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Teseu, o labirinto e seu nome
Alcione Corrêa ALVES1
RESUMO: o presente artigo propõe uma interpretação do conto ―La casa de
Astérion‖, integrante da obra El Aleph, de Jorge Luís Borges, com vistas a
evidenciar as reivindicações do nome, e do labirinto como lugar habitado,
enquanto instâncias de construção identitária do protagonista, Astérion. Os
conceitos de Desvio, na formulação conferida pelo filósofo Édouard Glissant
(1997), assim como os conceitos de lugar (GLISSANT, 1996) e glocalidade
(WALTER, 2008), são ora tomados como referenciais teóricos fundamentais
a este trabalho. A interpretação ora proposta, operando um recorte textual que
incide sobre a enunciação de Astérion em suas definições de si e do labirinto,
se assenta no esforço do protagonista para definir o labirinto como casa e,
nesta condição, habitá-lo e preenchê-lo de sentido.
PALAVRAS-CHAVE: Desvio. Lugar. Glocalidade.
À Taís Bopp da Silva
O presente artigo propõe uma interpretação do conto ―La casa de
Astérion‖, presente na obra El Aleph, de Jorge Luís Borges, evidenciando as
reivindicações do nome e do labirinto enquanto instâncias de construção
identitária do protagonista, Astérion. A interpretação ora proposta se assenta
em uma hipótese central: o protagonista construiria seu discurso com vistas a
definir o labirinto como casa e, nesta condição, habitá-lo e preenchê-lo de
sentido. Para tanto, discutir-se-á a contribuição do conceito de Desvio,
conforme a formulação inicial do filósofo Édouard Glissant na obra Le
discours antillais (1981), a fim de verificar a abordagem do papel do nome e
da casa enquanto instâncias de construção identitária aos sujeitos
americanos2. Malgrado o título deste trabalho sugira os mitemas em torno das
1
Professor atualmente lotado no Departamento de Letras da Universidade Federal
do Piauí (UFPI). Teresina, Piauí, Brasil, CEP 64049550. Correio eletrônico:
[email protected]
2
O passo argumentativo que reivindica, em Glissant, a extensão de formações
identitárias caribenhas a formações identitárias americanas encontra uma
formulação mais explícita no primeiro capítulo de Introduction à une poétique du
Divers (1996), obra em que o filósofo martinicano, apresentando as condições de
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aventuras de Teseu e, sobretudo, sua luta contra o Minotauro, como eixo
comparativo propriamente dito3, o exercício acerca do conto de Borges
fundamentar-se-á no esforço de Astérion em definir o labirinto não
exatamente como prisão, conforme o projeto arquitetônico de Dédalo, mas
como uma casa àquele que a habita e a preenche de sentido: ―Otra especie
ridícula es que yo, Astérion, soy un prisionero. ¿Repetiré que no hay una
puerta cerrada, añadiré que no hay una cerradura?‖ (BORGES, 2005, p. 85).
O mote à evocação do estatuto de casa se preserva na reflexão do
protagonista, no momento em que busca compreender a relação entre seu
lugar, o labirinto, e Creta, na condição de mundo possível:
(…) también he meditado sobre la casa. Todas las
partes de la casa están muchas veces, cualquier
possibilidade ao conceito de crioulização, constrói sua hipótese do Caribe tomado
como um prefácio às Américas. Com vistas a ampliar a discussão sobre o tema, e
projetando a composição de um corpus literário americano a um Projeto de
Pesquisa sobre o nome e as práticas desviantes nas literaturas americanas, uma das
etapas posteriores de pesquisa prevê a apresentação de um trabalho, em janeiro de
2013, no evento Ciencias, tecnologías y culturas. Diálogo entre las disciplinas del
conocimiento. Mirando al futuro de América Latina y el Caribe: Hacia una
Internacional del Conocimiento, a ser realizado em Santiago do Chile. Na ocasião,
o autor apresentará a comunicação intitulada Meu nome, uma casa-mundo,
propondo uma análise comparada entre o conto de Borges ―La casa de Astérion‖ e
o poema Metaformose, de Paulo Leminski, e com posterior publicação de trabalho
completo nos Anais do evento.
