa, desejam estreitar laços
com Moscou, está configurado o impasse. Qual a solução,
sabendo-se que Yanukóvytch buscou guarida exatamente
na fronteira leste (Karkiv). Num país polarizado, o
caminho mais evidente é a secessão, lastreada no princípio
da autodeterminação dos povos, cuja evidência está na
declaração do Parlamento da Criméia que deliberou pela
anexação da região à Federação Russa, ato legitimado por
um referendo popular (como observamos) e acatado por
Moscou. Todavia, nada é tão simples. O retorno da Crimeia
à Rússia possui vários obstáculos. Em nível externo, além
de EUA e Europa, a ONU condenou a secessão por meio
de uma resolução aprovada no final de março por 100
votos a favor, 11 contra e 58 abstenções, dentre as quais
o Brasil. No âmbito interno a Rada também rejeitou a
separação. Agora, o governo provisório busca reconstruir
o tecido político atraindo oligarcas da economia como
Sergei Taruta (empresário da mineração e fundição) para
sua esfera de influência.
Nesse contexto, a alternativa da sobrevivência da
Crimeia, província autônoma, regida desde 1999 por
uma Constituição própria, como continuidade territorial,
poderia influir sobre todo o cenário Ucraniano como vem
ocorrendo com a Transnístria na Moldávia, área de grande
disputa territorial durante a 2a Guerra, juntamente com a
Bucovinia, no Sudoeste da Ucrânia, que tem seu próprio
Estado desde 1992, onde também se destaca a República
Popular de Donetsk, sendo que sua população considera
ilegítimo (74%) o governo provisório presidido por O.
Turchinov e a cidade de Druzhkivka, e tantas outras na
fronteira Russa. Fato é, todavia, que a Ucrânia sem a
Crimeia é pouco significativa no concerto das nações e
a sua própria sobrevivência fica limitada. Por outro lado,
ocorre, todavia, que, também, a Rússia precisa da “sua”
Criméia como porto de abertura para Mediterrâneo, que
mais representa nas suas ligações ocidentais que o seu
próprio oeste, nas fronteiras bálticas e com a Polônia.
Nesse arranjo, no qual os interesses euroamericanos e
russos estão com incógnitas armas, lutando visivelmente
desequilibrados, a Ucrânia deixaria de ser um estado
unitário para formar uma federação descentralizada ou
mesmo uma confederação de Estados, para não se aventar
no curto prazo a uma hipotética anexação à Federação
Russa, pelo menos o seu leste, o que viabilizaria uma
desinteressante Ucrânia oeste europeia. De toda sorte,
a solução não virá (apenas) do povo ucraniano, mas das
diversas etnias ucranianas com suas opções de interesse.
Em que pesem os “novos cossacos”, ela será determinada
pelo triângulo imperfeito formado por Washington,
Bruxelas e Moscou. É neste ambiente político imperfeito
que a Rússia, União Européia, Estados Unidos da América
e Ucrânia procuram se reunir para encontrar uma saída
para a crise, possivelmente às luzes do acordo de Genebra.
Finalmente, no quadro desta perspectiva, cumpre destacar que, na esteira de outros tantos conflitos pelo mundo,
muito especialmente no leste mediterrâneo, a crise na Ucrânia revela que os tempos de relativa harmonia entre EUA
e Rússia parecem estar chegando ao fim. Paira no ar uma
“nova guerra fria”, ou pode-se antever, como falava Carl
Schimitt, uma nova “guerra quente”. Alea jacta est!,
2014 Maio | Justiça & Cidadania 77
Insegurança jurídica no campo
Fabio de Salles Meirelles
Presidente do Sistema FAESP/SENAR-AR/SP
Membro do Conselho Editorial
Concorrencial – Concentração econômica
É compreensível que as empresas busquem a eficiência
de sua produção, que almejem resultados positivos nos
seus balanços, a redução de custos, a expansão de suas
áreas, etc. Porém, em muitos segmentos têm-se notado
uma alta concentração do poder econômico, com práticas
anticoncorrenciais que impactam diretamente na área
rural e indiretamente em toda a sociedade brasileira.
