os gnomos - a casa do mago das letras
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os gnomos - a casa do mago das letras
OS GNOMOS L P Baçan Copyright © 2014 L P Baçan Todos os direitos reservados Proibidas a reprodução e a divulgação sem a expressa autorização do autor. 2014 ÍNDICE 1a. PARTE - HEINZELMÃNNCHEN NOTAS DO TRADUTOR I HEINZELMÃNNCHEN PEZINHOS A PREPARAÇÃO WADJA O GRANDE MOMENTO A POÇÃO MÁGICA O PRESENTE ENXERGANDO COM O CORAÇÃO TODO O TEMPO LOCALIZAÇÃO A LENDA DE THORN A ÁRVORE DA VIDA 2a. PARTE - UM SER MÍSTICO E HARMÔNICO NOTAS DO TRADUTOR II O PALÁCIO A CASA DE WESSEL UM SER MÍSTICO E HARMÔNICO NOVAS SURPRESAS MEU AMIGO CUPIDO NOTAS DO TRADUTOR III POR QUE VOCÊ CHORA MEU AMIGO? A POÇÃO MÁGICA II A BOLSA DO GNOMO A FORJA DA SAÚDE ÚLTIMAS NOTAS DO TRADUTOR 1a. PARTE - HEINZELMÃNNCHEN NOTAS DO TRADUTOR I Recentemente, numa cidadezinha do interior do Brasil – não se menciona qual por sigilo, tanto pelas pessoas envolvidas quanto por aquelas que são o assunto do livro – um médico faleceu. O Dr. Fritz Berger, em avançada idade, deixou o convívio dos seus e da comunidade que o adorava pela sua bondade e pela sua competência. O falecimento do bom velhinho entristeceu a todos, mas sua expressão serena na morte, aquele sorriso tranquilo na face e a lembrança de seus atos de caridade e humanidade consolaram todos aqueles que, ainda que furtivamente, deixaram rolar uma lágrima de adeus. A família, consternada, por um longo tempo se ressentiu do falecimento dele que era o patriarca daquela família de imigrantes alemães, que vieram para o Brasil havia muitos anos, no período negro que antecedeu a deflagração da Segunda Grande Guerra. Pelo seu espírito humanitário, o Dr. Fritz era avesso à guerra ou qualquer tipo de discórdia ou desavença. Quando a tristeza arrefeceu, tentaram pôr em ordem o velho gabinete do médico para mantê-lo quase que como um museu em homenagem àquele homem tão querido. Entre os diversos livros, anotações e manuscritos, encontraram um, com uma capa feita em madeira entalhada e um sistema de dobradiças feito de couro, uma maravilha de artesanato. Nesta capa de madeira havia sido entalhada a seguinte palavra e um sistema de dobradiças feito de couro, uma maravilha de artesanato. Nesta capa de madeira havia sido entalhada a seguinte palavra em alemão: Heinzelmãnnchen. Os filhos e netos do Dr. Fritz Berger havia muito não liam ou falavam o alemão mais, uma vez que o médico, quando chegaram, impusera como norma que todos aprendessem as línguas e costumes da terra que os adotava a partir de então. Um dos netos dele mencionou-me o livro, numa de minhas aulas. Era meu aluno. Curioso, pedi-lhe que trouxesse o livro para que eu tentasse traduzi-lo. Ele pediu para consultar a família, mas, no dia seguinte, quando lhe indaguei a respeito, ele desconversou e não quis tocar no assunto. Fiquei intrigado com aquilo, pois percebi que a garota, de alguma forma, estava intimidada. Eu jamais teria tomado conhecimento ou manuseado o famoso livro se, um dia, o pequeno Hans não se sentisse mal na sala de aula. Imediatamente leve-o ao hospital, onde foi medicado, e em seguida leve-o para casa. A família ficou muito agradecida pelo meu gesto, convidando-me para um lanche. Indagaram o que poderiam fazer em retribuição ao meu gesto. Lembrei-me do livro. Pedi-lhes que deixassem vê-lo. Imediatamente houve quase uma reunião da família, onde discutiram acaloradamente o meu pleito, que acompanhava à distancia. Por fim, com uma solenidade que beirava o ritual, trouxeram-me uma caixa de madeira e colocaram-na em minhas mãos. Abri-a. Ali dentro o famoso livro e, sobre ele, um pequeno pedaço de madeira que me intrigou de imediato, pois não devia ter mais do que cinco ou seis centímetros e era feito de madeira dura, possivelmente de raiz de alguma árvore antiga. Examinei-o com dificuldade, pois seu tamanho minúsculo tornava isso difícil. Sobre uma base quadrada, com detalhes incrivelmente perfeitos, havia uma escultura, uma estátua, por assim dizer, de um ser que me lembrou de um dos anões da história da Branca de Neve. Todos os detalhes presentes na pequena estátua eram proporcionais e fiquei admirando a habilidade do artista que havia esculpido tão delicada peça. Deixei-a de lado e retirei o intrigante livro. Examinei-lhe a preciosa encadernação, feita de madeira e couro, com entalhes tão delicados e precisos que somente a mão de um artista hábil ao extremo poderia realizar. Dentro, em páginas manuscritas, mas com uma letra bem traçada e legível, estavam apontamentos do próprio Dr. Fritz Berger. A palavra "Heinzelmãnnchen" se repetia constantemente naquele que se assemelhava a um diário do médico, escrito em forma de narrativa, com capítulo e títulos específicos. Aquele rápido contato com o livro foi suficiente para aguçar ainda mais a minha curiosidade. Eu precisava traduzir o livro. Começou, então, toda uma batalha entre mim e a família do querido doutor. Eles usavam como argumento o fato de o bondoso médico nada ter deixado recomendado a respeito do livro. Teria sido impossível essa tarefa se, numa das inúmeras vezes em que estive em casa deles e examinando o livro, não tivesse percebido aquela última anotação, no final do seu manuscrito. Foi com indizível satisfação que a traduzi para a família: "Quando perceberem que aqueles pássaros maravilhosos, que antes pousavam em nosso quintal, agora não são vistos; quando aquelas árvores ancestrais estiverem sendo consumidas pela ganância e cortadas; quando os animaizinhos e a própria natureza estiverem sendo exterminados, deem conhecimento às minhas palavras e impeçam o fim daqueles que são responsáveis pelo equilíbrio e pela harmonia: os gnomos." Aquele foi o argumento final que os convenceu. Atirei-me fascinado à tarefa de descobrir o mundo maravilhoso desses seres fantásticos e bondosos, seus hábitos, seus amigos, seus inimigos, tudo através da narrativa agradável e apaixonada do Dr. Fritz Berger. HEINZELMÃNNCHEN GNOMOS Em 1910, após formar-me em medicina, aceitei montar minha clínica ao sul Leipzig, num vilarejo próximo de Plauen, quase aos pés dos Alpes. O local era muito pobre, com pessoas humildes, mas sinceras e afáveis. Não tinha pretensões de me enriquecer ali, mas apenas amealhar experiência para habilitarme, posteriormente, a trabalhar num hospital de um grande centro, talvez na própria Leipzig, cidade que eu, particularmente adorava. Atendia, indistintamente, a todos os que me procuravam e, muito embora raramente recebesse em dinheiro, devo confessar que minha dispensa estava sempre cheia e jamais passei necessidade alguma naqueles invernos rigorosos que enfrentava. Foi justamente, num desses invernos que tudo aconteceu. Ou melhor, que tudo começou. Um guarda-florestal me procurou uma noite, informando-me que a velha Sra. Asfeld, que morava retirada da cidade, havia sofrido uma queda e fraturado um dos ossos da perna. O guarda-florestal fizera todo o possível para atendê-la, improvisando uma tala, recolhera o máximo possível de lenha e deixado alguma comida pronta. Preparei-me para ir atendê-la, pois sabia que, em sua avançada idade e imobilizada, ela poderia simplesmente morrer de frio ou de fome, caso eu não me apressasse. Infelizmente, logo em seguida começou uma nevasca que se estendeu por três longos dias. Minha angústia e minha preocupação foram enormes, mas nada havia que pudesse ser feito. Não se enxergava um palmo adiante do nariz e, com aquele tempo, tentar chegar a qualquer ponto era suicídio. Quando a nevasca amainou, saí imediatamente para vê-la, pois temia que algo pior tivesse acontecido. Na verdade, apenas um milagre poderia ter mantido aquela pobre velhinha com vida durante aqueles três dias. Ao chegar a casa dela, percebi, com alívio, que a lareira estava acesa, pois havia fumaça na chaminé. Imaginei o sacrifício e o tremendo esforço que ela tivera que fazer para se manter viva. Como ela não atendesse às minhas batidas na porta, abri-a e entrei. Lá estava ela, deitada em sua cama, coberta. O ambiente estava aquecido. Ao lado da cama havia uma pequena mesa, sobre a qual repousava um prato de sopa ainda fumegante. No fogo, um caldeirão fumegava igualmente, indicando que ela acabara de preparar a comida. Estranhei que dormisse, mas me dei por feliz por perceber que ela respirava normalmente e parecia bem. Ao lado do prato de sopa, chamou-me a atenção um pequeno pedaço de madeira, uma escultura tão minúscula e tão perfeita que provocou a minha admiração. A Sra. Asfeld continuava dormindo tranquilamente. Passei em olhos pela cabana. Estava impecavelmente limpa como se ela tivesse acabado de arrumá-la. Certamente pensei, no momento, que o guarda-florestal cometera um engano ou, então, pregara-me uma peça. Tudo parecia perfeito. Isto não se confirmou, porém, no momento em que a velhinha moveu-se na cama e gemeu, encolhendo uma das pernas. Desperta, ela olhou-me e sorriu: — Dr. Fritz, que bom que tenha vindo! — O que houve, Sra. Asfeld? — indaguei-lhe. Ela descobriu a perna quebrada e contou-me seu acidente, enquanto eu examinava o local. Uma tala havia sido colocada e cuidadosamente envolvida com pele de coelho e amarrada. Apenas um especialista improvisaria aquilo, num local como aquele. — Teve sorte de o Sr. Hauen conhecer tanto sobre primeiros socorros, Sra. Asfeld. Não tenho muito que fazer aqui. Ele fez um trabalho excelente. — disse-lhe. Ela se limitou a sorrir matreiramente e nada disse. Acomodou-se. Tomou a sopa. Verifiquei se ela precisava de alguma coisa, mas havia bastante lenha e comida suficiente. Prometi voltar todos os dias para vê-la. Ela agradeceu. — Trabalho interessante! — disse-lhe, apanhando aquela pequena escultura sobre a mesa ao lado da cama. Ela silenciou. Estendeu gentilmente sua mão e eu lhe entreguei a escultura, que ela guardou num dos bolsos de sua roupa. Nada comentou. Quando retornei ao vilarejo, procurei o Sr. Hauen para agradecê-lo e elogiá-lo pelo trabalho que, praticamente, salvara a perna da Sra. Asfeld. Ele ficou sem entender do que eu estava falando. Afirmou que apenas improvisara uma tala com duas cascas de árvores, envolvidas com um pano, nada mais. Fiquei imaginando, então, que a própria Sra. Asfeld havia feito aquilo. Intrigava-me, porém, o fato de que ela nada dissera a respeito, deixando-me crer que o guarda-florestal havia feito o curativo. De qualquer forma, estava aliviado por ela estar bem, mas curioso a respeito de toda aquela história. No dia seguinte retornei à casa dela. A perna estava bem, mas percebi, nela, sinais de que a velhice roubava suas forças e os rigores do inverno poderiam ser demais para ela. — Sra. Asfeld, deixe-me levá-la para o hospital do vilarejo. Lá poderá se recuperar melhor. Percebo que o inverno está sendo rigoroso demais com a senhora. Ela apenas sorriu e respondeu: — Filho, não se preocupe comigo. Sei que os meus anéis estão contados. — Anéis, Sra. Asfeld? — Anéis. Os anéis da minha árvore. Meu tempo está chegando ao fim. Só sinto deixar os meus amiguinhos, mas eles entenderão. Eles entendem melhor que nós essas coisas. — Quem são esses amiguinhos de que me fala? Ela sorriu novamente e seu olhar foi pousar na pequena estátua de madeira ao lado da cama. PEZINHOS Habituei-me a ir até a casa da Sra. Asfeld todos os dias, sempre no mesmo horário. Apesar de sua perna melhorar, sua saúde geral parecia comprometida. Não havia nada de grave com ela, mas apenas o peso da velhice cobrando seu pesado tributo. Eu já nem reparava mais na casa impecavelmente limpa, na comida sempre fumegando no fogão nem no asseio geral da velha senhora. Um dia, porém, algo me chamou a atenção. Como nova nevasca se anunciava, fui visitá-la mais cedo do que de costume. Como de hábito, apenas bati na porta e abri-a em seguida. Julguei ter visto um ser cinzento, pequeno e veloz, disparar pela cabana e sumir por um dos cômodos. — Há ratos na cabana? — indaguei-lhe. — Não, não há ratos por aqui. — assegurou-me ela. — Pensei ter visto um saindo dali, da pilha de lenha... Foi então que aquele detalhe se revelou ante meus olhos. Todos os dias eu comparecia ali e, todos eles, o fogo se mantinha acesso e a pinha de lenha abastecida, arrumada cuidadosamente, com troncos uniformes da melhor madeira para o fogo. Se a Sra. Asfeld se mantinha de cama, impossibilitada de maiores esforços, quem estava recolhendo toda aquela lenha? — Alguém mais tem vindo visitá-la, Sra. Asfeld? Ela sorriu novamente para mim. — Meus amiguinhos estão sempre aqui, quando preciso deles. — Quem são seus amiguinhos? — insisti. — Estão por aí, na natureza. Apenas quem enxerga com o coração pode vê-los. — E como se faz para enxergar com o coração, Sra. Asfeld? — Talvez você já tenha enxergado, apenas não está prestando atenção. Enquanto ela falava, brincava com a pequena estátua de madeira. Intrigado, caminhei pela cabana. Fui disfarçadamente até perto da lareira, a pretexto de me aquecer um pouco. Olhei o local de onde vira aquele pequeno vulto cinzento disparar pela cabana. Havia marcas molhadas ali. Pequenas marcas de passos, de botas, mas tão pequenas que, se feitas por um ser humano, ele deveria ser um recém-nascido, de tão pequenas que era. Observei de onde vinham. Junto à porta, havia um recorte no tronco da parede, como uma pequena porta. A Sra. Asfeld me observava. — Doutor, deixe que seu coração veja. Não seja curioso apenas. Olhei-a sem entender. Ela havia depositado a pequena estátua ao lado da mesa. Aproximei-me. — Posso? — indaguei-lhe. Ela hesitou por instantes, depois aquiesceu, olhou-me com seus olhos bondosos. Apanhei a pequena estátua. Era realmente um prodígio de perfeição. Levei-a à mesa, próxima da janela. Com uma lente de aumento que levava sempre em minha valise, examinei-a. Era a imagem de um pequeno ser, com uma longa barba e um chapéu pontudo. Parecia muito idoso, embora tivesse um rosto saudável e bonachão. A cintura, num entalhe incrivelmente perfeito, viase pequenas bolsas presas num cinto largo. Os pés eram voltados para dentro, com as pontas se tocando e os calcanhares afastados. Usava um gorro pontudo. Por entre a barba fechada e os cabelos, despontavam duas orelhas um pouco maiores do que seria o normal. — Gnomo? — perguntei à Sra. Asfeld. — O que diz seu coração? Sim, era um gnomo. Deveria ser um gnomo. Mas que artista havia sido tão perfeito e tão meticuloso para entalhar uma figura como aquela na raiz dura de um carvalho? Continuei examinando a pequena peça. Os lábios estavam entreabertos e, observando melhor, vi que o interior da boca era oco. Intrigado, percebi que, na base da escultura, havia outra abertura. Compreendi logo o principio daquela peça. Aquelas duas aberturas só poderiam ser uma espécie de apito. Para quê, no entanto? Levei-a aos lábios. — Não! — exclamou a Sra. Asfeld. — Não? — retruquei intrigado. — Não! — confirmou ela, fazendo um gesto de mão para que eu me aproximasse da cama. Fui me sentar ao lado dela, que me fitou com seus olhos mansos e serenos, embotados pela idade, mas ainda vivos e espertos. — Muita coisa mudou e ainda mudará. Eles cometam isso comigo. Chegará um tempo em que eles estarão dispersos pela face da terra. Muitos já se esqueceram dos costumes originais e dos ensinamentos do Grande Livro. Outros ainda resistem cada vez mais confinados ao interior das grandes florestas, tentando manter vivas as tradições. Os meus amiguinhos em breve partirão. Apenas esperam a minha partida para isso. — Sra. Asfeld, não fale assim. Ainda viverá muito tempo. — Bondade sua, filho. Conheci minha árvore e contei seus anéis. Só me resta este. Ela falava com tanta convicção que era impossível não acreditar nela. Eu era um homem de ciências. Conhecia lendas a respeito, mas sempre creditara isso à natureza tendência humana de mistificar tudo aquilo que desconhece. A ciência, no entanto, explicava muitos mistérios, desmistificando as lendas. Assim eu pensava, mas não quis argumentar com ela. Afinal, estava vivendo seus últimos dias e por que não deixar que ela cultivasse suas próprias crenças? Não iria lhe fazer mal algum. Pelo contrário, dava-lhe a seriedade para enfrentar o Grande Momento. A PREPARAÇÃO Enquanto isso, eu tentava localizar algum parente da Sra. Asfeld para comunicar-lhe o estado de saúde da velha senhora. Infelizmente, se havia algum, ninguém na vila o conhecia. Aqueles que se lembravam mencionavam que ela e o marido viviam ali havia muito tempo. Após a morte dele, ela continuara sozinha, naquela casa. Desconhecia a existência de filhos ou alguém próximo. Isso me fez assumir um parentesco com ela, principalmente porque, naquela época, eu ainda era solteiro e não tinha nenhum parente que vivesse perto dali. Apesar de seu estado de saúde, impressionava-me, porém, como seu humor e sua alegria não se esgotavam. Ela se mantinha incrivelmente serena e tranquila. Além disso, qualquer outra pessoa, na sua idade, naquele momento, estaria em pior estado, com o corpo refletindo visivelmente os horrores da agonia lenta. A Sra. Asfeld se mantinha absolutamente intacta fisicamente. Apenas seu tom de voz e o brilho que esmorecia em seus olhos denunciavam a gravidade de seu estado. Eu percebia, constantemente, junto de sua cama, pequenos vidros com substâncias que eu sequer imaginava o que fosse. Certa vez lhe perguntei. Ela respondeu apenas assim: — É a poção mágica me preparando para o Grande Momento. Por mais que eu indagasse, ela não me deu maiores explicações. Se era alguma espécie de remédio, quem o estava preparando? O que continha? Ela não me deu respostas. Um dia indaguei-lhe por que não tinha um animalzinho de estimação, um gato que fosse, para lhe fazer companhia? Ela riu e me respondeu: —Tenho toda a companhia de que preciso. Além disso, eles e os gatos jamais se entenderam. E eu fiquei sem saber, pelo menos pôr algum tempo, mais este mistério. Naquela época do ano, aumentavam os casos de doenças, principalmente porque o inverno estava sendo particularmente rigoroso. Isso exigia de mim longas caminhadas para visitar meus pacientes, que aumentavam a cada dia. Nenhuma vez, no entanto, deixei de ir ver a Sra. Asfeld, principalmente porque, lá naquela cabana, eu me sentia bem, como se uma atmosfera mágica existisse lá e me fizesse recuperar as energias e o ânimo para cuidar de todos os meus doentes. Mesmo assim, o trabalho avolumou-se. Passei a dormir pouco e a alimentar-me mal. Tudo isso, aliado à exaustão que as penosas caminhadas na neve provocavam, foram me debilitando. Certo dia, ao visitar a Sra. Asfeld, eu ardia em febre. Estava tão mal que, após trocar poucas palavras com ela, eu desmaiei. O que houve depois apenas me vem à mente em rápidas imagens. Ouvi um longo e agudo assobio, prolongado e penetrando. Algum tempo depois, senti-me deslizar pelo piso da cabana. Vozes baixinhas, numa língua estranha gritavam ordens que eu não entendia. Senti-me arrastado para cima de uma cama, que havia num outro cômodo da casa. Ali me cobriram. Houve uma intensa agitação ao meu redor. Em determinado momento, julguei ver uma minúscula figura, talvez do tamanho de um palmo dos meus, diante de meus olhos. Tinha em suas mãos uma pequena caneca, que introduziu entre meus lábios, derramando em minha boca o seu conteúdo. O sabor lembrou-me o gosto do chá de sabugueiro, mas havia outros sabores. Adormeci. Devo ter dormido por algumas horas. Quando despertei, sentia-me bem, revigorado, como se todo o cansaço e a fraqueza houvessem passado miraculosamente. Levantei-me e fui até a Sra. Asfeld. Ela sorria fracamente, pobrezinha, mas se mostrou feliz ao me ver em pé. — Preparando para enfrentar o trabalho, meu filho? — indagou-me ela. — Sim, o que houve comigo? — Acho que provou um pouco de poção mágica. — respondeu ela, sorrindo para mim. WADJA Depois daquele acontecimento, deixei de questionar a Sra. Asfeld. Primeiro porque não obteria dela nenhuma resposta; segundo porque meus princípios de homem de ciência já haviam sido por demais abalados, desde que começara a visitar aquela cabana. A perna da Sra. Asfeld curou-se, mas ela já não podia me levantar. Estava cada dia mais próximo do Grande Momento e nada havia que eu pudesse fazer, a não ser estar ali, diariamente, ouvindo-a contar-me, de modo enigmático, histórias de seus amiguinhos. Aquilo se tornou um hábito e, mesmo nas piores nevascas eu conseguia chegar até sua cabana. Conheci Wadja e passei a acreditar, não por ter sido convencido pela Sra. Asfeld, mas por ter testemunhado o acontecimento mais insólito de minha vida, até então. Depois disso, jamais voltei a me surpreender com qualquer coisa da parte deles, embora sempre me impressionassem com tudo que faziam, diziam ou demonstravam. Nevava fortemente e eu estava a meio caminho da casa da velha senhora. Não hesitei em continuar. Quando lá cheguei, aquele ambiente acolhedor e aquela atmosfera agradável e encantadora me envolveram. A Sra. Asfeld pediu-me que preparasse um chá para nós, usando algumas ervas que guardava em sua cozinha. Quando me dispunha a fazer isso, tive a maior surpresa do mundo. Ao lado do fogão, sob alguns troncos que haviam deslizado da pilha, estava aquela pequena criatura, imóvel, aparentemente morta. Fiquei sem reação, não sabendo se me debruçava para examiná-lo eu corria avisar a Sra. Asfeld. Minha curiosidade acabou superando a dúvida. Inclinei-me e afastei os troncos de lenha. Uma das pernas da pequena criatura estava retorcida, possivelmente fraturada. Seu rosto estava coberto de sangue coagulado. Os lábios estavam incrivelmente inchados e feridos. Ergui-o em minhas mãos. Media uns quinze centímetros. Usava um gorro pontudo, vermelho, de feltro gasto. Botas de pele calçavam seus pés. Suas roupas eram tecidas rusticamente, mas grossas e protetoras. Tinha, presas ao cinto largo, algumas bolsas, cujo conteúdo não pude examinar, de tão pequenas que eram. — Sra. Asfeld, veja o que achei perto do fogão — disse-lhe, levando o pequeno ser até ela. — Wadja! — murmurou ela, num sopro angustiado, abrindo espaço na cama para que eu ali o depositasse. Antes de qualquer coisa, ela apanhou aquela pequena escultura e levou-a aos lábios. O assobio longo e agudo foi o mesmo que ouvi naquele dia, quando passei mal na cabana. Após aquele assobio, com uma modulação realmente impressionante e angustiada, ela se pôs a examinar o pequeno ferido junto dela. — Deve haver algo que eu possa fazer. Afinal, sou médico — disse eu, pateticamente. — Nada há aqui que você possa fazer, meu filho. Deixe estar que tudo se resolve. Quase em seguida, ouvi um ruído estranho. Voltei-me a tempo de ver, junto à porta, um bloco de madeira deslizar, revelando uma abertura no tronco. Por ali entraram três figuras incrivelmente parecidas com o ferido que repousava na cama, ao lado da Sra. Asfeld. — Nada entendo do que falam. — observei. — É assim mesmo, não se preocupe. Apenas deixe-os fazer o que tem que ser feito. — recomendou-me ela. A Sra. Asfeld depositou o pequeno ferido junto da casa, ao alcance dos outros três, que o levaram nos braços rapidamente até a abertura junto à porta. Segui-os, cheio de curiosidade. Lá fora, assobiaram repetidas vezes. Ouvi um bater de asas e uma faisoa veio pousar junto à cabana. Imediatamente uma pequena cesta foi presa ao pescoço dela e, lá dentro, nosso pequeno ferido foi acomodado e preso com algumas correias finíssimas. A faisoa partiu. Quando voltei a