3
O verbete ―Labirinto‖, de Ana Maria Lisboa de Mello, integrante do Dicionário de
figuras e mitos literários das Américas (2007, p. 377), leva a termo o exame dos
mitemas próprios ao mito de Teseu como tertium comparationis entre dois contos e
três poemas de Borges com romances contemporâneos da literatura brasileira,
implicando em uma análise das apropriações literárias do mito grego em solo
americano. Nesta obra coletiva, sua organizadora, Zilá Bernd, advoga a fertilidade
dos processos de apropriação de figuras e mitos literários europeus, africanos,
orientais e pré-colombianos que, uma vez ressignificados nas diferentes literaturas
americanas, ofereceriam prova dos processos de hibridação próprios às formações
culturais nas Américas. A este respeito, cabe sublinhar que este trabalho não
reivindica os mesmos pressupostos fundadores do Dicionário como, por exemplo,
o conceito de mitema a partir de Gilbert Durand (1996), ainda que dialogue
constantemente com seus resultados quando da análise do conto de Borges, e ainda
que, de modo subjacente, aceite as formulações de Gérard Bouchard (2003; 2005) a
seu conceito de mito.
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lugar es otro lugar. No hay un aljibe, un patio, un
abrevadero, un pesebre; son catorce [son infinitos]
los pesebres, abrevaderos, patios, aljibes. La casa es
del tamaño del mundo; mejor dicho, es el mundo
(BORGES, 2005, p. 87)
Conforme a formulação de Apolodoro, citada como epígrafe ao conto
de Borges, coube ao arquiteto Dédalo construir um labirinto para aprisionar
Astérion, o filho monstruoso de Minos. Como sacrifício imposto aos
atenienses, resultado da guerra entre Atenas e Creta, em dados períodos
dever-se-ia oferecer sete jovens vítimas para saciar a fome do Minotauro,
arremessadas à própria sorte no interior do labirinto do qual a fuga era,
virtualmente, impossível. Contra tal condição, Teseu se insurge para,
posteriormente, emergir vitorioso em sua batalha contra a besta. Ariadne que,
do lado de fora, sustenta um carretel para que Teseu se guie por ele, permite
ao herói mapear o caminho, a fim de travar luta com o Minotauro, matandoo, e regressar do labirinto rumo a sua consagração ao trono de Atenas. Podese deduzir que Astérion, doravante nominado Minotauro, é monstruoso
porque disforme em sua aparência metade homem, metade touro, e porque
fruto da paixão de Pasífae, esposa de Minos, por um deus metamorfoseado
touro, de modo a saciar seu desejo e punir o rei cretense pelo
descumprimento de um sacrifício.
Tomando o conto de Borges ―La casa de Astérion‖ como um
exercício de apropriação da narrativa grega de Apolodoro enquanto processo
criativo, o presente trabalho construirá uma interpretação do conto de Borges
buscando incidir, precisamente, no papel da significação do próprio nome e
da própria casa, levados a termo no discurso de Astérion, compreendendo-os
como processos de construção identitária do sujeito. Em tal quadro,
sublinhar-se-á em que medida a contribuição do conceito glissantiano de
Desvio, bem como da noção operatória de práticas desviantes (ALVES, 2010;
2011; 2012) permite compreender os processos de construção identitária de
Astérion de modo necessariamente provisório, dizendo respeito a seus modos
de habitar o labirinto que, significado pelo próprio sujeito habitante como
casa, mostrar-se-ia indissociável, e necessário, a seus modos de estar-nomundo4.
