O cosmo e o caos

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O cosmo e o caos
10 • Brasília, sábado, 11 de agosto de 2007 • CORREIO BRAZILIENSE
CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, sábado, 11 de agosto de 2007
PENSAR
[ RESENHA
DEUS O ABENÇOE, DR. KEVORKIAN
PODE SER DEFINIDO EM
A P E N A S T R Ê S PA LAV R A S :
H I L Á R I O, I M P E R D Í V E L E I N C Ô M O D O
PENSAR
[ L I T E R AT U R A
R E E D I Ç Ã O D A S C O S M I C Ô M I C A S T R A Z D E V O LT A O M E L H O R D E I T A L O C A L V I N O ,
U M D O S G R A N D E S E S C R I TO R E S D O S É C U LO 2 0 . E D I TO R A U N B L A N Ç A T E S E Q U E D E TA L H A
O UNIVERSO DO AUTOR POR MEIO DA ANÁLISE DE SEUS PERSONAGENS.
Courtesy Random House Publishers/Handout/Reuters - 12/4/07
O UNIVERSO HUMANO
CMYK
NO TÚNEL DE
DA EQUIPE DO CORREIO
DA EQUIPE DO CORREIO
talo Calvino (1923-1985) é um dos escritores mais
fascinantes do século 20. Comunista atuante, crítico literário, romancista talentoso, deixava pistas
de seus múltiplos interesses em suas inúmeras
obras. Propositalmente, reescrevia seus livros continuamente, mesclando personagens e conteúdos, a
ponto de, hoje, ser impossível um recenseamento
completo do seu trabalho. No último mês, a Companhia das Letras relançou Cosmicômicas, um de seus livros mais importantes (leia resenha abaixo). Paralelamente, a Editora UnB preparava o lançamento, no
próximo dia 22, de Italo Calvino — Pequena cosmovisão do homem, tese de doutorado do professor Gustavo de Castro, que consumiu quatro anos de pesquisa
gastos, em boa parte, em viagens na Itália e Espanha.
Para elaborar sua tese, que consumiu um prêmio gan-
I
Outros, relembram seu exemplo
de sacrifício para um mundo cada vez mais individualista e
egoísta. A intenção é óbvia, fazer
rir mostrando o que houve de
melhor, e pior, na América.
Para azar de Vonnegut, o doutor Kevorkian foi preso em 1999,
depois de participar de algumas
experiências de eutanásia. O
programa ficou sem sentido e
Nova York deixou de rir de suas
mazelas. Mas os microcontos,
não existe definição melhor para
o trabalho, concentram o que há
de melhor no estilo do autor: ironia temperada com o inusitado.
DEUS O ABENÇOE,
DR. KEVORKIAN
De Kurt Vonnegut
Tradução de S. Duarte
Editora Record
80 páginas
Preço: R$ 28
TRECHO
“Meu trabalho é entrevistar gente morta para a WNYC, mas em vez
disso foi o falecido sir
Isaac Newton quem me
entrevistou. Ele fez apenas uma viagem de ida
pelo túnel. Quer saber de
que ele parece ser feito,
de tecido, metal, madeira ou outra coisa. Respondi que é feito da mesma matéria dos sonhos,
o que o deixou extremamente insatisfeito.
São Pedro repetiu-lhe
uma frase de Shakespeare:
— Há mais coisas entre o Céu e a Terra, Horácio, do que supõe sua vã
filosofia.”
O COSMO
E O CAOS
ALEXANDRE PILATI
ESPECIAL PARA O CORREIO
Ele fez o primeiro sinal do mundo no corpo de uma
estrela. Também já foi um dinossauro desabusado. Ele
viu a lua gotejar seu corpo brilhante sobre a terra. Viveu a experiência de uma célula apaixonada por si
mesma dividindo-se em duas. Viu a Terra constituir-se
a partir de um amontoado de meteoritos e cacarecos.
Foi perseguido pelo seu assassino no trânsito caótico
de uma grande cidade. Já foi um molusco que resmunga de dentro de uma concha, dizendo que nasceu para
ensinar os homens a contarem o tempo. Esse, que viveu todas as eras desde o Big Bang, é Qfwfq, um curioso personagem de nome impronunciável criado por
Italo Calvino para protagonizar suas cosmicômicas,
textos que fundem ciência, literatura e fantasia, desilusão e humor.
O recente lançamento no Brasil da reunião desses
textos (dez anos depois da edição italiana) é um acontecimento digno de comemoração. Com Todas as cosmicômicas (Cia das Letras, 2007), a obra de Calvino em português ganha significativa amplidão. O intrigante conjunto de textos (com ótima tradução de Ivo Barroso e Roberta Barni, que preserva boa parte da beleza das frases de
Calvino em italiano) foi recolhido em quatro livros. Os
dois primeiros, As cosmicômicas (1965) e T=0 (1967), são
complementares entre si e seguem uma certa cronologia
na apresentação das peripécias do protagonista Qfwfq.
Os dois últimos volumes trazem uma evolução bastante
clara do projeto ‘cosmicômico’ do autor e ainda não haviam sido publicados em português. São eles La memoria del mondo e altre storie cosmicomiche (1968) e Cosmicomiche vecchie e nuove (1984).
Calvino escreveu uma das obras literárias mais significativas do século 20. A vasta produção, que fez do escritor um clássico contemporâneo, abrange desde o neorealismo de A trilha dos ninhos de aranha (1947) até a
reelaboração de fábulas tradicionais italianas, o exercí-
cio da literatura fantástica e o experimentalismo do grupo Oulipo. As cosmicômicas, contudo, compõem um gênero peculiar, multifacetado e tenso, que agrupa diferentes tons, modos e tradições narrativas. São textos que
resistem à classificação e convidam a leituras diversas.