A ausência de concorrência nos segmentos e a criação
de oligopsônios e oligopólios, são fatores que prejudicam
as cadeias produtivas. A ocorrência de concentração
vertical e horizontal é extremamente danosa ao setor,
pois, diante da desproporção do poder econômico,
muitos produtores rurais estão sendo expulsos de suas
atividades agrícolas.
78
Fotos: Arquivo Faesp
O
Brasil é um país com vocação natural para
seu universo agropastoril devido às suas
características e diversidades, principalmente,
encontradas no clima favorável, no solo, na
água, no relevo e na luminosidade.
Com seus 8,5 milhões de km, o Brasil é o país mais
extenso da América do Sul e o quinto do mundo com
potencial de expansão de sua capacidade agrícola sem
necessidade de agredir o meio ambiente.
O agronegócio representa aproximadamente 25% do
PIB brasileiro, além do que é um dos maiores responsáveis
pelo superávit da balança comercial. Suas atividades geram
37% de todos os empregos, contribuindo para a melhor
distribuição de renda no País.
Anualmente, são investidos milhões de reais em
pesquisas para melhorar a produtividade e a qualidade dos
nossos produtos; portanto, produzimos mais, em menor
área e com melhor qualidade, e ainda podemos melhorar.
Contudo, existem algumas preocupações do setor agropecuário que concernem à interpretação e à aplicação de
muitos dispositivos legais, razão pela qual tecemos algumas
considerações, haja visto o impacto nas atividades agrícolas.
É necessário que as autoridades constituídas e os
órgãos de controle estejam conscientes da ocorrência do
fenômeno do êxodo dos produtores em suas atividades em
razão da enorme verticalização que está ocorrendo nos
mais variados segmentos das atividades agrícolas.
É preciso inibir práticas anticoncorrenciais e punir os
crimes contra a ordem econômica cometidos por grupos
empresariais que visam somente a obtenção do lucro de
suas empresas.
Meio ambiente
Foram amplas e exaustivas as discussões sobre as
alterações na legislação federal que versaram sobre meio
ambiente, especialmente o Código Florestal, aprovado com
a inclusão de novos conceitos, como o estabelecimento de
distinções entre as propriedades em razão do tamanho de
suas áreas, e com a estrutura basicamente composta por
um cadastro ambiental, a ser feito pelos produtores rurais,
e um programa de regularização baseado nas obrigações
comuns a todos os produtores, responsáveis pelas áreas de
preservação ambiental (APP) e de reserva legal (RL).
Justiça & Cidadania | Maio 2014
Um dos pontos mais debatidos foi o marco inicial de
aplicação do Código Florestal, 22 de julho de 2008, sendo
esta data que determinará o conceito de áreas consolidadas,
isto é, áreas consideradas com uso anterior a essa data.
Atualmente, estão surgindo interpretações que
diferenciam a aplicação da lei em uma ou outra região,
os conceitos de área utilizada, locais possíveis e proibidos
de utilização, o processo de cadastramento do imóvel,
identificação das áreas de preservação permanente e
reserva legal, remanescente de vegetação nativa e outros.
Tal fato pode levar ao absurdo de verificarmos áreas
situadas em biomas idênticos, desmatadas na mesma
época, em mesma proporção, mas que apenas uma delas
possa se regularizar e a outra ter de reconstituir a área
desmatada.
Essa dubiedade na interpretação de dispositivos legais
deve ser sanada pelas autoridades competentes com a
maior brevidade possível. É necessária a uniformização do
real entendimento sobre o alcance dos artigos para que não
cause maiores prejuízos aos valorosos homens do campo.
Trabalhista
É bem verdade que grande parte da legislação
trabalhista foi desenvolvida para atender ao dinamismo
das relações sociais entre empregadores e empregados.
Na área rural muitas relações cotidianas foram trazidas
à formalidade e incorporadas na legislação, assim como
o contrato por pequeno prazo de natureza temporária,
consórcios de empregadores rurais, entre outros.
A terceirização, no que se refere à área rural, disposta
no PL 4.330/04, é favorável ao setor, pois entendemos
que contribui para eliminar a figura do intermediário, o
conhecido “gato”. Ela formaliza a relação entre empregador
e terceiro, desde que sejam respeitados todos os direitos
dos empregados.
