"O Potencial Terapêutico da Canção em Musicoterapia" Autora

Transcrição

"O Potencial Terapêutico da Canção em Musicoterapia" Autora
GLÁUCIA TOMAZ MARQUES PEREIRA
O POTENCIAL TERAPÊUTICO DA CANÇÃO EM MUSICOTERAPIA
Monografia apresentada ao Curso de Bacharelado
em Musicoterapia da Escola de Música e Artes
Cênicas da Universidade Federal de Goiás para
obtenção do título de musicoterapeuta.
Orientação: Profª. Mtª. Drª. Leomara Craveiro de
Sá. Co-orientação: Profª. Ms. Gilka Martins de
Castro Campos.
Goiânia
2005
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GLÁUCIA TOMAZ MARQUES PEREIRA
O POTENCIAL TERAPÊUTICO DA CANÇÃO EM MUSICOTERAPIA
Monografia apresentada e aprovada em ........ / ........ / ..............., pela Banca
examinadora constituída pelos professores:
___________________________________________
Drª Leomara Craveiro de Sá
___________________________________________
Ms. Gilka Martins de Castro Campos
___________________________________________
Drª. Marília Vargas Laboissière Paes Barreto
3
A todos os grandes compositores de
canções que nos fazem sonhar e viajar no
pensamento e no mais íntimo do ser.
Fazendo unir alma, corpo e coração,
através da arte e do enlace entre música e
poesia!
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AGRADECIMENTOS
Ao meu grande e incomparável Deus: Seu amor e Suas bênçãos são grandes
demais para mim! És maravilhoso e incrível! És digno de todo louvor, toda glória e honra,
para todo o sempre. Minha vida, meu pensar, meu agir, meu ser e estar no mundo está em
suas mãos, Senhor!
Aos meus pais: vocês são tudo o que eu sempre precisei, meu esteio e sustento,
minha alegria. Obrigada por tudo!
Às minhas irmãs: vocês são um porto seguro para mim, obrigada pelo apoio
sincero. Rê você foi meu apoio nos momentos em que eu não podia andar, uma grande amiga.
Keninha você abriu minha mente para muitas coisas me auxiliando a ser melhor.
Ao meu irmão: obrigada por seu carinho.
À minha querida professora Leomara: as palavras são poucas para agradecer tudo
o que fez por mim. Obrigada por todo carinho e cuidado que me ajudaram nos momentos de
dor e alegria. Obrigada pelo ensino coerente e compreensão. Sou eternamente grata!
À professora Gilka: as suas orientações me fizeram acreditar na grandiosidade da
canção e na beleza da música brasileira. Obrigada por me ensinar com paixão!
À professora Cláudia: você será sempre minha eterna coordenadora! Cuidadosa e
dedicada em tudo. Obrigada por me auxiliar nos momentos mais difíceis.
À Clara Márcia, por colaborar com este trabalho dando idéias e sugestões que
auxiliaram na construção do projeto.
Aos meus grandes amigos: Fabrícia, Fabrício, Fernanda Rachel e Marta. Amo
vocês demais! Obrigada por me oferecerem todo cuidado, carinho e amizade. Os seus
conselhos me ajudaram a ser uma pessoa melhor. Com vocês aprendi a grandeza do
compartilhar, do chorar e do sorrir. Nunca vou esquecer vocês!
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Lia sorte e pensamento
Traduzia sonhos
Viajava em mais de mil direções
Via cores no movimento
Conduzia o seu tempo
Decifrava gesto e intenções
É magia, elo que nos une
Almas se entrelaçam
Escrevendo rimas pelo céu
É sintonia
Eco de mensagens
Notas que se espaçam
Dando vida a histórias de papel
Lançar no ar
O acorde que agasalha
A voz e a emoção de um cantor
Alçar no ar
O amor que acompanha
O vôo e o coração de um cantor
Eu vou levar a personagem principal
Em minhas mãos...
...E me levou
Partituras
(Flávio Venturini / Jane Duboc)
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RESUMO
Este trabalho visa refletir sobre a importância da canção como elemento terapêutico no
contexto da Musicoterapia. Inicialmente, é apresentado um breve histórico da canção no
Brasil, relacionando-a aos aspectos sócio-culturais. Procura-se evidenciar o potencial
terapêutico da canção em Musicoterapia considerando suas diversificações quanto à forma de
aplicação e emergência no setting musicoterápico. São apresentadas três canções surgidas em
contextos distintos – Gerontologia, Recursos Humanos e Saúde mental – e mostrada a
importância de cada uma no processo musicoterápico.
Palavras-Chave: Musicoterapia, Canção e Potencial Terapêutico.
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ABSTRACT
This project intends to reflect about the importance of the song as a therapeutic element in the
context of Music Therapy. It is initially presented a brief history of the song in Brazil,
connecting its cultural and social aspects. It evidences the therapeutic potential of the song in
Music Therapy, considering their diversification as a manner of application and emergency in
the Music Therapeutic setting. Three songs are presented appearing in different contexts –
Gerontology, Human Resources and Mental Health – in order to show the importance of each
one in the Music Therapeutic process.
Key Words: Music Therapy, Song and Potential Therapeutic.
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SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................................. 6
ABSTRACT........................................................................................................................ 7
INTRODUÇÃO................................................................................................................... 10
1. Capítulo 1: UM BREVE HISTÓRICO DA CANÇÃO NO BRASIL............................ 14
1.1. Miscigenação das raças e a influência na música brasileira...................................... 14
1.2. A Canção Popular no Século XX.............................................................................. 18
1.2.1.
1.2.2.
1.2.3.
1.2.4.
1.2.5.
1.2.6.
A Canção na Década de 1910-1920................................................................. 19
A Canção na Década de 1930-1940................................................................. 20
A Canção na Década de 1950........................................................................... 21
A Canção na Década de 1960........................................................................... 22
A Canção na Década de 1970........................................................................... 24
A Canção na Década de 1980-1990.................................................................. 26
1.3. A Importância do Cultural, das Canções, da História em Musicoterapia................... 28
2. Capítulo 2: A CANÇÃO EM MUSICOTERAPIA.......................................................... 30
2.1. Canção e Comunicação............................................................................................... 31
2.2. A Utilização da Canção no Setting Musicoterápico.................................................... 36
2.2.1. Canção na Re-Criação Musical......................................................................... 38
2.2.2. Canção na Improvisação Musical...................................................................... 39
2.2.3. Canção na Composição Musical........................................................................ 41
2.2.4. Canção na Audição Musical.............................................................................. 42
2.2.5. A Canção como Âncora..................................................................................... 44
2.2.6. A Canção Desencadeante................................................................................... 46
2.2.7. A Canção na Abordagem Músico Centrado (Approach Brandalise – Carta
de Canções) ................................................................................................................... 47
2.2.8. A Canção no Método Plurimodal....................................................................... 49
2.2.9. A Canção Popular como Acolhimento............................................................... 51
3. Capítulo 3: O POTENCIAL TERAPÊUTICO DA CANÇÃO......................................... 53
3.1. Uma Canção em Gerontologia..................................................................................... 53
3.1.1. O Surgimento da Canção “Eu só Quero um Xodó” .......................................... 55
3.1.2. Análise e Significado da Canção no Processo Musicoterápico.......................... 56
3.2. Uma Canção em Recursos Humanos........................................................................... 59
3.2.1. O Surgimento da Canção “Tudo Pode Acontecer” ........................................... 60
3.2.2. Análise e Significado da Composição-Canção no Processo Musicoterápico.....61
3.3.Uma Canção em Saúde Mental..................................................................................... 62
3.3.1. O Surgimento da Canção “Como É Grande o Meu Amor Por Você”................ 63
3.3.2. Análise e Significado da Canção no Processo Musicoterápico.......................... 64
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CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................... 67
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................... 70
ANEXOS................................................................................................................................. 74
10
INTRODUÇÃO
A história da humanidade retrata quão importante foi e é à arte musical, desde sua
utilização em rituais religiosos e de lutas quanto no cotidiano dos diversos grupos sociais.
Os gregos e romanos foram responsáveis pela fusão entre música e poesia quando
buscaram unir o trágico e o lirismo. Com o crescimento da gramática rebuscada, o canto se
modificou para dar evidência e efeito na linguagem ritmada. Neste ínterim, a música era
utilizada para valorizar a fonética da palavra sem considerar os valores semânticos e
tencionais do texto. A música – enquanto melodia e texto – exercia o papel de transmissora
das mensagens poéticas e se relacionava a aspectos psicológicos (Magnani, 1989).
Na Idade Média algumas modificações eclodiram com o surgimento do
cantochão1. Combarieu afirma que este tipo de canção, desprovida de tensões, não estabelecia
limites, mas oferecia novas probabilidades ao pensamento. O autor continua sua explanação
discorrendo sobre a superação da música em detrimento da letra, pois a mesma possibilitava
projetá-la “num espaço da alma” (apud Magnani, 1989, p. 68).
No mundo Romântico-gótico, o contraponto abrangeu a verticalidade da música,
abrindo espaço para as primeiras músicas polifônicas. Independentemente da poética literária,
profana ou sacra, este propunha ao texto um arcabouço de sensações e sentimentos. Contudo,
nesta conjuntura, mesmo que a música perpassasse liricamente o texto, este exercia função
importante na composição da obra.
No período Medieval, com o surgimento de estruturas musicais mais complexas,
como o organum, melisma, descante e clausula, motetos, ars nova, cantus firmus, isorritmo,
hoqueto e fauxbourdon, a canção se modificou apresentando novas estruturas, tais como, o
surgimento de voz principal, vozes paralelas, modificação do ritmo e dos intervalos,
possibilitando uma estruturação mais harmônica, tessitura rica e sonora (Bennett, 1986).
Na Renascença o homem passou a desbravar novas terras. Este espírito de
conquista e exploração modificou o pensamento do ser humano possibilitando uma
exploração de mistérios, emoções e espírito, modificando a percepção de si mesmo e do outro.
Estes fatores foram preponderantes para impactar os artistas e, conseqüentemente, a música
sofreu grandes modificações.
1
Canção cuja melodia abarca tessitura do tipo monofônica. Este tipo de canção tinha a característica bem
distinta de ritmos irregulares que acompanhavam as acentuações das palavras, melodia livre e movimento
intervalar curto.
11
Em relação à canção, a linguagem se modificou juntamente com o livre
movimento das vozes. A harmonia assume papel de importância permitindo que a
“expressividade da voz superior” desenrolasse “sobre o contexto das harmonias”. Nesta
vigência, houve um “progressivo distanciamento entre o texto e a riqueza da sua roupagem
musical”, tal fato foi discutido no Concílio de Tridentino, onde se percebeu a impossibilidade
do retorno da predominância do texto sobre a música (Magnani, 1989, p. 68). Neste período,
ainda eram preponderantes os motetos e as missas, porém aos poucos notas acidentais foram
surgindo dentro deste contexto.
A Reforma Protestante abriu caminhos para a composição de hinos. Estas canções
muitas vezes eram adaptações de cantochão e até mesmo de canções populares. Este estilo
musical surgiu na Alemanha com Martin Lutero e eram chamados de corais. O latim deixa de
ser a língua oficial das canções. Alemanha e Inglaterra são os primeiros países a comporem
este estilo musical em sua língua nativa.
Em Veneza, o estilo coral é modificado com o surgimento das composições
“policorais – músicas para mais de um coro” (Bennett, 1986, p. 29).
Paralelamente à música sacra floresceram as canções populares que variavam “em
estilo e expressando todo tipo de emoções e estados de espírito” (ibid., p. 26). Estas canções
tinham a característica de tessitura contrapontística ou em forma de acordes, mas sempre
alegres e ritmadas.
Todavia, na Itália, a música adquire uma nova roupagem, “criando a literatura
instrumental dentro de um espírito de autônoma significação de movimentos sonoros e de um
novo espírito de expressão pura”. A música vinculada a um texto, principalmente a ópera
como é denominada por Magnani, se torna na complexa “relação triádica poesia-músicaação”. Crucialmente, este momento define duas vertentes da música – música pura2 e música
vinculada a um texto (op. cit., p 69).
Sobre a música cantada, Magnani afirma que a música é a “extrema catarse da
palavra, o seu último horizonte. (...) A música aproxima a própria palavra – e qualquer
palavra –das místicas revelações da matemática”. Leibniz, citado pelo autor, partindo deste
pensamento, definiu esta música como um “cálculo inconsciente” (ibid., p. 71).
Assim, a canção, como forma musical, definiu-se paulatinamente. Primeiramente,
estava inserida no contexto artístico apresentando uma nova roupagem à poesia. Com o
tempo, música e a poesia fundiram-se, formalizando um estilo musical que, no decorrer dos
2
Conforme Sérgio Magnani, música pura é exclusivamente instrumental, que vive “apenas dos seus próprios
conteúdos estruturais” (p. 69).
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séculos e com a era da comunicação, foi tecendo a construção da canção como hoje é
conhecida.
O canto, presente nesse universo simbólico das diferentes culturas, apresenta uma
diversidade de expressão, ou seja, o homem canta as variadas situações de sua vida. Dentre
estas situações, pode-se citar os cantos de trabalho; as canções anônimas (folclóricas); os
acalantos;
os
cantos
exorcizadores;
ameaçadores,
afetivos,
tranqüilizadores
ou
desmistificadores, religiosos; os jogos infantis; as canções amorosas, satíricas, imitativas,
religiosas, dramáticas; os folguedos; a congada; o reisado; o carnavalesco; os guerreiros e
canto como intervenção política (Millecco, 2001). Todos estes estilos são considerados na
construção da história da canção popular brasileira.
Em congruência com esses diversos tipos de cantos, a musicoterapia utiliza, em
sua prática clínica, recursos musicais, uns interativos, outros receptivos. O “fazer musical”
promove a comunicação entre cliente e musicoterapeuta ou grupo, possibilitando a
emergência de conteúdos internos e a auto-expressão.
A canção, entre as diversas formas de utilização da música em Musicoterapia, é
um recurso altamente empregado nos settings musicoterápicos brasileiros. No decorrer da
história musical brasileira, os veículos de comunicação possibilitaram que a canção fosse
propagada em todos os setores da sociedade, alcançando um papel primordial na cultura do
Brasil. Esta realidade, propagada nos diversos setores culturais, impetra um lugar de destaque
na Musicoterapia, possibilitando que o individuo (ser cultural) recorra à canção como recurso
terapêutico. Destarte, esta forma musical surge em todas as experiências musicais da
musicoterapia de maneira distinta, seja durante ou como improvisação, no ato de re-criar, na
composição ou na audição musical.
Em contrapartida, esta canção pode emergir não apenas como experiência
musical, mas como recurso utilizado pelo musicoterapeuta para atingir objetivos terapêuticos.
A canção pode servir como âncora terapêutica, recurso desencadeante, acolhimento, com suas
especificidades nas abordagens do músico-centramento ou no método plurimodal, etc.
Este trabalho partiu da observação clínica, onde a canção surgia como recurso
auto-expressivo, ou seja, o individuo utilizava palavras contidas nas canções para expressar os
seus próprios sentimentos. Sendo assim, questionou-se como este processo acontecia e a
potencialidade terapêutica da canção, seus direcionamentos e/ou apontamentos.
Partindo desse pensamento, decidiu-se exemplificar, na introdução deste trabalho,
toda esta trama teórica, a partir de uma canção do renomado compositor da Música Popular
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Brasileira, Milton Nascimento, que demonstra o recurso expressivo da canção e sua ligação
com a vida, os sentimentos, as emoções e a alma do ser humano:
Certas canções que ouço cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece como não fui eu que fiz?
Certa emoção me alcança, corta minha alma sem dor.
Certas canções me chegam como se fosse o amor.
Contos da água e do fogo, cacos de vidas no chão,
Cartas do sonho, do povo e o coração do cantor.
Vida e mais vida ou ferida, chuva, outono ou mar.
Carvão e giz, abrigo, introdução, gesto molhado no olhar.
Certas Canções
(Milton Nascimento)
Por fim, este trabalho objetivou unir todas estas características para estudar a
potencialidade terapêutica da canção em Musicoterapia.
O primeiro capítulo apresenta a história da canção, o desenrolar histórico no
contexto cultural da musicalidade brasileira, ressaltando a importância da cultura na vida do
individuo e na atuação musicoterápica.
O segundo capítulo apresenta a canção e sua utilização em Musicoterapia, as suas
diversas convergências, recursos e emergências, sejam através das experiências musicais ou
das diversas abordagens musicoterápicas.
Para o terceiro capítulo, foi realizado um levantamento bibliográfico onde se
ressalva que a canção em Musicoterapia, no Brasil, principalmente em Goiás, é utilizada em
diversas áreas de atuação musicoterápica. Desta revisão de literatura, dos trabalhos
monográficos apresentados na Universidade Federal de Goiás, pôde-se notar que este estilo
musical é amplamente empregado. A partir deste levantamento, foram escolhidas três áreas de
atuação em musicoterapia – Recursos Humanos, Gerontologia e Saúde Mental –, onde
observou-se que a canção se apresenta de maneiras distintas, porém, sem deixar de se
apresentar como um potencial terapêutico. O estudo desses casos possibilitou a abrangência
da visão, observando o contexto em que a canção está inserida, suas principais características,
corroborando para apontar os elementos propulsores para a sua emergência.
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CAPÍTULO I – UM BREVE HISTÓRICO DA CANÇÃO NO BRASIL
Inevitavelmente, a formação da música popular brasileira foi influenciada pela
miscigenação étnica. Apesar da discussão entre os pesquisadores sobre os aspectos positivos e
negativos desta mistura, este fator apresenta imensa relevância na história cultural do Brasil e
adquire proporções singulares, levando a várias discussões sobre as modificações das crenças
e dos costumes do grupo que aqui se instalou nos séculos de colonização.
Conforme Tatit (2001), a canção popular é uma “forma híbrida” que, mesclando a
“melodia, letra e arranjo instrumental, roubou a cena sonora da nação desde os primeiros anos
dos séculos e veio assimilando as mais distintas influências até chegar ao produto final”.
Atualmente, a cultura de massa, os meios de comunicação, são fortes propagadores desta
forma musical (p.223).
A diversidade da canção nos dias atuais “contém um forte poder de comunicação,
principalmente quando se difunde pelo universo urbano, alcançando a ampla realidade
social”. As pesquisas sobre formação histórica deste tipo musical inicialmente apresentavam
biografias e gêneros “existentes nas interpretações da ‘boa música’”. No final do século XX,
alguns trabalhos contribuíram para a expansão e outras discussões sobre a formação da canção
no Brasil. Porém, sabe-se que este campo de estudo necessita um olhar mais aprofundado e
pesquisas mais direcionadas (Moraes, 2000, p. 207-208).
Neste capítulo, serão apresentados sucintamente a história da canção no Brasil e o
seu desenvolvimento até os dias atuais.
1.1. Miscigenação das raças e a influência na música brasileira
Assumir uma única posição sobre o desenvolvimento da história da canção no
Brasil é arriscado, pois há poucos escritos sobre o assunto e as mudanças que ocorreram na
música, principalmente no período de colonização, estão baseados em cartas. Como refere
Tatit (2004), este histórico resulta mais de um “simulacro construído pelos historiadores do
que de provas documentais” (p. 19).
