Tirando de Letras

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Tirando de Letras
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Tirando de Letras
Vocábulos portugueses quinhentistas
remanescentes na fala popular brasileira
Rosa Assis
Doutora em Letras. Professora da Universidade da Amazônia-UNAMA
Ao ler-se a obra de Bernardim Ribeiro, mesmo sem a preocupação nem a pretensão
de uma análise acurada de sua linguagem, saltam aos olhos certas características que o
tornam um modelo ímpar nas literaturas européias e uma figura singular na língua
portuguesa. Assim é que, não obstante haver-se tornado comum no século do poeta a
preferência e até mesmo o gosto pelo bilingüismo (português/espanhol), Bernardim, ao
contrário de seus contemporâneos, manteve-se fiel ao uso exclusivo de sua língua materna
como meio de expressão literária.
Por outro lado, diz-nos Serafim da Silva Neto ser a linguagem de Bernardim Ribeiro
um misto de modernidade e arcaicidade.1 Com efeito, o poeta enquadra-se inteiramente
numa fase de transição entre o arcaico e o moderno, e isso reflete-se em suas composições
em geral e, em particular como veremos, na égloga Ribeiro e Agrestes (edição Ferrara,
1554), que bem documenta esse período transitivo da nossa língua, uma vez que em
seus versos são muito freqüentes lexias presas à fase arcaica, paralelamente a outras,
variantes, que o são à fase moderna, a exemplo de [ley’šax] / [dey’šax], pera/para
[‘peøË] / [‘paøË], fantesia/fantasia [fã’teziË] / [fã’taziË].
O vocabulário bernardianiano, na égloga em apreço, apesar de não ser rico em
variedade de palavras, o é em expressividade, sonoridade, ritmicidade, recursos extraídos
de uma linguagem tipicamente cotidiana, mas sem deixar de ser uma linguagem padrão,
culta, ao lado de formas toscas, deformes, vulgares, formas ingenuamente simples, ou
até diríamos, formas simplórias gramaticalmente, mas vivas e ativas no falar de antanho,
em Portugal, como ainda hoje na fala comum do povo brasileiro, tais como: enxemplo
[ë’zëplU], grória [‘g øÉ øyË], crara [‘k øË øË] e outras assim.2 Esses e outros
“inzemplos” , se não ocorrem generalizadamente em todo o território nacional, todavia
são numerosos e marcantes entre a população iletrada em quase todas as regiões do
Brasil, principalmente nos municípios interioranos do Norte e do Nordeste, embora também
ocorram em menor escala nos subúrbios e periferias das capitais, inclusive de outros
estados. É o que se pode comprovar facilmente, compulsando os glossários e comentários
dos nossos léxicos regionais já levantados e publicados, alguns dos quais, a simples título
exemplificativo, incluímos ao final na bibliografia consultada.
De modo que, em matéria de formas arcaicas ou arcaizadas remanescentes, pode-se
dizer que muitos traços do português quinhentista, tal qual aparecem na escrita
bernardiniana, sobrevivem e coexistem amplamente no que se pode chamar, em termos
genéricos, a fala popular brasileira; assim como se diz, genericamente, música popular
brasileira, sabendo-se, embora, que são muitos e variados os gêneros, ritmos, batuques
SILVA NETO, História da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1970. p. 498
Para representar a pronúncia nasal em [e], [i] e [u], usou-se o trema à falta do símbolo específico de
nasalidade (til) sobre estes grafemas no programa de computador utilizado. Assim, registrou-se desta forma:
[ë], [ï] e [ü]. Agradeço à colega Ruth Abejdid, professora de lingüística na Universidade da Amazônia, a boa
vontade de fazer a transcrição fonética dos exemplos utilizados neste trabalho, transcrição que procura
aproximar-se dos registros de fala que julgamos mais passíveis de de ocorrer.
1
2
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e sotaques musicais por esses múltiplos e sonoros brasis afora. Aliás, cabe aqui lembrar,
de passagem, que a nossa tão cantada MPB é em si mesma, com suas letras e interpretações
vazadas no falar bem coloquial e cotidiano das nossas cidades, sítios e sertões, constitui
um documento inconteste e eloqüente das características, inclusive arcaizantes, de nossas
diferentes porém integradas elocuções e entonações de fala popular, em especial nas
cantigas, modinhas e toadas autenticamente sertanejas ou folclóricas.