4
O artigo ora proposto tem sido concebido no âmbito do Projeto Cadastrado de
Pesquisa ―Teseu, o labirinto e seu nome‖, e teve sua primeira formulação na forma
de uma comunicação oral apresentada no I Encuentro de las Ciencias Humanas y
Tecnológicas para la integración en el Conosur, realizado na cidade de Pelotas, em
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Cumpre destacar que a interpretação ora construída não reivindica a
necessidade da casa de Astérion ao centro de seu estar-no-mundo como um
dado evidente. Antes, situa-a no quadro de uma corrente contemporânea de
pensamento latinoamericano que, embora heterogênea, e de referenciais
teóricos variáveis conforme o campo de conhecimento em questão, traz como
uma de suas premissas a centralidade do lugar e, dentro desta, a
problematização das relações possíveis entre o lugar e um contexto mais
amplo – por exemplo, uma relação entre o local e o global, empenhada em
um esforço de não recair em generalizações quanto a nenhum dos dois
termos. Tais termos se aproximam significativamente da ideia norteadora das
epistemologias do sul que, reivindicadas e discutidas por pensadores
contemporâneos enquanto alternativa contrahegemônica, têm continuamente
questionado o lugar da(s) teoria(s) nas Américas, incluindo-se o próprio lugar
do pós-moderno e do pós-colonial que, enquanto discursos de pretensões
macro, trariam em si o germe das generalizações anteriormente citadas, a ser
criticamente evitadas:
Proponho, ao contrário, como orientação
epistemológica, política e cultural, que nos
desfamiliarizemos com o Norte imperial e que
aprendamos com o Sul. Mas advirto que o Sul é, ele
próprio, um produto do império e, por isso, a
aprendizagem com o Sul exige igualmente a
desfamiliarização em relação ao Sul imperial, ou
seja, em relação a tudo o que no Sul é o resultado
da relação colonial capitalista. Assim, só se aprende
2011, com o título ―Práticas desviantes na literatura francñfona antilhana:
hipñteses‖. O passo seguinte consistiu na apresentação de comunicação oral nas II
Jornadas Internacionales: Fronteras, Ciudadanía y Conformación de Espacios en
el Cono Sur. Una mirada desde las Ciencias Humanas y Sociales, realizadas em
2012 na cidade de Río Cuarto (Província de Córdoba, Argentina), intitulada
―Teseo, el laberinto y su nombre‖, com posterior submissão de trabalho completo a
ser publicado nos Anais do evento. Atualmente, as discussões resultantes destes
dois trabalhos têm sido prosseguidas na proposição da disciplina optativa ―LET
303580 – Teoria da Literatura III Monográfico‖, ministrada aos alunos da
Licenciatura em Letras da UFPI no primeiro período de 2012, a fim de
proporcionar uma atividade de ensino que resulte em uma experiência de
divulgação e discussão de resultados do Projeto de Pesquisa. Partindo dos avanços
subseqüentes ao trabalho submetido a estes dois eventos, bem como à referida
disciplina, propõe-se o presente artigo.
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com o Sul na medida em que se concebe este como
resistência à dominação do Norte e se busca nele o
que não foi totalmente desfigurado ou destruído por
essa dominação. Por outras palavras, só se aprende
com o Sul na medida em que se contribui para a sua
eliminação enquanto produto do império
(SANTOS, 2006, p 33)
Deste modo, subjaz à presente interpretação do conto de Borges, cuja
estratégia metodológica concentra-se no discurso de Astérion compreendido
como reivindicação da legitimidade de suas construções identitárias, um
conjunto de referenciais teñricos prezando pela definição de um ―lugar
asteriano‖ do qual emana uma fala, pressupondo a possibilidade de analisar
os processos de construções identitárias do sujeito a partir de, e para além de
sua fala5. Os limites próprios ao discurso de Astérion, a ser identificados por
índices de leitura do conto de Borges, evidenciariam sintomas de um sujeito a
se debater ante uma fala ressentida que, camisa-de-força de sua
Weltanschauung, apresentar-se-ia de modo desesperador como única
viabilidade a sua fala?6 O desafio posto à presente interpretação do conto de
5
Ao se situar na perspectiva de uma possível teoria literária nas (e às) Américas,
seria possível vislumbrar um leque de caminhos teóricos frutíferos à análise ora
proposta à luz dos conceitos de lugar em Édouard Glissant e em Walter Mignolo:
por exemplo, a formulação de Fernando Ortiz ao conceito de transculturação, bem
como sua releitura desde Angel Rama, forneceria subsídios significativos à
hipótese de um Teseu transculturado que, embora aparentemente vencedor da
suposta batalha com o Minotauro, não lograria êxito em sua aniquilação porque a
espada não pode aniquilar o relato, nem sangrá-lo. Limitando-se a apenas mais um
exemplo, a construção de uma interpretação do conto à luz do conceito de
antropofagia permitiria compreender tanto como Astérion vê Creta (conforme o
quadro de Watts, na base das referências de Borges à construção do conto) quanto
como se dá sua compreensão da relação travada com aqueles arremessados ao
labirinto, danados sob a ótica de quem está do lado de fora e que, desde fora, goza
de legitimidade para condenar, arremessando (dado não evidente, e não
questionado): partir-se-ia da hipótese de que um Astérion antropofágico não se
perceberia selvagem, de modo a desenvolver uma conclusão parcial de que, tal
como seu nome e sua condenação por Minos, a atribuição de uma essência
selvagem se mostraria, ela também, exógena, à revelia do sujeito nomeado.