Contudo, alguns fatores devem ser considerados como a conexão entre a produção
sonora do período de colonização e o ritual religioso, ou seja, a prática nativa dos índios –
onde, inclui-se a magia e religiosidade –; e o doutrinamento dos jesuítas – catolicismo e a
liturgia das celebrações católicas. Os nativos produziam uma música mais rítmica do que
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melódica, utilizando instrumentos de percussão e sopro. Os portugueses trouxeram uma
música mais melódica do que rítmica, onde a canção era baseada no canto gregoriano
medieval e nos hinos de celebração e catequese. Tatit (2004) abrange a discussão revelando
que os cantos de lazer “beiravam o profano”. Estes eram utilizados pelos jesuítas por observar
o seu poder de atração sobre os índios, realizando assim a junção das tradições católicas e
indígenas (p. 20).
A letra e a música também seguiram este mesmo caminho, unindo as duas
culturas nas práticas religiosas. Com o tempo, os contornos melódicos do canto gregoriano
cederam “espaço às palavras cantadas dos índios, adaptando-lhes o conteúdo aos dogmas
católicos, mas conservando a inteligibilidade da língua de origem” (ibid.).
O corpo e a voz assumiam espaço latente nas folias musicais. Este aspecto foi
reforçado com a chegada dos negros. Estes influenciaram a dança e a percussão que eram
realizadas nestas folias musicais, estabelecendo uma nova roupagem à musicalidade do povo
brasileiro.
Tatit (2004) relata que a etnia negra assume papel importante no século XVII,
onde os escravos, após as suas duras tarefas braçais, se revitalizavam através das suas danças,
batuques e religião nos raros momentos de lazer. Apesar da perda gradativa de parte de sua
identidade, estes buscavam se adaptar à nova condição. Porém, procuraram retomar os
“calundus africanos” (p. 21) unindo a idolatria, ritmos, danças e curas, nas suas manifestações
pagãs. Este ato atingiu a sociedade rica que começou a participar destas rodas de batuque e
cerimônias religiosas, culminando na separação do rito social com o rito religioso, sendo
aceito o primeiro e restringindo a prática do segundo.
Tinhorão afirma que os negros, adequando-se às diversidades, apegaram-se aos
seus “batuques” e inseriram pitadas de religiosidade ao seu “canto responsorial”3. Este tipo de
canção, que partiu dos momentos de lazer dos escravos, fez surgir os primeiros caminhos da
música popular brasileira. Em contrapartida, a sociedade branca – os europeus – assume uma
importância fundamental na composição desta musicalidade brasileira, sendo esta participante
nas melodias e nos sons das violas dos seus descendentes que determinaram a música do
Brasil (apud Tatit, 2004, p. 22).
Apresentando outra visão sobre a influência negra na musicalidade brasileira,
Mário de Andrade relata que a palavra samba pode ter-se derivado do termo semba utilizado
pelos negros do sul da Angola que consistia no roçar do baixo ventre entre parceiros. Este tipo
3
Esta canção era uma espécie de diálogo de uma voz solo com o coro.
16
de dança era usual nos batuques, outrora dito, que faziam parte da umbigada – ritmo e dança
praticado pelos negros antes de uma cerimônia de casamento. O ritmo utilizado na umbigada
foi essencial na formação da musicalidade brasileira (apud Tatit, 2004, p. 22).
No século XVII, Gregório de Matos Guerra, poeta brasileiro, apresentou-se como
figura importante no desenvolvimento da canção. A riqueza temática dos seus poemas, a
abrangência da poesia ao canto falado e valorização do acompanhamento da viola, foram
fatores que desencadearam a caracterização precoce do cancionista.
Entretanto, as raízes da canção popular brasileira surgem no século XVIII, os
batuques dos africanos foram reforçados pela presença dos mestiços e brancos nas rodas
musicais. Esta influência e a utilização da viola culminaram na criação da música para
diversão. Outro fator preponderante foi à utilização de canções populares nas peças de caráter
cômico do teatro, que facilitaram a difusão do lundu. A melodia começou a ser desenhada
para canções amorosas rebuscando as apresentações teatrais.
A partir de 1775, Domingos Caldas Barbosa, autor e intérprete de lundus e
modinhas, facilitou a expansão da canção popular brasileira na sociedade portuguesa, fator de
ampliação desta música. Este compositor apresentou uma nova roupagem à canção que se
entrelaçava num ritmo provindo dos batuques africanos, em melodias que aglomeravam o
contexto cotidiano, apresentando certa graça e persuasão ao texto e um romantismo que
expandiu a tessitura das canções.
Na transição entre o estado de colônia para o estado de império, Francisco Manuel
da Silva é um grande nome que surge como formador da escola musical brasileira. O Hino
Nacional Brasileiro é um dos seus grandes marcos. Porém, das suas iniciativas de formalizar
uma música brasileira surgiu como fruto deste trabalho Carlos Gomes, autor de modinhas e
músicas eruditas. Conquistou posição de destaque como compositor brasileiro. Entretanto,
não apresentava caráter nacionalista, o princípio desta nacionalidade adveio de nomes, como:
Alexandre Levy e Alberto Nepomuceno, este último “adotou o português na execução dos
seus cantos” (ibid., p. 30).
Neste ínterim, os grandes nacionalistas formaram-se nos terreiros da casa da Tia
Ciata. Estes eram integrados por negros e mulatos em busca de uma identidade social. Neste
terreiro, os sambas eram executados, acompanhados por passos de dança e versos
improvisados. Por outro lado, o choro já apresentava prestígio entre os seus freqüentadores,
apresentando-se em forma de concerto musical de músicas instrumentais. Das influências
desta música estava o lundu, o partido alto, maxixe, polca e rabanera, dos quais nomes como
Pixinguinha, Anacleto de Medeiros, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth se apropriavam.
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Estas reuniões e expansão destes estilos musicais influenciaram Villa-Lobos que confirmou “a
tradição da via erudito-popular”. Esta solidificação social, através da utilização da música e
cultura, atingiu a sociedade elite em meados de 1920 com a consolidação do carnaval e depois
com os projetos de Villa-Lobos – grandes corais e sinfonias, unificando a diversidade musical
brasileira (ibid., p: 32).
A música realizada para diversão adquiriu uma nova característica com a aparição
das máquinas de gravação. A nova tecnologia exigiu que os seus representantes buscassem os
caminhos da remuneração através das horas de trabalho. As canções gravadas em meados de
1897 apresentavam-se de modo simples, utilizando voz e violão, dentro das limitações
técnicas da época. Em 1904, com a entrada do gramofone, surgiu a primeira remessa de
cantores profissionais no Brasil.
A inserção do veículo de comunicação modificou a história da música brasileira,
permitindo a solidificação da canção popular. Também possibilitou que os versos
improvisados na casa da Tia Ciata obtivessem registro e os conteúdos sócio-culturais da época
não se perdessem, mas fossem registrados na memória do povo brasileiro.
Contudo, o firmamento desta nova realidade possibilitou abertura de novas
discussões sobre a realidade brasileira, sua consciência nacional, permitindo o surgimento do
movimento modernista.
Mário de Andrade e Heitor Villa-Lobos foram os grandes representantes deste
movimento, cujas ideologias pairavam sobre nacionalizar a música erudita. O primeiro
valorizava as produções brasileiras e a evolução dos ritmos e das formas musicais, sendo um
escritor de grande influência na sua época. O segundo apresentou uma música nacional com
características internacionais, ou seja, foi influenciado por grandes nomes eruditos, mas
valorizou o choro, a modinha e o folclore do Brasil.
Neste período, as músicas de sucesso no rádio apresentavam temas “pouco cívicos
como o ócio, a boêmia e a malandragem”. Esta realidade não se aderiu no movimento
“nacionalista musical modernista”, levando a que Mário de Andrade e Villa-Lobos
apresentassem uma música nacional mais rebuscada (ibid., p. 39).
Sobre esta dupla realidade – o popular e o nacionalismo – José Miguel Wisnik
relaciona o popular e a arte, afirmando que o primeiro é admitido no segundo quando este,
esteticamente, caiba “dentro do estojo museológico das suítes nacionalistas”, mas não quando
este apresentar uma forma invasiva na “vida cultural, pondo em xeque a própria concepção de
arte do intelectual erudito” (apud Tatit, 2004, p. 39).
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Contudo, a era do rádio possibilitou que os sambistas pudessem registrar os seus
versos, buscando apresentar uma música que fosse aceita pelo público. Esta canção valorizava
a voz, em primeiro lugar, e apresentava como acompanhamento o violão, piano, instrumentos
de sopro e a batucada; esta última foi diminuindo em conseqüência dos poucos recursos
sonoros da época. Estes trabalhos eram apresentados em festas, teatro, carnaval, rádio e praças
públicas.
Por outro lado, nomes como Francisco Mignone, Luciano Gallet, Lourenzo
Fernandez e Camargo Guarnieri, percorriam uma trajetória oposta das canções que surgiam
nas ruas. As canções no início do século XX afastaram-se da música erudita. Sobre este fato,
Tatit (2004) conclui:
pode-se dizer que quanto mais se firmava o mercado da canção como representante
maior do universo popular brasileiro, durante as décadas de vinte, trinta, quarenta e
ainda início dos anos cinqüenta, mais a música erudita mostrava-se alheia a essa
tradição. Isso decorria bem menos da prevenção ou preconceito de seus autores do
que de uma dificuldade legítima em reconhecer na sonoridade da canção, sobretudo
da canção desse período, um pensamento verdadeiramente musical (p. 41).
1.2. A canção popular no século XX
No século XX, a canção emergiu na forma que é conhecida hoje em dia. Seu
surgimento foi alcançando espaço no cotidiano das pessoas, apresentando assuntos
corriqueiros que serviam como expressão daquela sociedade e registro para as gerações
futuras. A característica principal desta forma musical é a sua expansão através dos meios de
comunicação, alcançando as mais variadas classes sociais, proporcionando unir a música à
porção da fala que era produzida e reproduzida na cultura brasileira.
A letra desta canção adquire uma nova perspectiva, diferente das poesias e líricas.
Esta surge para se entrelaçar com a melodia, valorizando a intenção do compositor. Com o
registro desta canção, o recurso de improvisação, que antes exigia tanta concentração do
executante para recordar a composição, foi facilitado para que esta música atingisse vários
setores da população.
Como em uma simbiose, tanto as mudanças sócio-culturais como as composições
das canções, influenciaram-se mutuamente. Afirmar como este processo ocorreu de modo
determinista é arriscado. Porém, sabe-se, que no decorrer das décadas subseqüentes, muitas
mudanças foram acontecendo historicamente e musicalmente.
19
1.2.1. A Canção na Década de 1910-1920
As canções no início do século XX alcançaram a faixa popular através do
surgimento dos meios de comunicação. O rádio, no início da década, foi o recurso que mais
apresentou livremente os versos das canções, o movimento rítmico – que também era
expresso pela dança – e o discurso amoroso.
Em 1917, através do gramofone, o samba “Pelo Telefone” (de autoria duvidosa,
porém registrada por Donga e Mauro de Almeida) foi lançado. Neste período, o jazz
incorporou-se ao swing nos Estados Unidos da América. Anos mais tarde, em 1920, Baiano
grava a marcha “Isto é Bom”. Neste ínterim, Sinhô apresenta uma nova roupagem aos versos
das canções, substituindo o “compromisso poético pelo compromisso com a própria melodia,
ou seja, o importante passou a ser adequação entre o que era dito e a maneira de dizer” (ibid,
p. 71).
Como apresentado anteriormente, o samba, outrora improvisado nas rodas dos
negros, mestiços e com a participação de brancos, torna-se um estilo musical proeminente. A
era do rádio possibilitou que os versos fixados na memória popular fossem registrados,
passando do anonimato para a situação de autoria, ou seja, os que registravam tornavam-se
autores da canção.
Este estilo musical apresentava característica própria, admitindo em seus versos
conteúdos que beiravam o cotidiano, a malandragem, a ociosidade e a boemia. Paralelamente
ao samba, o choro, advindo do século XIX, estende-se do período das revistas de teatro à era
do disco e do rádio. Entretanto, o século XX oferece à classe média uma música para divertir,
conduzindo a uma realidade social diferente, onde as famílias permaneciam recolhidas em
suas casas (Tinhorão, 1997).
Conforme Tinhorão (1998), a Primeira Guerra Mundial e a propagação do cinema
mudo consolidaram uma nova era capitalista industrial; o choro fica escasso, enquanto o
samba, pouco a pouco, se consolida.
A nova realidade da indústria discográfica fortalece o aparecimento de outros
gêneros. As canções sertanejas, folclóricas e regionais favorecem a consolidação dos músicos,
onde o rádio apresenta ampla audiência no final da década de 1920. O Carnaval se fortalece
determinando a produção do período. Entre os principais representantes, incluem-se Marcelo
Tupinambá, Patápio Silva, Sinhô, Donga, Pixinguinha, Zequinha de Abreu, Catulo da Paixão
Cearense, Jararaca e Ratinho.
20
1.2.2. A Canção na Década de 1930-1940
A década de 1930 foi marcante para a consolidação da canção e do cancionista
brasileiro. Com a propagação do rádio como meio de comunicação, a música popular se
afirma preenchendo os espaços da sociedade.
O samba evolui apresentando novos modelos e estilos. Na busca de uma canção
que expressasse o cotidiano, o samba se expande adequando-se ao carnaval através do samba
carnavalesco, ao romantismo das canções com o samba-canção e na forma sua forma própria
“samba-samba”. O carnaval consolida-se e, no Rio de Janeiro, surge à primeira escola de
samba propagando o samba-enredo. Estes fatores, unidos à difusão do rádio, possibilitam a
consolidação do samba como canção popular genuinamente brasileira: “aquelas novas
canções, preparadas para o sucesso nas revistas, no carnaval e no rádio, representavam o que
havia de mais genuíno na tradição popular brasileira” (Tatit, 2004, p. 147).
Outras categorias de canções que se consolidam são a marchinha e a seresta. A
primeira fixa-se no carnaval de salão, apresentando versos que satirizavam os acontecimentos
da época. A segunda consolida-se nas manifestações amorosas.
Destacar nomes neste período seria censurável. Porém, ousaremos citar três
nomes por apresentarem em suas obras características que foram escolhidas para
demonstração. Noel Rosa registra, da linguagem coloquial, detalhes da vida carioca,
apresentando espontaneidade e elaboração nas composições, além de dedicar várias “letras ao
tema do ‘orgulho em ser sambista’, o que constituía um signo de altivez e de total segurança
com relação ao poder de sedução da nova linguagem”. Ary Barroso mescla patriotismo com o
trabalho, porém não deixa de compor temas cotidianos. Contudo, sentia desgosto por não ser
reconhecido pelos povos colonizadores (ibid., p: 75). Lamartine Babo, com lirismo, apresenta
em suas marchinhas temas do cotidiano da cidade.
As letras das canções, neste período, eram compostas espontaneamente, porém,
em análise, Tatit (2004) revela características singulares que emergiram nos anos trinta e são
praticadas na atualidade. Dentre elas, estão o eu lírico, a malandragem, o romantismo, a
traição, o embevecido, o folião, a celebração das uniões, aquisições e plenitude, o abandono, o
passado, saudade e lembrança, o futuro, esperança e projetos, a perda ou falta do objeto, o tom
de recado, desafio, saudação, ironia, lamentação, revelação, a orgia, amor, o trabalho e a vida
regrada, as dúvidas, ironias, hesitações. Estes e outros temas apresentavam um povo boêmio
de valores pouco ortodoxo (p. 75-78).
21
No nordeste, popularizam-se ritmos como baião e xaxado, advindos do folclore
baiano. Nomes como Luiz Gonzaga e Dorival Caymmi exaltam a seca, o sertão, o mar da
Bahia, o pescador, o candomblé. Lupicínio Rodrigues, do Sul, revela sentimentalismo e
intimismo urbano.
1.2.3. A Canção na Década de 1950
A música começa a se expandir nas diversas classes sociais. Nos meios de
comunicação a televisão floresce e o rádio se incube de promover fama aos artistas, a Rádio
Nacional é um marco nesta época.
A cultura de massa começa a se ampliar e se estabilizar no Brasil. Os fãs de
auditório são responsáveis por esta expansão, principalmente no Rio de Janeiro onde a música
tem proeminência. As cantoras Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Marlene e Emilinha Borba
são nomes de sucesso entre a população.
Em 1955 o panorama musical modifica. A partir do sucesso do bolero e do tango
no Brasil a industria fonográfica, visando atingir o público que reverenciava a passionalidade
nas canções, encomenda dos compositores maior produção do samba-canção, sendo que este
se apresenta como uma versão brasileira dos gêneros hispano-americanos. Esta movimentação
afastou o público jovem e com a influência cool jazz o cenário nacional musical se transforma
apresentando uma posição mais estética na música popular brasileira. Dick Farney, Lúcio
Alves, Johnny Alf, Tom Jobim são os nomes que começam a ingressar na música popular,
contudo são descendentes de uma musicalidade mais erudita, tais fatos contribuem para que
haja uma nova forma de pensar sobre a canção popular, prenunciando a Bossa Nova como
estilo musical (ibid.).
Contudo, o samba-canção, nos anos cinqüenta, sobrepõe-se de tal modo, que se
torna o estilo central do período. Se não fora Luiz Gonzaga com o baião nordestino poderia se
afirmar que estas canções passionais foram as dominantes nesta década. Entretanto, o
consumo desta música foi diminuindo, principalmente na classe média, mais instruída e que
formalizava a população forte das metrópoles.
Em meados de 1958, com a influência do jazz nos instrumentais brasileiros, com o
acréscimo de movimentos de síncopa no ritmo do samba e com o movimento político
modernista de Juscelino Kubitschek, os jovens da classe média do Rio de Janeiro celebram o
nascimento da Bossa Nova. “Foi o primeiro movimento com núcleo na música popular que se
22
espraiou por vários setores da sociedade brasileira (do estético ao político), fundando um
novo modo de ser” (ibid., p. 79).
João Gilberto e Tom Jobim são os nomes de destaque deste movimento
empregando, na música brasileira, um toque jazzístico com acordes dissonantes e melodias
que fugiam das tão famosas seqüências de tríades conhecidas.
1.2.4. A Canção na Década de 1960
Advindo dos samba-canções, boleros e baladas românticas, na década de sessenta
manifesta-se um rock and roll baseado em versões de canções americanas ou inglesas que são
cantadas por Celly e Tony Campelo, Ronnie Cord, entre outros artistas. A Bossa Nova
apresenta uma música intelectualizada que conquista o público jovem. Como dito
anteriormente, este estilo foi marcado por influências literárias e eruditas, além de apresentar
uma harmonia complexa com acordes dissonantes, letras construtivas. Os cantores apresentam
um estilo de cantar leve e timbre característico com influência nas músicas americanas e no
jazz. Estes fatores contribuem para que este estilo repercuta nacionalmente e
internacionalmente.