O formato textual das cosmicômicas é quase sempre o mesmo. Há uma espécie de preâmbulo científico
ou pseudo-científico, que logo a seguir é ferido pela
palavra irônica, arrogante e incisiva de Qfwfq, personagem que aparece como testemunha humana da fria
enunciação científica inicial. Verifica-se, assim, uma
disjunção entre a epígrafe e o texto que gera a graça e o
sabor da narrativa. No texto “Os dinossauros”, o golpe
das palavras de Qfwfq é bruto e revelador disso. Após a
citação científica a respeito do desaparecimento completo dos dinossauros o nervoso e egocêntrico personagem anuncia: “Todos menos eu, esclareceu Qfwfq,
porque fui também, em certo período, dinossauro —
digamos, durante uns cinqüenta milhões de anos; e
não me arrependo: ser dinossauro naquela época era
ter a consciência de ser justo, fazendo-se respeitar.”
CONTINUA NA PÁGINA 4
P 3-10
O processo é simples: o doutor Jack Kevorkian, que se popularizou como o Doutor Morte, depois que defendeu o direito dos pacientes à eutanásia, aplica uma injeção letal
em Vonnegut na sala da morte
da Penitenciária Estadual do
Texas. O repórter do além atravessa o túnel de luz e os portões de ouro do paraíso, e, logo
depois de entrevistar alguma
personalidade, é revivido e retorna para o mundo real. Nesse curto espaço de tempo, que
se multiplica na dimensão espiritual, bate papos amenos
com São Pedro e extrai confissões incômodas de Hitler,
Shakespeare ou Isaac Newton,
só para citar três exemplos.
O paraíso é um local de reflexão, que abriga maus e bons indistintamente. Não há inferno.
Alguns, como James Earl Ray (assassino do líder integracionista
negro Martin Luther King), não
se arrependem de suas ações.
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Dresden. O personagem principal, alter-ego de Vonnegut, viaja
entre a Terra e Tralfamadore, um
planeta distante, e convive, simultaneamente, em universos
paralelos no passado, no presente e no futuro. A obra, que
não faz concessões estéticas, é
um libelo contra a insensatez
dos conflitos armados e se transformou num dos maiores best
sellers do século 20.
Deus o abençoe, Dr. Kevorkian,
escrito entre 1998 e 1999 — relançado com nova tradução pela Record — reflete a experiência instigante dos 14 romances
que Vonnegut escreveu. O autor
se transforma, graças a experiências de quase-morte, num
repórter do além, entrevistando
personagens históricos ou que
deixaram mensagens pitorescas
em sua passagem pela Terra numa das melhores passagens,
um senhor que morreu ao se
atracar com um pittbull para
salvar um pequeno schnauzer,
diz que pelo menos sua vida
serviu para alguma coisa, ao
contrário daqueles que faleceram no Vietnã. A idéia surgiu a
partir de um convite da WNYC,
uma emissora de rádio pública
de Nova York (nos Estados Unidos, as emissoras públicas, conhecidas como PBS, transmitem programação educativa e
cultural). São textos curtos e
ágeis. Não dá para largar depois
que se começa a ler.
ho na Loteria Federal, Gustavo de Castro entrevistou a
viúva de Calvino, Esther Calvino (a Chichita), em uma
tarde e pesquisou os arquivos deixados por ele na Editora Einaudi, onde, em meio ao trabalho de escritor,
encontrava tempo para preparar pareceres sobre a
obra de novos autores. “Há uma parede completa,
cheio de análises deixadas por Calvino. É um acervo
impressionante que cobre toda a produção literária
italiana entre as décadas de 1950 e 1970”, ressalta.
Ao lado de seu trabalho na Einaudi, Calvino, filho e irmão de cientistas, também escrevia críticas sobre artes
plásticas. Antes de ser escritor, pretendia ser pintor. Ao
elaborar um romance ou conto, trabalhava o personagem com pequenas caricaturas. “Há um baú cheio delas
em sua casa”, conta o professor. “Além disso, não podemos esquecer que ele era um missivista extremamente
ativo. Deixou uma farta correspondência que
só agora começa a ser catalogada”. Nas páginas
4 e 5, veja a entrevista com Gustavo de Castro.
PEDRO PAULO REZENDE
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ois países diferentes convivem no seio dos Estados Unidos. O primeiro é
azedo, fundamentalista,
belicoso e racista. O outro, libertário, democrático e revolucionário. Kurt Vonnegut (1922-2007) foi
um dos maiores representantes
do espírito sadio norte-americano, distanciado dos ideais supremacistas e conservadores da administração republicana que ocupa a Casa Branca. Autor de obras
intrigantes, como Matadouro 5 e
Player Piano, sobreviveu, como
prisioneiro, ao massacre de
Dresden, cidade alemã obliterada por bombas incendiárias aliadas nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial. Mais de
200 mil pessoas morreram.
É preciso ressaltar que não
havia alvos militares na área e o
centro urbano reunia os melhores exemplos do barroco europeu, com palácios e igrejas
revestidos de ouro e brilho. Tudo virou cinzas. O calor das
chamas foi tão elevado que alguns dos que se refugiaram em
abrigos subterrâneos foram, literalmente, cozidos vivos.
Escrita em 1969, no auge da
Guerra do Vietnã, Matadouro 5 é
uma novela intrigante. O título
do livro reproduz o nome do local onde o autor, como prisioneiro de guerra, trabalhava em
D
P 3-10
Arquivo Pessoal / Companhia das Letras
LUZ
PEDRO PAULO REZENDE
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