Políticas públicas de alimentos nos países do Mercosul

Transcrição

Políticas públicas de alimentos nos países do Mercosul
 Políticas públicas de alimentos nos países do Mercosul
FÁBIA NOGUEIRA MARTINELLI
Universidade de São Paulo
[email protected]
LUCIANA ROMANO MORILAS
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo
Políticas públicas de alimentos nos países do Mercosul
O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos, ao mesmo tempo em que apresenta uma
grande taxa de desperdício, cerca de 64%. Enquanto isso, um dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio, segundo a FAO, é reduzir pela metade a subnutrição nos países
em desenvolvimento até 2015. No Mercosul, políticas de combate à fome caracterizam-se
como proteção social à população menos favorecida economicamente. Caracterizado como
uma pesquisa bibliográfica, o trabalho parte da questão da fome no mundo e da situação do
Mercosul, a fim de verificar as políticas deste âmbito em cada um dos países membros:
Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela e, por fim, o Brasil. Uma vez identificadas,
destacam-se as políticas voltadas para o reaproveitamento de alimentos fora do mercado. Para
isso, faz-se necessário compreender o papel da falta de renda e qual sua interferência na
questão da fome. Discute-se também a questão da má distribuição dos alimentos e as políticas
que têm como objetivo o aumento da produtividade. Conclui-se que faltam políticas
integradas acerca do combate à fome entre os países membros do Mercosul.
Palavras-chave: Reaproveitamento de alimentos; Fome; Políticas públicas; Mercosul
Abstract
Public policies on food in Mercosur countries
Brazil is one of the largest food producers, while offering a big wastage rate, about 64%.
Meanwhile, one of the Millennium Development Goals is to reduce to half malnutrition in
developing countries by 2015. In Mercosur, policies to combat hunger are characterized as
social protection to the poor population. Characterized as a bibliographic search, this paper
begins with the issue of hunger in the world and what the situation of Mercosur is, in order to
verify the policies of this framework in each of the member countries: Argentina, Paraguay,
Uruguay, Venezuela, and finally, Brazil. Once identified, there are the policies for reusing of
food off the market. For this, it is necessary to understand the role of lack of income and what
is its interference in the issue of hunger. We also discuss the issue of maldistribution of food
and policies that aim to increase productivity. We conclude that there isn’t an integrated
politic on combating hunger among Mercosur member countries.
Keywords: Food reusing; Hunger; Public policies; Mercosur
1
1. Introdução
Presente na Constituição Federal do Brasil, a alimentação foi elevada, por meio de
Emenda Constitucional, no ano de 2010, a Direito Fundamental dos cidadãos, equiparada
desta forma a outros Direitos Sociais como a educação e a saúde, por exemplo (Brasil, 2010).
É considerada, de acordo com a Lei 11.346/2006, fato intrínseco à dignidade da pessoa
humana e indispensável no tocante à realização dos direitos presentes na Lei Maior, sendo
necessário o delineamento, por parte do poder público, de políticas que garantam e promovam
a segurança alimentar e nutricional da população.
A temática “direito à alimentação” esbarra em aspectos que explicitam a necessidade
de adoção de políticas de combate à fome, as quais promovam a segurança alimentar. Uma
delas é citada no Relatório do Desenvolvimento Humano, publicado pela Organização das
Nações Unidas (ONU), em 2010, o qual afirma que 8,5% dos brasileiros vivem em estado de
pobreza. Outra questão é o desperdício de alimentos.
No que tange à produção brasileira de alimentos, o país consagra-se como um dos
maiores produtores mundiais (ANDRADE, 2005; AKATU, 2004) e apresenta expressiva taxa
de desperdício de alimentos, cerca de 64% (AKATU, 2004). As perdas podem ocorrer devido
a fatores presentes na cadeia produtiva dos alimentos (produção, distribuição e venda), bem
como no comportamento dos consumidores (CORRÊA, 2011, ANDRADE apud VILELA et
al ,2005; AKATU, 2004; NALLA, KOUWENHOVEN, LOSSONCZY VON LOSONCZ,
2011).
A Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai assinaram, em 26 de março de 1991, o
Tratado de Assunção, com vistas a criar o Mercado Comum do Sul (Mercosul). O objetivo
primordial do Tratado de Assunção é a integração dos quatro Estados Partes por meio da livre
circulação de bens, serviços e fatores produtivos, do estabelecimento de uma Tarifa Externa
Comum (TEC), da adoção de uma política comercial comum, da coordenação de políticas
macroeconômicas e setoriais, e da harmonização de legislações nas áreas pertinentes.
São Estados Partes do Mercosul: Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai (desde março de
1991) e Venezuela (desde agosto de 2012). O Mercado Comum implica em políticas
conjuntas e integradas, por isso, estudar as políticas de combate à fome nesse contexto pode
trazer benefícios com propostas de uma política integrada ou com o intercâmbio de iniciativas
entre os países.
Diante desse contexo, o objetivo geral é o levantamento teórico sobre as políticas
públicas de alimentos nos países do Mercosul. São objetivos específicos: compreender a
política de combate à fome desenvolvida nos países membros do Mercosul; e verificar a
existência de iniciativas de reaproveitamento de alimentos nesses países.
2. Segurança alimentar
O documento oficial do Brasil para a Cúpula Mundial da Alimentação, em Roma, em
1996, apresenta o significado de segurança alimentar (INSTITUTO CIDADANIA, 2001, p.
12):
Segurança alimentar e nutricional significa garantir a todos o acesso a alimentos
básicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem
comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com práticas alimentares
saudáveis, contribuindo assim para uma existência digna em um contexto de
desenvolvimento integral da pessoa humana.
O conceito de segurança alimentar aborda três aspectos: quantidade, qualidade e
regularidade no acesso aos alimentos (BELIK, 2003, p. 14). A quantidade tem relação com a
produção, que deve ser suficiente para alimentar a população. O conceito de qualidade
significa um alimento não contaminado ou apodrecido e dentro do prazo de validade,
2
consumido de forma digna, em um ambiente limpo, com talheres e de acordo com as normas
de higiene. O pressuposto da regularidade determina que deve haver acesso constante à
alimentação.
Ressalta-se ainda que o acesso aos alimentos difere do conceito de disponibilidade. O
alimento pode estar disponível, porém nem toda a população tem acesso por diversos fatores,
como por exemplo, a falta de renda. “A construção da segurança alimentar e nutricional
implica um trabalho conjunto e solidário do governo e da sociedade civil.” (INSTITUTO
ETHOS, 2005, p. 10).
Para interesse desta pesquisa, destacam-se a produção e distribuição de alimentos e,
mais especificamente, a doação de alimentos e o combate ao desperdício. A doação de
alimentos, caracterizada como o reaproveitamento de alimentos fora do mercado, e o
consequente combate ao desperdício dependem, de um lado, do incentivo do governo, e de
outro, da iniciativa das empresas doadoras:
A tarefa de promover a segurança alimentar também pode ser assumida pela
empresa, como promotora de qualidade de vida da comunidade, ao incluir em sua
rotina ações de solidariedade voltadas para a construção de uma sociedade sem
fome, que contribuam para garantir bem-estar, oportunidades de desenvolvimento e
autonomia a todos os seus cidadãos. (INSTITUTO ETHOS, 2005, p. 10)
3. A situação do Mercosul
“Com quase 870 milhões de pessoas com subnutrição crônica no período de 2010-12,
o número de pessoas com fome no mundo permanece inaceitavelmente alto” (FAO, 2012, p.
8). Isso equivale a uma em cada oito pessoas. A maioria vive em países em desenvolvimento,
nos quais estima-se que quase 15% da população, o equivalente a 850 milhões de pessoas,
estão subnutridas.
Pesquisas sugerem que a maior parte do progresso foi atingida antes de 2008 e que,
desde então, as iniciativas de combate à fome têm diminuído e estão estabilizadas. No
entanto, a meta de Objetivo de Desenvolvimento do Milênio de reduzir pela metade a
subnutrição no mundo em desenvolvimento, até 2015, ainda pode ser alcançada.