A Bossa Nova neutraliza as técnicas do samba-canção, desfazendo o efeito da
batucada e eliminando o tempo forte das batidas do violão. O canto passou a se movimentar
de acordo com os contornos melódicos e da síncopa rítmica. Abriu possibilidades de
participação da elite brasileira na figura de Tom Jobim.
Em 1962, Tom Jobim e João Gilberto passam a residir nos Estados Unidos da
América. Outros integrantes do movimento permaneceram no Brasil propagando o estilo
durante os primeiros anos da década. Contudo, em 1964, o golpe militar e o fechamento
parcial do regime político possibilitam o aparecimento de uma identidade de esquerda no
cenário político nacional. Este fato se fortalece com o show Opinião pensado e organizado por
Nara Leão, Piedade, Zé Kéti e o maranhense João do Vale. O pensamento esquerdista foi
prefigurado na ação estudantil (CPCs da UNE) e com apoio do teatro e cinema. O assunto
protesto foi prefigurado nas figuras do Ruy Guerra, Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Sidney Miller,
Gilberto Gil (na primeira fase) e Geraldo Vandré, onde apresentam temas como a reforma
agrária e a promessa da felicidade popular.
A abertura desta nova realidade política e social pontua a justiça social,
desigualdade e liberdade possibilitando que a formação desta música de protesto gere o início
23
da Música Popular Brasileira, com a sigla MBP. O samba e a música regional voltam a brilhar
no panorama nacional.
Nos anos de 1965 a 1969, a MPB universitária é fortalecida pelos festivais
musicais, que se apresentam como agentes de rápidas transformações de posições. Os jovens
músicos oferecem uma canção mais regionalista, rural, baseada na toada, moda de viola, frevo
e marcha-rancho.
No programa Fino da Bossa, da TV Record, apresentado pela cantora Elis Regina,
explode o movimento da MPB, trazendo para São Paulo vários compositores de diversos
lugares do país. Este programa possibilita a explosão de Elis Regina como cantora,
apresentando canções de protesto e samba autêntico através das vozes das personalidades Jair
Rodrigues, Chico Buarque e Caetano Veloso, estes últimos apresentam uma canção mais
lírica, anunciando-se como grandes poetas da canção.
Dos praticantes do iê-iê-iê – influenciados por conjuntos estrangeiros –, surge o
programa Jovem Guarda, dirigido por Roberto Carlos, e com característica de se despirem de
qualquer veiculação de ordem social ou política. Esta nova canção é rodeada de acordes
perfeitos produzidos em guitarras elétricas apresentando o rock e a música para dançar.
Roberto Carlos e Erasmo Carlos produziram canções que, de certa forma, eram consideradas
alienadas na época por falar de amor e estilo de vida diferente da realidade política e social
que o povo brasileiro estava inserido. Neste ínterim, as gravadoras estavam interessadas em
fortalecer o mercado de discos do país envolvendo outros produtos comerciais repetindo uma
realidade que já estava implantada nos Estados Unidos da América.
Em 1967, no contexto musical e sócio-político que o país se encontrava, surge o
movimento tropicalista. Este faz um corte na cultura brasileira que perfazia um choque de
diretrizes opostas. Alguns nomes destacam-se neste cenário, são eles: Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Torquato Neto e Capinam, Rogério Duprat e Nara Leão.
Estes propagam uma música popular brasileira que veio a influenciar toda uma geração. A
prática da música chamada vanguarda possibilita que se reflita sobre o papel da música na
sociedade contemporânea.
O resultado mais expressivo do tropicalismo como movimento musical foi a
libertação estética e ideológica dos autores, intérpretes, arranjadores e produtores do
universo da canção, o que acabou por influir em quase todas as áreas artísticas
brasileiras (...) Nunca mais houve restrições que interferissem nas escolhas dos
instrumentos e repertórios, nas atitudes de palco, na configuração temática ou
construtiva das letras, nos arranjos, nas misturas de estilos, e, sobretudo, na
assimilação da música estrangeira. Sobre isso, aliás, somente o tropicalismo
24
conseguiu de fato explicitar o óbvio: a música estrangeira, em graus diversos é parte
integrante da música brasileira (ibid., p. 59-60).
1.2.5. A Canção na Década de 1970
Na década de 1970, a Música Popular Brasileira (MPB) caracterizou-se como
busca de uma nova canção que “expressasse o Brasil como projeto de nação idealizado por
uma cultura política influenciada pela ideologia nacional popular e pelo ciclo de
desenvolvimento industrial, impulsionado a partir dos anos 50” (Napolitano, 2002: p. 1).
Neste período, a canção obteve um papel de destaque, sendo reconhecida por um
público próprio, em uma realidade consumista que surgiu no início da década. Estas canções
na música popular brasileira adquiriram uma identidade própria e elementos musicais
diversos. Outra característica era a presença de uma ideologia nacionalista e, como dito
anteriormente, a cultura de consumo; criando uma imagem de “‘modernidade’, ‘liberdade’,
‘justiça social’” (ibid., p: 3).
A platéia, para este tipo de canção, era constituída por jovens da classe média, que
foram influenciados por compositores também desta categoria. A MPB refletia a sociedade e
política da época que era submetida ao Regime Militar.
Politicamente, o país estava vivendo um regime opressor, onde os compositores
de protesto da época eram exilados e afastado do panorama musical, fato que já havia sido
institucionalizado na década anterior e influenciado o início da década de setenta. Em meados
de 1972, Caetano Veloso e Gilberto Gil, outrora exilados, retornam para o Brasil quando o
panorama do consumo musical do país havia se modificado, caracterizando, para os
compositores, uma nova realidade. Estes músicos apresentam uma nova roupagem,
destacando-se na MPB. A música era personalizada pela “troca de mensagens e a formação de
valores, onde a palavra, mesmo sob forte coerção, conseguia circular” (ibid., p. 3). Neste ano
também se encerram os festivais televisivos, que fora iniciado em 1965.
A sigla MPB remete a uma música socialmente valorizada, sobrevivendo à crítica
musical. Em 1975, com a abertura política, modifica circunstancialmente a circulação do
produto musical no país. Porém, nos anos anteriores, a recessão musical é evidente e vários
discos e LPs são criticados e fracassados. Este fato demonstra, dramaticamente, o “poder da
censura sobre o mercado musical” (ibid., p. 6).
25
A indústria cultural, visando modificar a realidade que assolava o panorama
musical do país, apresenta uma nova leva de compositores, entre eles, cita-se Aldir Blanc,
Ruy Maurity, Luiz Gonzaga Júnior e Ivan Lins.
No programa Som Livre Exportação da Rede Globo, nota-se a defasagem na
indústria musical e a tentativa de modificar a crise que a MPB estava passando. Porém, nos
anos subseqüentes, a realidade vai aos poucos modificando. Alguns LPs são marcantes no
cenário musical, tais como “Água de Março” de Elis Regina e Tom Jobim; e, Chico e Caetano
Juntos e Ao Vivo, e o surgimento de cantores nordestinos: Fagner, Alceu Valença, Belchior,
Ednardo e Raul Seixas. Outros nomes de proeminência são João Bosco e Ney Matogrosso.
Estes novos compositores trazem elementos da sua cultura mesclados com o rock. Estas
estruturas sintetizam-se com o baião, samba ou choro. Instrumentos como guitarra elétrica,
cavaquinhos ou tamborins são difundidos, culminando nos trios elétricos da Bahia. Sá e
Guarabira fundem a viola sertaneja aos instrumentos eletrônicos, no chamado rock rural.
O repertório de sucesso deste período permeava entre o lirismo e a temática
romântica. Tatit (2004), aprofundando sobre este assunto, afirma que
mesmo a tradição do rock brasileiro, que permanecia nas guitarras de Raul Seixas ou
Rita Lee, enveredava com freqüência pelo “brega” (“Gita”) ou pelo sensual
romântico (“Mania de Você”, “Doce Vampiro”). O mesmo acontecia com Tim Maia
ou Jorge Ben Jor que, entretanto, mantinham a maioria de seus funks voltados para a
dança. A exploração das discotecas, como lugares próprios para essa atividade, ao
mesmo tempo atraía a atenção dos compositores (como Caetano e Gilberto Gil) e
liberava-os para a produção em outro segmento (p. 63).
A expressão tendências edifica-se em meados de 1972 a 1975. Este termo foi
utilizado para “rotular experiências musicais que recusava o mainstream do samba-bossa nova
e não aderiram completamente ao pop sem, no entanto, recusá-lo” (op.cit., p. 8). Duas
tendências eclodiram como sendo as mais conhecidas: os mineiros – chamados Clube da
Esquina –; e os nordestinos.
Em 1973, a carreira de Fagner e João Bosco se impulsionaram. Eles tornaram-se
figuras importantes para o mercado da MPB e o público consumidor. Entretanto, em 1975,
Chico Buarque, Milton Nascimento, Ivan Lins são os nomes comerciais da Música Popular
Brasileira. As cantoras Elis Regina, Gal Costa, Maria Bethânia, são as vozes femininas
consolidadas no final da década.
Com a abertura comercial, a MPB mostra seu caráter expressivo e de repolitização
da sociedade brasileira. “O consumo cultural, sobretudo o consumo musical, articulava
26
atitudes, re-significava experiências, mantinha a palavra circulando, inicialmente de uma
forma cifrada, que foi se tornando mais explícita no final da década” (ibid., p. 10).
Em 1978, a Música Popular Brasileira afirma-se como “setor mais dinâmico da
indústria fonográfica brasileira”, ampliando os horizontes nas várias camadas sociais (ibid., p.
11).
1.2.6. A Canção na Década de 1980-1990
A sonoridade, nas duas últimas décadas do século XX, é marcada pela influência
norte-americana nos investimentos fonográficos, inicialmente exportando suas produções para
o país e investindo nas empresas multinacionais de gravação e difusão. Esta realidade
modificou a produção de discos do Brasil, considerando até a futura extinção de uma
produção musical brasileira.
Enquanto os Estados Unidos se gabava do sucesso nos investimentos das suas
grandes empresas, surgem, nas capitais nacionais, grupos de rock com características simples,
mas de grande eficácia comercial. As gravadoras aproveitaram este renascimento do rock,
onde lucraram com a difusão deste novo estilo nas emissoras FM do país. Este fato entra em
contraponto à produção internacional do rock, funk e reggae.
Arrigo Barnabé destaca-se entre os compositores da “vanguarda paulista”. Sua
obra mescla elementos da música erudita contemporânea atonal, dodecafônica, regularidade
rítmica e estrutura cancional com refrãos e temas recorrentes, tomando como empréstimo da
linguagem do cinema, da televisão ou das histórias em quadrinhos, os recursos narrativos.
Destarte, há uma abertura para uma música com características satíricas e humoristas. Ainda,
promove uma fusão da MPB com elementos importados dos ritmos extraídos do rock, reggae
e funk, abordando o panorama marginal cotidiano. Todo este desenrolar promulga as canções
de Djavan com um estilo requintado, João Bosco e Alceu Valença.
A canção-rock brasileira efetiva-se na safra dos anos oitenta com a Banda Blitz,
principalmente no lançamento da canção “Você não Soube me Amar”. Recorre então a
“tendência à tematização, ou seja, às canções aceleradas, centralizadas no refrão e repletas de
recorrências melódicas, numa linha de clara reabilitação da dança e dos estímulos corporais
no centro da canção-pop” (Tatit, 2004, p. 62-63). Desta tendência surgem vários grupos
musicais: a já citada Banda Blitz, Ultraje a Rigor, Rádio Táxi, Barão Vermelho – “com um
canto-falado de Cazuza” –, Paralamas do Sucesso – “com uma música rítmica, assimilando
gêneros do Caribe” –, Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, Titãs – “motes lançados em
27
forma de palavras de ordem” –, Legião Urbana – “com extensas narrativas contadas por
Renato Russo” –, Engenheiros do Hawaii, RPM, Sepultura, Chiclete com Banana. (ibid, p.
63). Estes grupos musicais apegados a características musicais rítmicas cada vez mais
volumosas e densas, nacionalizaram o rock. Os relevantes compositores desta figuração são
Cazuza e Lobão, enquanto dos intérpretes de sucesso, cita-se Tetê Espíndola, Marisa Monte e
Elba Ramalho.
As faixas AM das rádios brasileiras começam a promover canções populares no
meio rural, promovendo uma canção mais sentimental. Aos poucos, estes compositores de
pouco poder aquisitivo começam a ocupar espaço nas faixas FM. Esta canção regionalista,
denominada sertaneja, se populariza tornando-se um sucesso nacional. Tatit (2004) reconhece
que esta canção por muito tempo foi denominada brega, porém admite a necessidade de rever
este termo na atualidade. Sabe-se que esta comunidade denominada brega foi muito
importante na composição da música tipicamente brasileira e ocupou espaço na mídia por
longos anos. O rock tornou-se escasso durante esta ascensão da música sertaneja, voltando,
com sucesso, no final do século passado.
Alencar discutindo sobre o surgimento da canção regionalista e seu cruzamento
com os movimentos históricos do país, denomina a música regionalista como sendo
a produção de compositores contemporâneos, que, tendo origem social na classe
média, e em geral, formação universitária, buscam no mundo rural sua fonte de
inspiração, preservando elementos da cultura musical tradicional e incorporando
novos paradigmas introduzidos com a MPB nos anos 60. Esses compositores já
foram chamados de novos caipiras, neo caipiras, sertanejos, chics e nós preferimos
caipiras ilustrados (s/ data: p. 4).
É importante ressaltar que esta autora entra em divergência com Tatit na
afirmação de que estes compositores são provindos de uma classe média e de formação
universitária. Sabe-se que há uma dissensão de pensamento, pois alguns representantes da
música sertaneja foram pessoas que tiveram uma vida dura e escassa, como por exemplo, os
representantes deste estilo Zezé Di Camargo e Luciano4. Contudo, outros representantes são
advindos da realidade citada por Alencar.
Mesmo com a modificação do cenário musical nacional pela propagação das
diversas duplas sertanejas, algumas forças não deixaram desaparecer o rock, entre ela, os
Paralamas do Sucesso, Sandra de Sá, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil e Tim Maia. Segundo Tatit
4
A fonte para tal afirmação está baseada no retrato biográfico destes dois cantores, apresentado no filme “Os
Dois Filhos de Francisco”.
28
(2004), o quadro musical volta a reequilibrar-se com o estabelecimento dos grupos regionais
de percussão. Entre eles, estão o Olodum e o Timbalada que possibilitaram a afirmação
comercial da música axé.
O universo musical é invadido por grupos de axé como “É o Tchan!” que faz
sucesso com a canção que leva o nome do grupo e apresenta dançarinos, vistos antes apenas
nos clipes norte-americanos. Da fusão entre o sertanejo e o axé surge o pagode, representante
da antiga tradição do samba. Estes gêneros dominam o mercado das gravações dos anos
noventa e mudam a sonoridade da canção, apresentando outros ritmos e canções que brotaram
do carnaval, do canto caipira, do samba e do rock.
A Bossa Nova foi propagadora da realidade comercial que adquiriu expansão no
final do século XX. As produções nacionais tomaram proporções astronômicas, surgindo em
toda parte do país novos estilos e novas maneiras de fazer o musical. As canções brasileiras
tornam-se variadas, apresentando amores e desamores, a realidade social, política, a ironia, as
traições, paixões, a boemia, entre muitas outras temáticas do universo da música popular. Esta
realidade nacional alcançou outras terras, fazendo-se conhecer através da sua cultura e da sua
música.
1.3. A Importância do Cultural, das Canções, da História em Musicoterapia
Em musicoterapia, conhecer o universo da canção, seu surgimento e
estabelecimento no panorama musical nacional é de suma importância.
Na prática clínica, o cliente não apenas reproduz a canção, mas apropria-se dela,
ou seja, a canção passa a ter um significado próprio quando é recriada. Esta não é confundida
com a gravação original, mas apresenta uma nova forma, reproduzida instantaneamente pelo
indivíduo ou grupo, tornando-se única. Considerando uma terapia voltada para o indivíduo,
pode-se refletir o quanto isto é importante e os conteúdos que emergem nas canções são
passiveis de elaboração e tem grande relevância. Sendo assim, a cultura em que o indivíduo
está inserido é importante e deve ser considerada.
Sobre música e cultura, Even Ruud (1990) afirma que a definição de música vai
depender dos valores culturais inerentes à linguagem, isto porque é difícil definir o que é
realidade, sendo que a realidade histórica da população está implícita no sistema social, e por
conseqüência, cultural. “Nesse caminho, ao afirmarmos ‘música é emoção’, ‘essa música é
29
triste’, ‘música são ondas sonoras’ etc., estamos impondo a crença em nossa posição, em
relação a temas básicos de nossa cultura” (p. 86).
O mesmo autor, ao afirmar que a definição de música está intimamente ligada à
cultura do indivíduo, possibilita a afirmação de que a música é um elemento da cultura. Neste
pressuposto, é possível assegurar que a música evolui com a cultura e, conseqüentemente,
influencia a visão do homem através do tempo.
Na Musicoterapia o aspecto cultural é de extrema importância. Vários estudos
vêm sendo realizados sobre o assunto e tem-se chegado à conclusão de que a cultura deve ser
compatível à vivência sonora do indivíduo – isto é, terapeutizar através da vivência cultural
do indivíduo, encontrando uma linguagem musical cultural que seja igual à linguagem
musical do cliente – princípio de ISO.
Benenzon (1985), no seu livro “Manual de Musicoterapia”, define ISO como
identidade sonora, ou seja, a noção da existência de um som que caracteriza cada indivíduo
(ISO = igual). Este som acompanha o ser humano desde período o intra-uterino até o final da
vida, considerando toda a sua vivência sonora.
O ISO Cultural considera que o indivíduo e seu grupo fazem parte de uma
identidade sonora própria, que corresponde à cultura compartilhada (Barcellos, vol 1).
O ISO Gestáltico é a identidade sonora que identifica o indivíduo, ou seja, todas
as vivências sonoro-musicais que constituíram a vida do cliente a quem se pretende ter
relação terapêutica. Ao se pensar na canção, pode-se afirmar que no ISO Gestáltico estão
registradas todas as canções que fizeram parte da história de vida sonora do indivíduo e que o
constitui musicalmente.
O ISO Universal considera que cada indivíduo possui uma característica sonora
própria, individual, independente da cultura, da sociedade e da história vivenciada (op cit).
Notavelmente o ISO assume posições diferentes: primeiro, em relação ao
indivíduo por si próprio – cada ser apresenta características sonoras própria, independentes da
sua cultura; e segundo, a cultura que influencia o indivíduo – a cultura possui papel
fundamental na identidade sonora de cada pessoa, influenciando todos os aspectos sonoros.
O musicoterapeuta também faz parte da cultura em que vive e este atuará também
como elemento da cultura. Ambos, musicoterapeuta e paciente, terão um mesmo elemento
para utilizar – música e cultura. Para tanto, é necessária uma observação mais profunda
quanto à qualidade que o princípio de ISO proporciona em relação às práticas musicoterápicas
e em relação ao individuo como integrante de uma cultura.