Feita essa constatação de caráter geral, pode-se efetivamente dizer que aquelas
formas gráficas que estão registradas, documentadas nos versos bernardinianos e mesmo
abonadas pelos gramáticos quinhentistas, Fernão de Oliveira, João de Barros e Duarte
Nunes de Lião, até hoje remanescem, de modo generalizado, na fala popular brasileira,
graças à forte influência do colono e, posteriormente, do imigrante português nas diversas
regiões do Brasil. Com efeito, é interessante voltar aos textos do século XVI, ler uma série
de palavras escritas numa obra literária, em especial a de um escritor do porte de Bernardim
Ribeiro, e, no dia-a-dia de quase cinco séculos depois, ouvir aquelas mesmas palavras
ditas e repetidas de igual forma pelo nosso povo, palavras tão naturais ontem, como o
são hoje. É a perduração da linguagem quinhentista, forte e atuante, presente e constante,
na linguagem vintista do brasileiro comum, não por haver lido os textos antigos, mas sim
apenas escutado e repetido a partir do registro falado de nossos antepassados lusos, os
mais remotos e os mais recentes.
Por conseguinte, a linguagem do homem simples do presente reflete a linguagem
do homem culto do passado. Esses distintos níveis de linguagem, distanciados por tantos
séculos, encontram-se no entanto juntos através do tempo, unidos pela mesma língua,
ainda que em continentes diferentes. Para ilustrar, em linhas gerais, essas ocorrências, ou
sobrevivências lexicais, extraímos a seguir alguns versos da égloga Ribeiro e Agrestes, e,
paralelamente, registramos exemplos colhidos da boca do povo, tal como ele realmente
fala. Sempre que possível, abonamos nossos comentários com o posicionamento dos
gramáticos quinhentistas já citados.
1) Flutuações grafemáticas - em especial a conhecida troca do L pelo R Parece-nos ser, como admite Duarte Nunes de Lião, uma variação de caráter puramente
optativo, pois a comutação dessas letras em diversas lexias empregadas por Bernardim
Ribeiro, não terá implicado nem mesmo conduzido a mudanças de significado, nem
contribuiu para ajustar métricas ou rimas. A diferença é que enquanto Bernardim jogava
com as duas formas (claro [‘klaøU] e crara [‘k ø ar Ë]) o falante comum usa apenas
e somente uma, pois não se dá conta de que existe uma forma paralela, o padrão
popular é outro. O que era comportamento lingüístico-literário comum à época do escritor
português, é simples emprego ou registro espontâneo hoje na fala popular brasileira,
pois o povo não sabe outra forma de dizer.
Para melhor documentar esta informação, lembremos que no Glossário das poesias
de Sá de Miranda, diz a autora que a expressão “águas craras” é muito freqüente nos
autores renascentistas.3 Ora, se se trata de fato comum, por que não estendermos tal
flutuação (l /r ) às demais palavras, digamos, desse mesmo tipo, como groria, nubrado
etc? Vejamos como tais formas aparecem na poesia bernardiniana, respeitando-se sempre
a grafia da época:
Honde vam as craras aguoas (v. 42 ) [‘k ø ar Ëš])
Tudo bem craro se vee (v. 243) [‘klaøU]
CARVALHO, Carlota Almeida de. Glossário das poesias de Sá de Miranda. Lisboa, Centro de Estudos
filológicos, 1953. p. 84
3
Sentia elle por groria (v. 46) [‘g øÉøyË]
Pois no ceo há jaa nubrados (v. 665) [nu’bøadUš]
Para o gramático quinhentista Duarte Nunes de Lião, esta é a explicação para o
registro dessas oscilações, ou variações: ... Mas outros ha, em que podemos concorrer
com os Castelhanos, sem offensa das orelhas, screvendo com .l. ou com .r. se quisermos,
como: simplez ou simprez, craro, ou claro, obligar ou obrigar, clamar ou cramar, &
muitos, que por breuidade deixo..4.
2) O largo emprego da metátese ou interversão (dois fonemas contíguos
colocados numa ordem mais cômoda, segundo Grammont). - Esta comutação freqüente
no século XVI é uma constante na fala do vulgo no Brasil, especialmente na região Norte.
Parece-nos ser a marca de uma forte influência da colônia portuguesa nesta região,
sobretudo no Estado do Pará, no interior e na capital, marca particularmente característica
na fala do caboclo paraense. Sem dúvida porque Belém do Pará, no período pós-colonial,
foi como que eleita entre as cidades brasileiras para segundo lar dos nossos irmãos
imigrantes portugueses, que nela se fixaram maciçamente e de forma tão duradoura.