Outro tema que causa enorme preocupação na área rural
é a ausência de uma definição clara e precisa do conceito
de condição análoga a de escravo. Temos constatado casos
de autuação por parte das autoridades públicas em que
a simples ausência do registro em carteira de trabalho,
por ferir a dignidade do trabalhador, configura a referida
condição, ou mesmo a longa distância do local de trabalho,
pois se trataria de isolamento geográfico do trabalhador.
É imperativo definir conscientemente o conceito de
condição análoga a de escravo com critérios objetivos de
enquadramento no dispositivo, para que se possa conceder
a tranquilidade na área rural.
Fundiário
Quanto à demarcação de terras indígenas, é certo
dizer que terras indígenas no Brasil são aquelas existentes
e ocupadas até o dia 5 de outubro de 1988, data de
promulgação da Constituição Federal, tendo restado
estipulado o prazo de cinco anos a partir desta data para
sua identificação. Contudo, nos 25 anos de Constituição,
o número de terras indígenas aumentou mais de 500%.
Sendo que, atualmente, temos 13% do nosso território
ocupado por terras indígenas.
O início do conflito ocorreu após a CF/88, que passou
a considerar propriedade da União as terras identificadas
como indígenas e nulos os títulos de propriedade já
existentes sobre elas. A nova Carta também designou
o Poder Executivo como responsável pela identificação
das terras indígenas. Por meio de decretos, foi instituído
um processo administrativo de identificação dessas áreas
delegado exclusivamente à Funai.
Assim, a Funai passou a realizar as demarcações de
territórios indígenas em detrimento da existência de
títulos legítimos de terra dos produtores, que, apesar
de remeterem ao século XIX, são postos em xeque por
diferentes políticas confusas, que, além de questionáveis,
eliminam qualquer tendência de razoabilidade.
Recentemente, o governo enviou para discussão
com o setor proposta de portaria regulamentando o
funcionamento de um grupo de trabalho que ficará
responsável pela gestão das demarcações. Assim, a Funai
deixaria de ser a única autoridade a definir critérios para
a criação ou a ampliação de áreas indígenas, passando a
dividir essa responsabilidade com o Ministério da Justiça e
com outros órgãos correlatos.
Não há dúvida de que a competência para demarcação
de áreas indígenas deve ser ampliada para que a sociedade
civil participe. Outros órgãos devem dar a transparência
e a lisura necessárias nesse procedimento tão devastador
ao expropriado de suas terras. Novamente manifestamos
nossa preocupação para adoção de critérios objetivos para
realização de demarcações.
Não bastassem as enormes variáveis existentes para
o exercício das atividades agrícolas – como intempéries
climáticas, investimento em insumos, emprego de tecnologia,
mão-de-obra especializada –, deixar os produtores rurais
desprotegidos de suas garantias constitucionais, a mercê
de diferentes interpretações jurídicas para o mesmo fato,
com ausência de definições claras de conceitos, e sem a
permissão de se defender de atos administrativos que o
atinjam diretamente, agravam consideravelmente o quadro
de insegurança jurídica no campo.
Essas são as variáveis e reais preocupações que
transmitimos em prol da agropecuária, pois queremos
e precisamos continuar produzindo no campo com paz
e tranquilidade. Afinal de contas, daqui a cinco anos
passaremos a marca de 200 milhões de habitantes em
nosso País e temos a enorme responsabilidade de prover
esse abastecimento!