6
Uma leitura de Cultura e imperialismo talvez se colocasse em acordo não
exatamente à hipótese de tais limites, mas ao fato de que as construções identitárias
sob tais condições seriam acometidas do que Edward Said denomina ―tragédia
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Borges se apresenta, qual equação identitária a ser resolvida por Astérion
enquanto sujeito-fora (Creta ainda lhe é o Dentro?), nos termos de uma fala
labiríntica que, se se reivindica casa em vez de prisão (ao que a palavra casa
aparece três vezes no primeiro parágrafo do conto), não pode obliterar o
caráter exógeno das definições de si, cujo nome fora roubado e substituído;
nem de seu lugar habitado e significado, definido pelos cretenses como
prisão; quiçá das narrativas de si pois, de fato, quem narra o conto?
Acompanhando desde o princípio a argumentação de Astérion, ora
tomado como narrador, se supõe que, ainda que Dédalo haja construído o
labirinto, Astérion se faz sujeito austiniano ao construir, a partir do que fora
planejado como prisão, sua própria habitação, apropriando-se ao preenche-la
de sentido. Ao engenho do arquiteto que executa sua obra ordenado pelo rei,
eis um sujeito a mudar o estatuto do labirinto que, de prisão designada por
um código jurídico externo, passaria a casa, construída por e para aquele que
a habita e a preenche de sentidos (ALVES, 2011). Para Astérion, não faz
sentido denominar prisão a uma construção sem portas. Dadas tais condições,
cabe a pergunta do narrador sobre o que autoriza seus interlocutores a pensar
que esteja preso onde não há portas: ―¿Repetiré que no hay una puerta
cerrada, añadiré que no hay una cerradura?‖ (BORGES, 2005, p. 85).
A hipótese de leitura do conto de Borges encontra parte de seu
fundamento no primeiro parágrafo, com as três ocorrências do termo casa,
designando o labirinto. Astérion apresenta-se sujeito enunciador a partir de
sua casa que, dada a ausência de portas, se encontra aberta àqueles que nela
desejem entrar, ainda que ―es verdad que no salgo de mi casa‖ (BORGES,
2005, p. 85). Mira-se aqui o personagem do quadro de Watts, na dupla
dimensão de contemplação à cidade-mundo e de espera àqueles que queiram
(que possam) entrar à casa. O argumento deste personagem depende de duas
verdades, não excludentes: não sai de sua casa e suas portas estão
permanentemente abertas. O uso da locução conjuntiva pero también es
parcial da resistência‖: ela precisa trabalhar a um certo grau para recuperar formas
já estabelecidas ou pelo menos influenciadas ou permeadas pela cultura do
império‖ (SAID, 1995, p. 267). Ciente de que a parcialidade atribuída à resistência
constitui não uma limitação, mas uma pedra de toque seja ao surgimento de
literaturas autônomas e renovadas nas Américas, seja ao estabelecimento de
ferramentas teóricas que propiciam aos pesquisadores a análise destas literaturas e
de sua relação com a literatura considerada canônica ocidental, é fundamental, em
um primeiro momento, evidenciar a legitimidade e originalidade deste discurso que
emerge de dentro do labirinto, de e sobre ele, a fim de estabelecer relação com
quem habita fora dele.
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verdad que assinala a preocupação de Astérion, ora narrador, em mostrar que
as verdades não são excludentes: isso oferece indícios de uma lógica não
homóloga ao princípio de contradição. Malgrado hoje se possa vislumbrar
diferentes sistemas lógicos coexistentes, e em concorrência à posição de
paradigma, pode-se supor a hegemonia de uma lógica silogística, regida pelos
princípios de não-contradição e do terceiro excluído, como base inconteste
ou, ao menos, majoritária no pensamento cretense (e portanto, grego) à época
do relato mítico. Eis um homem touro eivado de motivos para ser excluído da
cidade: além de filho da esposa do rei sem ser filho do rei; e além de haver
operado a prática desviante sobre a prisão que se lhe impingiu; seu
pensamento opera em uma lógica distinta a de seus algozes que, para o
devido tratamento da diferença, suprimiram-na.