olhar para baixo, os três haviam sumido. Pensei que tivessem voltado para a cabana. Fui ter com a Sra. Asfeld. — Onde estão? — indaguei. — Para o palácio. — Palácio? Que palácio? — Você faz muitas perguntas, meu filho. Por que não vai preparar aquele chá para nós? — Mas Sra. Asfeld, eu vi. Veja, em minhas mãos, é sangue daquela criaturinha. Não pode negar isso. Precisa me explicar... — Vá preparar o chá. Eu lhe contarei o que puder. — prometeu ela. Fiz o que ela ordenará. Pouco depois, sentei-me junto da cama, dando mostras de que não sairia dali tão cedo. Pelos menos enquanto não ouvisse o que ela tinha para me contar. — Você acaba de conhecer meus amiguinhos. Aqueles de que tanto lhe falei. — Gnomos? — Sim, gnomos ou duendes, como preferir. São eles que têm cuidado de mim todo esse tempo. Desde que meu marido morreu. São meus amigos do mundo. Aliás, você e eles são meus únicos e melhores amigos. — Aquele que estava machucado possivelmente está morto. Imóvel daquele jeito... — Engana-se. Eles fazem assim sempre. Fingem-se de morto propositalmente. Não apenas para enganar seus perseguidores, mas para, em caso de acidente ou ferimento, se manterem mais tempo vivos. São umas criaturinhas imprevisíveis, cheias de conhecimento e sabedoria. — Foram eles que me cuidaram naquele dia? — Sim, eles mesmos. — Foram atraídos por um assobio... — Sim, por esse assobio. — disse-me ela, mostrando-me a pequena escultura. Finalmente entendi para que ela servia. Era mesmo um apito, uma forma de chamar por socorro. — Normalmente, quando um deles é ferido, comunica-se com os outros através do próprio assobio. Mas Wadja havia machucado os lábios, por isso não pôde pedir socorro. Certamente teria morrido, se você não o descobrisse ali, machucado. — Foi mesmo uma sorte, mas poderia me falar mais a respeito deles? — indaguei-lhe, cheio de curiosidade. — Infelizmente, não. Eles lhe contarão o que você deve ficar sabendo. — Eles farão mesmo isso? — Espere e verá. — prometeu-me ela, com um sorriso. O GRANDE MOMENTO Não voltei a ver os amiguinhos da Sra. Asfeld pelo resto daquele inverno, embora ela me assegurasse que Wadja, este era o nome do gnomo, estava bem e se recuperando dos ferimentos que sofrera. Dia a dia a Sra. Asfeld definhava e nada havia que se pudesse fazer. Quando a primavera chegou e os bosques se cobriram de verde e de flores novamente, com os animais retornando de seu longo período de hibernação, chegou o Grande Momento daquela anciã. Quando fui visitá-la, numa tarde esplendorosa, com pássaros cantando por toda parte e pequenos animais percorrendo o bosque, mal podia imaginar que tudo já estava consumado. Encontrei a casa toda arrumada, como sempre, e ela estendida em sua cama, coberta com um lençol imaculado, as mãos cruzadas sobre o peito e um ramalhete de flores silvestres preso entre seus dedos. Alguns dias antes ela pedira a presença do pastor local, que a abençoou e rezaram juntos. Olhando-a, ali estendida na cama, com uma expressão serena no rosto, lembrei-me de seu pedido: "— Meu filho, quando chegar meu Grande Momento, peçolhe que me enterre ao lado daquele carvalho lá fora, de forma quê, toda manhã, eu possa olhar o sol nascer." Não me restava outra coisa a fazer, senão atender ao seu pedido. Passei o resto da tarde cavando sua sepultura e, quando entardecia, eu a sepultei, exatamente como tinha recomendado. Resolvi pernoitar na cabana, porque escurecia e não era recomendável caminhar naquele bosque, após o escurecer. Acomodei-me no quarto onde havia ficado naquele dia que adoeci. Fiz uma ligeira refeição e me deitei. Estava exausto e emocionado. Apaguei o lampião. Apenas o fogo ardendo na lareira jogava sombras e luzes na sala, iluminando parcialmente o quarto, cuja porta eu deixei aberta. Ouvi, então, aquele ruído de madeira deslizando. De minha cama pude vislumbrar o bloco de madeira de abrir junto à porta e uma minúscula criatura entrar na casa. Por instantes parou, como que farejando o ar. Depois, veio na minha direção. Sentei-me na cama. O gnomo ficou parado na porta, olhando por um longo tempo, sem nada dizer. Percebi, então, que ele chorava, apertando os olhos, mãos cruzadas nas costas. Choramos juntos pela Sra. Asfeld. UM JOVEM COM DUZENTOS ANOS DE IDADE Ajudei-o a subir até a cama. Ele se sentou no travesseiro e ficou quieto por um longo tempo. Pensei em acender novamente o lampião para vê-lo melhor, mas julguei que isso fosse assustálo. — Meu nome é Wadja e já nos conhecemos. Você salvou a minha vida e eu lhe agradeço. — disse-me ele, finalmente. — Foi pura sorte eu ter chegado e... — Não há sorte, não esse tipo de sorte. Tudo estava escrito no Grande Livro. — Grande Livro? — Sim, o livro onde estão registrados todos os fatos importantes da vida de todos os gnomos. — Todos? — surpreendi-me. — Todos. — confirmou ele. — Por isso estou aqui para manifestar sua curiosidade. Fui autorizado a isso. — Autorizado? Por quem? — Há coisas que não podem ser ditas. Fazem parte da Grande Leia. Cabe apenas respeitá-la e é isso que faremos. Pergunte-me o que puder ser respondido, será. Todo o meu cansaço e o meu sono foram embora. Ali estava aquela intrigante figura, disposta a responder, finalmente, a todas as minhas indagações. Tentei ver melhor o meu interlocutor. Sua longa e embranquecida barba dava-me a impressão de que se tratava de um gnomo-ancião. Perguntei-lhe: — Quantos anos você tem, Wadja? — Completei duzentos anos neste inverno. — respondeu ele, para minha surpresa. Mal pude conter o riso. Ele realmente falava sério, mas isso ia além de minhas expectativas. — Você é um gnomo velho? Ele riu, então, balançando a cabeça pacientemente. — Sou um jovem, na flor da minha idade. Acabei de chegar à metade de minha vida. Casei-me há uns cem anos. Há mais de cento e vinte terminei a minha casa. Meus filhos já têm oitenta anos e são duas crianças maravilhosas. Meu filho, inclusive, já começou a procurar um local adequado para construir sua casa. — Por que tão cedo assim? — Porque demora para se fazer uma casa. Temos que procurar o local adequado, escavar, fazer as paredes, os móveis, tudo, praticamente. — E como são essas casas? Não me lembro de ter visto nenhuma delas em minhas andanças por este bosque? — E jamais verá. Fazemos nossas casas sob as árvores. — Sob as árvores? — surpreendi-me. — Isso, isso mesmo. Vai ser difícil explicar. Por que não acende o lampião e me arruma um pedaço de papel e outro de carvão. Saltei da cama e providenciei o que ele me pedira. Pus meu bloco de receitas sobre a cama e lhe passei um pequeno pedaço de carvão, onde ele desenhou sua casa. A minúscula e intrigante figurinha. Vestia um gorro pontudo, de feltro vermelho, uma bata azul, sem colarinho, de tecido rústico e grosso. As calças eram marrons, parecendo pele. As botas eram de couro. Usava um cinto, de onde pendiam diversas bolsas pequeninas. Apesar da barba, a pele do seu rosto era saudável, bem rosada. O nariz era ligeiramente arrebitado. Seus olhos eram cinza e, enquanto desenhava, movia curiosamente as orelhas. — Entendeu como é agora? — indagou-me ele, após terminar o desenho. — Observei que tem muita habilidade para desenhar. — disse-lhe. — Somos hábeis em muitas coisas e, como o tempo, você saberá. — prometeu-me ele. Debrucei-me sobre o desenho de Wadja, cheio de detalhes, mostrando a entrada da casa, junto a uma árvore, um túnel na direção norte-sul, ligeiramente ascendente, até onde era, propriamente, o corpo de sua casa, sob um enorme carvalho, entre as raízes. — Para que serve este buraco? — indaguei-lhe, apontando, no desenho, logo abaixo da entrada falsa. — Este é o alçapão para deter os gambás, que são nossos inimigos, juntamente com as doninhas e os ratos. Quando um deles localiza a entrada de nossas casas e tenta entrar, cai no alçapão. Vou lhe fazer um desenho de como a armadilha funciona. Era mesmo engenhosa, apesar de simples, aquela armadilha para evitar intrusos. — Quer que eu lhe conte mais sobre a construção de uma casa de gnomo? — Depois — respondi-lhe. — Agora gostaria de saber alguma coisa em relação a Sra. Asfeld. A POÇÃO MÁGICA — Uma boa senhora, ela e o marido sempre nos ajudaram. Deixavam todos os dias, do lado de fora da cabana, comida, pedacinhos de pão fresco e um licor delicioso que ela preparava com amoras. Nós, gnomos, adoramos um bom licor. Quando o marido dela morreu, nós passamos a cuidar dela. Quando ela se acidentou, inclusive, mantivemos a casa limpa, comida feita, lenha suficiente... — E aquilo que ela chamava poção mágica? Ele pensou por instantes, como se estivesse avaliando a minha pergunta. — Acho que não fará mal algum você saber. Dávamos a ela, diariamente, um pouco de nossa Poção do Grande Momento. Faz com que a pessoa enfrente serenamente sua passagem para o outro mundo, sem sofrimentos físicos. — Por que, então, essa poção não é distribuída a todos que sofrem e... Ele interrompeu-me com um gesto de mão. — Há muito tempo, nós, gnomos, éramos aceitos normalmente pelas pessoas. Isso foi há muito, muito tempo, quando as águas dos rios eram totalmente puras, o céu era limpo e os animais não tinham inimigos, a não ser rusgas entre si... — De que inimigos você fala, Wadja? — Daquele que mata apenas pelo prazer de matar, sem utilidade ou necessidade. — Naquele tempo, todos acreditavam em nós e nos aceitavam. Ajudávamos indiscriminadamente todos aqueles que precisavam ou recorriam a nós. Com o passar do tempo, as pessoas passam a ter outras prioridades, a ambição nasceu e floresceu entre eles, a inveja, a cobiça e todo tipo de sentimento que os impede de nos enxergar... Lembrei-me do que a Sra. Asfeld me dissera, um dia, sobre enxergar com o coração. Comentei a respeito: — A Sra. Asfeld me disse alguma coisa a respeito de enxergar com o coração... — Essa é a questão toda. Nós, gnomos, nos tornamos muito arredios e, de certa forma, descrentes com vocês. Apenas às pessoas como a Sra. Asfeld e como você nós concordamos em aparecer. Porque vocês nos veem do coração. — Outra coisa, Wadja. O que tomei, naquele dia que fiquei doente? Foram vocês que me levaram para a cama, não foi? Ele riu, concordando com a cabeça. — O que você tomou foi tirado da própria natureza, graciosamente. A natureza é, ainda, a melhor e maior farmácia que existe, doutor. No seu caso, tivemos apenas que selecionar as plantas adequadas para voltar a harmonizá-lo com a natureza. Por isso se sentiu tão bem depois. Tive que reconhecer que, desde aquele dia em que tomei a poção, jamais voltei a me sentir cansado ou estafado. Tenho trabalhado normalmente, com mais intensidade que antes e muita alegria. — Mais uma coisa, Wadja. Para onde o levaram aquele dia, naquele cesto pendurado no pescoço de uma faisoa? — Aquele é nosso método de socorro urgente. Meus ferimentos eram graves, por isso fui levado ao Palácio. — Palácio? — indaguei, interessado. — Sim, ao nosso palácio, onde mora nosso rei. — Onde fica isso? Ele me olhou seriamente. Era incrível como a expressão de seu rosto podia passar do sorriso mais condescendente à expressão mais séria. — Isso não posso lhe dizer, meu amigo. Ele saltou agilmente da cama e caminhou na direção da porta. Antes que eu perguntasse qualquer coisa, ele se voltou e disse: — Agora durma, meu amigo. Voltarei amanhã para contarlhe mais. Tenho coisas a fazer. Muitas ainda, antes que o sol nasça. No momento seguinte, ele sumiu pela abertura da porta. Corri até a janela, mas, apesar do luar generoso, não vi nem sombra do meu amiguinho. Fui até a passagem no tronco da parede. Puxei o bloco de madeira que era um tanto pesado. No entanto, meu amiguinho o havia afastado e, depois, fechado com incrível facilidade. Considerando seu tamanho, deveria ter uma força desproporcional. Em relação a isso, eu lhe faria algumas perguntas no dia seguinte e ele me daria a mais impressionante demonstração de força que jamais vi. Levou-me até o lado de fora da cabana, onde havia uma velha tora, de uma árvore cortada por um raio. — Tente levantá-la. — desafiou-me ele. Desnecessário mencionar que, apesar de todo o meu esforço, mal consegui movê-la. — Observe. — disse ele, apoiando as costas numa das extremidades do tronco. Para meu espanto, ele ergueu o tronco com uma facilidade espantosa. — Temos o equivalente à força de sete homens. — disse ele, com naturalidade. De modo algum eu duvidei. O PRESENTE No dia seguinte, de volta ao vilarejo e tendo comunicado o falecimento da boa velhinha, tive uma das maiores surpresas de minha vida. Fui procurado, pelo notário local que me informou que, com a morte da Sra. Asfeld, eu passava a ser o proprietário de sua casa, no bosque. Não sei de que forma ela conseguiu fazer isso, mas suspeito que Wadja e os outros gnomos tiveram alguma coisa a ver com isso. Deixei a pensão onde morava e me transferi para a cabana no bosque, sem me importar com as dificuldades que isso traria para atender meus pacientes. Wadja havia me deixado intrigado com suas primeiras revelações e eu ansiava por saber mais a respeito dele e dos gnomos. Naquela noite, tendo providenciado tudo e visitado meus pacientes, retornei à cabana. Quando lá cheguei, Wadja estava sentado diante da lareira, fumando um curioso cachimbo, apoiado no piso da cabana. Preparei uma refeição para mim, enquanto ele se mantinha lá, diante do fogo, imóvel. Finalmente, puxei uma cadeira para diante da lareira, acendi meu cachimbo e iniciamos a conversa. — O que você gostaria de perguntar hoje? — indagou-me ele. — O que você foi fazer ontem, quando saiu daqui? — Muitas coisas: recolher comida, conseguir algumas ervas para fazer remédios, verificar se algum animal precisava de ajuda e outras coisas, que não posso lhe contar. — Todos os gnomos fazem isso? — Todos, indistintamente. — Como conseguiram aquele testamento da Sra. Asfeld, deixando-me a cabana? — É uma das coisas que não posso lhe contar, mas basta saber que fizemos. Podemos fazer muitas coisas, além da sua imaginação. Ele me pediu um pouco de licor de amoras da Sra. Asfeld. Estendeu-se, para isso, uma pequena caneca, retirada de uma das bolsas que trazia presas ao cinto. Examinei-a. Era feita de ponta de um chifre de alce, num trabalho delicado de torneamento e entalhe. Enchi-a cuidadosamente e entreguei-lhe. Ele provou com um ar de satisfação. — Gostaria que me falasse um pouco sobre as origens dos gnomos, Wadja. Ele se sentou no piso e cruzou as mãos sobre os joelhos, pensativo. — O grande Livro narra isso, mas não posso lhe falar sobre tudo o que ele contém. Posso lhe dizer, no entanto, que estamos aqui há muito tempo, tanto quanto vocês. — De alguma forma vocês já foram como nós, quero dizer, em relação ao tamanho? — Não, sempre fomos assim. — E como você explica isso? — Da mesma forma que existem pássaros enormes e outros pequenos e delicados, baleias e delicados peixinhos dourados, leões e o manso gato caseiro, também assim existimos, em relação a vocês. Colocada daquela forma, a questão era realmente muito simples. — E os poderes que vocês possuem? — Não é exclusividade nossa. Todas as criaturas vivas foram criadas assim. Enquanto nós nos dedicamos cada vez mais a entender e praticar, estudando constantemente, vocês foram se embrutecendo, desenvolvendo outras habilidades e esquecendose dessas, que hoje lhes causam surpresa. Fiquei refletindo nas sábias palavras daquela criaturinha. As virtudes humanas a cada dia se tornavam mais escassas e menos cultivadas. A ambição cegava a humanidade. A necessidade do lucro e a ganância jogavam irmãos contra irmãos. Como cultivar, numa sociedade assim, aquelas virtudes simples, de amor à natureza e aos semelhantes, aos animais e à floresta? — Naquele dia em que vieram socorrê-lo, reparei que todos vocês se vestem da mesma forma, com o gorro vermelho, as calças cinza, a camisa azul... — Tudo tem uma razão de ser. O gorro vermelho é para alertar nossas amigas, as aves de rapina, para que não nos confundam com uma de suas presas. Quanto ao resto nem tudo é igual. Normalmente, nossas roupas têm essas cores para passarem despercebidas à noite, quando circulamos. — Por que não gostam de ser vistos? — Por que deveríamos gostar? O que aconteceria se um de nós fosse capturado? Viraríamos atração de uma feira qualquer, não concorda comigo? — Bem, sou obrigado a reconhecer que você tem razão. — Por isso nos camuflamos, evitamos a luz do dia e procuramos confundir ao máximo quem tenta se aproximar de nós. Para isso a natureza nos deu habilidades específicas que desenvolvemos constantemente. — Que tipo de habilidades? Ele tomou mais um trago do licor. Estalou os lábios de satisfação. Depois voltou a olhar para mim com seus olhinhos cinza e profundos. — Somos fortes, muito fortes que vocês e posso lhe dar uma mostra disso. — disse ele e foi quando me surpreendeu, erguendo aquele pesado tronco. Jamais vi outra demonstração de força tão convincente e tão displicente. Para ele, aquilo era perfeitamente normal. Talvez não pudesse era entender como nós éramos tão fracos. — Que outras habilidades vocês têm, além da força? Ele cofiou a longa barba, antes de responder: — Sabemos disfarçar nossas pegadas, não apenas tornandoas invisíveis aos seus olhos, como imitando o andar a as asas dos pássaros e dos animais. — O que mais vocês podem fazer? — continuei, querendo saber tudo a respeito deles. — Podemos correr velozmente, mais rápido que qualquer predador que você conheça. Também podemos saltar de um modo que o surpreenderia. — disse ele e, juntando o ato à palavra, saltou até o aparador da lareira com incrível facilidade. O aparador ficava a pelo menos um metro e meio do piso da lareira. Wadja media quinze centímetros, o que significava que havia saltado dez vezes a sua altura. Proporcionalmente, um homem mediano, de um metro e setenta de altura, saltaria dezessete metros. Ele saltou de volta para o piso da cabana. Tomou o resto do licor, antes de me encarar de novo. — Nossos olhos são tão potentes como os olhos de um gavião e podem enxergar no escuro, como os de uma coruja. Podemos ouvir de qualquer direção, muito melhor que vocês. Além disso, nosso olfato é tão aguçado como o do cão ou da raposa. Na verdade, mesmo que um de nós fique cego ou surdo, poderá se locomover normalmente pela floresta, apenas guiandose pelo vento, pelos perfumes, pelos cheiros... Não pude me conter e comecei a rir, imaginando um gnomo cego e surdo se locomovendo no meio do bosque, evitando buracos, troncos caídos e tudo o mais. — Explique-me melhor isso, Wadja, pois não consigo entender como um gnomo cego e surdo poderá se mover no bosque sem se acidentar. Ele sorriu da minha incredulidade. — É muito mais simples do que parece. Os gnomos conhecem todos os animais do bosque, inclusive pelo cheiro. Sabe onde moram e por onde andam. Basta seguir essas inúmeras trilhas e chegar a qualquer lugar que queira. — E o que mais vocês fazem? — insisti, após ponderar por alguns instantes no que ele dissera. — Nosso senso de direção é extremamente desenvolvido, talvez até melhor que o dos pombos-correios ou das aves migratórias. Podemos prever o tempo e nos comunicarmos à distância. Também localizamos veios de água com a varinha de rabdomancia. Praticamos a medicina natural... Aliás, essas nossa habilidade foi ensinada a vocês. Como médico, deve ter tomado conhecimento das famosas simpatias, não? — Simpatias para cura, coisa assim? — Exatamente. Vocês conhecem com este nome. Para nós, é simplesmente medicina. A natureza nos fornece tudo que precisamos para combater qualquer doença, embora usemos isso mais para curar nossos amigos do que para nós mesmo. — Por que isso? — Nosso meio de vida, o convívio com a natureza, alimentação natural, muito exercício físico... Tudo isso, aliado a nossa natural resistência e nossa longevidade. — Quantos anos vive um gnomo? — Em média quatrocentos anos, embora alguns já tenham ultrapassado isso em muito. Meu bisavô, por exemplo, viveu até completar quinhentos e setenta e cinco anos. — Tudo isso? — surpreendi-me. Ele apenas sorriu daquele seu jeito bonachão, balançando a cabeça de um lado para outro. — Há uma coisa que eu não entendo ainda, Wadja. Se vocês vivem em função de ajudar os animais e aqueles que enxergam com o coração, por que não são mais reconhecidos? Eu, por exemplo, não me lembro de ter visto um livro sequer a respeito de vocês. Considerando o que têm para ensinar, acho isso uma grande falha, não concorda? Os olhos dele brilharam por instantes e seu rosto ficou sério. — Nós temos o Grande Livro. Nele está tudo que se refere a nós e nos basta. Quanto a vocês, estaríamos criando um problema, se ajudássemos a publicar um livro a nosso respeito. Da mesma forma que, para nos ver, é preciso olhar com o coração. Acha isso possível? Se encontrar a fórmula, diga-me. — desafiou-me ele. Pensei seriamente no que ele dissera. Quando estariam os homens preparados para ler com o coração. — Continuamos amanhã, meu bom amigo. — disse-me ele, rumando para a passagem junto à porta. Corri à janela, na esperança de vê-lo desaparecer no bosque. Foi impossível. Ele já desaparecera como um passe de mágica. ENXERGANDO COM O CORAÇÃO TODO O TEMPO Na noite seguinte, mal eu havia terminado a minha refeição, lá estava meu solícito amigo, disposto a responder minhas perguntas. Apesar de o inverno já haver passado, nas primeiras noites de primavera ainda eram frias, por isso nos instalamos novamente diante da lareira, Wadja esperou pela minha pergunta. — Tenho conversado com as pessoas por aí e percebido que existem muitas controvérsias a respeito dos gnomos. — observei eu. — Alguns, até, os consideram criaturas malévolas e... — Oh, por favor, meu amigo. Não há controvérsias a nosso respeito, apenas ignorância. Há uma confusão enorme, sabemos disso, mas não nos preocupamos em esclarecê-las, pois não é do nosso interesse. — Por que, então, alguns dizem que vocês fazem maldades? — Porque se enganam. Outras criaturas fazem isso e, por ignorância, atribuem a nós. — E quem são essas outras criaturas? Ele cofiou longamente a barba, antes de responder: — Bem, há alguns sobre os quais não gostamos de falar, mas, já que é para esclarecê-lo, vamos lá: Inicialmente confundem-nos com os gênios, criaturas aladas que habitam os lagos, os rios, o alto das árvores. São maiores do que nós e são identificados imediatamente pelas asas. Não provocam danos à natureza. Dê-me aquele seu bloco de receitas e um pedaço de carvão. Vou lhe desenhar um gênio para perceber a diferença. Providenciei o que ele me pedira. Habilmente ele desenhou a figura de um gênio para que eu compreendesse. — Assim é um gênio! — disse-me ele, mostrando-me o desenho feito. — É, realmente não parece com um gnomo. — observei. Em seguida ele desenhou outra figura, sinistra, toda de preta e com ar malévolo. — Este é um goblin. Está sempre de preto, inclusive o gorro e mede até trinta centímetros. São realmente maus e, normalmente, estão presentes em velórios, onde gostam de assustar os parentes das pessoas falecidas. São maldosos com os animais e gostam de metais e pedras preciosas. Perseguem-nos para roubar-nos. Andam sempre com uma pá na mão para escavar nossas casas, à procura de coisas para roubar. — Existem criaturas com as quais vocês são confundidos? — insisti. — Confundem-nos com os fantasmas, as assombrações, os espíritos das águas e as ninfas, mas estes seres são sempre invisíveis, dotados de poderes