Assim, tanto ontem, nos versos de Bernardim (início do século XVI), quanto hoje (final
do século XX), no linguajar dos brasileiros, deparamos com tais oscilações na fala livre e
espontânea do povo:
Vem tromento e vai tromento (v.91) [tøo’mëtU]
Detreminarom os fados (v. 302) [detøemï’naøõ]
Em nada me detreminando (v. 368) [detøemï’nãdU]
Pregunta tudu 5++
[pøe’gütÙ ‘tudU]
Curiosamente, esse fenômeno em sua forma de transposição, é muito freqüente
também na pronúncia cabocla de nomes próprios, como Jáder/ Jarde, exemplo recente,
evidenciado nos meios de comunicação em Belém do Pará, quando pessoas do povo
(eleitores) eram entrevistados nos programas de propaganda eleitoral de um candidato
de nome Jáder, sempre pronunciado nessas ocasiões sob a forma metastática. O mesmo
se observara, anos atrás, embora mais raramente, com o nome de outro político ainda
mais famoso: Tancredo/ Tanquedo.
3) A redução do ditongo, fato que se opera quando o ditongo é formado pela vogal
anterior [e ] e semivogal [y]ç, sofrendo portanto a redução para [e]ç no ato da fala,
articulada nitidamente, ou desarticulada:
O ceo nem pexe o mar (v. 227) [‘pešI]
O má num tá pra pexe ++
[ U ‘ma ‘num ‘ta pÙ ‘pešI]
4) A coexistência de formas - Em Bernardim Ribeiro, a palavra “inimigo” aparece
com duas grafias distintas (ymiguo [ï’miguU] e enemiguo [ënë’miguU]), ocorrência
comum na linguagem escrita dos quinhentos. E também não é raro encontrar-se hoje
LIÃO, Duarte Nunes de. Orthographia da lingoa portuguesa. In: Origem da orhtogahia da lingoa portuguesa.
Lisboa, Panorama, 1864. p. 116
5
Os exemplos assinalados com duas cruzes ++ foram colhidos de falantes analfabetos e semi-analfabetos, em geral
empregados domésticos, das áreas periféricas de Belém do Pará.
4
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uma dessas formas no falar do brasileiro iletrado, mesmo sofrendo este, hoje em dia, o
bombardeio dos meios de comunicação, em especial a televisão, que penetra
“parabolicamente” nos mais longínquos lugares do Brasil, inclusive na vasta região
amazônica. É como se o tempo, com relação a essas palavras, tivesse estacionado
completamente nesses espaços, pois tais formas ficaram tão arraigadas e internalizadas
na gramática desses falantes, que se tornou quase impossível não dizê-las desse modo.
Não resta a menor dúvida, portanto, de que a presença de traços arcaizantes, quer do
ponto de vista lexical, quer do ponto de vista fonético, é marcante ainda hoje na expressão
oral do nosso homem do povo.
Nem teu enemiguo. (v. 636) [ënë’miguU])
Si livri dum enemigo, pra tê sempre um amigo ++
[ si ‘livøI dü ënë’migU pøÙ ‘te ‘sëpøI ü ã’migU ]
5) O uso freqüente da aférese é sempre tão natural e espontâneo como o fora
no século XVI e, particularmente, na égloga em referência:
Os versos todos fastados (v. 397) [fa š’tadU š]
As aguas nam custumado (v.321) [ku štü’madU]
Num tô custumado com esse come ++
[nü ‘to kuštü’madU kü ‘esI kü’me]
6) A epêntese, condicionada ou não pelo ambiente lingüístico, é forma regular em
Ribeiro e Agrestes, como o é na fala do homem do povo, no Brasil. Há casos em que a
explicação para o uso da epêntese é quase impossível, como oportunamente lembrou
Antenor Nascentes ao se referir à palavra bonecra 6 , realização lingüística tão próxima à
do presente, na fala popular.