O relatório “The State of Food Insecurity in the World” [O Estado da Segurança
Alimentar no Mundo] (FAO, 2012) apresenta a evolução dos países do mundo todo em
relação a metas de erradicar a subnutrição, no período de 1990 a 2012. Tem-se um panorama
do número de pessoas subnutridas por região, no qual verifica-se uma redução de 25,1% no
número de pessoas subnutridas no período de 1990 a 2012 na América Latina, o que indica
um progresso rumo à meta da Cúpula Mundial de Alimentação (WFS - World Food Summit).
Em relação à proporção de subnutridos na população total da América Latina, houve
uma redução de 43,4% no mesmo período, o que representa um progresso insuficiente para
alcançar a meta do Objetivo de Desenvolvimento do Milênio (MDG – Millennium
Development Goal), se as tendências predominantes permanecerem.
Dentre os países do Mercosul, o Brasil é o que mais evoluiu no alcance de suas metas.
Argentina, Uruguai e Venezuela não apresentaram dados significativos e o Paraguai é o país
de pior desempenho, com um aumento de quase 30% na proporção de subnutridos.
De forma geral, manteve-se uma redução no número e na proporção da subnutrição na
América Latina e Caribe nos últimos anos, o que significa que a região está no caminho certo
para atingir sua meta de MDG. No entanto, para que objetivos como esse sejam alcançados,
são necessárias melhorias nas políticas de combate à fome.
O direito de se alimentar regular e adequadamente consiste em “uma obrigação que é
exercida pelo Estado que, em última análise, é a representação da nossa sociedade”. (BELIK,
2003, p. 14)
3
4. Políticas de combate à fome no Mercosul
O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas emitiu o
“Comentário Geral 12 – O Direito à Alimentação Adequada”, que relata em seu parágrafo 15:
“sempre que um indivíduo ou grupo é incapaz, por razões além de seu controle, de usufruir do
direito à alimentação adequada com recursos à sua disposição, os Estados teriam a obrigação
de realizar (prover) o direito diretamente”
Iniciativas como essa caracterizam-se como proteção social com o objetivo de acelerar
a redução da fome. Para a FAO, esse tipo de iniciativa é fundamental:
Primeiro, pode proteger os mais vulneráveis que não se beneficiam pelo crescimento
econômico. Segundo, a proteção social, estruturada adequadamente, pode contribuir
diretamente para um crescimento econômico mais rápido através do
desenvolvimento de recursos humanos e fortalecimento da habilidade dos pobres,
especialmente pequenos fazendeiros, para gerenciar riscos e adotar tecnologias
avançadas com alta produtividade (FAO, 2012, p. 36).
Sachs (2005) afirma que políticas sociais de transferência de renda não são suficientes
se não estiverem relacionadas com outras iniciativas de combate à fome. São necessários
equipamentos sociais e de infraestrutura para que a situação mude, os investimentos que ele
denomina “seis tipos de capital”: capital humano (saúde, nutrição e treinamento); capital
empresarial (máquinas, instalações e indústrias); infraestrutura (estradas, energia, água);
capital natural (terras cultiváveis, solos saudáveis, biodiversidade); capital público (sistemas
jurídicos, serviços públicos); e capital de conhecimento (know-how científico e tecnológico).
A 32ª Conferência Regional da FAO para a América Latina e Caribe, realizada em
Buenos Aires, na Argentina, em março de 2012, teve como tema “Segurança alimentar e
nutricional: repercussões, implicações e oportunidades para a América Latina e o Caribe”. Os
principais temas foram: a) Governança da segurança alimentar e nutricional (SAN) a nível
global e regional: como exemplo, o reforço da Iniciativa América Latina e Caribe sem Fome
em 2015; b) Inversão na agricultura e adaptação às mudanças climáticas, com prioridade na
agricultura familiar.
O acesso aos alimentos e as mudanças nos padrões de consumo se referem ao
funcionamento do mercado de trabalho agrícola e rural, consumo de produtos básicos
tradicionais e nutrição, alimentação escolar, educação alimentar e redução de perdas e
desperdícios de alimentos. Recomendou-se a cooperação na implementação de programas que
contribuam para a redução das perdas de alimentos, melhorando as práticas de manejo e as
condições de armazenamento e distribuição.
Relata-se, a partir desse ponto, as políticas internas de cada um dos países membros.