mágicos. Os fantasmas são maldosos. Podem se instalar numa casa e, enquanto não semearem o pânico e o desespero, não se darão por satisfeito. — Há mesmo muita ignorância a respeito dos gnomos, não? — Sim, mas não nos importamos. Chegam até a nos confundir com os anões, mas estes são maiores, dóceis e não têm barba. Moram em comunidades próximas das montanhas, onde escavam suas minas, à procura de ouro e prata, principalmente. — E quais são as criaturas sobre quem vocês não gostam de falar? O rosto dele ficou sério por instantes, como se a simples lembrança daquelas criaturas já o incomodasse. — Os trolls. Esses são nossos piores inimigos. São piores que os goblins. São primitivos, incultos, brutos e muito feios. Têm enormes narizes, possuem cauda e cheiram mal. Gostam de roubar coisas também, mas de nos perseguir e torturar. Quando um gnomo cai em poder dos trolls, dificilmente escapa com vida. — E você pode desenhar um troll? Meio a contragosto, Wadja desenhou a figura horrível de um troll. — Mesmo entre minha raça, há algumas diferenças. — Observou ele. — Existem, na verdade, seis tipos diferentes de gnomos, todos com características próprias. — Curioso. — disse eu — Pensei que todos os gnomos fossem iguais. — Mas não são. Vou lhe explicar. Tivemos todos as mesmas origens, mas há uns dois mil anos, um pouco mais, um pouco menos, iniciou-se, entre os gnomos, a Grande Migração, que nos levou a espelhar-nos pelas terras de todo globo terrestre. A mistura com outras raças e criaturas fez nascerem essas diferenças. Além disso, os locais escolhidos também influenciaram essas diferenças. — Que Grande Migração foi essa? — interrompi-o. Ele pensou por instantes, depois respondeu: — sobre isso não poderei lhe falar nada. Basta que saiba que houve uma Grande Migração e que está deu origem aos diferentes tipos de gnomos que hoje existem. — Está bem, não perguntarei mais, — prometi-lhe. — Conte-me, então, sobre esses seis tipos de gnomos. — Contarei, mas, veja bem! Pode ser que haja outros tipos de gnomos, frutos de cruzamento com criaturas que desconhecemos. Quanto a isso, nada sei. Vou lhe falar daquelas que já estão registradas no Grande Livro. — Há o Gnomo Doméstico, como eu. Diferenciamos dos outros porque temos um enorme conhecimento sobre a natureza humana. Tanto que somos os únicos que falamos a língua dos homens, seja ela qual for. — E não há gnomos domésticos maus? — Apenas uma vez a cada mil anos isso acontece, mas já é previsto no Grande Livro. Os gnomos domésticos gostam de morar também em casas antigas, nos museus e nos castelos. — Você, como um gnomo doméstico, não precisaria morar nesta casa para ser assim considerado? — Não necessariamente. Como esta cabana é próxima ao bosque, prefiro morar na minha casa e cuidar dessa. Vamos dizer que, nestes casos, o gnomo adota uma casa. Tanto pode mudarse para ela como apenas protegê-la e aos seus moradores. — Entendi. — confirmei-lhe, enquanto ele caminhava um pouco sob a minha cadeira. — O Gnomo da Floresta em nada se diferencia de um gnomo doméstico, porque alternam essas atividades. Com o tempo, um gnomo da floresta aprende a conhecer os homens, mas não são todos que se dispõem a fazer o trabalho doméstico, por assim dizer. Preferem cuidar da floresta, dos animais e das aves. — E os outros, como são? — Há o Gnomo do Jardim, que se diferencia dos demais apenas por usar uma camisa vermelha. É um tipo muito melancólico, que gosta de contar histórias cheias de tristezas. Às vezes se cansam e fogem para os bosques, mas só por algum tempo, retornando, em seguida, ao seu jardim. Prefere, principalmente, os grandes jardins das casas antigas. — Sei que existem os gnomos das fazendas. — mencionei. — Sim, e são muito parecidos com os gnomos de jardim. Apenas não são tão melancólicos e extremante conservadores em suas opiniões e costumes. Os gnomos do deserto são um pouquinho maiores que os da floresta e também não gostam muito de se aproximar dos homens. São mais desleixados com suas roupas, na maioria das vezes de cor cinza. Além deles, há o gnomo siberiano, a pior mistura de raças já produzida, uma vez que são maiores que os gnomos em geral, têm péssimo humor e, por qualquer coisinha, ficam ofendidos. Quando isso ocorre, vinga-se matando o gado, destruindo colheitas e outras malvadezas. — Pelo que percebi pelo seu tom de voz, você não gosta muito dos gnomos siberianos, não? — observei. — São a ovelha negra dos gnomos. São tão estranhos que conseguem se relacionar com os trolls, coisa que abominamos. — E todos eles têm os mesmo poderes e habilidades que os demais? — Quanto a isso, não existem diferenças. Vi que ele se preparava para ir embora. Antes que ele saísse, indaguei-lhe. — Por que, assim que você sai, não posso vê-lo? Corro à janela e nem percebo o menor traço de sua passagem? Ele sorriu, olhando ao redor. — Você está aprendendo agora a enxergar com o coração. Há uma atmosfera mágica nesta cabana que o faz assim. Uma vez lá fora, você muda. Precisa aprender a nos enxergar com o coração todo o tempo. — alertou ele, saindo. Pensei no que ele dissera, enquanto ia até a janela. Desta vez eu o vi, encontrando-se com outros gnomos, cumprimentaram-se alegremente e depois saindo para suas tarefas noturnas. LOCALIZAÇÃO Na noite seguinte, lá estava eu novamente, a postos para ouvir os fascinantes relatos do meu pequeno amigo. Fiquei à janela, olhando o bosque, para vê-lo chegar. De longe ele me acenou e eu respondi. Ele sorriu ao perceber que eu podia vê-lo também do lado de fora da cabana. Assim que entrou, disse-me: — Tem um bom coração, meu amigo. Viu como é fácil fazer isso? — Não tão fácil, Wadja. Não tão fácil. Ontem eu o vi saindo e se encontrando com seus amigos. Pareciam muito animados. O que foram fazer? — Tínhamos algumas coisas a fazer, mas, ao amanhecer, fomos mediar uma briga de galos. — Briga de galos? — estranhei. — Sim, nós, gnomos, adoramos servir de árbitros nas brigas de galos. Isso nos diverte muito. Estranhei o fato, pois via, nas brigas de galos, uma crueldade enorme. Ponderei a respeito com o meu amiguinho, que sorriu condescendentemente. — São brigas entre parceiros iguais, com regras iguais e armas iguais. Disputam um território ou uma fêmea e isso é natural entre os animais. Servimos de árbitros justamente para evitar maiores ferimentos e determinar o ganhador da luta. Não são brigas instigadas ou preparadas, como essas que vocês fazem. Se um dos galos se machuca, estamos lá para cuidar dele e tratar seus ferimentos. Vista daquela forma, havia certo sentido em tudo aquilo. — Você já me disse que cuidam dos animais. O que, por exemplo, vocês fazem? — Ontem libertamos três coelhos de umas armadilhas, onde estavam aprisionados. Julgamos isso cruel, pois o animal fica aprisionado por muito tempo, muitas vezes ferido. Não concordamos com isso. Um lobo perfurou a pata com uma farpa. Nós a removemos e costuramos o local... — Deve ter doído, pobre animal. — A farpa, sim, a operação, não. — disse-me ele, tranquilamente. — Como assim, Wadja? — Usamos acupuntura, já ouviu falar? — Sim, é uma técnica milenar dos povos do oriente. Mas funciona mesmo? — Devia conhecê-la e praticá-la, doutor. Vai se surpreender. — aconselhou-me ele, com aquele olhar sábio. Abriu uma de suas bolsas e estendeu-me a caneca de chifre de alce. Apressei-me em servi-lhe um pouco de licor de amora. Tomou-o, com grande satisfação. — Onde os gnomos podem ser encontrados... — ia perguntando-lhe. — Os gnomos não podem ser encontrados, a menos que queiram — interrompeu-me ele. — Desculpe-me, acho que não me expressei bem. Eu queria saber em que países existem gnomos. — Praticamente em todos os países do hemisfério norte. — Por que isso? — Principalmente porque gostamos dos dias curtos e das noites longas. Os países onde ocorre possuem uma maior concentração de gnomos. Lembre-me de um atlas que trazia comigo, e fui buscá-lo. Abri um mapa da Europa diante dele. Wadja olhou-o atentamente. — Veja, somais numerosos ali, no alto do mapa, na Escandinávia e nos países vizinhos, mas estamos espalhados por toda parte. — apontou ele no mapa. — Também estamos muito presentes na Inglaterra e na Irlanda. Praticamente não há nenhum de nós em Portugal, Espanha, França e Itália. — Por que isso? — indaguei-lhe, curioso. — Nós nunca nos entendemos muito bem com os povos latinos. — Por quê? — insisti. — Questão de preferência, talvez. Não posso lhe dar mais detalhes a respeito. Resolvi não questionar. Abri outro mapa, desta vez da Europa. Wadja examinou-o atentamente. Aqui estamos presentes principalmente nesta região dos lagos, que se inicia nos Estados Unidos e se estende até o Território de Noroeste, no Canadá. Também habitamos a região da Baia de Hudson. — No México e nos países da América Latina... — Já lhe disse alguma coisa a respeito, — interrompeu-me ele. — Posso lhe dizer, porém, que as imigrações para os países da América do Sul não nos passam despercebidas. Famílias inteiras estão se mudando. Não é de se admirar se algum de nós resolvermos viajar com eles, ocultos nas bagagens. Dizem que há locais realmente maravilhosos na América do Sul, com grandes florestas, casarões antigos, o tipo de coisa que nos atrai. — Sabe que tenho alguns parentes morando no Brasil? — Podem ser que eles tenham levado alguns gnomos para lá, na bagagem. — Seria muito interessante, não? — Sim, realmente muito interessante. Esta noite não vou poder ficar mais. Preciso ajudar um amigo a abrir o poço da casa que está construindo. — Abrir um poço? E como pretendem fazer isso? — Amanhã eu lhe explico. — disse-me ele, despedindo-se. Fui vê-lo encontrar-se com os outros gnomos, no bosque. A LENDA DE THORN Na noite seguinte, pontualmente, meu pequeno amigo se instalava comigo, diante da lareira. Servi-lhe um pouco de licor. — Conseguiram furar o poço ontem? — indaguei-lhe. — Sim, está terminado. Você ficou curioso para saber como fizemos isso, não? — Sim, exatamente. — Uma toupeira fez isso por nós. Muitas coisas que fazemos só são possíveis graças à ajuda de nossos amigos, os animais. — Muito engenhoso mesmo. O bloco de receitas ficava ali, à disposição dele, com alguns pedaçinhos de carvão. Rápido e habilmente ele fez dois desenhos. — Veja aqui. Primeiro escolhemos um local adequado para o poço... — E como fazem isso? — Usamos a varinha de rabdomancia. É simples. Escolhido o local, pedimos à toupeira para furar um buraco vertical. Em seguida, quando encontramos água, introduzimos tubos de barro para evitar infiltração ou desmoronamentos e finalizamos com uma armação de pedras e madeira para proteção e retirada de água. O poço fica assim, então. — terminou ele, mostrando-me o outro desenho. — E o que fazem, enquanto a toupeira escava o poço? — Conversamos, contamos histórias, relembramos as lendas... — Lendas? Que lendas? — Lendas de Gnomos. Não gostaria de ouvir uma? — Adoraria, Wadja. Meu pequeno amigo acomodou-se melhor e eu me preparei para ouvir sua narrativa. — Faz muito tempo, muito tempo mesmo, — começou ele. — Nossa princesa foi raptada do palácio por um grupo de trolls e levada para o recanto mais perigo e inóspito da floresta. O reino todo ficou consternado. Para soltá-la exigiam todo o ouro e toda a prata que havia nos cofres do palácio. Todos sabiam, no entanto, que mesmo tendo recebido o resgate, os trolls não perderiam a chance de torturá-la e matá-la. São mesmo umas criaturas abomináveis. A família real estava desesperada. Foi então que, lá do meio da floresta, surgiu Thorn, o gnomo mais forte, mais ágil e mais inteligente de todos. Quando soubera do que ocorrera com a princesa, apressou-se em apresentar-se ao rei. — Estou a suas ordens, meu rei. — disse ele. — Thorn, meu leal súdito, fico impressionado com sua dedicação, mas desconfio que não haja nada que possamos fazer para salvar a princesa. — disse o rei, desconsolado. — Mesmo assim, precisamos tentar, majestade. Quero apenas a sua aprovação para isso. — Se conseguir salvá-la, eu lhe darei a mão dela em casamento. — prometeu o rei. Thorn ficou muito feliz, principalmente porque conhecia a princesa e era apaixonado por ela. Tão logo obteve a aprovação do rei, saiu para salvar a princesa. No caminho, encontrou um lobo ferido na cabeça por um tiro de um caçador. Embora preocupado com a princesa, Thorn parou para cuidar do ferimento. Quando terminou, o lobo agradeceu e perguntou: — Aonde você ia com tanta presa, Thorn, meu amigo? — Salvar a princesa, que foi levada pelos trolls. — Posso levá-lo até o grande rio que separa as terras dos trolls. Atravessaram velozmente a floresta, até onde começava as terras dos trolls, no local mais desagradável do reino. Ali o lobo deixou Thorn que ficou sentado na margem pensando como atravessá-lo. Pensou em fazer um barco com folhas de bétula, mas o rio era muito caudaloso para isso. Lembrou-se, então, de suas amigas, as lontras. Chamou-as e imediatamente uma delas apareceu. — Preciso que me leve até a outra margem. — pediu ele. — É terra dos trolls, Thorn. Pode ser perigoso demais par o gnomo. — Tenho que ir lá salvar a princesa. — Sendo assim, vamos lá. Thorn subiu na cabeça da lontra que, velozmente, atravessou o rio, deixando-o em segurança. Thorn agradeceu-a, depois começou a caminhar cautelosamente pela terra dos Trolls. Andar por lá é muito difícil, há pedras, espinhos, mau cheiro e armadilhas perigosas. — Que tipo de armadilha? — indaguei, interrompendo o meu amigo. — Todo tipo, as mais cruéis. Thorn, apesar de toda a sua habilidade, sentia-se fragilizado naquela terra, onde o cheiro de coisa podre confundia seu olfato, as pedras confundiam sua visão e não podia contar com seus amigos animais para ajudá-lo. Finalmente, após muito caminhar, Thorn descobriu o esconderijo daquelas horríveis criaturas, bem como o local onde se ocultava a princesa, presa numa caverna e vigiada por dois trolls malencarados. Thorn ficou ali, observando, tentando encontrar uma forma de libertar a princesa, mas isso era praticamente impossível, a menos que conseguisse afastar aqueles dois. Não percebeu, porém, que os trolls haviam deixado uma pequena aranha para ajudar a manter a princesa prisioneira. Antes que desse por si, a aranha-vigia o envolveu com sua teia pegajosa. Thorn foi preso e acorrentado, enquanto os trolls decidiam o que fazer com ele. — Vamos queimá-lo. — sugeriu um deles. — Não, isso é pouco. Vamos passá-lo na pedra de amolar. — propôs outro. Acorrentado, Thorn assistia tudo aquilo, sem poder fazer nada. Sabia que seria maltratado pelos trolls. Isso não o incomodava tanto como imaginar que nada poderia fazer para salvar a princesa. Foi então que apareceu o rei dos trolls, o mais feio, o mais fedido, o mais cruel de todos. — Tenho uma ideia melhor, — falou ele. — Vamos passálo na máquina de moer carne e fazer comida para ratos. Os outros trolls não concordaram e iniciou-se uma discussão entre eles. Os trolls são criaturas tão desprezíveis que não respeitam o próprio rei. Enquanto eles discutiam, Thorn abriu sua bolsa de ferramentas e retirou uma lima, rompendo a corrente que o prendia. Correu até a caverna e libertou a princesa. Fugiram rapidamente, evitando as armadilhas, mas foram descobertos. O rei dos trolls chamou um troll corredor e mandou-o ir atrás dos fugitivos. Mesmo com a lontra ajudando-o a atravessar o rio e com o lobo lhes dando uma carona, Thorn percebeu que o troll corredor acabaria por alcançá-los. Precisava fazer alguma coisa para livrar-se daquele troll ou, fatalmente seriam recapturados. Ao passar por um pântano, ele pediu ao lobo que parasse. Escondeu a princesa numa toca de coelho, depois teve uma ideia. Para um gnomo, seu gorro o acompanha por toda a vida e jamais um gnomo se livra dele, a não ser em casos extremos. Aquele era um caso extremo. Pegou o gorro da princesa e o seu e colocou-os num poço de areia movediça, pensando em enganar o troll com isso. Ocultou-se e, quase em seguida, o troll corredor chegou todo esbaforido. — Danação! Caíram na areia movediça. Preciso levar ao menos seus corpos ou seus gorros, senão o rei não acreditará em mim. Desconfiados de tudo, os trolls não acreditam nem na palavra do rei, por isso o troll corredor se inclinou sobre o poço de areia movediça para retirar os gorrinhos. Thorn aproveitou a oportunidade, saiu de seu esconderijo e deu uma paulada no troll, que caiu na areia movediça. Thorn apanhou a princesa e retornaram ao reino, onde foram recebidos com festas. — Perdoe-me, rei, por apresentar-me diante de vossa majestade sem meu gorro, mas tive de usá-lo para me livrar do troll corredor que veio em nosso encalço. — explicou Thorn, pois era considerado uma grande ofensa se um gnomo aparecesse diante do rei sem o seu gorro. O rei sorriu, no entanto, e disse: — Não seja por isso, meu filho. Vou mandar fazer um gorro novo para você, todo de ouro e pedras preciosas, como prova de minha gratidão. Thorn casou-se com a princesa e ficou conhecido, a partir de então, não apenas como o mais corajoso e astuto dos gnomos, mas como o único a usar um gorro todo de ouro. — finalizou Wadja, sorrindo orgulhosamente. — Foi uma bela história, Wadja. — elogiei. — Conheço muitas outras e as contarei, mas não hoje. A floresta me espera e você precisa dormir. Boa-noite, meu amigo. — despediu-se ele, deixando-me maravilhado mais uma vez com aquelas fantásticas criaturinhas. A ÁRVORE DA VIDA Na noite seguinte, quando Wadja apareceu, eu estava me lembrando de algo que a Sra. Asfeld dissera, antes de falecer, a respeito de seus anéis. Indaguei sobre isso a Wadja. — A bondosa Sra. Asfeld apenas se referiu a isso por analogia ao que fazemos. Quando um gnomo nasce, seu pai planta um carvalho. O gnomo saberá a sua idade pelo crescimento dessa árvore. — explicou ele. — E nos locais onde não crescem carvalhos? — Então um pé de laranja-lima serve igualmente. Quando a árvore cresce, os pais do gnomo escrevem nela a data de nascimento do filho, que é também registrada numa placa de barro que o gnomo recebe quando completa vinte e cinco anos. A partir de então, deverá conservar essa placa muito bem guardada, num local secreto que somente ele conheça. Muitas vezes, quando o gnomo vai construir sua casa, escolhe justamente essa árvore para isso. — E o que acontece se essa árvore morrer ou for atingida por um raio? — perguntei. — Da mesma forma como respeitamos a natureza, esta também nos respeita. Uma árvore da Vida jamais sofrerá qualquer coisa, seja doença ou raios, enquanto o gnomo for vivo. Só secará quando o gnomo morrer. — Quer dizer que esses velhos carvalhos secos, que se encontram pelas florestas, representam um gnomo que já morreu? — Exatamente. Meditei um pouco a respeito. Sabia de locais onde o desmatamento vinha se acelerando e fiquei imaginando o que seria daquelas pequenas criaturas, no futuro. — Wadja, o que ocorre quando o homem derruba uma dessas árvores? Ele ficou em silêncio por um longo tempo, antes de responder. — Para um gnomo, isso é uma verdadeira tragédia, porque ele perde toda a referência de seu nascimento, de sua idade, do ato praticado por seu pai, ao plantar a árvore. Não raras vezes, o gnomo enlouquece, pois a derrubada da árvore fatalmente implica na destruição de sua casa, entre as raízes. Um gnomo leva uns vinte e cinco anos para terminar sua casa. Recomeçá-la pode ser impossível. — Que tragédia, meu amigo. — Por isso nos isolamos cada vez mais, no fundo dos bosques, onde tragédias não acontecem. Mas, observando a ganância do homem, percebemos que é tudo uma questão de tempo, até que isso aconteça. Tentei imaginar o que seria as vidas daquelas criaturas, se um dia as florestas fossem extintas. Eu, realmente, não conseguia dimensionar isso. Não acreditava que o homem, um dia, não acordaria e perceberia o mal que estava causando, a si próprio e à natureza. Percebi que, naquela noite, em particular, meu amiguinho estava muito sério e pensativo. — O que houve, Wadja? Ele pensou por instantes, antes de me fitar com seu olhar cinza e brilhante. — Infelizmente, meu amigo, vou ter que me ausentar por algum tempo e privar-me de sua companhia. — explicou ele. — O que houve? — Nosso rei está muito velhinho e às portas da morte. Vamos assisti-lo em seus últimos dias, depois escolher o novo rei. — E isso vai demorar? — Para nós, não. Vivemos quatrocentos anos, por isso, um mês ou seis messes não querem dizer muita coisa. — Mas você retornará, não? Há tanto ainda que gostaria de saber sobre vocês. — disse eu. — Com toda certeza, meu amigo. Espere-me tranquilamente que logo eu estarei de volta e lhe direi tudo que quiser saber. Enquanto isso, se precisar, mas somente se precisar mesmo, toque aquele apito que era da Sra. Asfeld. Eu virei imediatamente, mas só o faça se for extremamente urgente, porque estar com o meu rei, nos seus últimos dias, é muito importante para nós. — Vou me lembrar disso, meu amigo. Naquela noite, quando Wadja foi embora, acompanhei-o até o bosque. Vi seus amigos se aproximando. Sorriam e me acenavam amistosamente. Conversando, eles desapareceram por entre as árvores. Fiquei ali, parado, por um longo tempo, aspirando o perfume da natureza, ouvindo os ruídos da floresta e refletindo sobre tanta vida que circulava ao meu redor. Foi um dos momentos mais importantes de minha vida. FIM DA PRIMEIRA PARTE 2a. PARTE - UM SER MÍSTICO E HARMÔNICO NOTAS DO TRADUTOR II A descoberta de um manuscrito deixado por um velho médico, no interior do Brasil, foi, para mim, um acontecimento inusitado. Primeiro pela dificuldade de confirmar sua existência; depois pelo contato com uma filosofia simples e rica, tão bem captada nas páginas escritas pelo Dr. Berger. A cada momento eu me surpreendia com as descobertas do médico, enquanto durou seu primeiro contato com um gnomo chamado Wadja. Foram momentos de rara beleza, de um amor à natureza sem par, de um modo de viver baseado na simplicidade e na harmonia. Da mesma forma, grandes indagações ficaram em minha mente, durante essa primeira parte do manuscrito. Coisas como os anéis das árvores, o Grande Momento, a poção mágica, o Grande Livro, a Grande Migração e outras mais aguçaram minha curiosidade e tornou-se difícil conter meu entusiasmo pela tradução. Após seu primeiro contato com os gnomos, há um longo trecho no manuscrito, onde o Dr. Berger faz uma série de reflexões sobre a vida deles, enquanto passava as noites sozinho na cabana do bosque, deixada pela velha Sra. Asfeld. Wadja deve ter demorado alguns meses para retornar, mas o doutor continuou seu manuscrito, quase em forma de diário, narrando seu procura por pistas da presença dos gnomos, sem sucesso algum. Todos os gnomos haviam desaparecidos da floresta. Ao mesmo tempo, percebe-se pelo seu texto que ele vai desenvolvendo uma impressionante harmonia com a natureza que o cerca. Passa a identificar as árvores com facilidade; os pequenos animais da floresta vêm pastar diante de sua cabana. Ela passeia entre eles sem que se assustem. Alimenta-os na própria mão. Há momento em que ele conversa com os animais, ouvindo a voz do coração. São momentos de rara beleza. Há um trecho em que ele escreveu o seguinte: Assusta-me o que Wadja me disse um dia, a respeito da devastação. Cada vez mais os gnomos irão se refugiar no interior das florestas escuras, até que não haja mais floresta para eles viverem. Quando isso ocorrer, o trágico não será presenciar o fim dos