Que despois vam dar o mar: (v. 474) [de š’poy š]
Vem despôs aqui ++
[‘vëy deš’poš a’kI]
tá faltano asfraltru na rua ++
[‘ta faÂ’tãnU aš’f øaÂtU nÙ ‘huÙ]
7) A síncope é a marca registrada da fala popular nas mais distintas situações,
como se verifica em parapeto [paøa’petU], prefeto [pøe’fetU]. É o caso também de
exprementar [ešpøemë’tax], tal como exatamente se lê em Bernardim:
Em mim quis esprementar (v. 399) [ešpøemë’tax]
8) A presença da nasalidade em formas orais é outra tônica daquela fase. É
claro que para isso deve ter concorrido o traço nasal já ocorrente na palavra. Particularmente
na lexia “exemplo”, dizia já Antenor Nascentes, em O linguajar carioca, que por parte do
vulgo “a repugnância pelo e inicial isolado já é antiga.” 7
O enxemplo dos passados (v. 400) [ë’zëplU]
Sempre dô bons enxempru pa elis ++
[‘sëpøI ‘do ‘bõš ë’zëpøU pÙ ‘elIš]
6
NASCENTES, Antenor. O linguajar carioca. Rio de Janeiro, Simões, 1953. p 62
Com relação ao estudo específico da realização fonética das vogais, quer em
posição átona ou tônica, este trabalho se limita a apenas registrar as variações
devidamente abonadas. - O uso de oscilações do tipo:
- a) [o] por [u]
Com sospiros verdadeiros (v. 99) [soš’piøUš]
Que sospiro por Mondenguo (v.354) [soš’piøU]
Me soyo jaa sostentar (v. 456) [soštë’tax]
Vô derrobá as manga ++
[‘vo dero’ba Ùš ‘mãgÙ]
- b) [u] por [o]
As aguas nam custumado (v.321) [kuštü’madU]
Nem me posso acustumar (v.322) [akuštü’max]
Nu armuçu cumu bem ++
[nU ax’musU ‘kümU ‘bëy]
- c) [e] por [i]
E sei quanto senteria (v. 603) [sëte’ øiË]
“Ela num vevi em paz” ++
[‘ ºlÙ nü ‘vºvI ï ‘paž]
Por que aguora he que as sento (v. 285) [‘sëtU]
Por que nam queres que senta (v.605) [‘sëtË]
Seus males assi dezia (v. 55) [de’ziË]
Dezia a merma cosa ++
[de’ziÙ Ù ‘mexmÙ ‘kozÙ]
A quem te he tam deferente (v.599) [defe’øëtšI]
São dos ermão deferente ++
[‘sãw ‘doš ex’mãwš defe’øëte]
- d) [i] por [ e]
Nam te ver fora milhor: (v. 215) [milÉ’x]
No caso específico do vocábulo milhor, este já se tornou voz corrente em quase
todo o território nacional, independentemente de classe social, econômica ou cultural;
basta lembrar a expressão:
É da milhor espéci.. ++
[‘º dÙ mi’lÉ e š’pºsI]
A explicação desta ocorrência, para o autor quinhentista Fernão d’Oliveira, está
simplesmente na vizinhança das letras, ou dos fonemas; em outras palavras, na íntima
7
8
Idem, p. 32
OLIVEIRA, Fernão d’. Grammatica de linguagem portuguesa. . Porto, Imprensa Portuguesa, 1871. p . 41
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relação que existe entre esses vocábulos, a ponto de uma forma interferir na realização
fonética da outra. Vejamos as palavras do mestre das gramáticas do século XVI:: “...
agora vejamos da comunicação que alghüas tem ou dalghüa partiçipação q todas antre
si: das vogaes antre .u. e .o. pequeno há tanta vizinhança q quasi nos confundimos
dizendo hüs somir e outros sumir: e dormir ou durmir e bolir ou bulir e outras muitas
partes semelhantes. E outro tanto antre .e. e .i. pequeno como memoria ou memorea,
gloria. 8
Como dissemos ao início, costuma-se caracterizar a linguagem de Bernardim Ribeiro
como sendo uma fusão de mordernidade e arcaicidade. Os traços arcaicos registrados na
égloga Ribeiro e Agrestes estão vivos e em vigor, ainda hoje, na fala popular brasileira,
de forma correta, corrente, até mesmo de forma padrão no falar do homem não
escolarizado ou com baixo grau de escolaridade, em quase todo o nosso país. E por
certo, os imigrantes portugueses desde muito radicados no Brasil, na Amazônia,
particularmente em Belém do Pará, são em grande parte os responsáveis pela sobrevivência
até hoje desse legado lingüístico do século XVI, cristalizando-se nos fenômenos fonéticos
aqui exemplificados. Fenômenos tão enraizados quão arcaizantes, que dão em especial
ao falar típico e pitoresco do caboclo amazônico, e mormente do caboco paraense, um
toque de primitivo, um quê de quinhentismo, ou um não sei quê que ressoa do tempo,
que vem de longe, dos velhos modos e dos rudes tempos do Descobrimento.