Na Argentina, o Projeto de Lei nº 25.989, denominado “Regimen Especial Para La
Donación de Alimentos – Donal” [Regime Especial Para a Doação de Alimentos], de
dezembro de 2004, tem o propósito de contribuir para satisfazer as necessidades alimentares
da população economicamente mais vulnerável.
O projeto determina que o alimento doado deve estar de acordo com o Código
Alimentario Argentino [Código Alimentar Argentino], e ressalta que deve haver agilidade de
distribuição de modo a evitar a decomposição ou vencimento do produto.
ARTIGO 9°.- Uma vez entregue ao donatário o material doado nas condições
exigidas pelo artigo 2°, o doador fica liberado de responsabilidade pelo danos e
prejuízos que podem acontecer ou pelo seu risco, salvo quando se tratarem de atos
ou omissões que degenerem em delitos de direito criminal. (tradução deste autor) i
Na Província de Entre Ríos, a Lei nº 9.617 instituiu, no âmbito da Secretaria de Saúde,
o Banco Provincial de Alimentos (BAPRAL), em abril de 2005, que regulamenta a doação de
alimentos nas seguintes condições:
4
Produtos alimentícios em bom estado, perecíveis ou não, que mesmo sem alterar as
condições bromatológicas e de segurança indispensáveis para seu consumo, não
puderam ser comercializados no mercado por haver sofrido uma falha durante o
processo de industrialização ou distribuição, tais como danos no recipiente externo,
defeitos no rótulo, no enunciado do conteúdo, ser excedente de estoque, etc
(tradução deste autor)ii
A lei parte do pressuposto da boa fé dos doadores para eliminar sua responsabilidade
civil ou penal. Esse tipo de legislação é um exemplo de iniciativa do Estado que estimula o
reaproveitamento de alimentos fora do mercado. Com isso é possível reduzir o desperdício e
reduzir custos, tanto por parte das organizações que recebem a doação, quanto os custos que o
próprio Estado tem com suas políticas sociais de combate à fome.
Com esses resultados, é possível perceber que a Argentina tem legislação específica
para beneficiar aqueles que procuram doar os alimentos, retirando-lhes a possibilidade de
responsabilização civil ou criminal caso qualquer dano ocorra. O regramento é semelhante a
um dos Projetos de Lei que fazem parte do Estatuto do Bom Samaritano e que foi arquivado,
por ser considerado discriminatório, como se verá adiante.
No Uruguai, as políticas públicas relacionadas ao problema do acesso à alimentação
adequada e sadia estão sendo desenvolvidas por diferentes órgãos, como o Ministério Del
Desarrollo Social [Ministério do Desenvolvimento Social] e o Ministerio del Trabajo y
Seguridad Social [Ministério do Trabalho e Seguridade Social], ao qual está vinculado o
Instituto Nacional de Alimentación (INDA) [Instituto Nacional de Alimentação],
Similarmente ao Chile, pelo que parece, também não há no Uruguai uma articulação
mais próxima entre as políticas de acesso aos alimentos e a promoção da agricultura
familiar, porém, é importante destacar a existência de programas que buscam lutar
contra as causas da pobreza rural, atuando em serviços de assistência técnica e
social, e assistência financeira. (MALUF, SCHMITT e GRISA, 2009, p. 30)
(tradução deste autor)iii
No período de 2005 a 2007, foi elaborado o Plan de Atención Nacional a La
Emergencia Social (Panes) [Plano de Atenção Nacional à Emergência Social], dirigido a
pessoas e domicílios em situação de extrema pobreza (MALUF, SCHMITT e GRISA, 2009),
com o objetivo de cuidar das necessidades básicas dos setores sociais mais vulneráveis e
construir rotas de saída da indigência e da pobreza.
As principais áreas do Panes são: alimentação, saúde, moradia, trabalho e educação.
No que diz respeito à segurança alimentar o PAN [Programa Alimentar Nacional] ajuda
grupos familiares por meio da doação de alimentos secos e leite em pó; o SNC [Sistema
Nacional de Refeições] tem como objetivo prestar assistência alimentar por meio de um
serviço de almoço diário; por fim, o Caif [Centro de Atenção à Infância e à Família] é um
exemplo de iniciativa conjunta do Estado com organizações da sociedade civil e intendências
municipais e tem o objetivo de garantir a proteção e os direitos das crianças até os três anos de
idade.