30
CAPÍTULO II – A CANÇÃO NA MUSICOTERAPIA
A Musicoterapia é uma forma de terapia que procura tratar, prevenir e reabilitar
diversas patologias. Utiliza, como elemento fundamental e mobilizador, a música e todos os
seus aspectos biopsicossociais. O indivíduo, quando apresenta aspectos internos e/ou externos
que interrompem ou desestruturam seu processo de vida, pode utilizar a linguagem musical
que, além de ser estruturada, auxilia na (re)construção da vida diária, como dito
anteriormente. A constatação da utilização da música, enquanto elemento e agente de cultura,
é de extrema importância no contexto terapêutico.
A música em Musicoterapia é usada de forma compatível com a cultura do
individuo, seja abrindo os canais de expressão/comunicação através do processo não-verbal
e/ou ampliando os canais de percepção. Essa estratégia objetiva prevenir, reabilitar, readaptar
o indivíduo biopsicossocialmente, promovendo a sua saúde através do “canal som-músicaemoção” (Tourinho, 2002).
Na música, lida-se com sons, silêncios, temporalidades, gestos e movimentos que
abrangem toda uma disposição de signos, além dos principais elementos que a fundamentam
– ritmo, melodia e harmonia. Esses elementos unem-se em ações que envolvem perceber,
escutar, executar, criar e re-criar, potencializando as capacidades expressiva, integradora e
comunicacional inerentes à música.
Em congruência com a escuta e o fazer musical – regime próprio de signos –, a
canção é uma forma que se apresenta como um importante veículo de comunicação. A
comunicação através da canção adquire sentido na prática clínica musicoterápica quando o
musicoterapeuta está sintonizado às necessidades e condições do paciente. Nesse caso, o
canto somente terá significado na relação, no fazer musical, isto é, nas ações recursivas:
paciente – música – musicoterapeuta; musicoterapeuta – música – paciente.
Destarte, a canção é utilizada em Musicoterapia como terapia auto-expressiva,
visando, principalmente, a comunicação e a integração do indivíduo com ele mesmo e com o
outro, além de ser facilitadora no estabelecimento do vínculo terapêutico: “o poder da canção
vem da dupla realidade gerada pela linguagem verbal e pela música (...)” (Queiroz, 2003, p.
84).
Nesta vertente, Millecco (2001) diz que “cantando, criamos ordenações no
espaço/tempo, projetamo-nos combinando notas, expressando o que sentimos e o que
sabemos sobre o sentimento humano” (p. 11).
31
A canção, dentre as várias formas musicais, é utilizada em Musicoterapia de
diversas maneiras, seja através da audição musical em uma experiência receptiva, no executar
re-criativo ou no ato de compor. A improvisação musical livre ou dirigida aparece,
principalmente, como técnica propulsora para a emergência da canção. Retomaremos este
tema posteriormente, apresentando como este processo ocorre na musicoterapia.
Millecco (2001), em sua obra É Preciso Cantar, afirma que a canção está inserida
na vida do homem desde o seu nascimento até sua morte, além de ser um veículo de
estruturação do ser:
o canto é um elemento estruturante para o ser humano, quer em sua história
filogenética, colaborando na construção da cultura, fazendo parte do universo
simbólico de todas as culturas, quer em sua história ontogenética, graças à qual, cada
indivíduo, ao nascer, utiliza vocalizações para iniciar o intercâmbio com o mundo
(p. 109).
2.1. Canção e Comunicação
A relação da música com a linguagem verbal ou não-verbal e a sua utilização
como meio de comunicação no setting musicoterápico é um assunto amplo e que suscita
muitos questionamentos. À medida que fomos tecendo as idéias iniciais para este trabalho,
percebemos a variação de pensamentos em relação à música e linguagem. A canção, neste
ínterim, é apresentada de forma mais cautelosa. A partir de alguns apontamentos de diferentes
autores sobre a junção da poesia com a música, como sendo unificadoras da canção e, ainda, a
relação inerente de estruturas da linguagem verbal e a música para este fim, revelaram-se
outros questionamentos a serem pensados. Portanto, buscamos apresentar de maneira sucinta
e não politizada a diversidade de pensamentos sobre o tema.
Primeiramente, é necessário apresentar a ocorrência fisiológica da linguagem
verbal e da música nos hemisférios cerebrais, para que se entenda como são processados na
mente humana. O cérebro humano é dividido em dois hemisférios: direito e esquerdo. O
segundo processa as informações de modo seqüencial, enquanto o primeiro as processam de
modo simultâneo. Partindo desses estudos científicos, Queiroz (2003) afirma que a linguagem
verbal é processada no hemisfério cerebral esquerdo; enquanto, para a “musicalidade”, não há
um hemisfério cerebral definido, justamente pela complexidade musical que apresenta
elementos que são processados em hemisférios cerebrais distintos. Esta variação é
concretizada mediante o treinamento musical que a pessoa teve no decorrer da vida (p. 27).
32
O autor, ainda, aprofunda o tema, discorrendo que a musicalidade não
corresponde a uma região cerebral oposta à da linguagem verbal, mas que ela apresenta um
outro tipo de processamento “integrador e global (...), estimulando a plasticidade cortical e
utilizando-se dela em maior medida do que o processamento verbal”. Sendo assim, conclui
que existem similitudes entre a linguagem verbal e a música, estas corroboram para que a
música seja reconhecida como uma outra “linguagem”. Estes pontos de afinidade entre o
verbal e o musical, conforme o autor, são de grande importância “na utilização da canção, isto
é, de música e texto”, pois auxiliam no tratamento de clientes “com dificuldades para
estabelecer comunicação” (ibid., p. 28 e 30).
Muggiati oferece outra roupagem ao discurso, assegurando que a canção surge da
inter-relação da palavra e a música. Durante o ato sonoro, o ouvinte, mesmo que não fixe
atenção na letra da canção, em primeira instância, o faz através do inconsciente que registra a
mensagem do compositor. No aspecto fisiológico e perceptivo, o conteúdo verbal encaminhase ao lóbulo temporal esquerdo, enquanto o conteúdo sonoro encaminha-se para o lóbulo
temporal direito. Sendo assim, para o autor, a apreciação do som e a percepção e análise das
palavras coexistem em áreas cerebrais específicas (apud Millecco, 2001, p. 81).
Nesta vertente, Millecco (2001) garante que tal dissociação nem sempre é
uniformizada. Afirma que, durante o ato sonoro, as pessoas podem dissociar a melodia da
letra de maneira diversa. Há os que enfatizam auditivamente a letra e os que, de maneira
contrária, enfatizam a melodia. No entanto, há ainda os que percebem letra e melodia
simultaneamente. Neste caso, os hemisférios cerebral direito e esquerdo funcionam em
consonância.
Outros apontamentos sugerem uma relação entre a música e aspectos da
linguagem verbal e não-verbal. Eco estabelece analogias entre a música e a linguagem verbal,
levando em consideração a forma organizacional e estrutural da música. Parte do princípio de
que a linguagem verbal utiliza as estruturas simples e complexas da palavra para estabelecer
um código (apud Costa, 1989). Em contrapartida, Costa (1989) inclui o sistema simples e
complexo da comunicação verbal às regras musicais, relacionando-o às combinações de
timbres, intervalos e duração na música, na formação das complexas estruturas: ritmos,
melodias e harmonias. A autora declara que todo este conjunto constitui o “discurso musical”
(p. 63).
Além disso, Watzlawick apresenta a linguagem verbal em duas vertentes:
comunicação digital e analógica. A primeira abrange o significado das palavras e suas
formações dentro da estrutura sintática da linguagem. A segunda abarca todo o tipo de
33
comunicação não-verbal. Conclui que “‘a inflexão de voz, seqüência, ritmo e cadência das
próprias palavras’ podem ser interpretados como ‘a música da fala’” (apud Costa, 1989, p.
63).
Não obstante, Clarice Moura Costa, sob o ponto de vista da linguagem musical,
valoriza a qualidade auto-expressiva da música afirmando que
a linguagem musical possui uma “sintaxe” própria e, sob o ângulo “semântico”,
comunica significados através de conotações, cuja peculiaridade reside no fato de o
“musicante” não estar ligado ao par denotativo, como ocorre na linguagem verbal.
Do ponto de vista da pragmática, a linguagem musical apresenta muito maior
riqueza do que o aspecto analógico da linguagem verbal, por admitir a verticalidade,
enquanto a “música da fala” é apenas horizontal, com muito menos recurso
expressivo (ibid., p. 71).
Partindo das idéias de Roman Jakobson sobre a “Teoria das Funções da
Linguagem”, Brandalise (1998) compara os tipos de comunicação humana – verbal e nãoverbal – afirmando que há semelhanças em relação à linguagem musical. A música e seus
elementos de estruturação podem ser relacionados ao código, pois nela estão inerentes os
símbolos que se unem para formar a mensagem. O emissor, neste caso, é aquele que envia a
mensagem sonora (paciente ou cliente) e o receptor quem a recebe (musicoterapeuta e/ou
integrantes do grupo). E, ainda, pode-se acrescentar os canais condutores da mensagem, que
nesta ocorrência seriam os instrumentos musicais e a voz. O referente, neste caso, não possui
na linguagem não-verbal uma significação pré-determinada. O autor assegura que “todos os
fatores que sustentam a comunicação verbal podem ser perfeitamente associados aos
elementos sonoros, e conseqüentemente à prática da musicoterapia” (p. 43).
Caminhando para outras direções, muitos autores crêem que relacionar a música e
a linguagem verbal é um campo perigoso, pois ressaltam que a música está relacionada com a
memória e as experiências individuais de cada pessoa e não com a forma concreta desta
linguagem (Verdeau-Pailles, apud Barcellos e Santos, 1996).
Neste ínterim, Queiroz (2003) defende que relacionar a
música como uma “linguagem não-verbal” é distorcê-la, tornando-a o que ela não é;
é o esforço da linguagem verbal em adulterá-la para, assim, mantê-la sob seus
enquadramentos e custódia; é conceder a ela um palco próprio para exercer suas
características, mas montado sob as ordens e estruturas típicas do verbal – e não do
musical! “A música, porém, não é uma espécie de linguagem” (p, 43).
34
Dentro da variedade de pensamentos supracitados sobre o tema comunicação,
música e Musicoterapia, escolhemos relacionar a forma comunicacional da canção com a
recursividade das ações coordenadas por acreditar na importância das relações entre
musicoterapeuta, música e cliente(s) em Musicoterapia. Partindo do pressuposto de que a
canção apresenta sentido próprio para cada pessoa, pode-se afirmar que é no processo e na
relação que a palavra cantada constrói seu significado.
Tocantins (2002) discute este assunto partindo do questionamento: “como e o quê
a música comunica num setting musicoterápico?”. O autor, com base no pensamento de
Maturana, demonstra uma nova idéia sobre o domínio da linguagem relacionando-a aos
comportamentos aprendidos: “há uma categoria especial que diz respeito a uma coordenação
de coordenação de ações, ou seja, a coordenação consensual de comportamentos de
coordenações consensuais de comportamentos” (p. 44). Este pensamento parte da “Biologia
do Conhecer” que relaciona a linguagem como um modo de viver junto a uma relação de
coordenação consensual de coordenações consensuais de comportamentos, isto é, todas as
ações humanas, práticas ou teóricas partem do domínio das coordenações consensuais de
ações.
Maturana (2001) comenta que, quando existe conotação em relação à linguagem,
há uma operação desta e, portanto, uma coordenação de ação, ou seja, ao se questionar, por
exemplo, sobre a linguagem das aves e assegurar que o sujeito conhece esta linguagem, podese afirmar que há uma interação entre os participantes e nesta interação faz-se coordenar uma
ação através das interações recorrentes.
A recorrência fundamenta-se através do consenso entre duas pessoas através da
permissão mútua de ações, isto é, se o individuo aceita as condições do outro, este está
coordenando uma ação, delimitando um final e/ou resultado de uma conversa.
As coordenações consensuais de comportamentos resultam da convivência, e não
haveriam se produzido se não houvesse produzido essa história de convivência.
Então, se eu digo isso, a linguagem, o operar na linguagem, consiste em operar em
coordenações consensuais de condutas de coordenações consensuais de condutas.
Há uma recursão. Já a palavra recursão faz referência à aplicação de uma operação
sobre o resultado da aplicação de uma operação (ibid., p. 72).
A recursividade assume sentido quando uma coordenação de ação é consensual,
ou seja, parte da premissa de que nenhum comportamento isolado – gesto, movimento, som e
postura corporal – por si só é parte da linguagem, mas está inserida no fluir das coordenações
consensuais de coordenações consensuais de ação. Exemplificando, partindo do pressuposto
35
de que é necessária uma história para que haja uma ação coordenada, poder-se-ia dizer que a
canção assume significado mediante a história do indivíduo, isto é, quando este estilo musical
considera a recursividade e as ações coordenadas – o recriar/refazer musical.
Tocantins (2002) aprofunda o assunto apresentando um exemplo prático de como
estas ações ocorrem em Musicoterapia:
quando um paciente toca aleatoriamente e o terapeuta o acompanha produzindo um
pulso, e aos poucos, o paciente começa a introjetar o pulso musical e consegue
acompanhar o pulso do terapeuta, há uma coordenação de ações no fazer musical: o
paciente coordena seu fazer musical com o do terapeuta através de um processo de
fusão no pulso musical. Mas, para isso, o paciente deve desejar coordenar suas ações
com o terapeuta (p. 44).
Na prática clínica musicoterápica, o “fazer musical” do musicoterapeuta deve
estar em sintonia com as necessidades e condições do paciente para que haja comunicação.
Em Musicoterapia, a linguagem musical acontecerá à medida que houver um diálogo musical,
ou seja, viver e experimentar musicalmente. Neste caso, a produção musical somente terá
significado na relação, no fazer musical, nas coordenações de coordenações de ações.
Sobre esta ação, Costa (1989) ressalta que mesmo que não haja intenção em se
comunicar, seja individualmente ou em grupo, a simples prática de ouvir a produção do outro
será um mecanismo de percepção, possibilitando a formação de um único espaço sonoro onde
todos participam, seja passiva ou ativamente. “A ação individual, isolada, torna-se então uma
‘ação com’, ou seja, começa a estabelecer-se uma relação com o ‘outro’, através do ‘fazer
música’” (p. 80).
A música, então, será provedora do estabelecimento de relações entre
musicoterapeuta, cliente e/ou grupo. Mesmo que a ação de tocar ou de cantar seja ansiogênica
para o cliente, este estará se comunicando com o outro. Quando esta produção é aceita
emergindo o prazer de tocar, forma-se “o binômio musicoterápico – ação/relação”. Ao
perceber que este prazer é advindo de um “objeto existente fora de si mesmo”, o indivíduo se
coloca “como agente, como sujeito da ação”, possibilitando uma expressão e exploração rica
do recurso musical (ibid., p 80 e 85).
Considerando a capacidade comunicacional da canção em Musicoterapia,
afirmamos que o seu surgimento pode ser distinto e que ela pode ser utilizada de diversas
maneiras na prática terapêutica. A união da música e da palavra apresenta-se como um
recurso auto-expressivo, abrindo possibilidades para que o cliente expresse o seu ser/estar no
36
mundo. Sendo assim, a canção pode surgir via experiências musicais, tanto como iniciativa do
paciente como do musicoterapeuta. Do musicoterapeuta, a canção pode surgir como
acolhimento, como âncora, como recurso desencadeante, auto-expressão, comunicação de
idéias e sentimentos, estimulação, orientação, interação e exploração. Através da expressão do
paciente a canção pode surgir como auto-expressão, comunicação de idéias e sentimentos,
adaptação, orientação, interação, exploração, estimulação, percepção, organização, recepção e
projeção.
2.2. A Utilização da Canção no Setting Musicoterápico
Queiroz (2003) apresenta, de forma inusitada, a ligação da linguagem verbal e a
música na formação da canção. Estas duas formas de comunicação, quando se unem num ato
de expressar um conteúdo, proporcionam significados característicos, ou ainda, “dois modos
distintos de ‘carregar significado’ uma obra artística ou um gesto musicoterápico” (p. 83).
O autor afirma, ainda, que a palavra está relacionada à ação, ao objeto e sujeito;
enquanto as notas musicais os unifica numa dimensão mais profunda e dinâmica. Estas duas
vertentes, trabalhando em conjunto, possibilitam a unicidade das pessoas ou objetos de modo
mais pessoal do que as músicas instrumentais. “Cantar para meu filho ou para outra pessoa
querida é dissolver as separações que existem, colocando-nos sob o mesmo campo de forças –
com todas as perturbações ou encantos que isso possa trazer” (ibid., p. 85).
A canção é revestida de potencialidade quando une as qualidades existentes na
música e na linguagem verbal, ou seja, ao sopesar a palavra investida de questões e a música
como potencializadora de auto-expressão, conclui-se que esta união dinamiza a relação entre
seres e – em uma visão mais profunda – a relação terapêutica.
A linguagem verbal é alcatifada de significados quando primeiramente o objeto é
projetado na imaginação visual; em segundo lugar, quando a linguagem é correlacionada
emocionalmente por intermédio da música, do som e do ritmo da fala; e, finalmente, quando
se produz “ambos os efeitos estimulando as associações (intelectuais ou emocionais) que
permaneceram na consciência do receptor em relação às palavras ou grupos de palavras
efetivamente empregados” (ibid.).
Em Musicoterapia, a canção é um veículo auto-expressivo utilizado pelo cliente
quando o mesmo necessita de um caminho que facilite a emersão e a liberação dos conteúdos
internos, “o cliente recorre à música composta por outras pessoas (‘artistas’) para expressar os
seus próprios sentimentos” (Millecco, 2001, p. 92-93). Neste caso, o individuo toma para si a
37
utilização de um código secreto (grifo nosso) para enviar a sua mensagem ao outro. Mailhiot
(1977) ressalta que o código secreto é utilizado apenas quando a mensagem é destinada, “em
termos inteligíveis, somente pelos receptores de posse da chave que lhes permita decifrar o
significado” (p. 78).
No setting musicoterápico, leva-se em consideração o vínculo terapêutico, onde o
emissor e o receptor interagem dentro de um código, neste caso, a canção. O musicoterapeuta
é o responsável por verificar as funções do canto no momento do processo, ou seja, a função
clarificadora e a função integradora; e, ainda, poderá participar de uma maneira ativa no
momento da função suporte para a entrega.
Chagas ressalta que a função clarificadora mobiliza emocionalmente o cliente,
possibilitando a exposição de conteúdos internos profundos; a função integradora possibilita
que o cliente entre em contato com o self (grifo nosso) durante o encerramento de uma sessão
musicoterápica, isto é, o musicoterapeuta sugere ao cliente que ele cante uma canção no
momento do fechamento da sessão; a função suporte para entrega é quando o terapeuta canta
criando um campo de organização para o cliente (apud Millecco, 2001).
Em relação à expressão desses conteúdos internos, através do surgimento
cancional na Musicoterapia, o cliente escolhe livremente as canções e estas emergem
espontaneamente. O que significa que esta ação está ligada ao “processo psíquico que se
desenvolve no momento na mente do paciente”. O musicoterapeuta, então, através da
linguagem cultural da música pode compreender o que está sendo comunicado pelo individuo
na tentativa de “esclarecer ou interpretar sua comunicação” (Costa, 1989, p.80, 81).