gnomos, mas o início do fim de toda a vida na face da terra. A devastação da natureza não restará impune. O homem pagará por seus crimes com a fome, a desolação e o desespero. Hoje, muitos anos transcorridos desde que o doutor escreveu isso, percebeu-se, com tristeza, que esse quadro trágico já ocorre em muitas partes do planeta. Ainda assim, alertado que está pelo que acontece a seus irmãos em outros continentes, o homem continua, movido pela ganância desenfreada, elaborando sua própria autodestruição. Oxalá pudéssemos aprender a lição dos gnomos, tal como o Dr. Berger transmitiu, na segunda parte do seu manuscrito, quando, finalmente, Wadja reapareceu. O inverno havia chegado novamente. Durante o tempo em que seu amiguinho estivera fora, o Dr. Berger aprendera algo fantástico para ele: fabricar licor de amoras, a bebida preferida do gnomo Wadja. Escolhera as amoras mais tenras e maduras e seguira uma velha receita, ensinada por uma de suas clientes. Tinha, agora, um bom estoque para passar o inverno em companhia do gnomo. Havia muitas perguntas que ele desejava fazer e elas seriam feitas. Sabia que havia assuntos que Wadja não comentaria, mas sua intenção era insistir sempre e mais, até obter todas as respostas que desejava. Quando as primeiras nevascas começaram a cair, o doutor diminuiu o ritmo de suas visitas. Jamais estava fora da cabana, após o anoitecer e todas as noites esperava pacientemente a volta de Wadja. Uma noite... O PALÁCIO Eu havia acabado de alimentar o fogo da lareira e me voltara, após sentir uma estranha e inesperada lufada de vento. Parado junto à entrada, com as mãos cruzadas à frente do corpo e um sorriso bem humorado no rosto bonachão, Wadja me olhava atentamente. — Está muito bem, doutor. — disse-me ele. — Wadja, meu amiguinho! — exclamei abaixando-me para olhá-lo melhor. Nada nele mudara. Agora que ele estava ali, nem parecia que alguns meses haviam se passado desde que ele se fora. Apressei-me em apanhar um pouco de licor de amora. Ao ver a garrafa, Wadja sorriu ainda mais e estendeu-me sua caneca de chifre. Derramei cuidadosamente. Ele provou. — O que me diz? — indaguei-lhe. — Não é a receita da Sra. Asfeld, mas está bom, muito bom mesmo. — Eu mesmo o fiz. — disse eu, com orgulho. Wadja sorriu misteriosamente, olhando-me nos olhos. Não sei que magia havia naquele homenzinho, mas eu entendia o que ele pensava. Sabia que ele percebia que muita coisa mudara em mim, que eu me integrara naquela paisagem. Não fosse a disparidade entre meu tamanho e o dele, aliada à enorme diferença que nos separava no sentido amplo da palavra, eu quase poderia afirmar, naquele momento, que Wadja me considerava um deles. — Estou curioso a respeito de tudo que se passou com você, meu amiguinho. Conte-me tudo! — pedi-lhe, ansioso. Wadja se aproximou da lareira. Imediatamente puxei a minha cadeira de balanço para junto dele. O pequenino sentou-se um pouco afastado do fogo, diante de mim. — Nosso rei morreu, meu amigo, e já temos um novo rei. Seu filho foi coroado numa cerimônia inesquecível. É muito bom, fiel a nossas tradições. Todos têm certeza de que será um bom rei, apesar de jovem. — Jovem? — Sim, é uma garota de cento e cinquenta anos, mas está cercado de sábios anciões que o orientarão, até tornar-se seguro e senhor da nova posição. — E o palácio, Wadja? Onde é? Como é ele? O homenzinho fechou os olhos e uma expressão de puro deleite estampou-se em seu rosto. Parecia lembrar coisas maravilhosas que vira, naquela sua viagem. — O palácio é magnífico. Fica longe, muito longe daqui, lá onde a neve nunca derrete. Suas torres são esculpidas no gelo eterno. Há salões enormes, com paredes forradas de ouro e prata. Pedras preciosas fazem as vezes de maçanetas. Escadarias forradas de marfim... — Marfim? — interrompi-o, estranhando o fato. — Sim, marfim colhido de presas de javalis e laboriosamente entalhado pelos melhores artistas do reino. — Mas... Não entendo, Wadja. Vocês matam javalis? O sorriso dele revelou extrema bondade para com a minha ignorância. — Não, meu amigo, jamais matamos o que quer que seja. Simplesmente vamos buscar presas nos cemitérios de javalis e de outros animais, quando precisamos de chifres de alces, por exemplo. Ao invés de esclarecer, sua resposta mais me confundiu. — Continuo sem entender, Wadja... — Os animais, assim como nós, pressentem a chegada do Grande Momento. Quando isso acontece, seja por velhice ou por algum ferimento provocado pelo homem, eles buscam seu cemitério, onde morrem em paz... Lembrei-me, então, de ter ouvido alguma coisa parecida em relação a elefantes, mas todo o tempo eu julgava que se tratasse de uma lenda. Wadja acrescentava-me um detalhe a mais ao meu conhecimento sobre gnomos e animais. — E o que mais? Conte-me mais sobre o palácio. — pedilhe. — Há vitrais como nenhuma catedral dos homens possui. Quando o sol incide sobre eles, aqueles salões ganham um colorido mágico. Há salões apenas para refeições, para danças, para reuniões, para todos os fins. — E os móveis, decorações, essas coisas? — Os móveis são ricamente trabalhados, feitos de raiz de carvalho, pela sua durabilidade. Para que você tenha uma ideia, meu amigo, o trono do rei já tem mais de mil e duzentos anos, mantendo-se sólido e perfeito como no dia que foi elaborado. Há relógios com mecanismo de precisão, todo ele entalhado em madeira, com detalhes em ouro e brilhantes no lugar dos números. As cortinas são feitas da mais pura seda, feita manualmente nos teares do reino por verdadeiros mestres e artistas. Há painéis, pinturas, quadros, esculturas, coisas que maravilhariam a raça humana, se vistas. — E por que não podem ser vistas? — Por que os homens não veriam a arte e a beleza dessas obras, mas o dinheiro que poderiam obter com elas. A ganância nos homens está sempre em primeiro lugar. Desculpe-me minha visão pessimista, pois, é óbvio, há pessoas como você, doutor, que não pensam nem são assim. Mas falo pela maioria, o que, infelizmente, é terrível, devo reconhecer. — disse ele, calando-se por alguns instantes para refletir. Pensei no que ele dissera. Doe-me perceber que aquela visão era verdadeira, terrivelmente verdadeira e nada poderia ser feito para mudá-la. Ou poderia? Preferi deixar de lado este assunto e retornar a minha curiosidade a respeito do palácio. — Wadja, se todos os gnomos foram para lá, assistir ao Grande Momento do seu rei, como conseguiram acomodar todos? O palácio deve ser enorme... Wadja sorriu bondosamente, tomou mais um pouco de licor de amora e voltou a olhar para mim. — Nem todos ficaram hospedados no palácio, embora ele seja enorme. As famílias da região fazem questão que os visitantes se hospedem em suas casas. Temos um prazer enorme em receber visitas. Elas nos alegram, nos educam, nos ensinam novas coisas e vice-versa. Não acontece o mesmo com vocês? Achei melhor não responder. — E como foi o Grande Momento do rei? — indaguei-lhe. O rosto de Wadja assumiu um tom solene e respeitoso. Por momentos ele ficou pensativo. — Foi lindo! Ele era um grande rei e suas obras ficarão para sempre. Eu estava presente, no Grande Momento. Ele se mantinha lúcido e, todo tempo, passava conselhos ao príncipe, orientando-o, transmitindo-lhe toda a sua experiência. — Deve ter sido triste, não? — comentei. Ele me olhou com estranheza, quase com severidade. — E por que deveria ser? Eu lhe disse, foi lindo ver um gnomo enfrentar seu destino com a lucidez e a sabedoria dos grandes exemplos. Seus anéis já estavam contados, ele tinha consciência disso, sabia que não era eterno, embora suas ações o perpetuassem. Achamos intrigante isso em vocês, humanos. Sabem que vão morrer e todo o tempo resistem a esta ideia. Ao Invés de utilizar todo o tempo disponível para aprender e ensinar, ficam se preocupando com futilidades, com amealhar bens e dinheiro, coisas que não poderão levar para o outro lado. — E o que é o outro lado? — É a continuação, num outro plano, mas é um assunto muito complexo para a sua natureza. Poupe-me dos detalhes. No momento certo de sua evolução você compreenderá. Calamos-nos por instantes, ouvindo o fogo crepitar na lareira e o aroma de velhos troncos de pinho pairar dentro da cabana. Wadja tomou mais um pouco de licor, estalando os lábios de um jeito peculiar, dando sua aprovação. Fiquei refletindo sobre o que ele dissera, a respeito de nossa visão do Grande Momento. Nós o vemos com tristeza, lamentando a sensação de perda. Eles encaram isso com naturalidade, preparam-se para isso com sabedoria e enfrentam o momento com lucidez e tranquilidade. Fiquei imaginando quando iremos atingir esse grau de espontaneidade diante dos mistérios que nos cercam. Os gnomos já haviam encontrado as respostas para muitas das questões que ainda nos afligem. — O que mais você viu lá no palácio, Wadja. Conte-me! — insisti, com o objetivo de não deixar nossa conversa esmorecer. Ele respirou fundo e desta vez vi orgulho em seu rosto. — Conheci um herói. Por muitos e muitos anos seu nome será comentado. Ele se tornará uma lenda. Daqui a cem anos poderei contar aos meus netos que conheci Hammer Gals. Nós nos sentávamos no grande salão de reuniões e ficávamos horas a fio ouvindo-o contar sua odisseia. Hammer viajou por nada mais nada menos que oitenta e sete anos e conheceu todas as localidades onde vivem os gnomos, seja aqui na Europa, seja no continente americano. — Todas as localidades? — surpreendi-me. — Todas. Após percorrer toda a Europa, Hammer atravessou o Estreito de Bering, visitou o Canadá, a América e o Alasca, retornando pelo mesmo caminho. Acredito que suas histórias tenham proporcionado ao nosso rei seus melhores momentos, antes de sua partida. Hammer agora faz parte de nosso panteão de heróis. E não está satisfeito com o que fez. Pretende agora fazer o mesmo trajeto até a América, só que, desta vez, pretende seguir em frente, até a América do Sul, no extremo do globo, onde, nas terras geladas. Há notícias de presença de gnomos imigrantes. Já tivemos noticia da presença de nossos irmãos no sul do Brasil, Argentina, Chile e outros países de lá. — Meu Deus, ele deverá levar outros oitenta anos para isso. — É possível, mas o que seria de nós sem essas pessoas dispostas a alargar nossos horizontes? São os aventureiros, os audazes descobridores, os pesquisadores intrépidos, gente que jamais se satisfaz com a mediocridade. Se soubesse quantas informações Hammer amealhou... Coisas fantásticas, que enriquecerão nosso povo, nossa cultura e nosso saber. — Viajando a pé, Wadja? Como ele faz isso? — Da mesma forma como viajamos até o palácio. Os animais nos levam, já lhe falei a respeito. — Sim, eu me lembro. Você já me falou tanta coisa e ainda há tanta coisa a saber. Gostaria de aprender tudo que pudesse. — Uma vida sua seria pouco para isso, meu caro amigo. Você precisaria de muito mais, considerando seu período de vida normal. Mas não se impaciente. No devido tempo você perceberá que isso é possível. — disse-me ele, misteriosamente. — Agora está ficando tarde. Preciso rever meus amigos no bosque. Alguns se foram, eu sei, mas outros nasceram e é isso que torna esta natureza que nos cerca tão maravilhosa. — Antes que você vá, há uma última coisa que gostaria de lhe perguntar hoje. Tenho visitado praticamente todas as casas da região. Em todas elas observei a presença de pequenas estátuas de madeira, representando gnomos. Alguns cercados de moedas, outros de alimentos, um, eu me lembro, estava ao lado de uma pequena casa de toras, coisas assim. Ninguém quis me explicar o significado disso. Você pode me dizer alguma coisa? Wadja sorriu como se aquele fosse o mais insignificante dos problemas. — Os humanos têm uma forma peculiar de se comunicarem conosco e de nos informarem sobre suas necessidades. A presença numa casa de uma imagem de gnomo cercada de moedas, por exemplo, quer dizer que aquela família precisa de dinheiro. Os alimentos indicam que precisam de auxílio para a colheita. O da casinha de toras quer nossa ajuda para construir uma nova cabana ou reconstruir a sua. É uma linguagem simples. — E vocês atendem todos eles? — Mais ou menos. Não basta nos pedir, é preciso demonstrar que merecem, entende? Seu modo de vida, como se relacionam com a natureza a respeitam a vida de um modo geral é o que lhes dá crédito. Se merecem, são ajudados. Se não merecem, de alguma forma damos-lhes uma lição para que reflitam sobre os erros que estão cometendo e modifiquem-se para merecer a nossa ajuda. Não acha isso justo? Seu olhar interrogativo tinha muito mais divertimento ante a minha surpresa do que qualquer outra coisa. Ele terminou de esvaziar seu caneco de chifre, limpou-o e pendurou-o à cintura. Sorriu-me novamente, depois se afastou na direção da passagem na parede. — Vai voltar amanhã? — indaguei-lhe. — Como poderia de deixar de vir, com um excelente licor de amora a minha espera, sem falar na sua companhia que muito me agrada, doutor. É um bom homem e, tenho certeza, será um homem sábio, pois vejo seu coração e sei que é capaz de falar e ouvir como um de nós. Boa-noite, meu amigo. — finalizou ele, afastando o tronco e sumindo na noite. Acendi meu cachimbo e me sentei diante da lareira. Provei um pouco do licor de amora. Estava excelente realmente, sem falsa modéstia. Ali, no silêncio da cabana, no meio da floresta nevada, acho que começava, realmente, a me tornar sábio. Sentia que seria um difícil e longo aprendizado, mas eu tinha o melhor dos mestres: um gnomo chamado Wadja. A CASA DE WESSEL Na noite seguinte, quando Wadja retornou, trazia-me um presente inesquecível. Envolvo num pedaço de seda pura, de cor vermelha, estava uma pequena estátua, do tamanho do meu polegar, de um gnomo. Ao abri-lo, fiquei maravilhado, enquanto Wadja me olhava sorridente. A pequena estátua era perfeita em todos os seus detalhes, pintada cuidadosamente e, seguramente, fora feita por mãos hábeis de um verdadeiro artista. — É impressionante a perfeição dos detalhes. — observei eu, admirando o presente. — Foi esculpida numa lasca de raiz de carvalho. É para você deixar no aparador da lareira. Quando precisar de alguma coisa de nós, gnomos, basta sinalizar. — Com moedas, alimentos ou coisa assim? — indaguei, lembrando-me de nossa conversa na noite anterior. — Exatamente. Levei a pequena estátua até o aparador da lareira. Uma ideia me ocorreu. Num dos extremos havia um porta retrato com uma pequena fotografia minha. Coloquei-a ao lado do gnomo. Wadja olhou-me com curiosidade. — entendeu? — indaguei-lhe. — Sinceramente, não. — respondeu-me. — Estou sinalizando que, dos gnomos, quero a companhia e a amizade, não percebe? Ele sorriu com aquele rosto bonachão de sempre e balançou a cabeça num sinal de aprovação. — Está se tornando um homem sábio, doutor. Fomos nos acomodar diante do fogo. Antes que ele me pedisse, providenciei um pouco do licor de amoras que ele gostava. Acendi meu cachimbo e fiquei esperando pelas novidades. Percebi que Wadja estava feliz, com um ar orgulhoso no rosto. Seus olhos brilhavam mais do que de costume e ele parecia até um tanto inquieto. Eu estava realmente me habituando a compreender aquela criaturinha imprevisível. Nosso convívio tornava isso possível, ao mesmo tempo em que desenvolvia, em mim, uma série de habilidades e qualidades que eu desconhecia. Ele estava mesmo ansioso para me contar alguma coisa, naquela noite. Resolvi dar-lhe a chance. — O que há de especial com você hoje, Wadja? Parece-me muito feliz e muito orgulhoso. — observei. Ele respirou fundo e abriu um enorme sorriso. — Meu filho, Wessel, encontrou o local onde fará sua casa. É um belíssimo carvalho, no centro da floresta, próximo de um regato, numa clareira onde, na primavera, as flores brotam maravilhosamente. — E quando ele iniciará a construção dessa casa? — Assim que chegar a primavera. Será um longo trabalho. Pretendemos terminar todas as escavações até o próximo inverno, depois cuidaremos do interior, das paredes e dos móveis. Acho que ele está namorando. Quando terminar sua casa poderá se casar. Em breve serei avô, imagine! — comentou ele, sem esconder seu orgulho. Lembrei-me de um desenho que Wadja fizera, uma noite, de sua casa. Fiquei imaginando o trabalho daquelas criaturinhas para construir toda uma residência, com móveis, despensas, poço, banheiro e tudo o mais. Para nós, isso representa um trabalho enorme. Para eles, sem nossa tecnologia, parecia impossível. Havia uma série de questões e detalhes a serem superados. Inicialmente, como serrar a madeira? Resolvi indagar isso ao meu amiguinho. — Wadja, se um homem resolve construir uma casa, vai a uma serraria e compra toda a madeira necessária. E vocês, como fazem isso? — Também temos a nossa serraria particular, meu amigo. Um dia, na primavera, vou levá-lo lá. É tudo muito simples. — Que tipo de energia usam? Ele sorriu e tomou um pouco do licor de amoras, estalando a língua como de costume. — Há gnomos que usam a força do vento. Eu uso a força coelhal, é mais prática e rápida. — Força coelhal. — estranhei. — Sim, força coelhal. Todo ano, na primavera, eu espalho sementes de cenoura em canteiros ao redor da minha casa. Tenho alguns amigos coelhos que vêm se servir, quando elas estão crescidas. Em troca, quando preciso mover a minha serraria, peço a uma deles que se deixe atrelar a uma espécie de moinho que move uma engrenagem que movimenta as serras. — Fantástico! — exclamei, imaginando a cena. Um coelho movendo uma serraria. Engrenagens se agitando para mover serras. Mas... — Um instante, Wadja. Como são feitas essas engrenagens? — Sólida madeira. Temos uma tecnologia de séculos nesse sentido. Mas não fique muito curioso por enquanto, pois será difícil descrever-lhe com detalhes a minha serraria. Quando chegar a primavera, eu o levarei até lá. Foi, realmente, o que aconteceu. Na primavera seguinte, satisfiz a minha curiosidade. Numa noite de lua cheia e céu limpo, Wadja me lavaria até sua serraria, nas profundezas do bosque. Ali pode admirar toda a habilidade e a ciência do meu amiguinho. Catracas feitas de madeira, com encaixes perfeitos que pareciam entalhadas de uma mesma peça, moviam-se, quando se girava o moinho. Um sistema de cordas fazia as serras oscilarem e, quando maior a velocidade do giro, maior o movimento das serras. Pilhas de pequenas tábuas se juntavam ao lado de um tronco e serviriam para a construção da casa de Wessel e elaboração dos delicados e resistentes móveis que a tornariam habitável. Vi toda uma série de ferramentas de carpintaria, feitas de puro aço, cujo corte chegou a espantar-me. Havia até uma pequena forja, cujo fole também era alimentado a energia "coelhal". Pude examinar também um tear, onde tecidos delicados eram preparados, tudo para compor o enxoval da casa do filho do meu amiguinho. — A marcenaria é uma arte para nós. — diria ele naquela noite em que visitei sua serraria. — Uma arte que se torna nosso passatempo predileto. Lembra-se da pequena estátua que lhe dei? Pois fui eu quem a entalhei, como estou entalhando um relógio cuco para dar ao meu filho, no dia do seu noivado. Ainda naquela mesma noite, Wadja me levaria ao local onde o filho iniciara a construção da casa. Junto ao tronco de um velho e enorme carvalho havia alguns arbustos que ele retirou, revelando uma entrada. Mal cabia a minha cabeça e tive de me deitar para examinar o local. — Por enquanto estamos ainda nas escavações. A toupeira que Wessel está utilizando é jovem ainda e um pouco inexperiente, mas muito prestativa e vigorosa. Será um excelente auxiliar no futuro. — Descreva-me como será a casa de Wessel, Wadja. — pedi-lhe. — Bom, descendo por está entrada, onde haverá uma escada, é lógico, chegaremos à porta de entrada e à sala das botas... — Sala das botas? — Sim, isso é um velho costume dos gnomos. Quando chegamos à casa de um amigo, tiramos as botas na entrada e calçamos chinelos para caminhar no interior da cama. Eu mesmo, quando retorno a minha casa, deixo as botas na entrada. — Qual a origem desse costume? — Sinceramente, não sei. A casa fica limpa, acho. Em sinal de respeito também. Acho que é isso. Talvez no Grande Livro isso esteja anotado. Vou verificar e depois lhe contarei, está bem? — Sim, claro. Agora continue contando sobre a casa. — Na sala das botas fica também o poço de água, é bom lembrar. Dali passa-se para a sala de estar, onde ficam a lareira, a mesa. A cozinha pode fazer parte do mesmo cômodo ou ficar separada, assim como o banheiro. Da sala de estar, que também serve como sala de jantar, têm-se as entradas para os quartos e pronto. Tudo muito simples e prático. Naquela noite ainda, quando voltávamos, presenciei uma cena fantástica. Uma, não! Duas. Caminhamos lado a lado, embora isso pudesse parecer incrível, eu tinha de apressar o passo para poder acompanhar meu amigo, que era extremamente veloz. Ouvimos ruídos vindos de um ponto da floresta e um mugido doloroso, que imediatamente pôs meu amiguinho em alerta. Vi-o disparar numa direção e tratei de segui-lo. Numa pequena clareira, deparamo-nos com um alce se debatendo, com as patas enroladas em arame farpado. — Oh, Grande Lei! — exclamou meu amigo, olhando as patas do animal, que sangrava, onde as farpas de metal haviam se enterrado nas carnes. Fiquei estático, olhando-o e, pela primeira vez, vi-o zangado, muito zangado mesmo. Mas isso foi por apenas um instante. A preocupação com o animal foi maior e ele passou a agir imediatamente. Postou-se diante do focinho do animal, acariciando-o e acalmando-o. Ouvi-o pronunciar palavras naquela sua língua desconhecida e, o que foi mais impressionante, o animal o entendia, pois foi se aquietando. Postou-se diante do focinho do animal, acariciando-o e acalmando-o. Ouvi-o pronunciar palavras naquela sua língua desconhecida e, o que foi mais impressionante, o animal o entendia, pois foi se aquietando. Wadja abriu uma de suas bolsas e retirou dali uma minúscula caixa de madeira, que continha hastes de metal, pois rebrilhavam à luz da luz. Vi-o espetar as minúsculas agulhas ao longo do dorso do animal, a partir dos chifres, pacientemente. À medida que fazia isso, o animal foi ficando imóvel, até que, quando Wadja terminou, julguei que o animal estava adormecido. Ele fez um sinal para que eu me aproximasse, o que fiz com toda cautela. — Eu poderia cortar o arame com meu alicate, mas demoraria mais tempo. Se me ajudar, poderemos desenrolá-lo e cortá-lo ao mesmo tempo, livrando o pobre alce deste suplício. — sugeriu ele, no que concordei. — O que fez a ele? Parece que dorme? — indaguei. — Ele está anestesiado agora. Acupuntura, lembra-se? Sim, eu me lembrava de Wadja ter dito alguma coisa a respeito. Como médico, fiquei abismado, realmente surpreso com aquele procedimento que, caso alguém me contasse, não acreditaria de forma alguma. No entanto, ali estava o alce, com o arame enterrado em suas carnes, respirando normalmente, sem reclamar da dor. Nem depois, quando auxiliei Wadja, segurando e erguendo as patas do alce, o animal reclamou. Fomos retirando o arame, cortando quando necessário, desenrolando apenas quando isso era possível, até que o animal estivesse livre. Havia algumas feridas feias e lamentei não estar com minha maleta para providenciar um curativo. Isso, porém, não seria necessário de forma alguma. Wadja afastou-se por algum tempo, olhando as plantas ao seu redor. Vi-o apanhar algumas folhas de um arbusto e trazê-lo para