Em 2007, foi lançado o Plan de Equidad [Plano de Equidade], cujo objetivo é
introduzir modificações nas estruturas e instrumentos de proteção social. Para o objetivo deste
trabalho interessa tratar principalmente das propostas relacionadas à alimentação, nas quais
todas as faixas etárias devem ser beneficiadas por uma prestação monetária destinada à
alimentação nos lares em situação de pobreza extrema e programas de transferência alimentar
para grupos específicos da população referencialmente pobre.
No Uruguai, não há qualquer projeto governamental de reaproveitamento de
alimentos. As iniciativas se referem principalmente a auxílios públicos para compra de
alimentos, não para redução de desperdício.
O Paraguai é o país que mais carece de investimentos no combate à fome.
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O Paraguai, país de imensas potencialidades desde o ponto de vista dos recursos
estratégicos para a produção, tem transitado por um prolongado período de não
menos que 20 anos de baixa atividade econômica e de crise social. (FAO, 2009, p. 12)
(tradução deste autor)iv
Diante desse contexto, o Instituto Nacional de Alimentación y Nutrición (INAN)
[Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição], vinculado ao Ministerio de La Salud Pública
y Bienestar Social [Ministério da Saúde Pública e Bem Estar Social], tem como missão
assegurar o melhoramento contínuo da saúde nutricional, segurança e qualidade dos alimentos
processados destinados ao consumo humano.
Acredita-se que as funções deste órgão deverão ser redimensionadas no contexto da
implantação do Plano Nacional de Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional
recentemente elaborado, mas não foi possível obter informações sobre o futuro papel
a ser desempenhado pelo órgão. Assim mesmo é importante registrar que o Planal
contempla a constituição de um Observatório de Soberania e Segurança Alimentar e
Nutricional para subsidiar a elaboração de políticas públicas com este enfoque.
(MALUF, SCHMITT e GRISA, 2009, p. 36) (tradução deste autor) v
O Planal é uma resposta às condições de vulnerabilidade, que atingem
aproximadamente 40% da população: elevados índices de prevalência de desnutrição; má
nutrição e enfermidades de base alimentar; clima de insegurança no campo; Índios
desabrigados; 150 mil fazendas camponesas com baixo retorno econômico ao trabalho
familiar; milhares de famílias do campo e das cidades que não têm sua alimentação garantida
durante o ano; dispersão de esforços e recursos institucionais públicos e da cooperação
externa para a promoção do desenvolvimento sustentável e o cumprimento dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio.
Dentre os objetivos do Planal, tratam da regularidade no aceso aos alimentos: a
melhoria da estabilidade do fornecimento e acesso de alimentos e a garantia do acesso de
setores vulneráveis aos alimentos nutritivos durante todo o ano. Também é objetivo do Planal
melhorar o uso e consumo de alimentos da população em geral.
Com base nessas informações, é possível perceber que, em nível macro, há um ideal
que poderia levar à concepção de programas que incluam o reaproveitamento de alimentos,
porém, não foi possível encontrar qualquer atividade que concretize tais planos. O próprio
relatório da FAO permite concluir pela ausência de respostas concretas que, de fato,
influenciam na vida dos mais necessitados:
No âmbito do sistema institucional e de políticas, a documentação consultada
destaca a ausência de mudanças no paradigma do funcionamento do Estado, no seu
papel de motor do desenvolvimento integral; a fraca governança, que tem dificultado
a conclusão sobre os principais temas do desenvolvimento; e os limitados avanços
em direção à excelência dos serviços, entre os mais salientes. (FAO, 2009, p. 19)
(tradução deste autor)vi
Os programas de segurança alimentar da Venezuela estão, em grande parte, voltados
para a oferta de alimentos. Por meio das Missões, que são iniciativas sociais implementadas
pelo governo com participação direta das comunidades (MALUF, SCHMITT e GRISA,
2009), constroem-se as políticas sociais do governo Chávez. As missões relacionadas com a
segurança alimentar e redução da pobreza são: Zamora (questão agrária); Mãe do Bairro
(apoio a mães de família em situação de extrema pobreza); Negra Hipólita e Meninos e
Meninas do Bairro (voltada para crianças que vivem nas ruas); e Mercal (doação de
alimentos).