O processo musicoterápico ocorre quando o indivíduo forja “uma imagem da
realidade do mundo que o cerca e da existência do qual ele é informado, que seja coerente
com sua própria estrutura”. Sendo assim, como dito anteriormente, o cliente apropria-se da
“linguagem” do outro para dizer de si mesmo, ou seja, há uma adequação da realidade
exterior à sua própria estrutura (ibid., p. 81).
O cliente ao apropriar-se da linguagem cancional pode dar vazão ao surgimento
de ações complexas do inconsciente. Dentre essas, pode-se citar o “canto falho” que,
relacionado ao ato falho5 da psicanálise, ocorre em determinadas situações “falhas” (grifo
nosso) no ato de cantar. Millecco (2001) explica esta ação através da co-relação entre música
e psicanálise, afirmando que as canções, surgidas em um processo de associação livres do
5
Ato falho é a “formação de compromisso entre a intenção consciente do indivíduo e o recalcado (...), o desejo
inconsciente desencadeante da falha, torna-se manifesto, inteligível” (Millecco, 2001: p. 95). É quando o
38
pensamento, podem facilitar a emersão de conteúdos latentes no inconsciente, ou seja,
ocorrem lapsos durante o canto. Estes “equívocos” (grifo nosso) podem ocorrer quando o
cliente confunde letras e melodias de canções, esquece palavras, trechos, melodias ou
harmonias, ou ainda, quando o mesmo recorda-se apenas de fragmentos da música.
Conforme o autor, estes tipos de lapsos revelam um duplo movimento: “por um
lado, tentativa de mascaramento defensivo, principalmente nos casos de esquecimento” e, em
contrapartida, “uma falha na repressão de algum pensamento ou desejo inconsciente, mas
notável nos casos de troca de palavras da letra, ou da lembrança insistente de algum
fragmento de canção”. Essas ações falhas ou lapsas, muitas vezes, no processo
musicoterápico, apontam questões significativas da vida do indivíduo, sentimentos ou
conteúdos bloqueados (ibid., p. 96).
Nesta perspectiva, a canção pode surgir de diversas formas e em diferentes
momentos no decorrer de um processo musicoterápico. Para tanto, o musicoterapeuta pode
tomar posse de quatro distintas experiências musicais em Musicoterapia que utilizam a canção
de forma singular. Destarte, pretendemos apresentar sucintamente como a canção pode ser
configurada no setting musicoterápico. Partiremos apresentando a partir de Keneth Bruscia
(2000), a relação entre as experiências musicais e canção e, em seguida, apresentaremos
outros autores – Brandalise, Cirigliano, Schapira, Brito e Barcellos – que formularam
pressupostos sobre a utilização da canção em Musicoterapia.
2.2.1. Canção na Re-criação Musical
Comumente, em Musicoterapia, pensar em canção é relacioná-la à experiência
musicoterápica da re-criação musical. Nos pontos anteriores, apresentou-se a importância
deste re-criar, do “fazer musical” para que haja um processo de auto-expressão. Portanto, esta
recursividade possibilita entendimento e adaptação aos sentimentos e idéias do outro, sem
deixar de preservar a própria identidade e trabalhar objetivos comuns (Bruscia 2000).
O ato de re-criar possibilita que o cliente se expresse de modo mais confortável.
Esta ação se dá no aprendizado ou execução de músicas através da voz, utilizando ou não
instrumentos musicais, e através da reprodução musical, seja individualmente, em grupo, em
público, diante de uma platéia ou em uma representação. No setting musicoterápico, conforme
os objetivos terapêuticos traçados pelo musicoterapeuta, o cliente pode: cantar com ou sem
inconsciente “mostra que deseja dizer algo mais, que deseja que este algo mais seja reconhecido” (Perdizes,
1995: p. 22).
39
acompanhamento instrumental, ou seja, o musicoterapeuta ou o próprio cliente pode
acompanhar instrumentalmente a sua produção vocal e/ou do grupo; cantar uma canção
escolhida por ele ou pelos membros do grupo, sozinho ou com o próprio grupo; aprender
novas canções ou apresentar essas canções diante do grupo ou de uma platéia; e, ainda,
representar a canção de forma lúdica ou teatral.
Das variações desta experiência, através da dissertação de mestrado com título
“Coro Terapêutico – Um Olhar do Musicoterapeuta para o Idoso no Novo Milênio”, de Zanini
(2002), será apresentado exemplos práticos de como estas foram utilizadas no processo
musicoterápico.
A autora, inicialmente, apresenta o Coro Terapêutico como uma atividade
desenvolvida por um musicoterapeuta visando auto-expressão, auto-realização, subjetividade,
existencialidade e autoconfiança do ser, proporcionando diferentes expectativas de futuro. Em
segundo plano, discorreu-se que o grupo formado por idosas utilizou a experiência musical da
re-criação musical vocal no repertório das “sessões/aulas”, onde o grupo pôde sugerir músicas
para o repertório, aprendendo e recordando estas músicas.
Outra variante foi a produção musical deste grupo através da apresentação em
uma formatura. Para esta, as clientes escolheram o repertório e decidiram o uniforme que
seria usado. A musicoterapeuta assumiu o papel de terapeuta e condutora do grupo, propondo
idéias, ouvindo opiniões, acatando e dando idéias objetivando traçar objetivos comuns e
planejando o futuro a partir da realidade presente. Vale ressaltar que nas variações
apresentadas por Bruscia, a condução pode também partir do cliente que não precisa saber
regência, mas conduz o grupo musical através de gestos criados.
Finalmente, com o objetivo de estimular as relações interpessoais grupais foram
utilizados Jogos Musicais através de um Jogo de Memória Musical com o objetivo de
interação, percepção, propiciando resgate da memória e respeito entre os colegas. O jogo
consistia em escolher palavras contidas em canções promovendo, assim, um jogo de memória.
Terapeuticamente foi importante para que as integrantes do grupo se sentissem encorajadas a
cantar e a se recordar das palavras escolhidas, possibilitando uma expressão importante para o
grupo.
2.2.2. Canção na Improvisação Musical
Na literatura encontra-se muito sobre a relação dos instrumentos musicais,
convencionais ou não-convencionais, com a experiência da improvisação musical. Porém,
40
partindo do pressuposto de que a voz humana é um instrumento musical (tal como o corpo,
através dos sons corporais), pode-se então verificar como este recurso de produção relaciona a
improvisação musical com a canção.
Como atividade projetiva, a improvisação musical abarca “toda ejecución musical
instantánea producida por un individuo o grupo” (Gainza, 1983, p. 11), ou seja, é uma
atividade que promove liberdade de execução do cliente em uma situação de espontaneidade
onde o indivíduo instintivamente alcança um alto grau de consciência mental.
Esta experiência musical possibilita o “fazer musical” do cliente através da
execução, seja no ato de cantar ou tocar. Em relação à canção, o cliente projeta os conteúdos
internos através da criação de uma melodia, de um ritmo, de trechos ou peça musical
improvisada. Nesta perspectiva o cliente pode estabelecer contato com o seu mundo interno
sonoro expressando totalmente, potencializando uma linguagem que se inicia nas primeiras
experiências vocais infantis (ibid.).
Chagas (2001) ressalta que o cantar uma canção na prática clínica é denominada
re-criação em detrimento da performance ou do simples executar uma música, porque este ato
abrange o aspecto improvisacional da utilização da canção. No processo terapêutico, o
indivíduo não canta simplesmente uma canção, “mas se apropria dela”, ou seja, durante o ato
de cantar o sujeito toma para si a canção, tornando-a passível de improvisos. Este ato de
improvisar é o mesmo de recriar, fazer de novo, cantar com sua própria voz, seu mundo
interno, apresentando um novo caráter para canção, expondo seus sentimentos e emoções.
Esta canção, quando utilizada como atividade projetiva, isto é, partindo da improvisação
musical, recriada pelo indivíduo ou grupo de modo instantâneo, “não é possível de ser
repetida, é única. Não se confunde com a sua gravação oficial. Não objetiva a qualidade
técnica ou estética” (p. 122).
Para a autora “a canção popular torna-se viva, re-criada, improvisada tanto pelo
cliente como pela musicalidade clínica do musicoterapeuta, que irá perceber novos sentidos e
novas possibilidades de encaminhamentos musicais na conhecida canção popular” (ibid).
Refletindo sobre o recurso projetivo da improvisação musical livre ou dirigida,
pode-se afirmar que esta aparece como técnica propulsora para a emergência da canção.
Brandalise (1998), apresentando a estrutura da sessão da Carta de Canções, afirma que o
material musical pode ocorrer tanto advindo dos integrantes do grupo (através da
improvisação musical livre, utilizando os instrumentos musicais convencionais ou nãoconvencionais)
ou
pelos
musicoterapeutas
(através
da
improvisação
musical
dirigida/orientada, também através dos instrumentos musicais). “Estas improvisações são
41
chamadas de ‘pontes de condução’ por conduzirem à primeira escolha de canção”. O objetivo
é de que o cliente realize a ação mais livremente possível e de que esta canção surja de modo
espontâneo, facilitando interação aprofundada entre o sujeito e a canção, promoção de
autonomia e organização interna (p. 48).
Sobre esta emergência de canção durante a improvisação musical, Zanini (1999),
ao relatar um caso clínico grupal com dependentes químicos alcoolistas, cita uma sessão onde
se observa a utilização dos instrumentos musicais promovendo o surgimento de canções e a
improvisação vocal do musicoterapeuta possibilitando a improvisação vocal do cliente. A
sessão iniciou-se com o manejo da gaita por um dos clientes que logo a troca pelo metalofone
improvisando a seguinte célula rítmica:
♫ q ♫ q
Com a repetição desta célula rítmica o cliente começa a cantar a canção Jingle
Bells. Nesse ínterim, a musicoterapeuta começa a vocalizar a ação dos clientes e apontar os
instrumentos que cada um estava tocando. Um dos clientes, percebendo a improvisação da
musicoterapeuta, completa a frase rimando “metalofone” com “estou com fome”. Estes dois
exemplos, supracitados, demonstram como a improvisação, seja ela instrumental, vocal e/ou
corporal, permite projetivamente a emergência da canção.
2.2.3. Canção na Composição Musical
As canções assumem um papel de grande relevância na experiência da
composição musical, pois, a partir desta o musicoterapeuta tem a possibilidade de dar suporte
ao cliente para que ele escreva canções, ou seja, a melodia, a letra, ou a criação de qualquer
produto musical relacionado à canção. A função do terapeuta é auxiliar os aspectos mais
técnicos do processo, possibilitando ao cliente utilizar sua capacidade criadora mediante os
seus conhecimentos musicais. Este poderá compor melodias tendo por base um instrumento
ou produzir uma letra de canção. Portanto, tanto em uma como em outra, funcionalmente, o
terapeuta estará dando suporte para o cliente, seja fazendo um acompanhamento harmônico,
ou criando uma melodia (Bruscia 2000).
Vieira (2002) exemplifica a utilização desta experiência em um caso clínico em
que uma paciente do sexo feminino, casada, esposa de médico e portadora de Alzheimer,
apresenta-se desorientada e perdida nas primeiras sessões, com a memória bastante
42
comprometida. A autora relata uma sessão onde é proposto à cliente compor uma música.
Inicialmente, a cliente diz não conseguir, mas logo sugere como título a palavra “Amor”. A
musicoterapeuta começa a improvisar uma melodia ao piano e a cliente canta:
Um carinho de um amor faz a gente muito feliz, a felicidade é tão grande,
É o meu coração quem diz e o amor tem muito valor (3 vezes).
Um carinho com amor, faz a gente muito feliz, a felicidade é tão grande,
É o meu coração quem diz e o amor tem muito valor (3 x).
Logo após a execução, a paciente diz que ficou bonito e que havia gostado. O fato
marcante desta sessão foi que, logo após o seu término, a paciente falou sorridente para o
marido que havia composto uma canção, sendo que geralmente não se lembrava do que havia
feito há segundos atrás. Em outra sessão, a musicoterapeuta propõe novamente uma
composição onde emerge a seguinte frase: minha vida é uma folha de papel.
Nas variações desta experiência há, ainda, a paródia de canção, onde o cliente
substitui palavras, frases ou letras de uma canção existente, mantendo a melodia e
acompanhamento original. É importante ressaltar que esta técnica exige que haja alguma
forma de gravação, seja em K7, filmagem ou cópia da canção em partitura para que esta se
estabeleça como composição musical.
2.2.4. Canção na Audição Musical
Das experiências musicais apresentadas por Bruscia (2000), a audição musical
pode ser considerada a mais complexa, por sua infinidade de variações. O autor denomina
esta técnica como receptiva, porque o cliente ouve música e pode responder à experiência
silenciosamente, verbalmente ou através de outros recursos (como, por exemplo,
improvisando musicalmente, desenhando, escrevendo, entre outros). A clientela beneficiada
por esta técnica poderá desenvolver habilidades de atenção e de receptividade, podendo
responder de forma analítica, projetiva, física, emocional e espiritual à música.
Vieira (2002) apresenta um relato de caso clínico com um idoso, de 64 anos,
diagnosticado com demência de Alzheimer que, após os procedimentos musicoterápicos
iniciais, utilizou, a partir da escuta musical, a reminiscência com canções, objetivando a
emergência de lembrança e eventos de sua vida. Na primeira sessão, a musicoterapeuta,
através da audição musical, colocou um hino evangélico, no qual o cliente cantou alguns
43
trechos da música, relatando, ao final, ter gostado da sessão. Com o desenrolar do processo
musicoterápico houve mudanças no cliente. Através de relatos familiares, foi possível saber
que ele estava mais calmo e mais receptivo a audições musicais.
Outras variações desta experiência abarcam6:
a) o relaxamento musical visando diminuição da ansiedade, do stress e da tensão. Esta
experiência pode ser utilizada no período de aquecimento e/ou encerramento das sessões
musicoterápicas, no ambiente hospitalar, na área de Recursos Humanos, entre outros;
b) a escuta meditativa objetiva a meditação de uma idéia particular;
c) a escuta para estimulação objetiva estimular os sentidos, atenção, estabelecer contato com o
ambiente, elevar o humor, aumentar o nível de energia; como, por exemplo, utilizar uma
canção para estimular a dança. A área de Reabilitação Motora utiliza esta experiência visando
melhora dos movimentos;
d) a escuta perceptiva visa melhorar a percepção e a atenção;
e) a escuta para ação e escuta contingente objetivam, sucessivamente, modificar e reforçar
mudanças comportamentais. Os portadores de Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade podem ser premiados com esta variação, visando uma melhora
comportamental;
f) a escuta mediativa é utilizada na mediação do aprendizado e memorização de informações.
Na área educacional esta variação pode ser utilizada na estratégia do aprendizado das partes
do corpo, dos números, do alfabeto, entre outros;
g) atividade de apreciação musical visa apreciação da estrutura, estilo, significado histórico e
valor estético da música;
h) a regressão (musical) com canções promove re-experenciar o passado, como se o cliente
estivesse no passado;
i) as lembranças (musicais) induzidas com canções são utilizadas quando, de forma
conscientemente induzida, o terapeuta pergunta ao cliente que canção vem à sua mente com
referência a um ponto, uma questão ou evento particular do processo terapêutico em
andamento. Quando, de forma inconscientemente induzida, uma canção surge espontânea e
inesperadamente na mente do cliente ou do terapeuta como resposta a um ponto, questão ou
evento em particular;
6
No livro “Definindo Musicoterapia”, Bruscia (2000) apresenta diversas variações da experiência receptiva.
Para este trabalho foram escolhidas algumas variações que, conforme experiência da autora deste trabalho, foram
utilizadas em atendimentos musicoterápicos. É importante salientar que todos os exemplos apresentados nas
variações citadas são de prática clínica do período de estágio (ano 2004/5), ou através de exemplos transcritos
44
j) comunicação (musical) com canções, o cliente escolhe canção gravada que expresse ou
revele algo sobre si mesmo e que seja pertinente à terapia. Esta canção também pode ser
selecionada pelo terapeuta. Em seguida, ocorre exploração sobre o significado do assunto para
o cliente;
l) discussão de canções, a canção é utilizada como recurso de discussão de questões de
relevância terapêutica;
m) na escuta projetiva, o cliente é solicitado para identificar, descrever ou fazer associação
livre com a música por meios verbais ou não-verbais;
n) desenho projetivo com a música, o cliente desenha enquanto ouve música ou canções.
Dentro desta experiência pode haver algumas variações como: pintura, recortes, montagem de
peças, colagem, construção de instrumentos, entre outros;
o) a escuta imagística utiliza a escuta musical para evocar e apoiar processos imagísticos;
p) auto-escuta, o cliente ouve uma improvisação, apresentação ou composição para refletir
sobre si e sobre a experiência.
2.2.5. A Canção como Âncora
Na relação terapêutica, vários processos podem emergir, tais como a transferência,
contratransferência, resistência, entre outros. A contratransferência é denominada como o
processo que parte do terapeuta em relação ao cliente, isto é, quando ocorrem situações na
relação terapêutica que o desestrutura e/ou o mobiliza. Nesta conjetura, a musicoterapeuta
Márcia Cirigliano, enquanto realizava o seu Mestrado em Musicoterapia na Temple University
– USA (1996), começou a se perguntar como se sentia o musicoterapeuta frente a
comportamentos específicos do seu paciente. Este questionamento possibilitou a abertura de
discussão sobre a canção, partindo de uma visão psicanalítica, como âncora terapêutica.
Inicialmente, visando esclarecer o significado da canção como âncora terapêutica,
a autora define sendo:
uma canção trazida pelo musicoterapeuta no contexto do atendimento. É passível de
ocorrência,
mediante
alguma
circunstância
do
paciente
que,
contratransferencialmente, mobilize o musicoterapeuta. A canção surge, sem que
este se aperceba conscientemente, em situações clínicas nas quais, movido pela
contratransferência, o musicoterapeuta se depara com dificuldades para interagir
com o seu cliente. A canção-âncora auxilia o musicoterapeuta a sair do estado
em literatura ou, ainda, de experiências citadas em sala de aula por professores e alunos do curso de
Musicoterapia.
45
“paralisado” em que se encontra dando prosseguimento à sessão. Posteriormente,
possibilita ao profissional, mediante reflexão, utilizá-la como um recurso que o
instrumentaliza buscar interação, quando exposto a situações musicoterápicas de
impasse (Cirigliano, 2004, p. 39).
Este pressuposto iniciou-se a partir da sensibilidade particular que a autora
assumia em relação à canção, principalmente por acreditar no seu recurso auto-expressivo.
Trabalhando com crianças com comportamento autista, começou a perceber que, em
determinadas ocasiões, de modo inconsciente, “cantava um trecho de acalanto e/ou alguma
canção infantil, à medida que improvisava melodicamente” (id., 1998: p. 34). Esta ação lhe
chamou a atenção, motivando o seu estudo.