junto do animal. Com as mãos, torceu fortemente as folhas, extraindo o sumo que gotejou sobre as feridas maiores. Depois, Wadja apanhou outra bolsa e, dali, retirou punhados de um pó acinzentado, que jogou sobre as feridas do animal. Quando terminou, conversou mais um pouco com o alce, depois foi retirar as agulhas espetadas em seu dorso. Afastou-se satisfeito. Percebi que o animal continuava deitado e imóvel. — Alguma coisa errada com ele, Wadja? Não vai se levantar? — Não. Recomendei a ele que ficasse deitado durante esta noite. Amanhã, quando se levantar, já estará bom. Olhei meu amigo com incredulidade. Ele me olhava com seriedade. Percebi que ele falava sério e não mais duvidei. Alguns dias mais tarde eu veria o alce próximo de minha cabana. Embora houvesse marcas em suas patas, as feridas estavam cicatrizadas. Foi fantástico. — É um absurdo essa necessidade que o homem tem delimitar suas propriedades com essa praga que é o arame farpado. Veja o contrassenso dessa ideia, meu amigo. — comentou Wadja. — Não basta a ele fixar seus limites e impedir que outros passem livremente por suas terras. Isso é feito deforma cruel, com um instrumento de tortura para os animais, que desconhecem o efeito daquelas farpas perigosas. Tive de concordar com meu amigo, pois presenciara os efeitos nefastos do arame farpado. Naquela noite ainda, presenciara mais um gesto de extrema bondade e amor aos animais e à natureza, dado por meu amigo gnomo. Quase próximo de minha cabana, ouvimos um ruído quase imperceptível, mas Wadja captou-o e interpretou-o com uma rapidez fantástica. — Esses filhotes! — murmurou ele, apenas, e correu até uma árvore próxima. Segui-o incontinente. Um pequeno filhote de faisão se debatia no meio da folhagem, próximo ao tronco da árvore. Wadja o apanhou com cuidado, examinando-o. — Não está ferido. Apenas caiu do ninho. — comentou e, com uma habilidade fantástica, subiu pela árvore levando o filhote. Retornou pouco depois, satisfeito com o trabalho feito. — Pronto, ele já está fora de perigo e a salvo em seu ninho. É muito frequente isso acontecer, mas nós gnomos nos preocupamos com nossos amigos faisões e todas as aves. Aqui embaixo ele seria presa fácil dos predadores. Salvando-o, talvez estejamos salvando um de nós no futuro. — disse ele. — Como assim? — Em situações de emergência ou mesmo em viagens, nossos amigos pássaros nos ajudam, transportando-nos. Você deve se lembrar de como fui levado por uma faisoa, quando me acidentei na pilha de lenhas, não? — Sim, claro, eu me lembro. — O pássaro que acabei de salvar pode salvar a minha vida no futuro. Ou, então, levar-me em seu pescoço num passeio ou numa viagem. Era tudo muito simples. Uma relação de harmonia perfeita entre gnomos e natureza, um zelando pelo outro, um fazendo o que estivesse ao seu alcance pelo outro, tudo sem interesse, sem falsidade, sem ganância. Eram todos parte de um organismo único, a natureza. Prezavam sua harmonia e viviam em paz entre si. Imaginei o que levava os homens a não serem assim, mas, sinceramente, não consegui chegar a uma conclusão. Parece haver no homem um germe que o impele à destruição, embora isso resulte em desgraças para ele. Um exemplo era a floresta, que tantas coisas tinha a oferecer e que começava a ser devastada pouco a pouco, mesmo ali, no interior do país. E o que dizer das guerras? Para um gnomo isso soaria absurdo, incompreensível. Jamais havia falado com Wadja a esse respeito, mas um dia fatalmente teríamos que trocar ideias a respeito. Isso de fato aconteceu, algum tempo depois, quando li para ele uma noticia de jornal. Foi a primeira e última vez que fiz isso. UM SER MÍSTICO E HARMÔNICO Põe mais que eu conhecesse sobre meus amiguinhos gnomos, longe ainda estava o dia em que não me surpreendesse com alguma coisa nova em relação a eles. Sempre imprevisíveis e impressionantes. Fosse sentados em minha cabana ou nos inúmeros passeios que fazíamos pela floresta, Wadja nunca deixava de me surpreender. Uma noite de primavera, por exemplo, com o perfume da floresta impregnando minha sala e uma brisa soprando agradavelmente, eu fumava meu cachimbo do lado e um tear que eu vinha tentando montar, seguindo instruções de Wadja, fui alertado por vozes abafadas e o som de algo que me parecia instrumentos musicais. Ao meu virar na direção da porta, que deixara aberta para aproveitar a brisa, vi meu amiguinho chegar. — O que esta fazendo? — indagou-me ele, aproximando-se com seu jeito sem-cerimônia. Wadja já se considerava da casa. Às vezes, de madrugada, eu o ouvia chegar, empurrava o recorte do tronco por onde costumava passar. Em seguida, ouvia o tilintar das pequenas garrafas, quase ampolas, onde eu guardava o precioso licor de amoras. Wadja tomava alguns goles, depois ia embora. Havia encerrado sua ronda noturna e dizia sempre que meu licor era o melhor relaxante que conhecia. Gostava de tomá-lo antes de dormir. Ofereci-lhe alguns frascos, mas ele dizia que então não tinha graça tomá-lo. O clima de amizade que encontrava na cabana, segundo ele, é que tornava aquele licor especial. Mas quando Wadja surgiu naquela noite, curioso com meu trabalho, percebi que ele tinha alguma coisa especial para mim, simplesmente ao olhá-lo. Isso sempre me impressionava, pois no convívio com aquele pequeno sábio eu ia desenvolvendo habilidades que jamais sonhei possuir. — Estou tentando fazer funcionar aquele tear, segundo o desenho que me fez. — expliquei-lhe. — Seguiu direitinho a escala? — Sim, ao pé da letra, ou dos números, talvez. — E o que está saindo errado? — As linhas estão se embaraçando e... Mal eu terminara de falar, Wadja já inspecionava a tosca armação com olhos de entendido. — Simples. — apontou ele. O pente de tear está com as aberturas dos pares muito pequenas. Basta aumentá-las e os fios vão correr o suficiente para não se enroscarem nem forçarem demais a trama. — Só isso? — Sim, o resto está perfeito. Estou ansioso para ver o que consegue fazer com ele. — disse Wadja, olhando insistentemente na direção da porta. — Você não está sozinho, está? — indaguei-lhe. — Não, hoje resolvemos fazer-lhe uma surpresa. Venha até aqui fora e traga um lampião. Fiz o que ele pedia. Levei um lampião e o deixei no chão, no centro da pequena clareira que havia diante da cabana. Logo pude ver os outros gnomos que se aproximavam, cercando a luz. Alguns carregavam pequenos instrumentos: uma flauta, tambor, algo parecido com uma harpa e um violino. — Rossel é um dos poucos e excelentes violinistas que temos em toda a floresta. — explicou-me Wadja. — Está de passagem e julguei que lhe agradaria ouvir um pouco de música. — Fantástico, Wadja! Vou adorar isso. — disse-lhe, retornando à cabana e apanhando a minha cadeira de balanço e alguns frascos de licor de amora, que foi muito festejado. Havia algumas mulheres gnomos, todas jovens, de faces rechonchudas e rosadas, vestindo boleros ricamente adornados com os mais finos e delicados bordados. Calçavam sapatilhas próprias para dança, com os mesmos adornos dos boleros. Sentei-me e observei-os formarem um círculo ao redor do lampião. O grupo de músicos ficou do lado de fora. Conversando entre eles. Um dos gnomos começou a assobiar imitando um sabiá. Era perfeito, com todas as modulações do canto do próprio pássaro. O violino o seguiu e depois os outros instrumentos. A música era lenta, melancólica. Os gnomos começaram a girar ao redor do lampião, batendo palmas compassadas, numa coreografia toda própria. Não pude deixar de me contagiar com o tom da música, que carregava certo acento de tristeza. Quando terminou, percebi que quase todos os gnomos choravam. Wadja deixou o grupo e se aproximou de mim. — Que música triste, Wadja. — comentei-lhe. Ele enxugou discretamente os cantos dos olhos, fungou, depois me encarou. — É um velho costume nosso. Sempre que vamos nos alegrar, cantamos algo triste para expressarmos toda a nossa tristeza e exorcizá-la. A partir daí, estamos livres para manifestarmos a nossa alegria. — Não seria mais adequado começar por uma canção alegre? — Não, meu amigo, pois a tristeza também faz parte de nós. Ao aceitá-la e reconhecê-la, conseguimos destacá-la dos demais sentimentos e exercer controle sobre ela. Quando precisamos ficar tristes, ficamos e manifestamos isso. Logo ela acaba. Se não fizermos isso, ela ficará se remoendo dentro de nós, empanando o brilho de nossa alegria. Não é simples? Sim no fundo era simples. Para os gnomos era simples. Para mim não parecia ser tão fácil assim, mas eu estava apenas iniciando meu aprendizado. Não resisti, portanto, à ideia. A música recomeçou, agora rápida, alegre, contagiante. Meu amiguinho correu de volta ao círculo e dessa vez dançaram com todo entusiasmo. Eram divertidos os saltos acrobáticos, a maneira como batiam nos pés, nas pernas, no peito com as mãos, ou então como coordenavam as palmas e as batidas de pés no chão, acompanhando o ritmo do tambor. Por algumas horas estivemos ali, eu observando e eles, dançando, sem que demonstrassem sinais de cansaço. Tive de reforçar algumas vezes o estoque de licor de amoras. Providenciei alguns pedaços de um delicio pudim que ganhara de uma de minhas pacientes, geleia, pão e doces, que eles comiam com gosto, nos intervalos da música. Teríamos ficado ali por toda a noite, seguramente. Quando eles foram embora, cantando com alegria que contagiava toda a floresta, fiquei pensando no que Wadja me dissera. Resistimos à tristeza como se ela não fosse parte de nós, ao invés de aceitá-la como uma manifestação de alguma parte insatisfeita de nós mesmos. Quanto mais tentamos afastá-la, mais ela permanece, porque não sabemos lidar com ela. A filosofia simples dos gnomos tornava este problema complexo, para nós humanos, um fato corriqueiro, cotidiano e natural para eles. Por que não fazer o mesmo? *** Numa noite de primavera, eu e Wadja passeávamos pela floresta. Fiquei observando as atitudes e reações do meu precioso amigo. Ao passarmos por um trecho, ele rapidamente recolheu algumas pedras e fez um curioso desenho circular. Ao perceber que eu o havia observado, ele sorriu: — Seguramente Rikvai se esqueceu deste depósito. — disse-me. — Quem é Rikvai? — Rikvai é um velho amigo, esquilo. Esta ficando meio caduco com a idade. Faz seus depósitos de nozes onde quer que encontre um tronco com um buraco. Depois o esquece. Tenho de marcá-lo para ele, senão, no inverno, o pobrezinho acabaria por morrer de fome. — Mas como você sabe que aqui no tronco há um depósito de nozes e que ele pertence a Rikvai? — indaguei-lhe, curioso. — Pelo cheiro. O cheiro do velho Rikvai é inconfundível. Além disso, sinto o cheiro de nozes junto ao tronco. Aquela era uma habilidade dos gnomos que eu não conseguia desenvolver. Para mim, a floresta tinha um só perfume, mescla de inúmeros outros, de incontáveis cheiros e aromas. Como diferenciar tudo aquilo? — Wadja, essa sua habilidade é algo que consigo desenvolver? — Você sabe reconhecer o cheiro de um cravo do de uma rosa? — Claro. — Então você tem olfato e habilidade de reconhecer cheiros. Se a tem, pode desenvolvê-la, mas não vejo onde isso possa ajudá-lo. Eu não precisava indagar mais. Se até aquele momento Wadja ainda não me dera conselhos para desenvolver o meu olfato, era simplesmente porque ele entendia que isso de nada me adiantaria. E se Wadja pensava assim, eu nem questionaria. Reconhecer cheiros com aquele grau de apuração não me seria útil e eu deveria empregar meu tempo em outras coisas, mais importantes e valiosas. Só que, a partir do momento em que me conscientizei disso, algo estranho aconteceu. Naturalmente, sem que eu me esforçasse ou me empenhasse nisso, os cheiros da floresta começaram a se tornar mais distintos para mim. Podia sentir quando as flores silvestres floriam, quando frutas amadureciam, quando um esquilo se movia rapidamente por entre os galhos das árvores. Cada cheiro novo naquela mescla de cheiros da floresta era como algo em movimento, quebrando a harmonia de algo que já estava formado. Era como um lago sereno, onde se atirasse uma pedra. Aqueles círculos que se espalhavam era o novo cheiro, incorporando-se ao aroma geral, como a pedra se incorporava ao lago, passando a fazer parte dele. Um dia comentei isso com Wadja. — Quando se quer alguma coisa da natureza, meu amigo, basta harmonizar-se com ela. Não pode ser uma luta de forças, onde sua vontade impera. Harmonizar-se com a natureza é a melhor forma de obter tudo que ela nos oferece. Jamais faça o contrario. — Pode me dar mais alguns exemplos disso? — indagueilhe, quase num tom de desafio. — Hoje, antes de vir para cá, fui até a casa de Wessel, ver como iam os trabalhos. Ele está muito animado e a casa já começa a se definir. Pediu-me ajuda para localizar o veio de água e eu o fiz. De alguma forma, estabeleci um contato com a própria terra que me informou o melhor lugar para cavar. Aquilo foi dito com toda segurança e naturalidade. Fiquei refletindo, em meio à fumaça do meu cachimbo, que disfarçava alguns resquícios de dúvida ainda em mim. Sábio que, ao final, Wadja me surpreenderia de novo, mostrando o quanto eu era imaturo nesses assuntos. — Quer que eu lhe mostre como? Não esperei uma segunda oferta. Fomos para fora da cabana. Wadja caminhou de um lado para outro, até encontrar algo: uma forquilha seca, que aparou rapidamente. Segurou as duas extremidades, deixando a outra ponta adiante do corpo. Caminhou de um lado para outro, até imobilizar-se e dizer-me: — Aqui há um veio de água. Aproximei-me. Não entendia como ele podia afirmar isso com tenta convicção. — Vou lhe mostrar como funciona. — disse ele, procurando uma forquilha maior. Depositou-a em minhas mãos. — Caminhe daquela direção até este ponto onde estou. — ordenou. Fiz o que ele mandava. Com a madeira presa firmemente em minhas mãos, caminhei até ele, sem nada perceber. — Você está tentando impor sua força em relação à natureza. Ela não é sua adversária, é mãe, irmã, companheira e amiga. Harmonize-se com ela. Volte até lá e faça de novo o mesmo trajeto. — ordenou-me ele. Atendi-o. Deixei que meus pensamentos se harmonizassem com a natureza. Concentrei-me no que estava ao meu redor e sob meus pés. Pude sentir o aroma dos dentes-de-leão que floriam ali por perto, o som de filhotes nos ninhos, o cheiro de um rato do campo que nos observava. Sob meus pés, a terra parecia um organismo vivo. Fui caminhando. A forquilha se mantinha imóvel em minhas mãos. Ao chegar ao ponto onde Wadja me esperava, algo incrível me aconteceu. A ponta da forquilha oscilava, numa agradável vibração, como se acompanhasse o movimento de um regato que corresse. Sorri surpreso e impressionado. — Sentiu? — indagou-me ele. — Sim, como uma vibração, uma oscilação, coisa assim. — Exatamente. Agora entende o que eu digo, não? — Sim, meu bom amigo. Mais uma vez você me dá uma importante lição. Ele apenas sorriu bonachão e me convidou para tomamos mais um pouco de licor de amoras. De volta à cabana, conversamos um pouco mais sobre a natureza. A importância de o homem harmonizar-se com a natureza acabou levando-nos a discutir aspectos de minha profissão, a medicina. Contei-lhe dos novos medicamentos que estavam sendo criados, suas vantagens, em como os pacientes seriam aliviados de seus problemas com maior rapidez. As revistas médicas que eu recebia com frequência e retirava no correio do vilarejo me mantinham informado e, sempre que alguém viajava para Leipzig, eu encomendava os novos medicamentos. Mostrei-os ao meu amiguinho, com todo o meu entusiasmo, esperando impressioná-lo. Wadja acompanhou toda a minha explanação sem dizer nada, apenas observando-me. Acho que me observava mais do que aos remédios e revistas que eu lhe mostrava. Quando terminei, encarei-o cheio de orgulho. — Vocês humanos sempre me surpreendem. — disse-me, ao final. — Fico feliz que reconheça nossas qualidades. — falei, cheio de orgulho. — Não, pelo contrário. Vocês sempre me surpreendem pela ignorância, pela maneira como buscam amenizar os efeitos, sem entender ou descobrir a causa. Fiquei pasmo. Pensei, todo o tempo, que o estivesse impressionando, mas aquele comentário, dito num tom cordial, quase triste, deixou-me sem reação e sem palavras. — Você sabe exatamente o que é a doença, meu amigo? — indagou-me o gnomo. — Quer que eu responda isso em termos médicos ou de modo simples? — Simples, o mais simples possível. Não há necessidade de complicar o que é simples. — Bem, acho que posso afirmar que a doença é sinal de que algo não vai bem com seu organismo. — Perfeito, doutor. E o que não anda bem? — Deficiências, uma falha no sistema de defesa... Ele não me deixou terminar. Cortou-me com um sinal de mão e imediatamente calei-me. — Você entende exatamente o que acontece, qual o mecanismo de uma doença. Posso tornar isso mais simples ainda para você. Uma doença é quando você entra em desarmonia com a natureza. Seu organismo é parte da natureza e, quando você e ela de alguma forma agride esse relacionamento, manifesta-se a doença. Eu já sabia demais sobre harmonia com a natureza para discordar do meu amigo. O processo, porém, ainda me era obscuro. — Não sei exatamente o motivo, mas algo me diz que você está coberto de razões, Wadja. Mas isso não ficou claro para mim. Pode me esclarecer um pouco mais sobre o assunto. — Vejamos: quantos pacientes você visita por dia? — Não muitos, mas são visitas constantes, pelo menos uma vez por semana. — E sempre encontra problemas, não? — Sim, porque consulto toda a família ou alguém que esteja com algum problema específico. — Diga-me uma coisa: quantos pacientes você tem consultado que apresentam problemas de intestino? Quantas crianças você percebe com dentes estragados, estruturas óssea afetada, sem apetite e raquíticas? — Realmente, agora que você mencionou isso, percebo que esses problemas são frequentes. Tenho receitado umas pílulas interessantes para problemas de estômago, suplementos de cálcio e estimulantes de apetite... — Combatendo os efeitos, sem eliminar as causas. Eles vão consumir remédios o resto da vida deles, sem jamais se curarem. — Se é assim, Wadja, você me faz desacreditar da minha própria profissão. Se não posso curar meus pacientes, que médico sou eu? — Um bom e sábio médico, que procura aprender, doutor. Isso o torna um bom médico. Procure sempre descobrir as causas da doença, não combater seus efeitos. Observe as casas por onde passar, doutor. Veja como utilizem esse açúcar branqueado, que consideramos um veneno. Muitos julgam que ele fornece, mas é como a chama de um fósforo, que se acende repentinamente, brilha instantaneamente, depois se torna inútil como um palito apagado. O açúcar faz o mesmo com as pessoas. Tira-lhes o apetite, prende-lhes o intestino, retira o cálcio dos ossos e dentes e inúmeras outras enfermidades. Por que não usar o bom e velho mel? Ou os adoçantes que estão por aí, na natureza? — Que adoçantes? — Plantas, doutor. Plantas, natureza viva a nossa disposição e capaz de devolver nossa harmonia. Se algo prejudica nosso relacionamento com a natureza, ela mesma nos fornece meios de restaurarmos o elo perdido. Naquela noite, Wadja me introduziu nos mistérios da medicina. Natural. Contou-me como os gnomos utilizavam a água pura para se manterem saudáveis, como, apesar de serem noturnos e subterrâneos, reconheciam a importância da luz do sol para o corpo. Pouco a pouco fui mudando todos os meus conceitos, passando a receitar elementos naturais em minhas receitas. Meus pacientes recebiam aquilo com alegria e eles mesmos acabavam confessando que, além dos meus remédios, também utilizavam receitas caseiras. Eu as recolhia e as discutia com Wadja, que me repassava os conhecimentos seculares dos gnomos, apontando falhas, refazendo receitas, recomendando outras plantas para problemas específicos, onde algumas receitas se mostravam inócuas. Quem não apreciou essa mudança, a principio, foi o farmacêutico local, mas pouco a pouco eu o convenci a manipular cada vez mais produtos naturais. Ele acabou por entusiasmar-se com a ideia, tendo, inclusive, um dia, presenteado-me com um caderno que fora de seu avô, onde preciosas receitas naturais estavam anotadas. Wadja reconheceu em todas elas a presença dos gnomos. — Não me admiraria se algumas dessas receitas não tenham sido ditadas pessoalmente por mim, ao velho farmacêutico. Afinal, não esqueça que tenho duzentos anos, meu amigo. — finalizou ele, com um sorriso bonachão no rosto. NOVAS SURPRESAS Certa feita, quando conversávamos, Wadja me perguntou a respeito das revistas médicas que eu recebia. — Por que precisa ler essas revistas para saber das novidades? — Ora, Wadja, porque são coisas que estão acontecendo muito longe daqui. As revistas são uma forma de disseminar esse conhecimento e essa informação. — E isso é rápido? — Bem, desde o momento de uma descoberta até que ela seja divulgada, creio que apenas alguns meses. — informei, como se isso pudesse surpreendê-lo. Ele sorriu, balançou a cabeça revelando estar, de certa forma, decepcionado. Lembrei-me, então, de perguntar: — Vocês, Wadja, como transmitem e recebem informações sobre alguma novidade? Ele pensou por instantes e seu rosto ganhou um ar de pura gozação. Quando o via com aquela expressão, sabia que me preparava alguma traquinagem que, longe de me ofender, sempre acaba por acrescentar algo aos meus conhecimentos ou dar-me uma importante lição. Assim são os gnomos. — Bem, a partir do momento em que alguma coisa acontece, creio que instantaneamente, após horas ou, no máximo, após alguns dias, dependendo da distancia. — Você está brincando comigo, Wadja? — Alguma vez brinquei com você, doutor? — repreendeume ele, com suavidade, mas firmemente. — Então me conte como isso acontece, por favor. Ele pensou por instantes, tomou um gole de licor, estalando a língua como sempre, acendeu o cachimbo, tudo parte de um ritual, quando o assunto era longo. Praticamente fiz o mesmo. Uma vez acomodados, ele começou: — Eu lhe disse, uma vez, que os gnomos e os homens surgiram quase que ao mesmo tempo na face da terra. Naquele tempo, todos tínhamos as mesmas habilidades. Infelizmente, os homens tomaram outro caminho, afastando-se da harmonia e da busca do conhecimento constantes. Com isso embruteceu-se, o que não aconteceu, felizmente, conosco. Ora, quando alguma coisa acontece com algum de nossos entes queridos ou amigos mais próximos, e olhe que temos muitos amigos, apenas sentimos e entendemos o que aconteceu. É uma percepção instantânea. — Mas, naquela noite em que se acidentou no monte de lenha, eu o encontrei desmaiado. Seus amigos só chegaram depois que eu usei o apito da Sra. Asfeld... — Quanto tempo eles demoraram para chegar? — Bem... Devo reconhecer que isso foi quase que em seguida... — Eles já estavam a caminho, de todos os pontos da floresta. Entende o que quis dizer? Relembrei aquela noite, quando vi Wadja pela primeira vez. Após encontrá-lo, eu o levei até o leito da senhora Asfeld. Ela abriu espaço na cama e, quase que imediatamente, soprou uma pequena escultura de madeira que tinha ao lado. Fora um assobio longo e agudo, angustiado, posso afirmar. A Sra. Asfeld mal começou a examinar o pequeno Wadja, ferido quando as achas de lenha caíram sobre ele, quando ouvi o ruído junto à porta e vi três gnomos entrando pela abertura do tronco. Em pouquíssimos minutos Wadja estava preso ao pescoço de uma faisoa, sendo