VENI, VIDI, VICI - assinatura digital da Ciência Hoje

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VENI, VIDI, VICI - assinatura digital da Ciência Hoje
FRANKLIN RUMJANEK
a propósito
FOTO CICERO RODRIGUES
VENI, VIDI, VICI
Uma retrospectiva
histórica por
certo revelará
que uma grande
parcela do
acervo científico
se apoiou
fortemente
na visão
FRANKLIN RUMJANEK
Instituto de
Bioquímica Médica,
Universidade Federal
do Rio de Janeiro
[email protected]
12 | CIÊNCIAHOJE | VOL. 48 | 282
Não há nos dicionários, para nenhum dos
outros sentidos, palavras equivalentes ao
significado de ‘visionário’. Podemos dizer
que alguém foi presciente ao comentar sobre
um tema qualquer das ciências, por exemplo, mas dificilmente afirmaremos que foi
olfativo, auditivo ou tátil. A importância da
visão na linguagem é refletida por muitas
outras expressões e provérbios que qualificam um sem-número de ações. Usamos, por
exemplo, expressões como ‘sob esta ótica’,
‘visto que’, ‘ver para crer’, ‘quem viver, verá’
e muitas outras.
Essa peculiaridade atesta a importância
da visão para quase todas as manifestações
de nosso intelecto, principalmente no que
tange à ciência e às artes de maneira ge­ral. De fato, uma retrospectiva histórica por
certo revelará que uma grande parcela do
acervo científico se apoiou fortemente na visão. Montanhas de conhecimento foram geradas somente pela física da luz, em todos
os seus aspectos, e por especialidades associadas, como a astronomia.
Sem muito medo de exagerar, é possível
afirmar que a posição do Homo sapiens como
espécie que se destaca das demais por seus
processos mentais deve muito à capacidade
humana de transformar o estímulo lumino­so em imagens. Fisiologicamente, não surpreende que a visão ocupe no córtex cerebral humano uma área muito maior que as
dedicadas aos demais sentidos. Isso re­sultou do processo evolutivo que pri­vilegiou a
interpretação das imagens como instrumento primordial associado à sobrevivência,
à reprodução e à criatividade. A re­produção
se beneficia diretamente do processo visual, como estabelece a teoria da seleção
sexual darwiniana: os integrantes de mui­tas
espécies escolhem os parceiros reprodu­tivos julgando a qualidade de genes destes
com base essencialmente em sua aparência.
Ao considerar esse preâmbulo, talvez se
torne cada vez mais difícil encontrar seres
inteligentes fora da Terra usando as tímidas
tentativas do passado. Uma, que ficou céle­-
bre, foi a placa fixada à sonda espacial Pio­neer 10, a primeira a sair do sistema solar,
lançada em 1972. Os astrônomos Carl Sagan
(1934-1996) e Frank Drake contribuíram
com sugestões sobre quais dísticos deveriam
ser gravados nessa placa metálica. A placa
ser­viria como uma espécie de cartão de visitas dos terráqueos e, portanto, deveria descre­ver de modo sucinto como estes são anatômica e intelectualmente.
Não foi uma tarefa fácil, pois a mensa­gem exigiria grande poder interpretativo dos
alienígenas, mesmo supondo que fossem
superdotados nesse aspecto. A opção foi um
conjunto com as figuras desnudas de um homem e de uma mulher, a representação do
nosso sistema solar indicando de que planeta
saiu a sonda e um modelo do átomo de hi­
drogênio (o elemento mais abundante do
universo), com informações sobre o comportamento de seu elétron. Para complementar,
um diagrama mostrava a posição do Sol
em relação a 14 estrelas do tipo pulsar. A ideia
era a de que, com exceção das figuras humanas, os símbolos teriam caráter universal e
transmitiriam a noção de que comungávamos
verdades absolutas sobre as leis científicas.
As opiniões sobre como seriam inter­
pretados esses símbolos foram bastante comentadas na época do lançamento, e foram
propostas diferentes versões. Mas, limi­
narmente, talvez poucos tenham se dado
conta de que os possíveis interceptadores da
Pioneer 10 teriam que dispor primariamen­te do sentido da visão. Sem a visão, dificilmente a mensagem da placa de Sagan/Drake
seria compreendida, mesmo que houves­se entre os alienígenas um Jean-François
Champollion. A placa enviada nessa e em
outras sondas representa na verdade um
exemplo eloquente de nosso sentimento de
húbris, ou seja, de excessiva presunção. Não
bastasse a crença disseminada, entre a maioria dos humanos não familiarizados com
Darwin, de que na Terra somos reis, ainda
apostamos que os extraterrestres inteligentes
têm que ser iguais a nós.