É de interesse deste trabalho a Missão Mercal, que tem como objetivo garantir a
segurança alimentar por meio da comercialização de alimentos e outros produtos de primeira
necessidade para a população venezuelana, mantendo a qualidade, com produtos de baixos
preços e fácil acesso. Criada em 2003, desenvolveu-se como uma rede nacional com centros
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de abastecimento, armazéns, supermercados e ponto de vendas. Atualmente, está ligada ao
Ministério do Poder Popular para a Alimentação.
O governo venezuelano considera a problemática do abastecimento uma questão
estratégica, tanto do ponto de vista estrutural como em função dos problemas conjunturais de
desabastecimento que foram enfrentados em vários momentos do Governo Chávez. (MALUF,
SCHMITT e GRISA, 2009)
Vários itens têm seu preço controlado no país. Em julho de 2011, a Venezuela
decretou a Lei de Custos e Preços Justos (Decreto Ley Nº 8.331/11).
O presente Decreto com Classificação, Valor e Força de Lei tem como objetivo
estabelecer as regulamentações, assim como os mecanismos de administração e
controle, necessários para manter a estabilidade de preços e propiciar o acesso aos
bens e serviços a toda a população em igualdade de condições, no marco de um
modelo econômico que privilegie os interesses da população e não do capital. vii
Percebe-se, portanto, que há espaço para a doação de alimentos, com um programa
específico, mas não foi possível encontrar as atividades que concretizam tais planos. Por outro
lado, um programa específico de controle de preços estimula a compra de novos produtos,
deixando de lado o reaproveitamento e a redução do desperdício.
O problema da fome no Brasil caracteriza-se pela falta de regularidade no acesso de
grande parte da população aos alimentos:
No Brasil, não temos problemas de oferta de alimentos, mas 46 milhões de
indivíduos vivem em situação de risco, pois a sua renda é insuficiente para que eles
possam se alimentar nas quantidades recomendadas e com a qualidade e
regularidade necessária. (BELIK, 2003, p. 18).
Tramita na Câmara Federal, desde 1996, o conjunto de quatro anteprojetos de lei e um
anteprojeto de convênio, denominado Estatuto do Bom Samaritano. Foram consultados o
Programa de Alimentação do Trabalhador, leis de incentivo à cultura e a legislação norteamericana para a elaboração destes
São de iniciativa privativa do Executivo os três anteprojetos que tratam das isenções e
incentivos fiscais e também da responsabilização do doador: 1) Dispõe sobre a
responsabilidade civil e criminal das pessoas naturais e jurídicas que doam alimentos; 2)
Dispõe sobre Isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados nos alimentos, máquinas,
equipamentos e utensílios doados a entidades, associações e fundações, sem fins lucrativos,
que tenham por finalidade o preparo e, ou, distribuição gratuita de alimentação a pessoas
carentes; 3) Dispõe sobre incentivos fiscais às pessoas jurídicas que doarem refeições a
entidades, associações e fundações, sem fins lucrativos, para distribuição a pessoas carentes.
É de interesse para este trabalho o primeiro anteprojeto citado, o Projeto de Lei
4.747/1998 sobre a responsabilidade civil e criminal:
Justificou-se no fato de inúmeros empresários evitarem a doação de alimentos,
receosos da responsabilidade civil e criminal que lhes possam ser imputadas por
dano ao beneficiário, pelo bem doado. Os excedentes são muitas vezes destruídos
dado o temor das possíveis consequências legais da doação. (ANDRADE, 2005, p.
11)
O Projeto de Lei 4.747/1998 acrescenta um artigo ao Código Civil (Lei nº 3.071,
de 1º de janeiro de 1916) e um parágrafo ao art. 129 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848,
de 7 de dezembro de 1940), determinando que:
A pessoa natural ou jurídica que doar alimentos, industrializados ou não, preparados
ou não, a pessoas carentes, diretamente ou por intermédio de entidades, associações
ou fundações, sem fins lucrativos é isenta de cominação penal resultante de dano ou
morte ocasionados ao beneficiado, pelo bem doado, desde que não se caracterize: I –
dolo ou negligência. II – descumprimento das leis e regulamentos aplicáveis à
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fabricação, processamento, preparo, manuseio, conservação, estoque ou transporte
de produto alimentar.