Uma análise das condições sob as quais Minos, com a aquiescência
dos cidadãos cretenses, condena Astérion ao labirinto como punição
exemplar a sua diferença, seguida da ressignificação e apropriação do
labirinto da parte por Astérion, a ponto de condenar à morte todo aquele que
adentrá-lo pela impossibilidade de não se perder, ofereceria um exemplo
representativo do modelo panóptico apresentado por Michel Foucault no
terceiro capítulo de Surveiller et punir: no que concerne ao mecanismo de
dominação, tudo está previsto no sistema, exceto a possibilidade de que
aqueles que estão subjugados reconheçam e se apropriem das regras e
códigos do sistema. Convém não esquecer que a saída triunfal de Teseu só se
torna possível mediante o recurso ao mapa, desde a posição externa de
Ariadne. Da prisão sem portas construída por Dédalo, somente Astérion tem
a chave: ―Por lo demás, algun atardecer he pisado la calle; si antes de la
noche volví, lo hice por el temor que me infundieron las caras de la plebe,
caras descoloridas y aplanadas, como la mano abierta‖ (BORGES, 2005, p.
85). Como possibilidade aterradora aos cidadãos cretenses, aquele que
deveria permanecer prisioneiro tem a chave do que não têm portas; Astérion
pode entrar a sair da cidade, sem que a recíproca seja verdadeira. A cidade
não é labiríntica; a cidade não tem quatorze (infinitos) desdobramentos como
o labirinto. Talvez por isso, Astérion não se satisfizera com o simples uso de
pero a fim de propor uma relação disjuntiva: neste caso, o labirinto consistiria
de fato em uma prisão exatamente porque ele nunca sairia de casa, devido ao
trancamento das portas. A porosidade do labirinto, em sua condição de casa
sem portas, permite trocas culturais e, em decorrência destas, processos
identitários entre o sujeito e a alteridade pois o labirinto, enquanto
encruzilhada (WALTER, 2008), perfaz o lugar de entrecruzamento, de
trocas, de processos nos quais Astérion se insere saindo ou permanecendo no
labirinto e, mais radicalmente, à revelia de um projeto arquitetônico que
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visava, em sua origem, ao isolamento do suposto prisioneiro. Se as portas
infinitas aprisionariam a criatura monstruosa pelo excesso de saídas
absolutamente iguais, promovem o efeito contrário de permitir a porosidade
entre Astérion e os sujeitos fora do labirinto, conforme suas vontades:
Es verdad que no salgo de mi casa, pero también es
verdad que sus puertas (cuyo número es infinito)7
están abiertas día y noche a los hombres y también
a los animales. Que entre el que quiera. (…)
Asimismo hallará una casa como no hay otra en la
faz de la tierra (BORGES, 2005, p. 87)
Contudo, instaura-se um conflito na definição do lugar de Astérion
quando se percebe a necessidade de construir o labirinto externo à cidade:
graças ao muro em torno de Creta, toda a grande porção de mundo além-deCreta resume-se a um lado da cidade, o de fora. Astérion, porque monstruoso,
não pertence à condição humana da qual partilham o conjunto de habitantes
cretenses, ao que se lhe deve estabelecer um lugar específico, externo aos
muros da cidade8.
Desde a passagem do Livro III da República (376e – 401d), constatase um modo clássico de lidar com a diferença, tratando-a como algo a ser
suprimido (por execução, por catequese, por aculturação). Afim a este
7
A passagem em questão traz a seguinte nota: ―El original dice catorce, pero sobran
motivos para inferir que, en boca de Astérion, ese adjetivo numeral vale por
infinitos‖.
8
Muros têm a propriedade de definir essencialmente, estabelecendo uma dupla
dimensão do que está dentro e do que está fora, melhor dizendo, do que é e do que
não é. O muro divide o mundo em duas grandes partes constitutivas: o dentro, e o
resto. Supondo por um momento que a cidade é o mundo, torna-se possível supor,
como conseqüência, que o resto do mundo traz em si, como deficiência congênita,
o fato de não ser mundo: the West and the rest, conforme a expressão de Stuart
Hall. Não por acaso, o termo resto demonstra uma ambiguidade análoga em
diferentes línguas modernas (inglês, francês, português, espanhol), denotando o
excedente e conotando o dispensável, a sobra, o detrito. De modo agudo, o muro
define em sua natureza o que não pertence à cidade. Para além de seus domínios,
constroem-se o cemitério, o asilo, o manicômio. Para além de seus domínios,
constroem-se presídios e conjuntos habitacionais definidos arquitetonicamente
como lugar da população de baixa renda. Para além de seus domínios, negros
marrons construíram quilombos espalhados pelas Américas, entre os séculos XVII
e XIX.