levado para receber ajuda dos médicos gnomos. — Bem, meu amigo, relembrando aquela cena, devo lhe dizer que não haveria tempo para que eles se agrupassem daquela forma, após terem ouvido o assobio. Foi tudo muito depressa. — confessei eu, impressionado com mais essa descoberta. — E as outras notícias, como chegam? — Não apenas num momento de necessidade, mas a todo momento que desejarmos, podemos nos concentrar e passar informações ou apenas sentir como está a pessoa com quem desejamos contatar. Nos momentos de emergência, tudo é ainda rápido. Sabia que podemos prever fenômenos da natureza com bastante antecedência? — Verdade? — Até terremotos — afirmou ele. — Às vezes pressentimos esse fenômeno e tentamos alertar, inclusive vocês homens, mas nem sempre conseguimos. Pouquíssimos de vocês entendem nossa intenção. — E se a noticia vier de muito longe? — Pássaros migradores, peixes, animais, a natureza, de um modo geral, nos passa essas informações. — Dê-me um exemplo! — Hammer Gals, nosso herói, viajou por mais de oitenta anos, percorrendo terras distantes de nós. Constantemente recebíamos noticias dele pelas aves, principalmente pombos e andorinhas, pelos peixes que desciam a correnteza rumo ao mar e transmitiam isso aos que subiam na direção da nossa terra. Às vezes Hammer entrava em contato com algum ente querido e dizia onde estava e o que estava fazendo. Tudo isso foi registrado, sabia? No Grande Livro estão escritas milhares de informações que foram sendo recebidas ao longo da viagem e depois foram confirmadas pelo próprio Hammer, ao examinar os registros. Mais uma vez Wadja mencionava o Grande Livro e eu tinha uma curiosidade enorme a respeito disso. — Wadja, explique-me exatamente o que é esse Grande Livro. Não pode ser apenas um volume, porque seria impraticável que ele contivesse todas as informações sobre todos os gnomos. Sendo mais de um volume, necessitaria de uma biblioteca enorme para serem armazenados, conservados e tudo o mais. — É mais ou menos isso mesmo. Cada gnomo, ao nascer, recebe um livro. As primeiras anotações são feitas pelo pai e isso vai ocorrer até completar setenta e sete anos... — Setenta e sete? Por quê? — Porque aos setenta e sete o gnomo é levado pelo pai até a presença do Grande Conselho da Floresta, onde estão os anciões, que darão, ao jovem, as provas do Rito Inicial, após as quais ele passa a ser membro afetivo da comunidade. Então, numa solenidade, o pai entrega-lhe o seu livro e, a partir daí ele fará seus próprios registros... Eu sempre me admirava e me surpreendia, quando mencionavam idades. Aos setenta e sete anos um gnomo era considerado apenas um adolescente, enquanto nós, homens, já seríamos anciões. Ao mesmo tempo, quando um gnomo nos conta coisas ou nos dá uma explicação, no seu bojo logo surgem novas curiosidades que aguçam nossa imaginação. Eu ficara curioso a respeito daquele Rito Inicial. — Wadja, que tipo de provas são essas? Ele pensou por instantes, talvez avaliando se poderia ou não responder a minha pergunta. Há segredos entre os gnomos que eles mantêm preservados e nada os faz falar a respeito, Aquele, felizmente, não era um desses. — São tarefa aparentemente absurdas, mas o objetivo e provar a maturidade dos jovens, sem discernimento, sua capacidade de pensar como adulto. Wessel, por exemplo, recebeu a seguinte tarefa: deveria contar quantos ninhos havia na floresta e quantos filhotes havia neles. Julguei-me conhecedor o bastante dos gnomos para aventurar-me num palpite: — Ora, sabendo como os gnomos são velozes e como podem recorrer à ajuda dos animais, creio que ele se saiu bem dessa, não? Wadja gargalhou gostosamente e percebi de imediato que ainda nem chegara perto de poder dizer que os conhecia. — Primeiramente, a tarefa de Wessel era contar os ninhos e filhotes para informar quantos havia. A tarefa exige uma resposta. Wessel despendeu longas noites preocupadas contando os ninhos e filhotes, usando toda sua rapidez e contando com a ajuda de todos os seus amigos animais. Ocorre, meu bom doutor, que a cada dia novos casais de pássaros se formavam, novos ninhos eram construídos e novos filhotes nasciam. Em apenas uma noite ele não podia fazer uma contagem, pois quando terminava um setor da floresta, neste mesmo setor mais um ninho havia surgido, mais um ovo havia sido chocado. — E como ele se saiu dessa? — indaguei, agora realmente curioso com a questão. — Uma noite, Wessel não saiu para contar os ninhos e os filhotes. Pediu-me que o levasse ao Conselho, pois já tinha a resposta. Quando lá chegamos, o Ancião mais velho repetiu a pergunta: quantos ninhos e filhotes há na floresta? E Wessel respondeu: incontáveis. Havia superado a prova. — Mas... Mas foi uma resposta esperta, reconheço, mas muito simples. — ponderei. — E se é simples, porque complicar? Era essa a quantidade de ninhos e filhotes. — Mas não tem lógica, Wadja, "incontáveis" não é uma quantidade... — Na sua lógica complicada e rebuscada, doutor. Na nossa lógica, "incontáveis" respondia à questão formulada. O que se pretendia com ela, não era obter de Wessel um número como resposta, mas a prova de sua maturidade diante dos fatos da vida. Qualquer gnomo adulto sabe que é impossível contar todos os ninhos e filhotes de uma floresta, pelos motivos de que já mencionei. Apenas um gnomo imaturo gastaria noites e noites de resposta, Wessel demonstrou que abandonava as futilidades e a ingenuidade de uma criança para pensar e agir como um adulto, preocupando-se com questões de afetiva importância que valorizariam seu tempo e sua vida. Sinceramente, naquela noite, percebi mais uma vez, quanto nós temos que evoluir para resgatar toda a sensibilidade que perdemos ao longo do tempo, desde que deixamos de pensar e agir como os gnomos. Quantas e quantas vezes não giramos ao redor de uma questão fútil, despendendo nosso tempo e nossa vida, para chegar a um resultado insatisfatório? Um gnomo viveria ainda mais de trezentos anos após seu Rito Inicial, quando provava seu amadurecimento. Nós já teríamos virado pó, após esse tempo, sem termos ainda respondido as questões cruciais como as quais ainda nos debatemos. *** Minha amizade com Wadja se estendeu aos demais amigos, após aquela noite, em que dançaram diante de minha cabana. Eu me habituei a vê-los por ali, às vezes famílias inteiras. A fama de meu licor de amoras se espelhara e, não raro, um gnomo surgia, pedindo-me um pouco para refazer as forças, antes de continuarem em suas rondas noturnas. A esses eu nada perguntava, pois não lhes havia sido autorizado me darem qualquer informação, o que não ocorria com Wadja, autorizado pelo próprio Palácio a responder sempre que possível, minhas perguntas. Como já escrevi antes, havia coisas que os gnomos não contavam e não adiantava insistir, Habituei-me a respeitar seus costumes. Mas, observando os gnomos, principalmente as famílias que via pela floresta, notei um fato curioso: todas eram formadas pelo papai-gnomo, e mamãe e dois filhinhos. Eu lhe indaguei isso: — Vejamos o que posso lhe contar a respeito disso: inicialmente, as famílias de gnomos eram numerosas, mas isso foi há muito tempo atrás, antes da Grande Migração. Por motivos que não posso contar, ficou estabelecido que apenas dois filhos nasceriam em cada família. — Por quê? O que houve? Como chegaram a determinar essa quantidade? — interrompi-o, pois não entendia a razão. — Já lhe disse, doutor, são fatos que não podem ser mencionados. Hoje em dia, uma mulher-gnomo só ovula uma vez em toda a sua vida, o que é diferente de suas mulheres. Quando isso ocorre, ela é fecundada, e isso só ocorre após o casamento dela, fique bem claro. Dessa fecundação nascerão dois gêmeos. Normalmente isso se dá na primavera para que os bebês nasçam na primavera seguinte... — Um ano depois? — É o tempo de gestação de um bebê entre os gnomos. Mas como eu dizia, isso ocorre na primavera, mas há casos de mulheres-gnomos com ciclos irregulares e alguns bebês acabam nascendo no inverno ou no verão, jamais no outono, entretanto. Acho que entre as mulheres dos homens também há aquelas com irregularidades em seu ciclo, não? — Mais ou menos. — respondi-lhe, agora já curioso a respeito de outro assunto, mais íntimo, que me constrangeu sem que eu pudesse encontrar uma forma de questionar meu amiguinho. Uma curiosa relação inconsciente, por assim dizer, já havia se estabelecido entre meu amiguinho e eu. Ele sorriu maliciosamente, olhando-me com um ar divertido. — Acho que sei o que gostaria de perguntar. — falou ele. — Realmente? — Sim, não se acanhe, vá em frente. Somos ambos adultos, meu amigo. Incentivado por ele, resolvi, então, indagar: — Se a mulher-gnomo só ovula uma vez na vida, quando, então, é fecundada, quer dizer que... Só fazem sexo uma vez? Meu amiguinho parecia apenas esperar a minha pergunta par deixar escapar a mais sonora e prolongada gargalhada que já o vi dar. Wadja se torceu todo, de tanto rir. Até lágrimas britaram, de seus olhos e só após rir tudo que tinha direito, ele se dispôs a responder a minha pergunta. — Não, meu amigo. Nesse ponto somos como vocês, homens. Nosso interesse por sexo é perfeitamente normal e nós o encaramos como algo belo e sadio. Jamais nos ocupamos disso antes do casamento, mas, uma vez casados, sexo é um precioso complemento de nossa afeição. Além disso, temos certa vantagem em relação a vocês. Somos perfeitamente aptos ao sexo até a velhice. Conheço gnomos com trezentos e cinquenta anos ou quatrocentos anos que mantém o mesmo interesse por suas esposas como quando eram recém-casados. Neste aspecto, desconhecemos alguns de seus costumes, como bordéis, separações, e outras coisas, que revelam que a família não é algo assim tão sagrado como vocês afirmam. Em todos os aspectos, meu amigo sempre tinha algo a me ensinar e que me fazia refletir. Inúmeras vezes ouvira dizer e até eu mesmo usava a expressão "célula mater da sociedade", no definir o que era família. Wadja me ensinava que família não era apenas um conceito, mas algo a ser vivido permanentemente. Vivido e preservado. Além do mais, sua moral sexual era simples e natural, sem visões hipócritas ou alternativas paliativas. *** Atraído por algumas curiosidades, eu havia afastado nossa conversa do assunto principal, o Grande Livro. Lembrei isso a Wadja e retornamos o assunto. — Pois bem, meu amigo. Como cada gnomo tem seu livro, ele é preservado pelas famílias, que acabam constituindo sua própria biblioteca. Cada livro é parte do Grande Livro. Cada biblioteca familiar é parte da Grande biblioteca, que abrange todos os livros. Quando um gnomo se destaca, como foi o caso de Hammer Gals, seu livro, após seu Grande Momento, é levado para o palácio e guardado na biblioteca apropriada. Assim, nossas figuras mais ilustres têm seus livros concentrados lá e todos podem consultá-los, quando quiserem. — E o que um gnomo faz com o seu livro? — Lê-o para seus filhos, relê passagens de sua vida, analisando-se, tirando ensinamentos. Da mesma forma, lê os livros de seus antepassados para conhecer seus ensinamentos e aprender com a Grande História dos Gnomos... — Que é formada pelas histórias individuais, não é? — Agora você entendeu. — disse-me ele, com visível satisfação. — É possível eu ver um desses livros? — Você até poderia ver um deles, meu amigo, mas duvido que consiga lê-lo ou entendê-lo. Nossa língua é diferente da sua e não vejo como nem porque ensiná-la a você. — Você me disse, certa vez, que todo conhecimento dos gnomos estava no Grande Livro. Entendo isso agora, pois cada um dos fatos importantes, das lições aprendidas, das ações realizadas estão ali registradas, uma vez que fazem parte do livro do gnomo que presenciou, aprendeu ou praticou algum feito. — Sim, isso mesmo. — E um gnomo pode ter acesso ao livro de outro gnomo? — É óbvio que sim. De outra forma, de que adiantaria registrá-lo? Sempre que visitamos algum amigo, em casa dele, há um momento em que ele nos lê passagens importantes de sua vida. Dessa forma, transmite seus conhecimentos e nós saímos de lá mais sábios e mais enriquecidos. — Eu simplesmente admiro vocês, Wadja — disse eu, com toda a minha sinceridade. — Por que não pode haver um maior inter-relacionamento entre vocês e os homens? — Já me fiz essa pergunta, meu amigo. E já lhe dei a minha opinião. Nem todos são capazes de falar e ouvir com o coração. Nem todos nos considerariam amigos, mas objetos de exibição nesses circos de horrores que muitos gostam de frequentar. Infelizmente, como sempre, Wadja tinha toda a razão. Para meu desalento, devo reconhecer. MEU AMIGO CUPIDO Eu já estava ali havia três anos, talvez um pouco mais. Como homem, reservo-me o privilegio de ser desatento a esses detalhes, muito embora ela não o seja. Se lhe fosse perguntado, ela saberia exatamente o dia e não me surpreenderia se mencionasse a hora exata do nosso primeiro encontro. A vida na cabana, apesar da presença constante de Wadja e de seus amigos, começa a me incomodar de uma forma estranha. Eu via meus amiguinhos dançando, namorando ou simplesmente passeando com a família, naquelas noites perfumadas de lua cheia e meu coração se enchia de uma espécie de melancolia. Devo reconhecer que via tudo aquilo até com certo sentimento de inveja. Desnecessário dizer que Wadja captava essa minha inquietação e que, com sua sabedoria e seu discernimento, preparava-me mais uma vez suas traquinagens. Digo isso e sempre repito que eram traquinagens que sempre me enriqueciam interiormente, de alguma forma. Essa, porém, tinha caráter mais profundo e mais significativo. Um dia, numa de minhas visitas a uma família de pacientes encontrei acamada uma parente em visita. Seu nome era Ethel e estava acometida de uma febre estranha, cuja causa não consegui diagnosticar. Soube que ela chegara havia algumas semanas e que, algumas vezes, havia me visto, embora eu não conseguisse me lembrar, o que era imperdoável de minha parte. Tratava-se de uma bela jovem, com um pouco mais que dezoito anos, de olhos claros, bem azuis e lindos cabelos dourados. Ao examiná-la, senti que seu olhar me perturbava de uma forma deliciosa e estranha, o que me deixou bastante incomodado. Por mais que tenha conversado com ela a respeito de seus sintomas, não consegui chegar à causa do seu problema e isso me afligiu de maneira incomum. Receitei alguns remédios para aliviar os sintomas e, naquela noite, bastante preocupado, comentei o caso com Wadja. Ele me ouvia atentamente, embora em seu rosto eu visse aquela expressão que já conhecia e que me anunciava mais uma das suas. Não via eu, no entanto, qualquer relação entre o que eu lhe falava e o que ele estaria planejando. — Nesses casos, doutor, onde toda a sua ciência falha, porque não tenta se harmonizar com o coração dela? — sugeriume ele, surpreendendo-me. — Como assim, meu amigo? — Da mesma forma como se harmoniza com a natureza, como sente os animais e tudo o mais. — Mas eu tentei fazer isso, Wadja, como já venho fazendo com todos os meus pacientes. Você me ensinou isso. Com aquela jovem, porém, tudo falhou. Eu não conseguia captar nada, apenas uma inquietação estranha dentro de mim e uma perturbação que não sei explicar, enquanto ela me olhava. — Verdade? — Sim, pode me esclarecer alguma coisa a respeito? — O caso é sério, doutor. Acho que deve tentar aprofundar essa sua harmonização com ela. — sugeriu-me ele e afastou o rumo da conversa para outros assuntos. No dia seguinte, contrariando a minha rotina, retornei à casa onde Ethel estava hospedada, para encontrá-la acamada ainda. A febre se mantinha, mas seu rosto se mantinha rosado e o olhar era igualmente penetrante e perturbador. Interroguei-a exaustivamente, enquanto a examinava, mas nada descobri, a não ser que aquele incômodo dentro de mim mais se acentuava. Na época descrevi aquilo como a vontade de ficar olhando para aqueles olhos para sempre e, ao mesmo tempo, sair correndo dali, como se isso me apavorasse. Narrei isso e Wadja. Ele havia acendido seu longo cachimbo e fumava, olhando para mim. Seus olhinhos brilhavam e seu ar era de uma pessoa satisfeita com a vida. — Analisemos o que ocorre, doutor. De alguma forma, você está com medo, sabia? Por isso seu coração resiste em harmonizar-se com ela. — Medo? Medo por que, Wadja? — Deixe-me terminar, meu amigo. Ao mesmo tempo em que a teme, você se sente atraído por ela. São sintomas de algo muito simples para nós gnomos, mas muito complicado para vocês, homens. — Sintomas é minha especialidade, Wadja. No entanto... — Não falo de doenças, doutor — cortou-me ele. — Falo de sentimentos. Não pode esconder que se encantou pela jovem. E não duvido que o mesmo tenha acontecido com ela. — Como pode ter certeza disso? — indaguei-lhe. — Conheço-a. Eu a vi nascer. Seus pais mudaram-se daqui há alguns anos, mas a pequena Ethel sempre foi nossa amiga. Era uma criança sensível e que tinha para conosco um carinho todo especial por isso a conheço. Se algum dia na vida Ethel viesse a se encantar de um jovem, seria alguém mais ou menos parecido com você, meu amigo. Seus corações batem no mesmo compasso e têm a mesma medida. — Acho que entendo isso, mas voltamos à questão dos sintomas. Você disse que o que eu sentia eram sintomas de... Sentimentos, foi isso? — Sim, foi isso mesmo. — respondeu-me ele, com a habitual tranquilidade. — Que tipo de sentimento? — Nós o chamamos amor e acho que é o mesmo nome que vocês dão a isso. — Amor, Wadja? Mas eu a vi apenas duas vezes e... — Só precisavam de uma para sentir seus corações se harmonizando. — Você me confunde com suas conclusões. Só falta me dizer que estou apaixonado pela jovem e... — E é isso mesmo. Pensei em protestar, mas conhecia o suficiente sobre o meu amigo para imaginar que ele tinha a razão. Pensei na jovem e naquela inquietação que me assaltara, quando a visitei, em ambas as vezes. Não era uma sensação de angústia ou tristeza, mas uma emoção forte, alguma coisa que me agradava, apesar de me intimidar pela novidade e pela intensidade. Aquilo me fascinou e me trouxe à mente a lembrança daquelas noites melancólicas de primavera e lua cheia. Em minha mente formei uma imagem encantadora: Ethel e eu caminhando juntos ao luar, pela floresta, acompanhados por nossos amigos gnomos, conversando, namorando, aprendendo, amando. Nunca meu coração bateu tão rápido e tão emocionado. Percebi o quanto Wadja tinha razão. O que alguns chamariam de amor à primeira vista era, na verdade, uma harmonização imediata. E, segundo Wadja, não era preciso uma segunda vez. — Wadja, se é isso, preciso aprender a lidar com essa situação, pois achei tudo maravilhoso e não quero perder a oportunidade de experimentar isso, viver isso intensamente. Se ao mesmo tempo em que sou atraído, sinto medo, como me livrar do medo? — Fico feliz que pense assim, meu bom amigo. Se você quer se livrar do medo é porque a atração é boa e lhe agrada o coração. Só que... — disse ele, ficando pensativo por algum tempo. Imaginei que o problema fosse sério, pois Wadja jamais esteve tão compenetrado. Fiquei receoso, pois não queria, de forma alguma, perder a continuidade daquele enlevo. As imagens que se formavam em minha mente eram de um bucólico e lírico encontro entre dois corações apaixonados. Embora eu fosse um homem de ciências, desde que conhecera Wadja havia revisto muitas de minhas convicções. Só tive a ganhar com isso. — Bem, meu amigo, acho que há um meio de livrá-lo desse medo. E isso precisa ser feito ainda esta noite, antes das vinte e quatro horas. — E o que devo fazer? — — Antes de qualquer coisa, vá lá fora e encontre uma forquilha de carvalho de meio metro de comprimento. É importante essa medida exata. Entendeu? Fiz o que ele me pediu. Após algum tempo de procura, localizei a forquilha que ele precisava. Levei-a até ele. Ele a tomou nas mãos, sentiu-a, depois a entregou de volta. — Vamos até lá fora. — intimou ele e eu o segui. Fomos até um riacho, um pouco distante da casa. A noite estava agradável e eu estava ansioso para ver o que ele queria que eu fizesse. Ao chegarmos o riacho, ele me mandou empunhar a forquilha e caminhar na água, até sentir uma vibração. Eu o fiz. Havia muita vibração na forquilha, de repente, senti-a pulsar fortemente em minhas mãos. — O que há aqui, Wadja? — indaguei-lhe. — Abaixe-se e procure. Encontrará um cristal. Novamente o obedeci, sem pestanejar. Instantes depois eu tinha nas mãos um belo cristal, com uma projeção vertical perfeita e uma base formada por inúmeras hastes, onde o luar se refletia como minúsculas luzes. — Voltaremos à cabana. — ordenou-me Wadja. Assim que voltamos, examinei melhor aquele pedaço de cristal. Era realmente, uma linda peça. Wadja sorriu, aprovando o meu achado. — Esse cristal é sua força agora. Quando retornar até Ethel, leve o cristal consigo, em seu bolso. Quando estiver junto dela, segure o cristal com a mão esquerda e, com a direita, toque a mão da jovem. Olhe-a nos olhos e diga a ela tudo que vier do seu coração. Verá como o medo será expulso e tudo acabará. Minha confiança na promessa de Wadja foi tanta que, no dia seguinte, mal clareou, rumou ao encontro de Ethel. Encontrei-a, novamente, acamada. Todos se surpreenderam com a minha chegada, mas afirmei-lhes que, naquela manhã, descobriria qual o mal que afligia Ethel. Ela me recebeu com seus costumeiros e perturbadores olhos azuis. Sentei-me na borda da cama. Olhei-a nos olhos e, segurando o cristal em meu bolso, com a mão esquerda, toqueilhe a mão com a minha destra. Por alguns instantes ficamos ali, mudos, enquanto eu sentia um turbilhão de sensações e imagens passando por minha mente. Mais tarde Ethel diria que tivera a mesma sensação. Então, como um dique se rompendo, meus lábios se abriram e eu comecei a falar com Ethel. Nunca fui tão loquaz. Quando percebi, estava dizendo a ela que a amava. Acho que jamais conseguirei reproduzir nosso diálogo naquela manhã. Foi um dos momentos mais belos de minha vida e, o mais importante, descobri que Ethel nutria por mim o mesmo sentimento. Senti-me o homem mais feliz do mundo naquele momento. Quando contei isso a Wadja, ele sorriu longamente, com aqueles olhos brilhantes me encarando. Nada comentou a respeito, a não ser que se sentia feliz por mim. Daquela ocasião em diante, sempre que possível, eu visitava Ethel, sempre sentindo a mesma emoção e a vontade de ficar cada vez mais tempo junto dela. Tínhamos tanto a conversar, a descobrir a respeito de nós mesmos. Ethel pintava admiravelmente e gostava de música, assim como eu. Tinha um grande conhecimento sobre gnomos, a quem chamava de pequenos amiguinhos. Sempre que possível, falávamos de Wadja e do que ambos havíamos aprendido com ele. Meu amigo gnomo acompanhava tudo com interesse e demonstrava grande satisfação pela maneira como eu e Ethel nos entendíamos. Uma noite, enquanto Wadja fumava e tomava seu licor de amora, eu arrumava algumas gavetas de uma escrivaninha que eu usava para leituras. Encontrei o cristal. Sorri, lembrando-me da utilidade dele. Comentei isso com Wadja. — Não fossem você e este cristal, Talvez eu jamais estivesse tendo esses momentos tão maravilhosos que estou tendo com Ethel. — comentei-lhe. Wadja olhou-me demoradamente, com uma expressão muito séria nos olhos. Compreendi que ele se preparava para me dar mais uma importante lição de vida. — Acha mesmo que este cristal tornou tudo possível? — E não? — retruquei, sem entender