O sujeito da pesquisa tinha quatro anos de idade e apresentava comportamento
autista. No primeiro ano de atendimento musicoterápico, apresentava flutuações de humor:
chorava e atirava os instrumentos musicais a esmo. Suas atitudes de comportamento
diminuíam quando interagia com a musicoterapeuta nas improvisações musicais vocais e
instrumentais. Em algumas ocasiões, a autora percebeu que seu canto servia como acalanto
para o acalmar e estimular; contudo, observou que muitas vezes, o seu cantar manifestava-se
contratransferencialmente, para “lidar com a ansiedade que o choro dele provocava em mim”
(ibid., p. 36).
Sobre a canção de ninar, Chumaceiro considera as cantigas de ninar como sendo
cantos facilitadores na separação da relação mãe-bebê. Não obstante, no contexto da terapia,
os acalantos podem ser nomeados como “transicionais-transferenciais”. Se estas canções são
trazidas pelo musicoterapeuta, são chamadas de “canções contratransferenciais”. Continua sua
exposição apresentando que as canções que surgem inconscientemente podem ser
“significativas e reveladoras de diversas questões contratransferenciais” (apud Cirigliano,
1998, p. 36).
Dos fatos que surgiram durante sua pesquisa, o propósito da investigação foi
dividido em duas vertentes: como se comunicava com a criança e o que acontecia enquanto
cantava e improvisava musicalmente? Desses questionamentos, a autora agrupou as canções
em seis categorias, que abarcavam, de maneira geral, a percepção e o sentimento ante a reação
da criança e o que isso provocava nela. Esta metodologia possibilitou o questionamento sobre
os processos contratransferenciais nos seguintes tópicos: “gostaria de ajudá-lo/ sinto-me
ansiosa/ não sei como intervir/ percebo-me impotente frente à situação” (ibid., p. 37).
O foco principal da pesquisa era a letra. Buscava relacionar o momento da sessão
com o que a canção trazia. Procurava explicar suas mudanças de atitudes e a equivalência nas
46
letras das canções. “Sem dúvida um árduo trabalho de ‘associação livre’ em Musicoterapia”.
(ibid., p. 38).
Nos resultados, percebeu-se que a função da canção era possibilitar com que a
sessão recuperasse o movimento, permitindo respostas da criança e maior presença do “eu”
como terapeuta.
Das conclusões apresentadas pela autora, acredita-se que a canção-âncora
funciona como o próprio acalanto do musicoterapeuta, no sentido de permitir maior segurança
às situações conflitantes. Esta canção possibilita relaxamento, auxiliando para que o
musicoterapeuta esteja mais aberto para receber o cliente. E, ainda, funciona como “âncora
terapêutica pessoal, sem significar ameaça, nem qualquer efeito nocivo ao paciente”. Essas
canções facilitam o processo comunicacional em terapia. “A imagem da âncora traz
justamente a idéia de alcançar o paciente, musicalmente, onde quer que ele esteja” (ibid., p.
39).
2.2.6. A Canção Desencadeante
Conforme Barcellos (1999), as etapas do processo musicoterápico deveriam
seguir os seguintes critérios: entrevista inicial; ficha musicoterápica; estudo biográfico;
testificação musical; contrato terapêutico; objetivos terapêuticos; sessões musicoterápicas;
observações das sessões; relatório progressivo; e, alta. Destes, a ficha musicoterápica é uma
etapa exclusivamente musicoterápica, e objetiva colher dados da história sonora do cliente, ou
seja, todo e qualquer tipo de som ou música que faz e/ou fez parte da vida do individuo desde
a vida intra-uterina.
Contudo, a realidade social do Brasil e as dificuldades de acesso a informações
nas instituições públicas e/ou áreas sociais não possibilita que o musicoterapeuta tenha acesso
aos dados que são necessários para o início dos atendimentos musicoterápicos. Esta realidade
é apresentada por Brito (2001), que discute o perfil das instituições psiquiátricas brasileiras
onde encontra-se dificuldade no acesso a dados importantes da história sonora do individuo.
Tal situação poderia ser conflitante para o musicoterapeuta, porém Brito (2001)
afirma que a solução é utilizar uma canção que possa “impactar seu paciente”. O autor revela
que, na área psiquiátrica, tem-se percebido que a música popular é um recurso que possibilita
entrar em contato com o paciente, permitindo sua auto-expressão. Considerando-se o fácil
acesso da música popular nas diferentes camadas sociais, o musicoterapeuta pode fazer uso de
47
uma canção de sucesso para estimular a auto-expressão do paciente, “desencadeando um
processo ativo” (p. 95).
Para que a canção possa impactar o cliente é necessário uma cautela na escolha do
repertório. Preferencialmente é aconselhado que se escolham canções que fizeram parte da
história sonora do indivíduo quando ele era adolescente, pois “durante esta fase da vida, as
pessoas apresentam uma capacidade maior de se identificar com canções, uma vez que estas
podem traduzir seus momentos, suas reflexões e suas realidades, todas vivenciadas de
maneira inédita e marcante” (ibid.).
Brito (2001) denomina canção desencadeante àquela que será utilizada pelo
musicoterapeuta como um recurso facilitador ao processo, quando não se têm informações
sobre a história sonora do individuo, para que se entre em contato com o paciente e o mesmo
não tenha algum “tipo de estranheza cultural e/ou musical” (p. 96). Esta canção permite que o
paciente possa se expressar livremente e “serve de estímulo para que novos conteúdos e
informações advenham dessa expressão, além de possibilitar ao paciente, provavelmente, a
sensação do musicoterapeuta estar em consonância com seu universo sonoro” (p. 97).
2.2.7. A Canção na Abordagem Músico Centrado (Approch Brandalise – Carta de
Canções)
Brandalise (1998), em experiência clínica com adolescentes autistas com
características heterogêneas, apresentou uma proposta utilizando a canção como “estratégia
terapêutica contendo estruturas externas claras vindo a auxiliar o ‘interno’ desorganizado
destes indivíduos” (p.41). Sendo assim, criou o método “approach Brandalise de
musicoterapia (Carta de Canções)” (p. 42).
Segundo o autor, o approach Brandalise
busca a aquisição de níveis cada vez mais aprofundados de comunicação, e
conseqüentemente, níveis mais aprofundados de relação, segurança e confiança,
implicando um curso de tratamento que visa facilitar atualizações do self dos
indivíduos submetidos ao processo (ibid.).
Esta proposta apresenta uma estrutura importante na organização de algumas
patologias. Conforme o autor, dependendo do nível de comprometimento dos indivíduos, o
auxílio externo facilita a expressão para que estes possam entender a razão de estar no setting
terapêutico que, neste caso, é totalmente diferente para esta clientela.
48
Sendo assim, partindo do princípio de como a música poderia facilitar o trabalho
com estes indivíduos, a canção foi percebida como facilitadora do processo terapêutico, pois a
conexão indivíduo-canção pôde ser “responsável pelo estímulo à comunicação e à
transformação das ‘condições’ daqueles indivíduos” (ibid., p. 42-43).
Esta proposta objetiva a aquisição de uma estrutura externa de modo claro e
compreensível para que as interações sejam repetidas quando desejadas, ou seja, a canção,
neste caso, não é utilizada como recurso terapêutico, mas como a própria terapia. As questões
terapêuticas são mais bem exploradas através da interação com a canção.
Pensando sobre música e comunicação, como já dissemos anteriormente,
Brandalise (1998) encontrando semelhanças no sistema comunicacional da linguagem verbal
com a linguagem não-verbal, relaciona-os afirmando que vários elementos inerentes à
primeira são encontrados na segunda, tais como: código, referente, mensagem, canal, emissor
e receptor. E, ainda, propõe que estes fatores sustentadores da comunicação verbal podem se
manifestar de forma mais contundente na canção podendo ser de fundamental importância no
contexto musicoterápico.
O autor apresenta esta relação, partindo do princípio de que o vínculo é
estabelecido através do sonoro-musical do cliente. Portanto, a comunicação entre
musicoterapeuta e paciente será estabelecida quando os tempos mental e musical do paciente
se coincidirem. Sendo assim, o primeiro nível de musicalidade expresso pelo individuo é
definido por Brandalise como “ISo Gestáltico manifesto”7.
Realizando uma ligação entre o processo de comunicação da música, o
estabelecimento de vínculo realizado através destes sons que caracterizam o indivíduo e
levando em consideração a desordem de comunicação que determinadas clientelas possuem,
pode-se afirmar que “no momento em que a forma musical canção é utilizada como base de
interação, estes indivíduos iniciam um novo processo no que diz respeito a suas capacidades
de estabelecerem comunicação”, ou seja, estes indivíduos conseguem se re-organizar “através
do preenchimento dos ‘pontos de indeterminação’ oferecidos pela canção, ou seja, resignificando o material recebido”. Os clientes passam a “ser” e “estar” na e com a canção
(ibid., p. 45).
Destarte, a canção é definida como a “terceira entidade” no setting musicoterápico
que, através da sua argentária estrutura, é responsável pelas mudanças das condições dos
indivíduos (ibid., p. 46). Esta intervenção terapêutica visa estimular o paciente/emissor a se
7
O autor cita Benenzon que determina ISo Gestáltico como sendo a “noção da existência de um som ou de
fenômenos sonoros que nos caracteriza” (apud Brandalise, 1998, p. 44).
49
relacionar com a canção escolhida objetivando sua estruturação e, conseqüentemente, sua
organização comunicacional. A canção funciona como ponte de ligação com os
receptores/terapeutas (e outros integrantes do grupo) que procuraram encorajá-lo para a
realização de um autoconhecimento mais profundo. Brandalise admite que a repetição da
interpretação da canção a modifica, o que possibilita reflexões sobre as modificações do
cliente no processo musicoterápico.
Nesta proposta da Carta de Canções, a improvisação tem um papel fundamental
como “ponte de condução”, ou seja, elas são responsáveis por conduzirem os clientes na
escolha da canção. A funcionabilidade da canção é agir como “elemento externo estimulando
diversas formas de expressões pessoais visando suas transformações/modificações através de
improvisação ao longo do processo” (ibid., p. 50).
Os objetivos do Approach são: “o favorecimento da interação aprofundada entre
indivíduo e canção no processo terapêutico quando a canção é parte relevante no mesmo”;
“promoção de uma maior autonomia daqueles indivíduos que possuem déficit comunicacional
e desorganização interna”; “facilitar a construção de uma forma alternativa de comunicação
para aqueles com severos déficits de fala” (ibid., p. 49).
2.2.8. A Canção no Método Plurimodal
O Método Plurimodal é um método musicoterápico que vem sendo desenvolvido
e aplicado desde a década de 1990. É fundamentado em conceitos criado e pensado por
musicoterapeutas que integram o programa ADIM (Assistência, Desenvolvimento e
Investigação em Musicoterapia), porém, admitem em seu corpo teórico diferente teorias de
outros musicoterapeutas, que são sintetizadas e entrelaçadas ao método.
Hugo e Schapira (2004) denominam que o método está constituído por duas
dimensões – teórica e prática, admitindo, como centro de atuação, o paciente.
Os autores, partindo dos pilares da Musicoterapia – teoria do sujeito, teoria
musicoterápica e lógicas de intervenção –, centralizam o pensamento para fazer uma sucinta
referência ao Método Plurimodal. Nesta conjetura, afirmam que o método comparte,
principalmente, com o Modelo de Musicoterapia Analítica, gerado por Mary Priestley, cujo
sustento está baseado na teoria do sujeito.
Como dito anteriormente, vários pensamentos foram importantes na formação do
Método Plurimodal e estas fusões possibilitaram que o método fosse delineado nos seguintes
fundamentos teóricos: a) noção do inconsciente; b) considera que todo o sujeito tem um
50
registro total de sua experiência de vida que condiciona seu presente e seu futuro; c) adere à
matriz sonora do inconsciente; d) considera que, no processo musicoterápico, evoluem-se os
mesmos mecanismos de defesa que aparecem em um processo psicoterápico analítico; e)
considera que o processo transferencial em Musicoterapia tem características diferentes à
transferência em termos psicanalíticos; f) aceita o conceito de contratransferência musical; g)
toma em conta o enquadre8 como elemento básico para que evolua o fenômeno
musicoterápico; h) adere ao conceito de “analogia” proposto por “Smeijsters” (ibid., p. 5253).
Na prática, o método é desenvolvido por quatro eixos de ação: improvisação
musical terapêutica; trabalho com canções; técnica de EISS (Estimulação de Imagens e
Sensações Através do Som); utilização seletiva da música editada (ibid., p. 53).
O paciente, atendido em Musicoterapia através do Método Plurimodal, é
considerado como um indivíduo com sua própria realidade psicofísica, cujas dificuldades são
únicas. Estes apresentam sua própria forma de comunicação não-verbal e o musicoterapeuta
tem a obrigação de conhecê-la, preservando a identidade cultural. Durante o processo, deverá
analisar como o paciente se comunica e estabelece o vínculo consigo e com os outros.
A intervenção no Método Plurimodal é desenvolvida, ponderando que o individuo
tem uma história de vida própria. Durante as sessões, cada técnica proposta não considera
apenas o que se observa, mas os elementos ativados. Portanto, as expectativas e/ou
conseqüências desses elementos são importantes no desenvolvimento dessa história. Sendo
assim, as programações para as sessões são abertas. Considera o que surge no momento e a
análise do processo previamente realizada pelo musicoterapeuta, o material de suporte e a
análise realizada durante a sessão.
Os objetivos principais deste método, conforme Hugo e Schapira (2004), são:
•
A criação de uma ferramenta que facilite e ordene a escuta musicoterápica (p. 54).
•
Realizar apontamentos específicos da Musicoterapia à equipe interdisciplinar,
para que seja enriquecida a concepção que estes podem construir sobre o cliente (p. 54).
•
Delinear objetivos específicos e estratégias de tratamento musicoterápico, em
relação a este paciente (ibid.).
O trabalho com canções, neste ínterim, é realizado para dar forma ao pensamento,
sentimento e emoções, e também para poder observar sentimentos, emoções e idéias que não
8
Enquadre, no original = encuadre. Posteriormente, os autores farão referência ao enquadre como sendo “los
materiales con los que el Musicoterapeuta cuente en el momento de la sesión” (ibid., p. 54). Traduzimos
enquadre por setting musicoterápico.
51
podem somar-se à consciência pela senda da palavra falada. O musicoterapeuta tem a função
de trabalhar com as associações que a canção pode despertar, principalmente do tipo
contratransferencial. Na verdade, a canção contribui na construção de uma aliança de trabalho
e de relação transferencial.
Cuando cantamos, la música nos ortoga una vía regia para poder decirnos algo a
nosotros mismos. (…) Las canciones son fieles compañeras que pueden habitarnos
cada día. Están desde que existe la memoria. Prácticamente todas las culturas las ha
creado, y las transmiten de generación en generación. Cuentan historias. Recrean
sentimientos. Describen situaciones. Participan de nuestra vida cotidiana y se
entrometen en la memoria personal construyendo la historia sonora de cada
individuo. Al mismo tiempo, van creando y consolidando el acervo cultural de cada
pueblo. La canción es materia dual, objeto intermediario, pero sobre todo musicante
(significante musical) y debe considerarse como tal (ibid., p. 59).
No Método Plurimodal, as canções são utilizadas em sete formas básicas, são elas:
criação, canto conjunto, improvisação, indução evocativa consciente e inconsciente,
exploração de material, associação livre cantada e questionário de canções projetivas (ibid., p.
59).
2.2.9. A Canção Popular como Acolhimento
Barcellos (2004) apresentou este tema no V Encontro Nacional de Pesquisa em
Musicoterapia, Rio de Janeiro. Sendo supervisora clínica de um trabalho desenvolvido na
Maternidade Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, questionou o por quê
da não utilização da improvisação musical com os sujeitos da pesquisa9.
Para que a autora entendesse o seu questionamento, foi visitar a UTI Neonatal e
observar o comportamento das mães e bebês. Após observação criteriosa, percebeu que estas
mães são pessoas que necessitam de fortalecimento, conforto, apoio e acolhimento, por causa
do sofrimento ante a realidade dos seus bebês.
Estas observações levaram-na a refletir sobre a utilização da recriação musical
como técnica musical adequada para aquelas clientes; portanto, percebia a necessidade de
explicar esta adequação à recriação e, em contrapartida, a inadequação da improvisação
musical.
9
Os sujeitos da pesquisa eram mães que necessitavam de redução do estado de ansiedade e desenvolvimento e
elaboração de uma metodologia pertinente à clínica musicoterápica aplicada a estas mães e/ou familiares de
bebês prematuros internados na UTI Neonatal e na Enfermaria Canguru (ibid., p. 1).
52
Barcellos (2004) inicia seus pensamentos refletindo sobre a necessidade de
acolhimento dado pelos musicoterapeutas e, da mesma forma, a necessidade que a mãe, no
processo de maternagem, acolhe o seu filho. Para que este conforto ocorra musicalmente, é
necessário que haja uma base musical que possibilite um sentimento de segurança. Contudo,
quando a paciente, em um setting musicoterápico envolve-se no fazer musical e recria
canções populares, consegue obter a segurança e o acolhimento que necessita para poder
transmiti-lo ao filho.
Porém, partindo para outras vertentes, a autora pergunta: por que a recriação e por
que a canção popular? Para responder estes questionamentos, cita Adorno que relata a
previsibilidade da forma da música popular no sentido melódico e nas progressões
harmônicas.
Considerando que esta canção popular é “pobre e previsível” (grifo nosso), qual a
diferença que sua utilização faz no setting musicoterápico? Barcellos (2004) afirma que, neste
caso, ocorre a re-significação e “re-leitura idiossincráticas na interação com o próprio grupo
com quem partilham os mesmos problemas e a mesma dor, e com os terapeutas, na escuta
dessa dor” (p. 5).
Em Musicoterapia, é a relação musicoterapeuta/paciente que possibilita o
acolhimento “quanto à re-significação no campo da transferência” (ibid., p. 6). É função do
musicoterapeuta considerar o que o paciente traz e acrescentar aquilo que acredita ser
importante para o processo.
53
CAPÍTULO III – O POTENCIAL TERAPÊUTICO DA CANÇÃO
Neste capítulo, serão abordados a utilização da canção no setting musicoterápico,
seu surgimento e processo. Para tanto, foram escolhidas, de forma randômica três canções,
baseando-se em monografias escritas na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade
Federal de Goiás. Das monografias escolhidas, buscou-se pinçar canções trazidas por adultos
em distintas áreas da Musicoterapia – Gerontologia, Recursos Humanos e Saúde Mental –,
visando uma maior ampliação deste estudo.
3.1. Uma Canção em Gerontologia
Que falta que eu sinto de um bem!
Que falta me faz um xodó,
Mas como eu não tenho ninguém
Eu levo a vida assim tão só!
Eu só quero um amor
Que acalme o meu sofrer
Um xodó, pra mim,
Do meu jeito assim,
Que alegre o meu viver!