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conceito subjacente de diferença, a metafísica da presença, na formulação de
Jonathan Culler (1997), intenta demonstrar precisamente o fundamento
filosófico responsável pela definição da diferença não apenas como o que
define em relação ao ser (daí a diferença, definida essencialmente como o que
não é) mas como ausência ou insuficiência de ser. Sobre a diferença como
conceito definidor de Astérion, é preciso ressaltar que Teseu jamais cogita a
possibilidade do Minotauro dizer algo sobre sua própria condição humana em
uma voz, quando enunciada, capaz de questionar e subverter o lugar
estabelecido por Minos. Teseu jamais supõe que este do qual não sabe o
nome seja capaz de, através do relato sobre si próprio, efetuar um trabalho
que, desde a primeira palavra, desde o primeiro tropo, transformaria o
labirinto em um lugar praticado reorganizando, destarte, o jogo das relações
entre o labirinto e Creta: ―-¿ Lo creerás, Ariadna? – dijo Teseo -. El
minotauro apenas se defendiñ‖ (BORGES, 2005, p. 88). Não se trata de uma
coincidência o fato de que muitos leitores de Borges, antes deste conto
específico, desconheciam o verdadeiro nome do minotauro. Astérion, como
quaisquer dentre nós, não necessita rememorar o próprio nome em seu
discurso: sabemo-lo através do título do conto, da epígrafe de Apolodoro em
seu papel de assinalar o nome com o qual o sujeito percebe e nomeia a si
mesmo, bem como da passagem em que descreve seu jogo preferido, ―es de
el outro Astérion‖:
Pero de tantos juegos el que prefiero es el de otro
Astérion. Finjo que viene a visitarme y que yo le
muestro la casa. Con grandes reverencias le digo:
―Ahora volvemos a lo encrucijada anterior‖ o
―Ahora desembocamos en otro patio‖ o ―Bien decía
yo que te gustaría la canaleta‖ o ―Ahora verás una
cisterna que se llenó de arena‖ o ―Ya verás como el
sótano se bifurca‖. As veces me equivoco y nos
reímos buenamente los dos (p. 87)
A necessidade de nomear-se três vezes ao longo da narrativa pode,
contudo, também ser interpretada com impossibilidade de dizer-se a si
próprio, da parte de um sujeito condenado a um nome exógeno, amiúde pleno
de sentidos apenas no horizonte cultural daquele que nomeia. A nomeação
exógena, e a violência dela decorrente, fornecem um sintoma nas últimas
palavras do conto, nas quais se percebe um Teseu vitorioso em seu intento,
descrevendo a Ariadna uma besta recentemente morta, ou seja, ―el minotauro
apenas se defendió‖. Há dois indícios textuais de que Teseu termina
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vitorioso, na forma de duas violências: a espada na qual ―ya no quedaba ni un
vestigio de sangre‖, representando o aniquilamento físico de Astérion; e o
apagamento do nome daquele que morrera, condenado a permanecer
registrado na história como ―el minotauro‖. Aniquila-se não apenas o corpo e,
com ele, a existência física, mas o nome e, com ele, todas as memórias dela
decorrentes. É possível dizer que o recurso à memória para nomear a si
próprio representa uma prática desviante porque busca respostas provisórias
(a memória, uma vez inventada, traz em si o germe da reinvenção) a uma
dominação não evidente (Quem nomeia? quem outorga o direito de nomear?)
ante a qual é preciso buscar os fundamentos de resistência em outro lugar.