o comentário. — Meu amigo, tenho visto os homens, ao longo de minha vida, se apegarem a coisas inconsistentes para dar-lhes sustento, quando tudo está dentro deles, em suas mentes e corações. Minha confusão tornou-se maior ainda. Não sabia exatamente do que ele estava falando. Parecia que discutíamos assuntos diferentes. Ele continuou: — O amor o assustou e bastaria você desejar harmonizar-se com este sentimento e tudo sairia perfeito. Seria simples, como são sempre simples as coisas. Seu caso era sério, por isso fiz aquilo. — Não está querendo me dizer que o efeito do cristal... — Não houve efeito nenhum de cristal, muito embora os cristais tenham poderes que vocês ainda desconhecem. Mas não é o caso de discutir isso agora. O que quero lhe dizer é que montei todo aquele ritual da forquilha e do cristal, apenas para despertar a confiança e a harmonia que estavam dentro de você. — Então... Eu poderia ter feito tudo aquilo, conversado com Ethel, harmonizado nossos corações, sem a necessidade de uma subterfúgio, no caso o cristal? — Sim. — respondeu-me ele, com naturalidade. — Se era tão simples, por que não me falou disso naquela oportunidade? — Porque você complica as coisas simples sem necessidade. Então usei uma coisa complicada apenas para que você entendesse toda a simplicidade daquilo, dos seus sentimentos, da atitude a tomar, do que fazer, do que dizer. Estava tudo o tempo todo dentro de você. O cristal lhe deu uma falsa impressão de segurança, pois concentrou nele seu medo e deixou seu coração livre para harmonizar-se com o de Ethel. — Você é uma criaturinha muito matreira, Wadja. — disselhe, sem esconder minha satisfação por tê-lo como amigo e poder compartilhar aqueles momentos preciosos de sabedoria e aprendizagem. NOTAS DO TRADUTOR III A partir desta parte do manuscrito do Dr. Fritz, uma longa sequência, onde o assunto principal passa a ser Ethel, suas conversas e seus encontros, que culminaram com a união dos dois, no primeiro dia de uma primavera festiva e alegre, dois ou três anos depois. Julguei-me, principalmente, incapaz de dar a conhecer os assuntos íntimos, as conversas pessoas, os sentimentos e as sensações que o casal partilhou durante todo esse tempo. Apenas no final do manuscrito, quando já casado, o Dr. Fritz volta a narrar com mais frequência seus encontros com Wadja. Não que eles tivessem cessado, mas porque o doutor encontrara em Ethel a interlocutora apropriada, a companheira necessária e a esposa perfeita que necessitada para vencer a melancolia de suas noites de primavera. Costumeiramente Wadja o visitava para tomar seu precioso licor, mas o tema da conversa invariavelmente acabava sendo Ethel. Wadja, com uma expressão feliz e satisfeita ouvia as ardentes declarações do amigo e aprovava, dava conselhos ou apenas felicitava o amigo pela imensa felicidade que a escolha de Ethel lhe proporcionara. Numa dessas noites, inclusive, Wadja revelou ao amigo todo o segredo daquela felicidade. Contou ao doutor que Ethel o tinha visto, logo no primeiro dia de sua permanência na casa dos familiares. Apaixonara-se imediatamente, e, como pintava muito bem, faz um retrato do médico e o depositou ao lado de sua miniatura de gnomo. Wadja soubera disso e interpretara o pedido. Ao depositar o retrato do doutor ao lado da estátua reduzida de um gnomo, Ethel simplesmente estava pedindo que os gnomos a ajudassem a conquistá-lo. Como Wadja sabia de melancolia do amigo e de sua necessidade de encontrar uma companheira à altura, conhecendo Ethel, tomara suas providencias e fizera tudo aquilo acontecer. O Dr. Fritz, inclusive, confessa, em seu manuscrito, que sabia que em tudo aquilo havia o dedo de Wadja, embora não conseguisse atinar como ele fizera isso. Após o casamento, Wadja passara a visitar o casal com frequência. É quando ocorre um fato já mencionado anteriormente pelo doutor que até a mim, tradutor, distante dos fatos, sensibilizou. POR QUE VOCÊ CHORA MEU AMIGO? Quando Wadja nos visitava, tinha sempre uma agradável surpresa para Ethel, que o adorava tanto quanto me amava. Eram pequenos presentes, feitos artesanalmente, verdadeiras obras de arte que Ethel exibia com muito orgulho, sempre que possível. Todos no vilarejo sabiam que éramos amigos dos gnomos e nos invejavam. De minha parte, confesso que aquela inveja era imerecida, pois cada um deles, se quisesse abrir seu coração, poderia ter para com os gnomos a mesma amizade que nós nutríamos por eles, e que era recíproca. Eu, de minha parte, especializava-me cada vez mais em minha receita de licor de amoras. Wadja, inclusive, dizia que em todo o Reino não havia melhor, o que me causava alguns transtornos, pois tinha de manter um enorme e constante estoque. Isso me dava trabalho, mas me proporcionava um imenso prazer. Muitas e muitas noites, meio adormecido, eu ouvia o roçar da madeira junto à porta e passos suaves, muito suaves, avançarem até próximo da lareira, onde eu sempre mantinha uma boa provisão de licor, para que meus amiguinhos gnomos se servissem. Frequentemente, ao me levantar, eu conferia as visitas da noite. Elas estavam demarcadas por pequenos presentes, coisas que eles deixavam em troca do precioso licor. Ethel se encantava com todas elas. Eram pequenas peças de seda, minúsculos vasos entalhados, enfeites para os cabelos, broches tão delicados que temíamos tocá-los, todos de uma sensibilidade extrema, de uma beleza rara e surpreendente. Levávamos uma vida agradável, com fartura, conforto e alegria. De meus pacientes eu recebia todas as provisões necessárias, em troca de minha consulta. O pessoal do vilarejo sempre me pagava em dinheiro ou ouro, o que me permitiu ir amealhando uma pequena fortuna, embora ela não nos fosse necessária. Dos gnomos recebíamos toda a atenção. Jamais nos faltou lenha no inverno ou frutas em nossa mesa. Às vezes, encontrávamos junto à lareira ou recebíamos deles pessoalmente, frutas que apenas no interior da floresta, em pontos distantes, havia. Infelizmente aqueles tempos de harmonia e felicidade estavam ameaçados. Uma guerra eclodiu. Uma guerra que nos afetava a todos e que me surpreendia pela desumanidade com que se anunciava. Fatos que me haviam enchido de orgulho, pois, pela primeira vez, nós, homens, havíamos feito algo sozinhos que os gnomos jamais haviam conseguido. Tudo isso, porém, apenas para demonstrar mais uma vez o quanto Wadja estava certo em seus comentários e observações e em quanto nós tínhamos que evoluir. Uma noite quando Wadja chegou, eu lia um jornal. Foi a primeira e última vez que fiz isso na presença dele. — O que é isso? — indagou-me ele. — Um jornal — respondi — Uma forma mais rápida de levar informações. — Que ótimo! Vocês estão melhorando. — disse-me ele, de bom humor. — Só que as notícias não são boas, Wadja. — disse-lhe eu. Ele estava com sua caneca de chifre na mão e se preparava para se servir de licor. Ao ouvir-me, voltou-se e me olhou com curiosidade. — Como pode ser transmitida se é uma má noticia? — perguntou-me. — Porque são importantes, Wadja. Estamos em guerra. Ao ouvir o que eu dissera, ele ficou imóvel, olhando-me com uma expressão dolorida no rosto. — Veja isto, Wadja! É um avião. Sabe para que o estão utilizando? Para metralhar e lançar bombas. Pode imaginar uma coisa dessas? Isto era para encher o homem de orgulho, pois o libertava da terra e o levava ao céu. Eu me sentia orgulhoso disso, Wadja, porque podia contar a você que nós, homens, havíamos feito um avião, um aparelho que nos levava ao céu sozinhos, sem a ajuda das aves, como vocês fazem. E o que acontece? O que poderia ser algo extremamente importante transformara-se numa arma de guerra, numa forma de destruição. Pode compreender a minha decepção? — finalizei, só então reparando em meu amigo. Wadja estava imóvel, com a caneca de chifre pendendo de sua mão, o olhar perdido em meu olhar. Lágrimas escorriam pelo seu rosto. Jamais o vira assim, chorando e aquilo me comoveu terrivelmente. — Por que você chora, meu amigo? — indaguei-lhe. — Choro por vocês, meu amigo. Choro por vocês. E como estou triste por isso, deixe-me externar minha tristeza, por favor, até que ela se acabe. — pediu-me ele, sentando-se e apoiando suas costas à borda da lareira. Ficou ali por um longo tempo, em silêncio, apenas chorando. Confesso que chorei também, assim como Ethel, que, ao nos ver assim. Logo se retirou, compreendendo. Jamais em toda a minha senti todo o drama contido no choro de um gnomo. Eu via, ali, naqueles olhos, que Wadja não chorava porque o avião estava sendo mal usado e porque estava acontecendo uma guerra. Wadja chorava pelas vitimas inocentes, pela destruição da natureza, pelas mortes inúteis, pela ignorância do homem. E tudo isso ele me transmitia, naquele momento em que harmonizamos nossa tristeza. Todo aquele absurdo se tornou ainda mais incompreensível para mim, pois, habituado à lógica simples dos gnomos, eu perdera a visão da complexidade das ações dos seres humanos, que põem interesses acima de tudo e sacrificam a própria vida em defesa de valores inconsistentes, que a nada levam. Eu sinceramente, não sei quanto tempo choramos. Sei apenas que uma guerra é muito prateada, em todos os sentidos. Quando nossa tristeza se esgotou, tentamos conversar sobre o assunto, buscando entender, em nossa lógica simples, aquela questão tão complicada. — Não é a primeira vez que vocês fazem isso, meu amigo. Nem será a última. Eu mesmo, pessoalmente, já acompanhei esse tipo de coisa. O que me surpreende sempre, em vocês, homens, é a tremenda capacidade que têm de incrementar sua crueldade e seus instrumentos de destruição. Para isso, a capacidade é ilimitada. Não sei, meu amigo. Preocupo-me com isso. Se os homens fizessem tudo isso e isso afetasse apenas a eles, nós, gnomos, não nos preocuparíamos. Acontece que esses atos irresponsáveis atingem a todos indistintamente. Fico imaginando a angustia de nossos amigos pássaros, em meio a esse bombardeio. Voam em todas as direções, perdem o rumo, debatem-se, chocam-se, morrem inutilmente. Da mesma forma, em terra, os animais se desesperam, tentam fugir de algo para qual não existe saída. É o que vocês chamam de inferno, na mais plena e total acepção da palavra. Não posso compreender isso. — Entre vocês não há guerra? — indaguei-lhe. — Jamais. — E quanto aos trolls, seus amiguinhos? — São nossos inimigos naturais desde o principio dos tempos. Não fazemos guerra contra eles, apenas os evitamos. Jamais um gnomo levantou a mão contra um irmão. — Nem contra um inimigo? Wadja respirou fundo. Voltava ao seu estado normal, de sábio mestre, pronto a esclarecer as confusões de seu aprendiz. Levantou-se e foi apanhar seu licor. Tomou um gole. Estalou a língua daquele modo que sempre me divertia e me encantava, pois era seu sinal de aprovação. — Sua receita está cada vez melhor, doutor. — elogiou ele, tomando mais um gole, depois voltando a se acomodar no mesmo lugar. — Vou lhe contar uma breve história, doutor. Há algum tempo atrás, na Sibéria, Hanuk, um gnomo célebre, foi aprisionado pelos trolls gorgolões. Estes, sim, têm a mesma índole dos homens. Vivam constantemente preocupados em inventar novas formas de nos aprisionar, torturar e matar. Hanuk sofreu horrores nas mãos deles. Foi queimado em brasas, lixado numa pedra de amolar e estava prestes a ser triturado numa calandra. Foi então que a natureza o ajudou. Um deslizamento provocou um desmoronamento na caverna para onde seus captores o haviam levado. Disso resultou que os troll gorgolões foram soterrados e mortos, com a exceção de um deles, justo o mais cruel deles e que as maiores dores havia infligido em Hanuk. Parcialmente coberto por blocos de gelo que deveriam lhe provocar dores lancinantes, o gorgolão apontou para uma espada a um canto e suplicou a Hanuk que o matasse. Imagine a cena: seu torturador, agora imobilizado e inferiorizado, suplica a Hanuk que o mate. Imagine isso, meu amigo, e depois me responda: o que você faria? — Até por uma razão de caridade ou humanidade, não sei, acho que o atenderia. — Esse é o espírito do homem, mas não o de um gnomo. Hanuk fez o contrário. Usou a espada para afastar os blocos de gelo. O troll estava muito machucado. Talvez morresse se Hanuk o deixasse lá, mas um gnomo tem conhecimento, sabe discernir as coisas e valorizar a vida, não importa de que natureza. Apesar de machucado e cheio de dores, Hanuk cuidou do troll. Buscou erva para as feridas, improvisou talas para as quebraduras e permaneceu todo o tempo junto do inimigo, alimentando-o e cuidando dele. Enquanto isso, o próprio Hanuk se recuperava de seus ferimentos. Mas veja bem como a natureza dos trolls funciona. É tal e qual os homens. Quando se sentiu melhor, o troll passou a mentir, simulando que seus ferimentos eram mais graves ainda, retardando sua recuperação. Na verdade queria apenas recuperar as suas forças e, no momento exato, voltar-se contra seu salvador. Mas Hanuk era um gnomo e os trolls não sabem nada a nosso respeito. Por mais que Hanuk tentasse se harmonizar com o coração do gorgolão, sempre recebia em troca ódio, muito ódio. Ele insistia, pois é próprio dos gnomos insistir, tentar, fazer todo o possível, ir ao extremo das coisas, em busca da bondade, da recíproca, da harmonia. Fiquei imaginando o destino do pobre Hanuk, caso não se tornasse mais esperto. Pensei, por momentos, que Wadja me contava uma história onde a ingenuidade simples e sábia dos gnomos seria punida, mas me enganei. Ele continuou: — Um dia, o gorgolão se sentiu dono de todas as suas forças novamente. Recebeu a comida que Hanuk lhe deu, enquanto imaginava uma forma de se vingar. Quando nosso herói se distraiu, o gorgolão se levantou sorrateiramente e apanhou-o, apertando-o com violência e gargalhando como um louco. — Vou matá-lo, gnomo. — berrou o troll. — Então morrerá comigo, troll. Pus veneno em sua comida, pois suspeitava de suas intenções. — Maldito — berrou o troll, soltando o gnomo. — Dê-me o antídoto. — Se me deixar ir embora... — Vá, mas me dê o antídoto. Hanuk atirou-lhe um vidro e correu. Quando estava longe gritou: — Melhor sorte na próxima, tolo. No mesmo instante, o troll cuspia fora a água de fossa que Hanuk pusera no frasco. Não havia veneno nem antídoto. Hanuk mentira, o que foi imperdoável, mas o troll merecia. Mesmo diante do maior perigo, ele, um gnomo, jamais tiraria a vida de um inimigo. Nós consideramos isso algo sagrado, sagrado mesmo. Tão sagrado que vocês ainda mal esbarram no exato significado desta palavra. Desta feita, fui eu quem começou a chorar. Wadja me olhou e não me perguntou por que eu chorava. Ele sabia. A POÇÃO MÁGICA II Uma coisa ainda me fascinava, e muito, em relação aos gnomos, mas não havia como fazer Wadja falar a respeito. Tratava-se de um segredo muito bem guardado e que, segundo penso, para sempre pertencerá apenas aos membros daquele reino encantado de bondade e harmonia. A poção mágica. Eu ficava imaginando o que representaria para a humanidade o conhecimento da fórmula daquele medicamento universal, capaz de curar todas as coisas e, mesmo se isso não fosse possível, dar aos moribundos uma morte digna, lúcida e sem sofrimentos, como ocorreu com a Sra. Asfeld. Quando eu perguntava a respeito ao meu amiguinho, ele simplesmente respondia: — Não posso falar a respeito. Uma noite, porém, eu estava particularmente deprimido porque havia visitado um paciente que sofria de asma e, apesar de meus esforços, não conseguira aliviar-lhe o sofrimento. As crises eram terríveis e, além de incômodas, dolorosas. — Amanhã cedo, quando for visitá-lo, encontrará um vidrinho de poção mágica junto ao travesseiro dele — disse-me Wadja. — Faça-o beber todo o conteúdo. Diariamente deixaremos nova dose, até que ele sare. Olhei-o com agradecimento, aliviado, também, por saber que meu paciente seria realmente curado. Eu confiava totalmente no que Wadja me dizia. Depois, a gratidão deu lugar à curiosidade. Servi nova dose de licor de amoras ao meu amiguinho e, por instantes, ficamos em silêncio, olhando a lua cheia que despontava sobre a copa das grandes árvores da florida. Estávamos do lado de fora da cabana, aproveitando o frescor e o perfume da noite. Acendi meu cachimbo. Wadja fez o mesmo. Pensei num argumento que pudesse convencê-lo a me contar o grande segredo da poção mágica. Wadja, quando você me contou a história de Hanuk, deu uma demonstração do amor dos gnomos à vida, não importava de quem, mesmo de seu mais ferrenho inimigo, não foi? — indaguei-lhe, sondando-o. — Eu sei aonde chegar, doutor. — respondeu-me ele, olhando-se com os olhinhos brilhantes e espertos. Já não havia, realmente, forma de ocultar nada em mim que não fosse do conhecimento dele. Havíamos desenvolvido um relacionamento tão estreito que Wadja adivinhava com facilidade meus pensamentos e sabia exatamente onde eu queria chegar, mesmo antes de eu terminar de falar. — Os homens também representam a vida e, embora tenham lá seus defeitos, possuem também virtudes. Você tem que reconhecer isso. Fico imaginando quantas vidas preciosas estão sendo desperdiçadas, apenas porque vocês, gnomos, são intransigentes em seus conhecimentos e não os passam a nós. — argumentei. Meu amiguinho ficou fumando, soltando grandes baforadas de seu cachimbo, olhando-me pelo canto dos olhos. Eu conhecia aquele olhar. Significava que eu o pusera em cheque com meu argumento, obrigando-o a me responder. — Meu amigo, sua bondade é maior que sua simplicidade e seu bom senso — disse-me ele. — Quanto acha que custaria uma dose de poção mágica em seu mundo? A pergunta intrigou-me, pois me apanhou de surpresa. Pusme a fazer algumas contas, mas era impossível chegar a um valor definido, conhecendo as propriedades miraculosas daquele remédio. — Acho que, em alguns casos, o preço seria incalculável. As pessoas pagariam tudo que tivessem para curar-se. Ele tomou um gole de licor, estalou a língua, depois me olhou com olhos matreiros. — Pois aí é que está toda a questão, doutor. Vocês põem valor em tudo que manuseiam, até a vida humana. A poção mágica é uma dádiva da terra, da natureza, da chuva, dos animais, de tudo que nos cercam. Os homens agridem tudo isso, sem saber que destrói sua própria salvação. Você é um homem especial, capaz de harmonizar-se com a natureza, entender os animais, compreender o mistério oculto nas raízes das árvores, nas flores, nas folhas e nos frutos. Ao invés de utilizar isso, quer as coisas prontas, o que também é outro defeito de vocês, humanos. — Vamos por partes, Wadja — pedi-lhe, já que meu amiguinho fora um tanto irônico em sua observação, pegando- me de surpresa novamente. — Toda fabricação envolve custos, isso não pode ser relevado — argumentei. — No seu modo de produção, meu amigo. Um gnomo só vai ao médico quando o caso é grave e, normalmente, resultado de um violento acidente. Normalmente, vive harmonizado com a natureza e com seu próprio corpo. Quando percebe alguma coisa errada, colhe o remédio por aí, na própria natureza, e tudo está resolvido. E não posso lhe falar mais a respeito, senão conto-lhe o segredo. Acho que já lhe dei pistas suficientes. Harmonize-se, vá e faça, doutor. — finalizou ele, decidido a encerrar por ali mesmo aquela conversa. Aquilo me deu, realmente, o que pensar. A maneira como Wadja reagira ao meu argumento demonstrava que, escondida em suas palavras estava a resposta que eu procurava. Pouco a pouco fui desvendando o mistério. Novamente o segredo era a harmonia. Os gnomos a havia atingido em um alto grau. Doenças eram diagnosticadas por eles mesmos, mal começavam a se manifestar. Doenças, para eles, é desarmonia. A cura é buscar a harmonia e a harmonia estava na natureza. Este foi o primeiro ponto a que cheguei. O outro, logicamente seria descobrir como executar essa harmonia. Se eu, como ele mesmo dissera, havia adquirido o dom ou desenvolvido a habilidade de harmonizar-me com a natureza, falar com os bichos e entender coisas que surpreenderiam os homens comuns, obviamente também possuía o poder de encontrar a natureza a cura para os males da humanidade. Só quando cheguei a esta conclusão foi que percebi como a resposta para tudo era tão simples: a poção mágica não era um remédio único, capaz de curar tudo e todos. Era apenas o nome daquela prática. Assim, havia um tipo de poção mágica diferente para cada tipo de problema. Foi então que iniciei as minhas pesquisas, assessorado pelo meu amiguinho, com quem, todas as noites, discutia o resultado de minhas descobertas. No inicio o trabalho era lento, mas, à medida que minha habilidade se desenvolvia, ela foi se tornando mais rápida, surpreendendo-me na maioria dos casos. A descoberta desse caminho, no entanto, ocorreu de forma inesperada e surpreendente. Por uns três ou quatro dias seguidos, tivemos chuva ininterrupta, com o céu bem encoberto e nuvens baixas. Minhas visitas aos meus pacientes se restringiram ao mínimo, de forma que eu passava a maior parte do dia em casa, lendo ou conversando com Ethel, até que Wadja passasse para sua costumeira visita. Percebi que o céu encoberto, a clausura forçada e a imobilidade começavam a afetar os meus nervos, pondo-me deprimido, irritado, nervoso, mal-humorado. Conversando com Wadja, numa dessas noites, quase discutimos por um assunto sem importância. Ele me olhou nos olhos, investigando-me, depois disse: — Você está precisando de um pouco de poção mágica, doutor. Mas amanhã cedo, quando se levantar, terá cessado a chuva e o sol estará de volta. Ele será sua poção mágica. Olhei-o interrogativamente e percebi que não adiantaria discutir o assunto. Na manhã seguinte, como ele previra, as nuvens haviam sumido e um sol radiante se refletia nas poças de água e nas folhas molhadas das árvores. Saí à porta da cabana. O calor e a luz espantaram quase que imediatamente as trevas que haviam se instalado dentro de mim. Fiquei ali, tomando um banho de sol, sentindo como a harmonia voltava para mim. Despi a camisa do pijama. A sensação foi ainda melhor. Eu ouvia de novo os ruídos da floresta. Naquela noite, quando discuti com Wadja o acontecido, ele me olhou profundamente satisfeito e, fazendo um aceno de cabeça, disse: — Já começou seu novo aprendizado, doutor. Se quiser, poderemos discutir isso, enquanto passamos pela floresta. Aceitei o convite o convite. A noite estava fresca e agradável, com um resto de umidade da chuva ainda. Wadja parou diante de um arbusto. — Arranque uma folha destas, doutor. Com gentileza, pedindo permissão à planta. Depois a morda, sinta-lhe o gosto e deixe seus sentidos falarem. Apesar do inusitado da proposta, não recuei. Wadja estava instruindo-me e eu confiava em sua sabedoria. Pedi mentalmente permissão à planta e arranquei gentilmente uma daquelas folhas. Mordi-a. O sabor característico me fez logo reconhecer de que se tratava. — Limão. — respondi-lhe. — Vou-lhe dar uma receita, doutor. Talvez com estes ingredientes você possa fazer sua própria poção mágica, limão, mel, sol, água, terra e ar puro. Fiquei sem entender e ele percebeu isso imediatamente. — Nós, gnomos, entendemos a doença como uma desarmonia interna e externa, de alguma forma. Não nos preocupamos com elas, pois vivemos em harmonia. Em nossa alimentação não podem faltar o limão e o mel. Do sol, queremos apenas os primeiros raios, suficientes para manter nossos pequenos corpos saudáveis. Vocês, humanos, mesmo quando não estão doentes, criam