Os projetos passaram pela análise da Comissão de Constituição e Justiça da
Câmara dos Deputados e foram arquivados.
Sua aprovação, sem dúvida alguma, teria proporcionado um espetacular avanço e
crescimento na capacidade de cobertura das ações dos bancos de alimentos e
similares. (...) Para reverter positivamente essa situação, deve-se apostar na
capacidade de se construir com a sociedade (...) um pacto de cumplicidade voltado
para a superação de qualquer entrave ao desenvolvimento de ações. Essa
cumplicidade vem sendo construída – particularmente em São Paulo, estado que
concentra os únicos programas do tipo banco de alimentos do país – a partir de
decisões importantes tanto no que se refere à responsabilidade da doação quanto a
quem se destinam os produtos arrecadados. . (INSTITUTO CIDADANIA, 2001, p.
58)
A iniciativa conhecida como Fome Zero destaca-se como a atividade principal na
aprovação do Estatuto do Bom Samaritano (Projeto de Lei 4.747/1998). (BELIK, 2012). Suas
políticas classificam-se em estruturais, específicas e locais.
As políticas estruturais são voltadas para combater a vulnerabilidade à fome, com
iniciativas de aumento da renda e diminuição da desigualdade, tais como a geração de
emprego e renda (causa um aumento no poder aquisitivo e na demanda efetiva por alimentos);
a intensificação da reforma agrária; a previdência social universal (extensão a todos os
trabalhadores em condições de vulnerabilidade social e biológica, como idade, invalidez,
viuvez e desemprego); bolsa escola e renda mínima (estímulo à frequência escolas como
contrapartida ao fornecimento de uma renda mínima às famílias carentes); e, por outro lado, o
incentivo à agricultura familiar (aumento da produção de alimentos e proteção ao agricultor
de menor renda).
As políticas específicas tratam de iniciativas que auxiliam, através de iniciativas
especiais: Programa Cupom Alimentação (cupons para a compra de alimentos, exigindo
contrapartida como cursos de alfabetização ou prestação de serviços comunitários); ampliação
e redirecionamento do Programa de Alimentação do Trabalhador (aumento da fiscalização e
priorização dos trabalhadores de renda mais baixa); doação de cestas básicas emergenciais;
combate à desnutrição materno-infantil; manutenção de estoque de segurança (estabilização
de preços internos); ampliação da merenda escolar; garantia da segurança e qualidade dos
alimentos; educação para o consumo e educação alimentar.
As políticas locais podem ser implantadas por estados e municípios, a grande
maioria em parceria com a sociedade civil. São divididas em: áreas rurais, pequenas e médias
cidades e metrópoles. Dentro dessas políticas encontra-se o banco de alimentos.
O primeiro Banco de Alimentos do Brasil foi o “Mesa Brasil”, criado pelo SESCSP. O Banco de Alimentos tem como objetivo receber doações de alimentos, seleciona-los e
doá-los para entidades assistenciais, contribuir para reduzir a fome e a insegurança alimentar
nutricional.
Nota-se que a doação de alimentos não está regulamentada pela legislação
brasileira, e encontra-se nas políticas locais de combate a fome, não existindo nenhuma
política estrutural específica que trate desse tema.
Mesmo sem a cobertura de uma legislação específica, os bancos de alimentos
chamaram a responsabilidade para si, na medida em que a redistribuição daquilo que
é captado junto à rede de doadores é feita em embalagem que leva rotulagem
própria. Essa iniciativa só é possível a partir da construção de uma relação de
confiança entre doador e receptor. (INSTITUTO CIDADANIA, 2001, p. 58)
8
5. Conclusão
Ao analisar e compreender a política de combate à fome, foi possível concluir que,
apesar da existência de políticas conjuntas como, por exemplo, as questões levantadas na 32ª
Conferência Regional da FAO para a América Latina e Caribe, que teve a segurança alimentar
e nutricional como tema, não há uma política integrada de combate à fome entre os países
membros do Mercosul.