Em se tratando de sua casa, é pertinente supor que Astérion, como
qualquer pessoa, jamais se perde dentro dela; contudo, em seu depoimento,
convém perceber o quanto considera necessário observar, reiteradamente, que
não há portas ou fechaduras em sua morada, bem como o fato de que se trata
de uma casa e não de uma prisão. Nessa operação de reiterar, reexplicando as
razões pelas quais não é um prisioneiro, se instaura a prática de um lugar
anteriormente imputado por um outro, mediante um ato de violência. A
despeito da prática desviante de tomar para si a definição do nome e da casa,
constata-se um limite fulcral no discurso de Astérion, permanecendo definido
e condicionado pela apreciação de um Outro que o domina excluindo e
aprisionando, um Outro que ressurge sorrateiro, soberbo, na última palavra
própria ao vencedor da batalha. A análise do conto de Borges permite
perceber uma troca cultural entre dois interlocutores que partilhariam de uma
mesma língua; contudo, seus respectivos usos dessa língua gozam,
paradoxalmente,
de
estatutos
distintos,
porque
estabelecidos
hierarquicamente e condicionados não a possíveis níveis de proficiência mas
ao lugar de onde se enuncia nessa mesma língua. Eis porque, ao final, Teseu
declara admirado a Ariadna que este apenas se defendera, o que sinaliza ao
leitor os ouvidos moucos de Teseu a todo discurso anterior de Astérion, em
um relato encerrado por uma linha em branco (talvez a navalha da espada de
bronze de Teseu) e o discurso final de Teseu a Ariadna, relatando
laconicamente toda sua ignorância ao discurso de Astérion ora proferido na
mesma língua. Teseu, no romance homônimo de André Gide (1947) que
consiste, exatamente, em seu compte rendu, constroi uma narrativa
igualmente mouca, ainda que seu capítulo final pretenda, em certa medida,
compreender o Minotauro, a compreensão tomada, aqui, em seu sentido
hermenêutico. Não obstante, em vez de uma retratação, percebe-se em sua
expiação o limite de seu esforço de compreender tanto a esposa que, enfim,
não era adúltera, quanto o ser híbrido que, ao fim e ao cabo, não era um
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monstro9. Nos termos da reflexão ora em curso, é possível sugerir que, cinco
anos depois de André Gide, Julio Cortázar propõe em Los reyes uma fórmula
mais efetiva no momento em que o minotauro passa, efetivamente, a ter voz,
não permitindo a Teseu outra alternativa salvo o assassinato: ao travar a
batalha contar aquele que não deveria ter voz, só resta ao heroi matá-lo
calando-o.
A prática desviante de Astérion se evidencia quando aquele que
certamente tem um nome, um discurso e sabe como organizar sua própria
casa, reivindica que prescinde da intervenção de Teseu ou de quaisquer
cidadãos cretenses. Contudo, em momento algum, durante sua breve entrada
no labirinto (entrada de uma linha em branco e quatro linhas textuais), Teseu
compreende Astérion, ser derradeiramente renomeado por quem o assassina.
Em uma outra perspectiva, a homologia reivindicada por Astérion
entre a casa e o mundo pode ser, à guisa de conclusão, nutrida de um sentido
positivo, no qual o deslocamento conferiria ao ser labiríntico, provido de
uma língua labiríntica e nutrido por uma cultura labiríntica, a condição de
estar em casa em qualquer lugar uma vez que a casa é o mundo – marca
ressaltada pela expressão mejor dicho, a ratificar a primeira ideia de que a
casa é ―do tamanho do mundo‖. À medida que este habita de linguagem e de
sentido sua ilha-casa, torna-se possível examinar as práticas desviantes no
conto de Borges enquanto movimentos identitários, sob a forma de processos
de mobilidade cultural constantemente negociáveis e necessariamente
provisórios.
THESEUS, THE LABYRINTH AND HIS (ITS) NAME
ABRSTRACT: The present article proposes an interpretation of "La casa de
Asterion", in Jorge Luis Borges´ work El Aleph, to highlight the claims of the
name, and the labyrinth (as a place inhabited) while instances of identity
construction of the protagonist, Asterion. The terms Detour, in the
formulation given by philosopher Édouard Glissant (1997), as well as the
concepts of place (Glissant, 1996) and glocal (WALTER, 2008), are now
taken as theoretical fundamental to this article. The interpretation proposed,
operating a clipping text that focuses on the enunciation of Asterion in their
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Não é negligenciável o fato de que, das leituras posteriores do contexto grego,
apreendera-se a definição de hybris como impureza, defeito congênito a ser
suprimido.
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definitions of himself and the labyrinth, is based on the protagonist's effort to
understand it like home and, in this condition, inhabit it and fill it sens.
Keywords: Detour. Place. Glocal.
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