suas próprias doenças. Acho que você, melhor que eu, conhece isso... — É, realmente tenho pacientes que parecem adoentados, mas não o então. — Falta de amor, necessidade de chamar a atenção e, às vezes, o que é mais cruel, vontade de atormentar os entes queridos. Para esses casos, a poção mágica pode ser qualquer remédio bem amargo, não é? — Ou azedo, como uma xícara de suco de limão. — Errado! — corrigiu-me ele. — Remédio tem que ser doce e acompanhado de muito afeto, carinho e amor. É isso que vai curar. É esta a verdadeira poção mágica. — Deixa-me ver se entendi: limão e mel na alimentação e uma vida saudável, em contato com a natureza evitam as doenças, não? — Exatamente. — Para neurastenias ou doenças inventadas, calor humano. — Exato, doutor! — Não posso lhe falar mais sobre o assunto. Acho que excedi meus limites, mas tenho convicção que nosso segredo estará em boas mãos. Comecei a aplicar os ensinamentos e as descobertas com meus pacientes, surpreendendo-me na maioria dos casos. Tornou-se, ao final, algo instintivo. Eu tinha um paciente com um determinado problema e, passeando no interior na floresta, encontrava uma árvore, raiz, arbusto, flor, fruto ou folha. Naquele instante de harmonia, eu sentia que ali estava a solução. Jamais conseguirei descrever como isso ocorre. Eu sei, apenas, como se Wadja, com seus olhares e aqueles nossos passeios no meio da floresta, à noite, mordendo plantas, descobrindo propriedades, houvesse me passado todo o conhecimento milenar dos gnomos sobre o assunto. Ao ir confirmando minhas descobertas e me dando pistas de outras, Wadja permitiu que eu formasse um vasto receituário natural para curar toda espécie de males. Um de meus pacientes, uma linda criança chamada Ingrid, estava sentido fortes dores no estômago e tinha febre. Foi a primeira vez que utilizei meus conhecimentos recém-adquiridos. Encontrei-a num quarto fechado, sem luz e sem ar, alimentando-se apenas de leite amornado. Minha primeira providência, e isso foi se tornando instintivo, foi da sentir a harmonia do ambiente e do corpinho dela. Estava tudo errado ali. — Abram a janela, deixam o sol e o ar puro entrarem. — ordenei à mãe, que acompanhava a consulta. A simples entrada do sol e do ar já provocou uma mudança no rostinho da criança, como se a alegria lhe voltasse às faces. Examinei-a. A febre estava acima do normal e o que a incomodava, na certa, eram vermes. — Não lhe dê mais leite — ordenei à mãe. — Apenas suco de frutas frescas com suco de limão e mel. Isso vai cuidar da febre. À noite, antes que ela adormeça, dê-lhe uma colher de sopa de óleo de rícino. Amanhã, quando ela acordar, dê-lhe duas frutas frescas, uma hora depois, nova colher de óleo. Faça isso toda noite e toda manhã. Virei vê-la diariamente, até que melhore. Se a febre passar ainda hoje, comece a alimentá-la com frutas frescas inicialmente, depois comidas leves. — E se a febre não passar, doutor? — indagou-me a mãe. — Mantenha uma vasilha com água pura e fresca ao lado da cama. Aplique compressas no corpo da criança de hora em hora. Tenho certeza que ela dormirá sem febre esta noite. Wadja aprovou meu tratamento e, com satisfação, no dia seguinte encontrei Ingrid sem febre. Em poucos dias expulsou os vermes e corria alegremente, brincando com as outras crianças. Após o longo aprendizado que me levou a dominar os segredos da natureza e que sempre procurei aplicar com discernimento e bom senso, julguei que haviam se esgotado os mistérios dos gnomos para mim. Comentei isso com Wadja certa noite e, com surpresa, eu o vi engasgar-se com o licor de amoras, de tanto que ria. — Doutor, vivemos quatrocentos anos e não conseguimos isso. São segredos de gerações e gerações de gnomos, todos empenhados no aprimoramento constante, nas novas descobertas. Há muito que aprender ainda, doutor. Essa busca de harmonia é constante. Nós mesmos nos surpreendemos ainda com as infinitas possibilidades existentes na natureza. Mas outro dia comentaremos o assunto. Hoje quero apenas saborear seu delicioso licor de amoras e conversar outros assuntos. A BOLSA DO GNOMO Uma noite, quando conversávamos sobre minhas descobertas na natureza, Wadja desamarrou de seu cinto uma de suas pequenas bolsas de couro, abriu-a e espalhou no piso da cabana diversas pedras algumas em estado bruto, outras tão polidas que refletiam o brilho do lampião que iluminava nossas conversas. — Veja, doutor, que pensa ter dominado todos os segredos da natureza, mas ainda mal começou a descobri-los — falou ele, apontando as pedras. — O que significa estas pedras para você? Inclinei-me e apanhei uma delas. Meus conhecimentos em mineralogia não eram extensos, mas podia perceber que tinha, entre meus dedos, um minúsculo, mas belo rubi. — Para que servem essas pedras, Wadja? — indaguei-lhe. — Harmonia, meu amigo. Harmonia. A harmonia com a natureza se estende a tudo que faz parte dela. Só assim você consegue a harmonia total. Veja esta pedra. — disse ele, passando-me uma ágata muito bonita. Examinei-a. Para mim era apenas uma pedra, nada mais. Wadja percebeu meu olhar ignorante e sorriu. Tomou um gole de licor, estalou a língua e apanhou a pedra de volta. — Nós, gnomos, temos o ouvido apurado. Por isso carregamos conosco sempre uma ágata. Ela nos livra de todo e qualquer problema de audição, sabia. — Como? — indaguei-lhe, sem perceber a relação. — Além disso, ela nos faz ser fortes, livra-nos de envenenamentos acidentes e mantém também nossa visão perfeita. — Como? — insisti. Diante de minha insistência, ele ficou em silencio, pensativo. Levantou os olhinhos brilhantes para mim e sorriu. — Espanta-me você, doutor. Sempre me surpreende quando está diante de algo novo. Não consegue desenvolver seus sentidos harmonicamente. Por isso vocês são limitados. Por isso vocês são limitados. Por isso harmonizar-se com a natureza tem que ser feito por etapas por você. Da mesma forma como se harmoniza com uma planta e sabe de sua utilidade, você pode fazer o mesmo com qualquer obra da natureza. — Mas uma pedra, Wadja... — Doutor, meu amigo, esta pedra existe desde que a terra existe. É parte do planeta, da composição inicial. Imagine quanto conhecimento existe nela, quantas coisas ela presenciou. Civilizações inteiras se formaram, e se destruíram, enquanto ela continuou existindo, absorvendo, num processo interminável. Há mais ciência nesta pedra que em todos os seus livros, doutor. Como não admitir a lógica simples do meu amiguinho? Aquela pequena pedra, ainda que reduzida a pó, continuaria a ser parte imutável da terra, componente da natureza. — Você já percebeu que todas as mulheres-gnomos grávidas usam um grande rubi ao pescoço? — Sim, mas julguei que fosse apenas uma tradição... — Também, mas o rubi previne contra o aborto e possibilita um bom parto. O assunto começava a me fascinar. — Você me deu. Certa vez, um cristal de rocha, para que eu o levasse comigo quando fosse me declarar a Ethel, não foi? Depois me disse que ele não tinha utilidade nenhuma e que apenas foi um instrumento para me dar coragem. Devo acreditar que não servia só para isso, não? Ele começou a rir. E tentou disfarçar o riso tomando mais um pouquinho de licor, mas não conseguiu. Acabou se engasgando com ele, tossindo e rindo, olhando-me com seus olhinhos matreiros e brilhantes. — Para que seria o cristal, Wadja? — insisti. — Para evitar diarreia, doutor, principalmente diarreia de medrosos. — explicou ele e, desta vez, eu também ri. — E o que mais temos aqui, nestas pedras, Wadja? — indaguei-lhe, examinando-as junto com ele. — Está é uma ametista. Evita que nos embriaguemos. — Então... Toda noite vejo você aí, tomando seu licor, sem jamais se alterar... — Também, mas ela desenvolve em nós o limite, principalmente. Mesmo quando nos excedemos, o que raro e somente por motivo de muita alegria, ela nos ajuda na recuperação, evitando os inconvenientes de uma ressaca. Também afasta infecções, proporciona um bom sono, cura queimaduras, mantém o sangue puro e outras coisinhas mais. — Wadja, percebe o quanto isso é importante? Não estamos falando de curar doenças, mas de evitá-las. Ele me olhou com olhos severos. — Antes de qualquer conclusão, doutor, considero que nossos organismos são diferentes dos de vocês, nosso nível de harmonia é infinitamente superior, por isso conseguimos captar as influencias positivas das pedras. Não tente aplicar isso indiscriminadamente sem pesquisar bastante, para não se decepcionar. — O alerta é útil, meu amigo, mas não posso desmerecer tamanha descoberta. Conte-me mais a respeito das pedras. — Ônix, para problemas do coração, esmeralda, para ter boa memória, água-marinha, para manter o fígado perfeito e muitas outras ainda. — E como funciona isso? Basta usar, como você faz? — Sim, apenas trazer junto ao corpo. Suas influencias são constantes e permanentes. Há alguns casos, porém, que você precisa aplicar a pedra diretamente no local, como num caso de queimadura. Em outros, basta deixar a pedra numa caneca de água limpa durante a noite e bebê-la na manhã seguinte, após retirar a pedra, é obvio. Ou então apenas segurá-la na mão, como você fez com o cristal, naquele dia em que se declarou a Ethel. Após aquela conversa, iniciei também minhas pesquisas no assunto. Sempre que passava nas imediações do riacho ou por alguma pedreira, recolhia o máximo de pedras que conseguia e as levava para casa. Wadja me ajudou e trouxe-me inúmeras outras. Eu as separava, catalogava e tentava sentir suas propriedades. Não havia limites para a minha surpresa, mas eu evitava aplicar estes conhecimentos em meus pacientes. Certa noite, porém, depois que Wadja foi embora, tentei dormir, mas não consegui. Talvez a ansiedade, o volume de informações e conhecimentos quer eu recebia ou algum outro distúrbio, não sei ao certo. Fui apanhar, então, em minha coleção, uma bela ametista, presente de meu amiguinho. Eu a pus contra a luz do lampião e fiquei admirando seus reflexos, seus ângulos, as cores que se dividiam. Em poucos minutos eu estava sonolento, mal tendo forças para me arrastar até a cama. A FORJA DA SAÚDE Durante nossas conversas. Ethel se mantivera afastada, mas, nos últimos tempos, começava a se interessar por tudo que dizíamos. Sentava-se discretamente num canto da sala, junto a um lampião, bordava, tricotava ou costurava alguma roupa, apenas ouvindo atentamente e se deliciando com aquelas proveitosas noitadas. Às vezes, quando Wadja já havia ido embora, nos trocávamos opiniões a respeito. Nascida ali, Ethel às vezes compreendia mais rápido coisas que nosso amiguinho dizia. Uma noite, porém, quando Wadja chegou, foi até ela e estendeu-lhe um pequeno pacote de pétalas de flores e folhas trançadas, formando uma graciosa cestinha. Com surpresa, Ethel retirou do seu interior uma pequena peça, brilhante e polida. — Wadja, que maravilha. — exclamou ela, despertando a minha curiosidade. Fui até lá para ver. Era um pequeno coelho, todo em ouro, perfeito em todos os detalhes. — Terminei a minha nova forja e estou fazendo algumas experiências com moldes de cera. Este é meu primeiro trabalho e se gostar, que ficaria muito contente se o aceitasse como presente. — disse meu amiguinho. — Mas é ouro, Wadja! — surpreendeu-se Ethel, maravilhada e encantada. — Sim, é ouro. Se preferir, eu faço de prata, embora não goste de trabalhar muito com esse metal. O ouro é sempre mais brilhante e belo. — disse ele, com simplicidade. — É um presente valioso demais, Wadja. — acrescentei. Ele me olhou desconfiado. — Valioso em que sentido, meu amigo. — indagou-me. — Em todos os sentidos. — Só vejo um sentido nele. É valioso porque foi feito com carinho e com arte para ser presenteado a alguém. Percebi logo que ele estava tentando me ensinar alguma coisa. Pouco mais tarde, quando lhe servi o precioso licor de amoras, indaguei-lhe: — Wadja, qual é o valor do ouro entre os gnomos? — O ouro? Gostamos dele porque fazemos lindas peças que enfeitam nossas casas e nossas mulheres. — Vocês o usam para trocas, por exemplo? — Trocas? Um pedaço de ouro por um pedaço de couro? — Não. Se eu precisar de um pedaço de couro, alguém me dará o que preciso. Se um amigo gostar de um pedaço de ouro que tenho, eu dou a ele. — Não tem valor comercial entre vocês? — Como? Um objeto de ouro vale por sua beleza o mesmo que uma flor. Se dá alegria a quem recebe, isso só nos enche de satisfação. Percebi que Wadja brincava comigo, querendo que eu percebesse no ouro não o valor comercial que desperta ambições, mas a sua finalidade como um elemento de união, de arte, de alegrias, enfim. — Acho que entendi aonde quer chegar, Wadja. — disselhe, afinal. — O ouro é importante para nós porque é mais um dos elementos da natureza. Nosso rei usa uma bela coroa de ouro, não só por sua beleza, por simbolizar a autoridade, mas porque o ouro atrai as energias do sol e lhe dá qualidades necessárias a um grande rei. É corajoso, sábio, vigoroso, generoso e todas as qualidades que se espera dele. Notei que enveredávamos por outro caminho e me interessei por ele. O que Wadja estava me dizendo era que, acima do valor comercial e estimativo do ouro, havia nele propriedades que o tornavam mais importantes ainda. Não foi difícil, a partir daí, ligar as coisas. Eu já tivera uma lição com as árvores e plantas de um modo geral. Depois, com as pedras preciosas ou não. Agora, sem sombra de dúvidas, meu amiguinho me apontava outro campo de conhecimento: o poder dos metais. Conhecedor de sua sabedoria, resolvi explorá-lo mais uma vez neste sentido. — Wadja, acho que estou me tornando esperto demais para não perceber que também nos metais existem poderes ou influencias, como você chama. Em minha ignorância, no entanto, não consigo ainda compreender como. Wadja sorriu condescendente. — Está sendo modesto, doutor. Não está se tornando esperto, está se tornando um sábio. É diferente. Quanto ao resto, você está certo. Por mais que possamos manipular os metais, eles sempre serão parte da terra, elementos da natureza. E como isso, guardam todo um cabedal de informações e conhecimentos que vocês, homens, mal podem arranhar. — Então, fale-me sobre o ouro. — pediu-lhe. Ele pensou por instantes. — Certa vez, um navio desgarrado, de piratas espanhóis, foi dar nas costas da Noruega. Homens cruéis, hábeis e implacáveis. Inexplicavelmente, certa noite apanharam um gnomo que rondava o acampamento que eles haviam montado na praia, enquanto reparavam algumas avarias no navio. Não pode imaginar a tortura e as humilhações a que o submeterem. Hornuk, o gnomo, no entanto, era esperto e esperou o momento certo para negociar por sua vida. Ouviu, então, os piratas conversando sobre o medo que tinham de morrer no mar e não receberem uma sepultura adequada. Ou, então, de serem levadas para uma praia, onde os habitantes, reconhecendo-os como piratas, os deixassem insepultos. Hornuk não perdeu a chance. Disse que tinha um amuleto capaz de proporcionar aos marinheiros uma sepultura digna, fosse no mar ou fosse em terra. Em resumo, ele passou toda a noite furando e pendurando brincos nas orelhas dos piratas, que passaram a acreditar que isso lhes garantia a sepultura. Na verdade, sempre que um homem com um brinco na orelha é levado para a praia, após morrer em um naufrágio, os gnomos daquela localidade se encarrega de enterrá-lo numa sepultura digna. Desde então, os marinheiros passaram a acreditar nisso e furavam suas orelhas. — História interessante. Wadja, mas o ouro na orelha garantia a sepultura digna ou era um sinal que os gnomos o enterrassem? — As duas coisas, não acha? Uma não pode ser sem a outra. De qualquer modo, o ouro era a garantia. Mas isso não foi sempre assim. Antigamente, antes de se corromperem, os homens eram como os gnomos e sabiam dessas coisas. O ouro, muito mais que pelo seu preço, era considerado como um elo entre o homem e o sol. Por isso gostamos do ouro e o carregamos conosco, enfeitamos nossas mulheres e exibimos em nossas casas. Ele reduz nossa necessidade de sol. Vou lhe contar um segredo. — disse-me ele, abaixando o tom de voz e olhando discretamente para Ethel. — Quando fazemos amor, mantemos no corpo um objeto de ouro, de qualquer espécie. Reforça a energia, se é que me entende. — explicou ele, sorrindo maliciosamente. — Compreendo. — disse eu. — Vou lhe fazer uma pergunta: por que as pessoas costumam usar uma peça de ouro, qualquer que seja, presa por um cordão ao pescoço? — Não tenho a menor ideia, Wadja. É coisa muito simples para você, mas muito complexa para mim. — Porque o ouro, friccionando constantemente a área do coração, o mantém sempre forte, num ritmo adequado, sem pressão alta ou outros transtornos. Da mesma forma, um colar de ouro ao redor do pescoço o mantém livre de problemas de garganta. — É fantástico, Wadja. E quanto aos outros metais? — insisti, cada vez mais curioso a respeito. — Da mesma forma que o ouro representa a força do sol, a prata representa a força da lua. Ambas são necessárias para nossa harmonia. Como somos seres noturnos, captamos a energia lunar constantemente, por isso não temos tanto gosto pela prata. — E o que ela proporciona? — Vejamos! A prata, entre nós, é mais utilizada pelas crianças, logo que nascem. Ela as ajuda a saírem do meio líquido e enfrentarem o novo ambiente sem traumas. Como ela atua sobre o meio líquido, quando as mulheres-gnomos chegam no tempo de se engravidar, passam a usar um cinto feito de prata, ou mesmo um colar. O cinto, porém, sempre se mostrou mais eficaz. — E o cobre? Vi alguns de seus utensílios de cozinha. São todos feitos de cobre, não? — observei. — Ah, sim. O cobre é o metal dos gnomos, sabia? Cobre é condutor de calor, irradia amor, alegria, beleza. Percebe porque os gnomos são assim alegres, amigáveis, sempre contentes? Vejo em seu fogão uma panela de ferro. É útil, mas use também as de cobre. Verá como sua saúde e sua alegria aumentarão ainda mais, doutor. Ele discorreu, naquela noite, sobre os mais diversos metais e suas utilidades. Eu fiquei mais uma vez encantado com tudo aquilo que ele me contava e que aumentava minha capacidade de buscar na natureza as resposta para os problemas do homem. Não cessava de refletir quanto a isso. Tantas invenções maravilhosas que surgiam no mundo, com uma rapidez espantosa, pareciam apenas terem sido criadas para aumentar a saúde, o conforto e o bem estar do homem. No entanto, ele já tinha tudo isso e estava se afastando da resposta mais simples, em busca daquela ilusão de progresso e prosperidade. Às vezes, quando Wadja ia embora, eu ficava lá fora, olhando o céu, as estralas, as árvores, os animais, sentindo perfumes e cheiros no meu dialogo mudo com a floresta, eu pensava até quando aquilo iria durar. Eu não queria sequer imaginar que um dia, no futuro, aquela visão maravilhosa pudesse não existir. Mas tinha de acreditar que tudo caminhava para isso. Wadja já havia me advertido a respeito. O homem, em sua infinita ganância, agredia a natureza, imaginando que ela fosse eterna. De um lado estava certo. A natureza, mesmo adulterada, continuara existindo. Mas o homem, sem ela, teria sucumbido inexoravelmente. ÚLTIMAS NOTAS DO TRADUTOR A partir deste trecho do manuscrito do Dr. Berger, há páginas e páginas onde ele anota cuidadosamente suas descobertas e aplicações dos conhecimentos recebidos através de Wadja. A natureza passa a ser sua aliada e problemas simples de saúde passam a ser curados sem a aplicação de qualquer medicamento, apenas usando o bom senso, recomendando as famílias cuidados de higiene e alimentação, principalmente. Doenças mais sérias encontram na natureza e na sabedoria do Dr. Berger um poderoso inimigo e são tratadas e curadas sem sofrimentos para os pacientes. Finalmente, era inevitável que sua fama se espalhasse e acabasse, finalmente, aos grandes centros. Todos queriam conhecer aquele homem que revolucionava a medicina com um método natural e inexplicável de cura. Surgiram algumas notícias nas revistas médicas. Uns afirmavam que ele não passava de um curandeiro charlatão. Outros confiavam no que relatavam seus pacientes e queriam que seus conhecimentos fossem levados a um maior número de pessoas possíveis. Uma noite ele leu para Wadja uma carta da Universidade de Leipzig, convidando-o para uma palestra e sondando-o sobre a possibilidade de permanecer lá, espalhando seus conhecimentos. Wadja ouviu tudo atentamente, tomando pequenos goles de licor de amora e fumando seu cachimbo. — É o que sempre desejou, não, meu amigo? — indagou, quando o médico terminou a leitura. — Sim, Wadja, não posso lhe esconder isso. No entanto, é difícil, senão impossível, para mim, conceber minha fora deste mundo, longe da floresta, do povo daqui e, principalmente, privando-me de sua sábia companhia. O gnomo refletiu longamente. — Não conhecemos a saudade, doutor, porque não gostamos nem achamos necessário sofrer. Você deve ir. Preserve nossos segredos, mas espalhe o bem indistintamente. É um homem sábio e justo. Poderá tentar tornar um pouco melhor seus semelhantes, embora eu tenha motivos para descrer disso. No entanto, sabe que é alguma coisa que precisa ser feita e você é o homem indicado. Quanto a mim, quando sentir isso que se chama saudade, irei vê-lo. Quando menos esperar, estarei batendo em sua porta, numa noite qualquer. — Como fará isso? Como irá me achar? — Em Leipzig também há gnomos, meu amigo. Tenho parentes lá. Pode estar certo que eu saberei do seu paradeiro, de como está e tudo o mais. — E como farei para ter notícias suas? — Todas as noites, no mesmo horário de minhas visitas, isole-se em qualquer ponto da casa, diante de uma janela aberta. Abra seu coração e harmonize-se com o meu. Estaremos tão próximos que conversaremos como se estivéssemos lado a lado. Depois daquela noite, o Dr. Berger e Ethel se envolvem numa série de preparativos para a ida a Leipzig. De alguma forma, sabiam que a ida era definitiva. À noite, Wadja vinha e se sentava junto à lareira, fumando e tomando seu licor, enquanto o doutor e Ethel discutiam as últimas providências. O gnomo apenas os acompanhava entendendo seus amigos. Quando terminava, conversava rapidamente com seus amigos, depois sai tão silenciosamente como havia entrado. O doutor narra seu sofrimento por afastar-se do amigo, mas compreende que, afinal, era o melhor a ser feito. Às vésperas da partida, os gnomos organizam uma festa. Uma fogueira foi acesa diante da cabana. Cantaram e dançaram. Animais se escondiam atrás dos arbustos, ansiosos para participarem da alegria e querendo, também, dar seu adeus ao amigo. Quando tudo terminou e iniciaram-se as despedidas, Wadja ficou por último. Após despedir-se de Ethel, encarou o doutor, que havia se ajoelhado a sua frente. — Como poderei agradecer-lhe tudo que fez por mim? — indagou o doutor. — Nada mais do que apenas manter seu coração aberto a mim e aos meus. Não estamos nos despedindo, doutor. Estamos apenas iniciando uma nova caminhada. Juntos estaremos sempre. — afirmou o pequenino com os olhos brilhantes de lágrimas. Naquela noite o médico voltou a chorar como criança. Não o choro da tristeza ou o choro provocado pela dor. Era algo puro e belo. Eram lágrimas de seu coração, harmonizado com o do gnomo. Choraram pela alegria de terem se conhecido, pelo prazer de terem convivido e pela certeza de que distância nenhuma os poderia impedir de continuar aquele longo e inesgotável aprendizado. FIM