2014 Maio | Justiça & Cidadania 79
Paula Wojcikiewicz Almeida
David Schechtman
Professora de Direito Internacional da FGV Direito Rio
Graduando do curso de Direito da FGV Rio
Foto: Divulgação FGV Direito Rio
Paula Wojcikiewicz Almeida
80
Foto: Arquivo pessoal
A competência universal em
retrocesso na Espanha
N
a última terça-feira, causando uma avalanche
de notícias e comentários, foi aprovado um
projeto de lei pelo Congreso de los Diputados da
Espanha que limita a competência universal
dos juízes espanhóis. A competência universal pode ser
definida como um dever do Estado em perseguir os autores
de certos crimes considerados da mais alta gravidade,
qualquer que seja o local onde o crime foi cometido ou a
nacionalidade do autor ou da vítima. O princípio encontra
fundamento na necessidade de proteger um valor de
caráter universal, expresso pela máxima aut dedere aut
judicare. Está previsto em Convenções internacionais
como as Convenções de Genebra de 1949; a Convenção
europeia para a repressão do terrorismo de 1977; e a
Convenção contra a tortura e outras penas e tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes de 1984. Significa que
os Estados que ratificaram as referidas convenções, e não
apenas estes, assumem a obrigação de extraditar ou de
julgar os responsáveis pelos crimes previstos. O que não
pode ocorrer, aos olhos do direito internacional, é deixar
impune o autor de um crime cuja gravidade viola os
padrões aceitos pela comunidade internacional.
A Espanha ratificou as referidas convenções que prevêem a competência universal e assumiu, desta forma, a
responsabilidade de extraditar ou julgar crimes independentemente de qualquer relação de territorialidade ou
nacionalidade das vítimas. A legislação espanhola previa
essa possibilidade e o país sempre foi bastante atuante na
proteção dos direitos humanos e na persecução de crimes
via competência universal. O caso Pinochet e a figura do
juiz Baltazar Garzon ganharam notoriedade internacio-
Justiça & Cidadania | Maio 2014
David Schechtman
nal. Entretanto, apesar de haver previsão em convenções
internacionais, o exercício da competência universal
pode ser obstado por questões de oportunidade política,
pois os Estados que adotam tal prática acabam por expor
crimes internacionais que muitas vezes não seriam julgados no país onde foram cometidos ou por vítimas de sua
nacionalidade.
O recente imbróglio espanhol reflete essa tensão
política, que compromete o exercício da competência
universal. Uma proposta de lei de 24 de Janeiro deste ano
foi votada e aprovada pelo Congreso de los Diputados com
uma maioria de 179 sobre 163 votos em 12 de Fevereiro.
A proposta foi apresentada e votada pelo Partido Popular
(PP), atualmente no governo espanhol, com o objetivo de
alterar a legislação do país de forma a limitar o exercício da
competência universal. É possivelmente fruto da pressão
da China, um parceiro comercial de crescente importância
para a Espanha.
A origem da tensão pode ser traçada à expedição de
mandados de prisão para o ex-presidente chinês Jiang
Zemin e mais quatro altos oficiais chineses em novembro
de 2013. Os mandados são baseados em acusações de
genocídio, tortura e crimes contra a humanidade no
Tibete. Mas o debate não é recente, pois já houve proposta
similar apresentada pelo mesmo partido em 2009 (Ley
Orgánica 6/1985)1. A nova proposta restringe ainda
mais a competência universal, alterando o artigo 23 da
lei orgânica do Poder Judiciário referente à extensão da
jurisdição espanhola. Dentre outras mudanças, foram
criados critérios adicionais para que cada um dos crimes
antes previstos possam ser julgados, como a exigência de
que a vítima do delito seja um espanhol ou que possuísse a
nacionalidade espanhola ao tempo do crime. Deste modo,
o mecanismo anteriormente abrangente foi convertido em
um sistema que limita sua proteção a espanhóis.
É possível identificar dois potenciais efeitos decorrentes da proposta: o primeiro deles é o arquivamento dos
processos já abertos com base na competência universal;
o segundo é a impossibilidade dos juízes espanhóis assumirem novos casos com base nesse mesmo mecanismo,
devendo permanecer inertes frente a violações graves
que demandariam uma atuação da comunidade internacional. Ora, além das denúncias de genocídio no Tibete,
há uma série de outros casos atualmente em tramitação
na justiça espanhola que foram iniciados com base na
competência universal: os casos de Guantánamo, Ruanda
e Guatemala.