Sobre o reaproveitamento de alimentos, em nenhum dos países essa questão está como
prioritária. Em grande maioria, as políticas estão voltadas ao aumento da produtividade, com
grande destaque para o incentivo à agricultura familiar. O aumento da produção, por si só,
gera o aumento no excesso e o consequente desperdício, se não for garantido que o alimento
produzido será adequadamente distribuído para a população menos favorecida.
A redução do desperdício faz-se necessária. A doação de alimentos, juntamente com
ações do governo, pode ser um mecanismo eficiente, economicamente e também no seu
aspecto ambiental e social.
Constatou-se que o problema dos alimentos não está na quantidade produzida, mas
sim na sua distribuição. Deve-se atentar também para a questão ambiental do combate ao
desperdício, ir além do desenvolvimento econômico proporcionado pelo incentivo à
agricultura familiar, e tratar o problema da fome de modo integrado.
O Estado é responsável por garantir o acesso aos alimentos para a população. No
entanto, sendo a responsabilidade do Estado, esse tipo de iniciativa poderia ter mais
incentivos, tais como aprovação de leis como do Estatuto do Bom Samaritano, ou como a lei
criada em Entre Rios, na Argentina.
As políticas de proteção social não são suficientes e, deve-se atentar para que o auxílio
prestado seja destinado à alimentação.
Referências
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9
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hortaliças. Horticultura Brasileira, Brasília, v. 21, n. 2, p. 141-143, abril/junho 2003.
i
ARTICULO 9°.- Una vez entregadas al donatario las cosas donadas en las condiciones exigidas por el artículo
2°, el donante queda liberado de responsabilidad por los daños y perjuicios que pudieran producirse con ellas o
por el riesgo de las mismas, salvo que se tratare de hechos u omisiones que degeneren en delitos de derecho
criminal. (ARGENTINA, Lei nº 25.989, 2004)
ii
Productos alimenticios en buen estado, perecederos o no, que aún sin alterar las condiciones bromatológicas y
de inocuidad indispensables para su consumo, no no puedan comercializarse en el mercado por haber sufrido una
falla durante el proceso de industrialización o distribución, tales como daños en el exterior del envase, defectos
en la rotulación, en el enunciado del contenido, ser excedentes de stock; etc. (ARGENTINA, Entre Ríos, Lei nº
9.617. 2005)
iii
Similarmente a Chile, por lo que parece, tampoco hay en Uruguay una articulación más estrecha entre las
políticas de acceso a los alimentos y la promoción de la agricultura familiar, sin embargo, es importante destacar
la existencia de programas que buscan luchar contra lãs causas de la pobreza rural, actuando en servicios de
asistencia técnica y social, y asistencia financiera.
iv
El Paraguay, país de inmensas potencialidades desde el punto de vista de los recursos estratégicos para La
producción, ha transitado por un prolongado periodo de no menos de 20 años de baja actividad económica y de
crisis social.
v
Se cree que las funciones de ese órgano deberán ser redimensionadas en el contexto de implantación del Plan
Nacional de Seguridad y Soberanía Alimentaria y Nutricional recientemente elaborado, pero no fue posible
obtener informaciones sobre el futuro papel a ser desempeñado por el órgano. Asimismo es importante registrar
que El PLANAL contempla la constitución de un Observatorio de Soberanía y Seguridad Alimentaria y
Nutricional para subsidiar la elaboración de políticas públicas con este enfoque.
vi
En este ámbito del sistema institucional y de políticas, la documentación consultada destaca la ausencia de
cambios en el paradigma de funcionamiento del Estado, en su rol de conductor del desarrollo integral; la débil
gobernabilidad, que ha dificultado la concertación en torno de los grandes temas del desarrollo; y los limitados
avances hacia la excelencia en los servicios, entre los más resaltantes.
vii
Articulo 1°. EI presente Decreto con Rango, Valor y Fuerza de Ley tiene por objeto establecer las
regulaciones, así como los mecanismos de adminstración y control, necesarios para mantener la estabilidad de
precios y propiciar el acceso a lós bienes y servicios a toda la población en igualdad de condiciones, en el marco
de un modelo económico y social que privilegie los intereses de la población y no del capital. (VENEZUELA,
Decreto Ley Nº 8.331/11, 2011)
10

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