(Anastácia e Dominguinhos)
Esta canção surgiu em um processo musicoterápico com idosas na Associação dos
Idosos do Brasil (AIB), unidade Goiânia (GO) – organização não governamental que
desenvolve, desde 1989, atividades para a manutenção da saúde e da auto-estima dos seus
clientes. O atendimento musicoterápico com este grupo foi realizado no período de 14 de
janeiro a 30 de setembro de 2002, perfazendo um total de trinta sessões musicoterápicas. L. A.
P. e sua co-terapeuta (não foi discriminado o nome) eram, na época, estagiárias de
musicoterapia e responsáveis pela coordenação do trabalho.
Desses atendimentos, foi realizado um trabalho monográfico em que primeiro
abarca o tema “Musicoterapia em Gerontologia: uma abordagem psicossocial”, dividido nas
seguintes etapas: 1) O envelhecimento e a gerontologia; 2) Uma abordagem psicossocial; 3)
Musicoterapia em gerontologia (uma experiência clínica). Deste último tópico, escolheu-se a
54
canção “Eu só quero um xodó” para o estudo, neste trabalho, do seu processo dentro da
prática clínica musicoterápica.
No montante, eram três grupos de dez idosas, e cada atendimento semanal durava
60 minutos. Destes três grupos, apenas um foi separado para a pesquisa de campo. A média da
faixa etária das idosas era de 67 anos e o atendimento era grupal, com características de grupo
fechado. A maioria tinha pouca escolaridade. O setting situava-se em uma sala ampla e
ventilada, onde foram utilizados vários recursos áudio e visuais.
A coleta de dados inicial foi realizada através do preenchimento das fichas
musicoterápicas, onde pôde-se observar que a maioria eram viúvas e se identificavam como
profissionais do lar. Muitas apresentavam baixa auto-estima e viviam sozinhas, pois foram
abandonadas pelo marido ou os mesmos haviam morrido. Nos relatos, foi observada violência
física e moral por parte dos pais e maridos, demonstrando, por parte das clientes, uma postura
de submissão.
Dos quadros patológicos, foram registrados labirintite, problemas de coluna,
osteoporose, artrose, reumatismo, entre outros. Em casos mais isolados encontrou-se AVC
(acidente vascular cerebral) ou doenças coronárias.
Os estilos musicais de preferência do grupo eram músicas sertanejas ou regionais,
românticas, religiosas, clássicas e MPB. Todas vivenciaram músicas de roda e folclóricas,
mas poucas se lembravam de terem sido acalentadas pela mãe. O rádio era o veículo mais
utilizado pelas clientes, principalmente, nas horas de solidão. Apresentaram preferências pelos
cantores Roberto Carlos, Vicente Celestino, Leandro e Leonardo, Tonico e Tinoco, Sérgio
Reis e Pixinguinha. Dos instrumentos musicais, o piano, o violão e o violino eram os que
apresentavam preferência. O saxofone, os tambores, a bateria e a guitarra foram os que
apresentaram maior rejeição entre o grupo.
A testificação musical ocorreu durante algumas sessões. Para este estudo, é
necessário salientar que durante o processo observou-se uma certa inibição no manejo
instrumental. Na maior parte do tempo, as clientes escolhiam instrumentos de pequeno porte
como o caxixi, o ganzá, as clavas ou o triângulo.
A postura adotada por Pinheiro (2002) nos atendimentos, em relação à abordagem
terapêutica, foi a humanista-existencial, tentando estabelecer sempre “um ambiente de
confiança e empatia” (p. 47) para o fortalecimento do vínculo terapêutico.
55
3.1.1. O surgimento da Canção “Eu só Quero um Xodó”
Inicialmente, Pinheiro (2002) teve a preocupação de realizar a testificação
musical. Durante as primeiras sessões foram realizadas audições musicais, re-criação e
improvisação musical livre. Na quarta sessão, a musicoterapeuta apresentou alguns
instrumentos e sugeriu que cada cliente escolhesse um instrumento para tocar. Conforme
relato da musicoterapeuta, a escolha foi tímida e os instrumentos escolhidos foram os de
menor porte. A produção musical foi suave e lenta, no ritmo binário, “dificultando um diálogo
sonoro-musical” (p. 49). Foi sugerido, através da consigna, que as clientes trocassem os
instrumentos umas com as outras para uma maior interação. Porém, a musicoterapeuta não
observou interação entre eles. Sendo assim, a musicoterapeuta começou a cantar “Eu só quero
um xodó”, observando que o grupo acompanhou a canção sem muito entusiasmo.
Ao final da experiência, as clientes verbalizaram dizendo que não gostaram de
tocar, que preferiam ver alguém tocar. Contudo, Lau10, ressaltou dizendo que – “Da primeira
parte não gostei, mas na hora de cantar esta música tão linda, adorei!” (p. 50).
Nas sessões seguintes, surgiram inúmeras canções que culminavam em
comentários sobre a facilidade ou dificuldade do relacionamento familiar, ausência dos filhos,
a solidão, a falta materna ou paterna, o casamento, a falta do companheiro (seja por morte ou
por abandono), a vida social, a força ou falta de vontade para viver, a presença “revigorante”
(grifo nosso) da Musicoterapia, saudade da infância, fé, esperança, perdão, morte, dor,
rejeição, amor, drogas na família e religião.
Na 27º sessão, a musicoterapeuta trouxe novamente a canção “Eu só quero um
xodó” (Anastácia e Dominguinhos) juntamente com a canção “Cabecinha no ombro”11 (Paulo
Borges) para a realização de um jogo musical que consistia em um quebra-cabeça.
Novamente, a cliente Lau comenta que “agradeceu a Deus por não ter que cantar a letra de
‘Eu só quero um xodó’, pois não é uma pessoa sozinha, tem seu companheiro” (ibid., p. 59).
Este comentário suscitou um questionamento de outra cliente, One12 que retrucou Lau,
dizendo “E quando ele morrer? Será que você vai estar preparada quando ele desencarnar?”
(ibid). Lau respondeu dizendo que se preocupava com o presente e não com o futuro.
10
Todos os nomes apresentados neste capítulo são fictícios.
Letra da música em Anexo I
12
Esta cliente não fez parte do grupo no início do processo. Entrou no grupo na 20ª sessão.
11
56
As sessões seguintes vieram como sessões de passagem13, pois o tempo do estágio
havia chegado ao fim. Destas últimas sessões surgiram expressões de contentamento em
relação a Musicoterapia e gratidão por tudo que puderam modificar em suas vidas.
3.1.2. Análise e Significado da Canção no Processo Musicoterápico
A canção “Eu só quero um xodó” é um baião com a temática desejante de alguém
que está sozinho e que necessita de um amor para acabar com a dor da solidão: Eu só quero
um amor que acabe o meu sofrer. Um xodó, pra mim, do meu jeito assim, que alegre o meu
viver.
A característica do grupo é mulheres, a maioria solitária (viúvas ou abandonadas)
e com um histórico de rejeição e baixa auto-estima. Considerando o fator desejante,
apresentado na canção, pode-se perceber uma intenção de mudança – acabar com o sofrer.
Seria, então, o desejo daquela clientela mudar sua situação, ser amada e respeitada? Contudo,
a priori, parece que o grupo rejeita e/ou não percebe a canção (apenas uma cliente se sentiu
confortável em cantá-la); restante do grupo, parece demonstrar que, mesmo a circunstância
não sendo agradável, é a situação em que estão acostumadas a viver, assim, parecem utilizar
um mecanismo de defesa14 hesitando a canção. O outro questionamento é: será que a
musicoterapeuta sentiu-se mobilizada por notar a dificuldade de interação das clientes entre si
e com os instrumentos e trouxe a canção como âncora terapêutica?
Em primeiro lugar, o surgimento da canção “Eu só Quero um Xodó” no
desenrolar das sessões musicoterápicas – principalmente, 4º e 27º sessões –, remete a algumas
indagações sobre o processo terapêutico deste grupo:
•
Inicialmente, as clientes escolheram instrumentos pequenos, não se relacionavam
entre si e mesmo com o surgimento da canção, mantêm postura de individualidade. Será que
esta canção, em um primeiro momento, não possibilitou uma reflexão sobre o estado
psicossocial em que elas viviam? E a cliente Lau? Será que ela se sentiu mais confortável com
a canção, por não querer tocar o instrumento ou porque existia algo desejante que ela evitava
falar?
•
Considerando a temática que surgiu durante as outras 23 sessões, pode-se
questionar: A canção “Eu só quero um xodó” possibilitou uma abertura no canal de
13
Termo que designa a passagem de um grupo para outros estagiários, quando este estágio chega ao final.
57
comunicação do grupo? Este tema levou a que o grupo analisasse sua vida e suas necessidades
emocionais?
•
O surgimento da canção, no segundo momento, na verdade quase no final do
processo, teve que conseqüência? Este aparecimento reforçou os sentimentos de solidão ou
possibilitou a verificação da mudança de sentimentos em relação às suas vidas?
•
A cliente Lau, na 27º sessão, ao se referir sobre o fato de estar grata por não estar
sozinha, demonstra uma tranqüilidade em relação às suas emoções? O comentário de One
(que não estava presente no início do processo), em resposta a Lau, sobre a morte e perda, não
demonstra certa dor? Não seria então necessário mais tempo para que a cliente One elaborasse
estes sentimentos em sua vida?
A canção é um recurso utilizado para que o individuo exteriorize seus conteúdos
internos. Conforme Barcellos (2004), a canção é acolhedora, o cliente re-cria utilizando
palavras de outro para dizer dos seus próprios sentimentos.
A canção trazida pela musicoterapeuta, naquele momento, pode ter dado sentido
aos sentimentos das clientes – solidão e sofrimento – e um desejo de que tais sentimentos
fossem resolvidos. A postura das clientes, de individualidade e de movimentos leves e lentos,
pode demonstrar uma atitude de reflexão ou de rejeição à atividade de improvisação musical
livre proposta pela musicoterapeuta.
Quando Barcellos (2004) discute sobre a utilização da re-criação musical, em
detrimento da improvisação musical livre, levanta a questão do conforto e segurança que a
palavra cantada traz para o cliente. Essa canção possibilita a auto-expressão desencadeando a
abertura do canal de comunicação.
Ainda, refletindo sobre o surgimento da canção, nota-se alguns fatos interessantes,
como:
•
A consigna inicial foi para que o grupo escolhesse instrumentos musicais e
improvisassem livremente;
•
O grupo escolhe instrumentos pequenos, realizando pequenos movimentos,
inexpressíveis e não interagem entre si;
•
A musicoterapeuta, na tentativa de realizar interação entre o grupo, sugere a troca
de instrumentos;
•
14
O grupo troca de instrumentos entre si, porém mantém a mesma postura anterior;
Mecanismos de defesa são os “diversos tipos de processos psíquicos, cuja finalidade consistem em afastar um
evento gerador de angústia da percepção consciente. Os mecanismos de defesa são funções do Ego e, por
definição, inconscientes” (Rappaport, 1981, p. 29, 30).
58
•
A musicoterapeuta canta a canção “Eu só Quero um Xodó” que parece “não”
(grifo nosso) mobilizar o grupo;
•
Ao final do processo, o grupo relata não ter gostado da experiência de tocar,
porém gostou da “segunda parte” (grifo nosso) que é a experiência de cantar;
Sendo assim, pode-se perguntar: será que a musicoterapeuta não utilizou a canção
como âncora, por se sentir “incomodada” com a atitude do grupo mediante a consigna
terapêutica? Será que esta canção, apesar dos conteúdos veiculados pela letra, não surgiu
como um certo conforto para o grupo levando-o a preferir a canção em detrimento da
improvisação musical? Esta improvisação musical não era desestruturante para o grupo
naquele momento por elas se sentirem rejeitadas e com baixa auto-estima? Ao mesmo tempo,
será que a canção não foi uma ponte de abertura para todo o processo que se desencadeou na
abertura do canal de comunicação sobre os seus relacionamentos com os familiares e a
solidão em que viviam?
Estes questionamentos nos remetem a algumas reflexões:
•
A canção é utilizada em Musicoterapia como terapia auto-expressiva, visando,
principalmente, a comunicação e a integração do indivíduo com ele mesmo e com o outro,
além de ser facilitadora no estabelecimento do vínculo terapêutico;
•
O canto assume significado na relação, no fazer musical, isto é, nas ações
recursivas: paciente – música – musicoterapeuta; musicoterapeuta – música – paciente;
•
A
canção,
trazida
inconscientemente
pelo
musicoterapeuta
no
setting
musicoterápico durante os atendimentos, quando alguma situação o mobiliza, é chamada
canção-âncora, para que este saia do estado de paralisação que a situação possa o colocar e dê
continuidade à sessão. Esta canção busca interação em situações de impasse (Cirigliano,
2004). Se considerarmos que a musicoterapeuta utilizou a canção “Eu só quero um xodó” para
demover o momento de impasse entre as clientes pela falta de interação, pode-se afirmar que
ela a utilizou como âncora terapêutica para aliviar a tensão surgida durante a improvisação
musical livre.
A canção é uma forma musical de base que possibilita sentimento de segurança.
Os clientes, em um setting musicoterápico, envolvem-se no fazer musical e recriam canções
populares para obter a segurança e o acolhimento que necessitam para sua vida.
59
3.2. Uma Canção em Recursos Humanos
Tudo pode acontecer
Como uma informação assim se altera tanto:
Uma palavra simples pode resolver;
Porque ficar assim procurando uma resposta;
Se com união tudo pode resolver;
{Meu Deus não! Eu não posso ficar sem ver a montagem acontecer} 2 vezes
(Composição – Grupo de Musicoterapia)15
A composição desta canção foi realizada por um grupo de Musicoterapia de uma
empresa privada, cujo ramo de prestação de serviços é voltado à organização de eventos na
cidade de Goiânia e demais estados. O atendimento musicoterápico foi realizado por C. O. C.
(musicoterapeuta) e L. S. R. (co-terapeuta), estagiárias de Musicoterapia, no período de
agosto a outubro de 2004, perfazendo um total de 26 sessões musicoterápicas.
Esses atendimentos, parte de uma pesquisa que gerou o trabalho “Musicoterapia
no Desenvolvimento das Relações Interpessoais em uma Empresa”, está dividido nas
seguintes temáticas: 1) A área organizacional e a Musicoterapia; 2) Gestalt-terapia e
Musicoterapia: uma aproximação; 3) Trajetória metodológica. Deste último tópico, escolheuse a composição da canção “Tudo pode acontecer” para o estudo do seu processo dentro da
prática clínica musicoterápica.
O departamento de Talentos Humanos da empresa auxiliou na escolha dos
participantes que totalizavam um grupo de onze pessoas, sendo três mulheres e oito homens,
na faixa etária de 20 a 35 anos. O atendimento grupal consistia em grupo fechado e era
realizado na média de uma hora e trinta minutos. O setting situava-se em ambiente que
dispunha de grande espaço físico e que ficava separado dos outros departamentos da empresa.
O objetivo do trabalho era auxiliar no desenvolvimento das relações interpessoais entre os
funcionários da empresa.
Foram utilizados vários instrumentos musicais e CDs contendo estilos musicais
como: MPB, Forró, Funk, Sertanejo, Religioso e Instrumental.
A coleta inicial de dados foi realizada através do preenchimento da ficha
musicoterápica e durante os encontros utilizou-se dois questionários informais. Foram
15
Partitura no Anexo II
60
realizadas gravações das sessões musicoterápicas em áudio (fita K7), e feito relatórios
descritivos semanais, progressivos e final.
3.2.1. O surgimento da Canção “Tudo pode acontecer”
Inicialmente, Costa (2004) relata ter observado, nas primeiras sessões, o ensejo do
grupo de trabalhar junto. Porém, percebeu a dificuldade dos membros em trabalhar em grupo,
pela dificuldade de comunicação e falta de entrosamento entre os participantes. A composição
da canção “Tudo pode acontecer”, segundo a autora, demonstra este desejo de entrosamento.
Após a composição da canção, os participantes do grupo relataram que há
problema de relacionamento dentro da empresa, falta de entrosamento no ambiente de
trabalho e que a música composta refletia o que acontecia no grupo.
No 5º encontro, o grupo apresentou a necessidade de usar máscaras, por temerem
não serem aceitos pelos outros, omitindo o “eu” verdadeiro para agradar o próximo. Neste
ínterim, durante quatro encontros seguidos, cada integrante do grupo confeccionou máscaras
e, juntamente com a expressão musical, perceberam “que as mesmas tornaram-se uma
personificação deles mesmos, ou projetaram nelas tudo o que não gostavam ou que havia de
ruim neles” (ibid., p. 43).
O resultado verbal desta atividade foi que os integrantes não gostaram das
máscaras, informando que se escondiam através delas e que puderam refletir sobre tudo o que
aconteceu. Segundo a musicoterapeuta, esta confecção proporcionou autoconhecimento e
contato com o eu interno, possibilitando “perceber que, através da relação com o outro, posso
me descobrir, desenvolver, crescer e mudar, tanto como pessoa, quanto como profissional”
(ibid., p. 44).
No 11º encontro, através de uma atividade que consistia em dedicar canções uns
aos outros, pôde se perceber, segundo Costa (2004), que os clientes começaram a se sentir
aceitos e valorizados no grupo. Nestas canções, pôde se notar uma melhora da “interação
entre os membros do grupo” (p. 45).
Esta mudança na interação entre os integrantes do grupo foi observada nas
composições realizadas por eles no 23º encontro, no qual o grupo ressaltou a necessidade de
motivação, encontrando entre os seus integrantes a alegria, o companheirismo, o
extrovertimento, a atenção, a bondade, o serviço, a paciência, a determinação e terminaram
concluindo que o grupo era abençoado.
Costa (2004) observa, finalmente,
61
que o grupo, através dos trabalhos musicoterápicos, conseguiu se expressar uns para
os outros, deixando de agir individualmente, promovendo união, harmonia no grupo,
ajudando, assim, no desenvolvimento das relações interpessoais, gerando mudanças
no ambiente de trabalho (p. 46).
3.2.2. Análise e Significado da Composição-Canção no Processo Musicoterápico
A paródia de canções é uma variação da composição – experiência musical citada
por Bruscia (2000) –, que consiste em substituir palavras, frases ou letras inteiras de uma
canção existente, enquanto a melodia e o acompanhamento original são mantidos.
A composição “Tudo pode Acontecer”, parodiada da canção “Que se Chama
Amor” (Grupo Só pra Contrariar), demonstra o desajustamento inicial em que o grupo se
encontrava – “procurando uma resposta (...) se com união tudo pode resolver” – contudo,
possibilitou a expressão do grupo para que, nas suas reflexões verbais, pudessem declarar a
necessidade do desenvolvimento do relacionamento interpessoal dentro do ambiente
empresarial.
As canções que surgem do processo de composição musical assumem um papel
de grande relevância nesta experiência, possibilitando que o grupo possa desenvolver
habilidades específicas como o planejamento, a organização, a solução de problemas,
comunicação de experiências internas e habilidade de integração (ibid). A utilização da
técnica neste grupo permitiu que tais habilidades fossem trabalhadas, pensadas, elaboradas
entre os membros do grupo para que se pudesse atingir o objetivo do trabalho.