As consequências da possível alteração legislativa
não devem ser minimizadas. No campo político, a
aparente influência que a China exerce sobre o governo
de Mariano Rajoy preocupa a oposição espanhola e
começa a gerar preocupações sobre as prioridades do
governo. A reação dos partidos de oposição foi forte e
acusaram o partido no poder de se submeter ao poder
chinês. Além disso, a iniciativa representa evidente
retrocesso do país no que tange ao respeito dos direitos
humanos, além de representar violação das obrigações
internacionais assumidas em virtude de convenções
ratificadas. Independentemente de previsão em tratados,
a repressão de crimes de alta gravidade constitui costume
internacional que se impõe a todos os Estados. Dessa
forma, o desrespeito de tais obrigações não somente
prejudica a imagem da Espanha no cenário global como
também expõe o país a uma possível responsabilização
perante instâncias internacionais.
Nota
A reforma de 2009 havia restringido o sistema de jurisdição
universal nos seguintes termos: desde que não disposto em contrário
em algum tratado ratificado pela Espanha, o delito deve observar
algumas condições – o suposto responsável deve estar na Espanha, ou
o crime deve ter vítimas espanholas ou com conexão relevante com
a Espanha. Assim, desde 2009, a legislação espanhola já impunha
condicionantes ao pleno exercício da competência universal.
1
2014 Maio | Justiça & Cidadania 81
P rateleira, Giselle Souza
Rompendo barreiras
Joaquim Falcão, diretor da Escola de Direito da FGV,
recomenda três obras que o ajudaram a pensar o
Direito a partir de outras óticas
Foto: Américo Vermelho
E
m 1928, final do julgamento de Antonio Gramsci pelo tribunal italiano, o procurador de Mussolini pede a pena de prisão perpétua, justificando:
‘Precisamos impedir este cérebro de funcionar’.
Gramsci, um líder operário e intelectual marxista, vai para
a prisão. Paradoxalmente, ali escreve seu maior livro: Cartas do Cárcere.
A obra foi uma das muitas a inspirar Joaquim Falcão,
diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas
no Rio de Janeiro, estreante da coluna Prateleira. O jurista
destaca a importância da publicação por, entre outras
razões, “romper com o mecanismo marxista, que advogava
a prevalência da infraestrutura econômica como definidora
da vida social e do próprio comportamento dos indivíduos”.
“Gramsci valorizou a cultura, a política, criou conceitos
até hoje importantes como o de hegemonia, intelectual
orgânico. Foi um pioneiro do moderno pensamento
social”, afirma Falcão.
82
Outra obra de linha semelhante, também considerada
muito importante para o jurista, é Casa Grande e
Senzala, do sociólogo e antropólogo Gilberto Freire. De
acordo com Falcão, o autor de Casa Grande e Senzala
defende na obra uma tese muito simples: O Brasil precisa
pensar o Brasil a partir do Brasil. “O direito brasileiro
precisa pensar o direito e a justiça brasileira com os
pés encharcados em nossa realidade. Ainda somos uns
importadores de ideais, instituições e processos sub
germânicos, sub saxões e sub latinos. Precisamos dialogar
com todos eles, é verdade. Mas devemos deixar de ser
subs. O universal não é igual”, afirma.
Por fim, Falcão indica a leitura de A Marcha da
Insensatez: De Tróia ao Vietnã, de Barbara Tuchman,
grande historiadora norte americana, já falecida. O jurista
é só elogios à obra. E explica por quê. “Ela (a autora) faz
uma pergunta básica: Por que quem já deteve o poder total,
como Tróia contra os gregos, como a Inglaterra contra
os americanos, a Igreja Católica contra Lutero, como os
Estados Unidos contra o Vietnã, perde o poder total?
Faz uma análise histórica decisiva sobre a importância
do acesso à comunicação, aos centros de decisões do
poder. Imperdível para os dias de hoje, de comunicação
interglobal e interpessoal”, relata Falcão.
Justiça & Cidadania | Maio 2014
2014 Maio | Justiça & Cidadania 83
GONÇALVES COELHO
ADVOCACIA
SÃO PAULO
Avenida Brigadeiro Faria Lima, 1478/1201 – Jardim Paulistano – (55) 11 3815 9475
84
www.gcoelho.com.br
Justiça & Cidadania | Maio 2014