Nesse contexto, a experiência musical da paródia desta canção, na sessão de
Musicoterapia, facilitou a abertura do canal de comunicação. Isto possibilitou que as
interações interpessoais entre os participantes do grupo se desenvolvessem caminhando para
que houvesse uma nova visão do “eu” de uma maneira mais completa. Importante ressaltar
que, para que haja um relacionamento integrado, é necessário autoconhecimento e contato
com o self. Esta nova descoberta facilitou com que o “eu” pudesse ver o “outro” através de
um outro prisma, modificando, assim, o relacionamento interpessoal entre os indivíduos.
62
3.3. Uma Canção em Saúde Mental
Eu tenho tanto pra lhe falar
Mas com palavras não sei dizer,
Como é grande o meu amor por você.
E não há nada pra comparar
Para poder lhe explicar
Como é grande o meu amor por você.
Nem mesmo o céu, nem as estrelas,
Nem mesmo o mar e o infinito
Não é maior que o meu amor, nem mais bonito.
Me desespero a procurar alguma forma de lhe falar
Como é grande o meu amor por você.
Nunca se esqueça, nenhum segundo,
Que eu tenho o amor maior do mundo.
Como é grande o meu amor por você
(Roberto Carlos)
Esta canção surgiu em um processo musicoterápico com pacientes portadores de
transtornos esquizofrênicos, em um hospital psiquiátrico – instituição particular que atende
vários convênios e pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde). O atendimento
musicoterápico com este grupo foi realizado por C. R. Z. e co-terapeuta (não foi discriminado
o nome), no período de 30 de março a 29 de julho de 1998, duas vezes por semana, durante
sessenta minutos, perfazendo uma média de 30 sessões musicoterápicas.
A partir desses atendimentos foi desenvolvido o trabalho monográfico de
especialização em Musicoterapia, que abarca o tema “Musicoterapia: Semelhanças e
Diferenças na Produção Musical de Alcoolistas e Esquizofrênicos”16 e é dividido nas
seguintes temáticas: 1) Introdução; 2) Revisão de Literatura; 3) Metodologia; 4) Apresentação
e Análise de Dados. Deste último tópico escolheu-se a canção “Como É Grande o Meu Amor
Por Você” para o estudo do seu processo dentro da prática clínica musicoterápica.
16
Vale ressaltar que o objetivo da pesquisa – comparação entre duas clientelas na área de saúde mental e sua
aplicação em musicoterapia – não será considerado. Para este trabalho, observar-se-á apenas o processo que
ocorreu com o grupo de pacientes com transtornos esquizofrênicos e o que a canção significou para os mesmos.
63
A clientela integrava um grupo aberto que matinha a média de seis participantes
por atendimento. No montante, eram oito pacientes, sendo seis homens e duas mulheres, com
idade média de 38,3 anos. Em geral, foi um grupo que apresentou certa constância e as saídas
ocorreram por alta médica, internação clínica-cirúrgica e por escolha do paciente. Na maior
parte dos casos, a escolaridade era de nível primário.
A coleta de dados inicial foi realizada através de entrevistas individuais onde
buscou-se colher os dados musicais, prontuário da instituição e informação fornecida pelo
enfermeiro-chefe. A testificação musical aconteceu no decorrer das sessões. Os registros das
sessões foram realizados através de relatórios, fita k-7 e filmagem. De acordo com Zanini
(1999), as técnicas musicoterápicas utilizadas foram a Improvisação Musical Livre e a Recriação Musical e foram trabalhados como recursos instrumentos musicais, caixa de som com
gravador, microfone, CD player, voz e corpo.
3.3.1. O surgimento da Canção “Como É Grande o Meu Amor Por Você”
As sessões musicoterápicas, com esta clientela, assumiram uma característica
muito comum em trabalhos com pacientes psiquiátricos – alta rotatividade de canções e
dificuldade de se estabelecer o relacionamento interpessoal. Zanini (1999) relata que durante
o processo musicoterápico foi utilizado os instrumentos musicais relacionados à técnica de
improvisação musical, a canção relacionada à técnica de re-criação musical e a audição
musical, técnica receptiva, foi utilizada como recurso facilitador da improvisação musical
livre e na realização do desenho projetivo com música.
A canção “Como é Grande o Meu Amor por Você” surge na primeira sessão,
durante um “caos sonoro”17 e é cantada por todos pela primeira vez. No decorrer das demais
sessões, outras canções, de diferentes estilos, são trazidas pelos pacientes do grupo emergindo
de modo simultâneo sem interação entre os clientes. Apenas em algumas sessões há uma
unificação do grupo no ato de cantar e/ou cantar em conjunto (ibid.).
Houve dificuldade de relacionamento entre os membros do grupo, chegando a
ocorrer a saída de um integrante por dificuldade de se sentir aceito. A dificuldade do
relacionamento interpessoal foi um assunto bastante trabalhado pela musicoterapeuta com
esta clientela, incentivando o tocar e o cantar junto, o ouvir e ser ouvido pelo outro.
17
No Dicionário Enciclopédico (1980), a palavra caos significa “grande desordem ou confusão”. Entende-se por
caos sonoro uma desordem ou confusão sonora, ou seja, vários instrumentos e/ou canções sendo
tocados/cantados ao mesmo tempo, que podem ser associados a uma desorganização interna do indivíduo.
64
O ambiente familiar emergiu durante as canções, principalmente a figura materna.
O ambiente rural, a música sertaneja, a canção infantil e o rock nacional (principalmente
década de 70, 80 e 90) remeteram às lembranças da infância e juventude.
Algumas sessões foram gravadas e ouvidas pelos integrantes do grupo, o que
facilitou o processo musicoterápico, permitindo que o grupo refletisse em relação à produção
musical grupal e auto-expressão. O microfone foi outro recurso utilizado possibilitando, aos
integrantes, a expressão vocal e emersão de conteúdos internos.
No encerramento, os clientes afirmam ter gostado da Musicoterapia, da
companhia das musicoterapeutas e do ato de cantar, sinalizando o quanto era bom cantar e
que as “músicas eram ótimas”.
3.3.2. Análise e Significado da Canção no Processo Musicoterápico
Os pacientes psiquiátricos e, neste caso, os esquizofrênicos, apresentam
características peculiares, dentre elas, conforme Zanini (1999):
•
Partindo de uma visão psicanalítica, esta clientela apresenta uma perda dos limites
do EGO, gerando prejuízo na capacidade de refletir e adiar ou admitir frustrações;
•
O esquizofrênico perde a memória e os sentimentos;
•
Conforme Costa e Vianna, o pensar destes pacientes apresenta a existência de uma
“dificuldade de pensar como seus os próprios pensamentos e sentir como seus os próprios
sentimentos, ocorrendo em sua comunicação uma série de alterações que vão lhe dar uma
qualidade nova” (apud Zanini, 1999, p. 17).
Neste contexto, analisam-se algumas características importantes para este
trabalho, tais como: a dificuldade de relacionamento entre os pacientes psiquiátricos, em vista
da perda da capacidade de reflexão e de frustração; a perda de sentimentos; e, o pensar
“desorganizado” (grifo nosso) desses pacientes.
Em relação à prática musicoterápica, pôde-se observar o apontamento destas
características no “fazer musical”. Observou-se a dificuldade de cantar junto, o que pode
representar a desorganização própria destes indivíduos; o “caos sonoro” em relação ao
instrumental e a variedade de músicas cantadas simultaneamente, demonstrando a
problemática de relacionamento interpessoal da clientela; e os constantes atritos entre os
membros do grupo, apresentando prejuízos nas capacidades de satisfação, frustração e
sentimentos.
65
Nota-se então que a canção para esta clientela, através da re-criação musical, é um
recurso altamente recomendado, pois ela possibilita a melhora da memória, o
desenvolvimento do relacionamento interpessoal, através do fazer musical, a emersão de
conteúdos internos, e a promoção de mudança dos sentimentos, através do prazer que a
música proporciona durante o executar musicoterápico.
Neste ínterim, a canção “Como É Grande o Meu Amor Por Você” surgiu como a
primeira canção cantada por todos os membros do grupo. Sobre este fato, alguns
questionamentos são apontados: seria, esta canção, um meio de integração entre os membros
do grupo para a realização de um objetivo comum?
Pode-se perceber que, durante o processo, ocorreram vários momentos de
dificuldade de relacionamento entre os membros do grupo. Alguns, por exercer um papel de
liderança e outros, para que se sentissem aceitos no grupo. Quando os integrantes cantam uma
canção conhecida, parecem se movimentar para que possam integrar-se.
Posteriormente, observa-se a participação dos integrantes na produção sonora
individual e a ação de completar e de auxiliar o companheiro nas letras das canções. Sendo
assim, volta-se ao questionamento se a canção não possibilita esta realização.
Bruscia (2000), discutindo sobre o ato de cantar e re-criar, diz que esta habilidade
auxilia a que os clientes possam entender e se adaptar às idéias e sentimentos dos outros,
preservando suas próprias identidades, trabalhando junto, visando a objetivos comuns. Nesta
conjuntura, a experiência da re-criação musical possibilita que o cliente promova
relacionamentos interpessoais mais empáticos, interprete e comunique idéias e sentimentos e
melhore as habilidades grupais e de interação. Neste grupo, pode-se observar que pouco a
pouco algumas questões foram sendo apresentadas e discutidas pelos integrantes para que
houvesse a mudança nos seus relacionamentos interpessoais. Percebe-se uma modificação nos
relacionamentos, o sentir falta do outro e o auxiliar o próximo nas suas dificuldades. A
canção, neste caso, realiza um papel de integradora e de comunicadora das idéias particulares
dos integrantes no grupo.
Outro ponto a ser ressaltado na produção sonora deste grupo é a escolha das
canções e, particularmente, a escolha da canção “Como é Grande o Meu Amor por Você”.
Brito (2001), falando sobre a realidade das instituições psiquiátricas do Brasil e a falta de
informação sobre os pacientes, apresenta o tema canção desencadeante como sendo as
canções utilizadas para facilitar o trabalho do musicoterapeuta com esta clientela.
Estas canções são as canções selecionadas pelo musicoterapeuta, considerando as
canções tocadas no período de adolescência da clientela, pois essa faixa etária é marcante na
66
vida social do ser humano. O autor relata que, partindo deste pressuposto, pode-se conseguir a
abertura do canal de comunicação e maior interação e estabelecimento de vínculo entre os
participantes.
Ao observar as canções surgidas no processo deste grupo em questão, nota-se que
as canções compostas nas décadas de 70, 80 e 90 foram as mais escolhidas, justificando o que
foi dito anteriormente. Sendo assim, pode-se perceber que, com tal clientela, as canções que
foram auge no período de adolescência e juventude dos pacientes são as canções resgatadas e
trazidas no setting musicoterápico.
Nota-se que estas canções possibilitaram a abertura de canal de comunicação e o
surgimento de reflexões sobre a infância, os relacionamentos e a família. A discussão de tais
temas leva a que outros assuntos pertinentes à visão interna do “eu” individual sejam
questionados e reflexionados.
67
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O reflexo do desenvolvimento da canção popular brasileira na cultura e história do
país demonstra uma característica peculiar da população nacional. Nos primeiros anos do
século XX, esta forma musical é apresentada popularmente com características da vida
corriqueira do indivíduo. Esta música, passada de geração a geração, marca a trajetória do
povo brasileiro e, projetada pelos meios de comunicação, permanece como um rápido veículo
de propagação da história cultural e do pensamento de uma comunidade.
Em musicoterapia, a canção surge no setting terapêutico, trazida, muitas vezes,
pelo próprio indivíduo que, inserido na cultura, reflete o seu “eu” pessoal através da música
que o identifica e que está presente em sua história individual. Esta canção é recebida e
trabalhada pelo terapeuta visando um melhora da qualidade de vida de seu cliente. Ela é resignificada através dos processos comunicacionais e relacionais da Musicoterapia, quando as
ações recursivas ocorrem, sucessivamente, através da música, numa relação triádica: pacientemúsica-musicoterapeuta; musicoterapeuta-música-paciente.
A comunicação por meio da música, formalizada na relação terapêutica,
possibilita que os hemisférios cerebrais atuem, seja na codificação do som, ritmo, melodia,
harmonia, ou no processo de significação da poesia inserida na música, promovendo um
sentido único e individual para esta canção. Tais processos, em congruência com as
experiências musicais, possibilitam uma atuação rica para o musicoterapeuta, que utilizará os
recursos musicoterápicos visando alcançar os objetivos traçados para as diferentes clientelas.
A re-criação musical é acolhedora porque possibilita que o indivíduo utilize um
meio diferente para se auto-expressar; é um recurso que pode ser utilizado com diferentes
clientelas, objetivando receber este cliente através do cantar canções.
A improvisação é uma experiência que apresenta duas vias, tanto pode ser
realizada improvisação de canções, como pode possibilitar a emergência de canções partindo
da improvisação instrumental, ou seja, o cliente, na ação do tocar, apresenta canções que são
projetivas.
A composição utiliza a canção como recurso de programação e planejamento,
objetivando que o cliente aja em direção a um determinado fim. Essa canção pode ser
composta inteiramente pelo cliente, ou ainda, este pode utilizar melodias, harmonias ou ritmos
criados por outros compositores acrescentando sua própria expressão musical. Nesse caso, ela
68
é conhecida como paródia de canção e é mais usual quando a melodia e harmonia originais
são mantidas enquanto o cliente acrescenta uma nova letra para esta música.
A audição musical, experiência receptiva, apresenta variações onde a canção pode
ser utilizada na promoção de diferentes objetivos para a clientela, seja a escuta meditativa, o
relaxamento, a projeção, entre outros.
Na relação terapêutica, podem ocorrer vários processos tais como transferência,
contratransferência e resistência. A contratransferência, que parte do musicoterapeuta em
relação ao cliente, pode ocorrer quando algum ato ou ação do cliente mobiliza, de alguma
forma, o musicoterapeuta. Este pode se valer da canção que seja âncora terapêutica para trazer
alívio ao momento de tensão, ou seja, a canção parte do terapeuta para trazer-lhe conforto e
possibilitar uma via de acesso mais direta com o paciente.
A canção também pode aparecer no processo desencadeante de comunicação entre
musicoterapeuta e cliente. Quando reflete a cultura e a história de vida do indivíduo, a canção
apresenta um significado especial para aquele cliente. Por exemplo, quando a canção esteve
presente durante a etapa da adolescência e juventude do cliente, períodos estes que são tão
marcantes na vida musical de cada indivíduo. Esse recurso auxilia a aproximação do
musicoterapeuta com seu cliente, criando um vínculo e possibilitando a abertura do canal de
comunicação.
Neste ínterim, novas abordagens e métodos estão sendo criados objetivando
utilizar a canção seja como recurso de comunicação, de auto-expressão de sentimentos e
emoções ou re-significando conscientemente a palavra cantada para o individuo. Isso
possibilita que as associações despertadas pela canção contribuam para a aliança da relação
entre musicoterapeuta e cliente.
Portanto, pode-se dizer que a canção é terapêutica e potencializa a ação
musicoterápica quando: está presente na cultura e no dia-a-dia do ser humano, possibilitando
uma ligação entre o “eu” cotidiano com o “eu” em terapia; promove abertura do canal de
comunicação entre cliente e musicoterapeuta; está presente nas experiências musicais, sendo
utilizada pelo cliente ou proposta pelo musicoterapeuta para que o indivíduo possa expressar
os conteúdos internos através do cantar, do improvisar, do compor ou do escutar; é
acolhedora, facilitando a auto-expressão do cliente por meios mais confortáveis; auxilia o
trabalho de desenvolvimento do vínculo terapêutico entre o musicoterapeuta e o cliente, etc.
Este trabalho possibilitou a reflexão de alguns pensamentos sobre a importância
da canção para a prática musicoterápica. Salienta-se a importância da cultura e sociedade
como agentes que individualizam a sessão musicoterápica, promovendo uma característica
69
própria em cada processo terapêutico, abrangendo a visão do ser humano e o respeito pela
unicidade de cada um.
Acredita-se que todos os apontamentos supracitados possibilitaram refletir sobre a
diversidade nas diferentes áreas da musicoterapia e a riqueza insondável da ação terapêutica
nesses campos de atuação. Observa-se que um mesmo recurso terapêutico, neste caso a
canção, pode promover diferentes ações terapêuticas, ampliando a visão sobre o ser humano.
Refletindo sobre as diversas patologias, faixas etárias, meios sócio-culturais, assevera-se que
estes não impedem a atuação do musicoterapeuta, pelo contrário, podem ser enriquecidos pela
atuação potencializadora da canção, e, conseqüentemente, pela Musicoterapia.
Afirma-se que a preparação, a execução e a finalização deste estudo
possibilitaram um crescimento pessoal e profissional para a autora deste trabalho, pois tem
assumido uma visão cada vez mais apaixonada pela canção e pela grandiosidade dos recursos
terapêuticos advindos desta prática, além da ampliação da visão sobre a Musicoterapia.
Finalmente, acredita-se que a canção tem um significado próprio para cada
pessoa, emergindo conteúdos que auxiliam o processo musicoterápico e, conseqüentemente,
na melhora da qualidade de vida do indivíduo. Por isso, a canção é única, representando o
momento, o espaço, o tempo, a ação, a beleza e a vida de cada pessoa.
Este trabalho é finalizado com a mensagem transmitida na letra da canção
“Canções e Momentos” de Milton Nascimento. Acredita-se que a canção é um instrumento de
união e de grande potencial, possibilitando que o musicoterapeuta seja o profissional que é:
aquele que utiliza a música, os sons e a poesia como recursos terapêuticos.
Há canções e há momentos, eu não sei como explicar,
Em que a voz é um instrumento que eu não posso controlar.
Ela vai ao infinito, ela amarra todos os nós.
E é um só sentimento na platéia e na voz.
Há canções e há momentos em que a voz vem dar raiz.
Eu não sei se é quando triste ou quando sou feliz.
Eu só sei que há momentos que se casa com canção.
De fazer tal casamento vive a nossa, a nossa, a nossa, profissão.
Canções e Momentos
(Milton Nascimento)
70
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCAR, Maria Amélia Garcia de (s/ data). A Canção Regionalista em Tempos de PósModernidade. In: Anais do V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para
o Estudo da Música Popular. http://www.hist.puc.cl/historia/isapmla.html. Acesso em:
outubro/2005.
ANDRADE, Mário de (1965). Aspectos da Música Brasileira. In: Obras Completas de
Mário de Andrade. São Paulo: Livraria Martins Editora. 247 p.
BARCELLOS, Lia Rejane (2004). Familiaridade, Confortabilidade e Previsibilidade da
Canção Popular como Acolhimento às Mães de Bebês Prematuros. In: Trabalho
apresentado no V Encontro Nacional de Pesquisa em Musicoterapia. Dezembro. Rio de
Janeiro. pp. 1-8.
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ANEXO I
Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora,
E conta logo a tua mágoa toda para mim.
Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora,
Que não vai embora porque gosta de mim.
Amor, eu quero o teu carinho, porque eu vivo tão sozinho.
Não sei se a saudade fica Ou se ela vai embora,
Se ela vai embora, porque gosta de mim.

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