Referências bibliográficas:
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MARROQUIM, Mário. A língua do nordeste; Alagoas e Pernambuco.São Paulo, Nacional,
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OLIVEIRA, Fernão d’. Grammatica de linguagem portuguesa. Porto, Imprensa Portuguesa,
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PALHANO, Herbert. A língua popular. Rio de Janeiro, Simões, 1958.
RIBEIRO, Bernardim. Églogas. In:... Hystoria de menina e moça, per Bernaldim Rybeiro
agora de nova estampada e com svmma diligencia emendada. 1554.
SILVA NETO, Serafim da. História da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Livros de Portugal,
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TEIXEIRA, José Aparecida. O falar mineiro,São Paulo, revista do Arquivo Municipal, 1938.
VALENTE, André. A linguagem nossa de cada dia. Rio de Janeiro, Vozes, 1997.
VIEIRA, Maria Nazaré da Cruz. Aspectos do falar paraense; fonética, fonologia, semântica.
Belém, Universidade Federal do Pará, 1980.
Língua Falada e Gramática Tradicional
Maria Eulália Sobral Toscano
Universidade Federal do Pará
1. A propósito do tema
Gostaríamos inicialmente de tecer considerações acerca de algumas noções que
são pressupostas pelo tema deste trabalho, quais sejam, língua falada e norma gramatical.
Quando referimos “língua falada” da forma como o título deste artigo o faz (de
maneira generalizada, não específica e não aplicável a objeto algum em particular), há o
perigo de considerarmos “língua falada” como uma entidade única e homogênea, um
modelo de produção oral que certamente não condiz com a realidade de nenhum idioma.
Talvez possamos encontrar as raízes dessa postura em uma Lingüística que privilegiou,
com Saussure, a langue como objeto de estudo, ou preceituou, com Chomsky, o estudo
da competência, ou seja, uma lingüística que desconsiderou como objeto de investigação
a parole e o desempenho.
No entanto, a variação lingüística emerge em nossas práticas diárias a olhos vistos
e mesmo os não-iniciados podem constatar que usamos a língua de modo diferenciado
conforme diferenciadas sejam suas condições e modo de produção. Como falantes
competentes, selecionamos as possibilidades da língua segundo as representações que
fazemos da situação de interlocução, dos participantes, dos objetivos do encontro/dos
interactantes, etc. Sob essa perspectiva, a visão monolítica sobre os fenômenos da
linguagem que leva a postular uma fala idealizada, não sujeita aos condicionamentos do
tempo real e surda aos fenômenos de ordem pragmática, constitui uma noção teórica que
não possui equivalente empírico.
Em relação à noção de norma gramatical, entendemos que “a norma é, com efeito,
um sistema de realizações obrigadas, de imposições sociais e culturais, e varia segundo a
comunidade” (Coseriu, 1979:74) e que a norma privilegiada pela gramática tradicional é
apenas uma dentre as demais existentes. Essa norma que adquire o estatuto do certo, do
bom e do belo refere um uso extraído da língua literária de épocas anteriores à dos
falantes contemporâneos e é a única que se presta ao ensino. Logo, poderíamos dizer que
o objeto de estudo da gramática tradicional é a língua portuguesa escrita, literária, formal,
antiga (Bagno, 1999:61). Entretanto, se a referência na definição de norma é ao “como se
diz” e não ao ao “como se deve dizer”, “a ‘norma normal’ se adianta à ‘norma correta’, (e)
é sempre anterior à sua própria codificação” (Coseriu, op. cit., p. 69).
A par da norma gramatical, dita explícita, por compreender o conjunto das formas
lingüísticas que tenham sido objeto de uma tradição de elaboração, de codificação e de
prescrição, constituída segundo processos sócio-históricos, codificada e consagrada em
um aparelho de referência (usuários de autoridade e prestígio em matéria de línguagem,
academias, gramáticas e dicionários), há outras normas, ditas implícitas – formas que,
mesmo sendo raramente objeto de uma reflexão consciente ou de um esforço de
codificação, não deixam de representar os usos concretos por meio dos quais os indivíduos
se apresentam na sociedade (Aléong apud Barros, 1997:30-31).
Em assim sendo, a norma da gramática tradicional não se diferencia das demais
por “qualidades lingüísticas”, mas por fatores de ordem político-sócio-histórica: necessidade
de organização política, de unificação nacional, de domínio de grupos ou de classes
(Barros, op. cit., p.31). Ademais, ela é uma das normas da língua escrita, geralmente a
dos grandes literatos, ou seja, a norma que responde pelos usos dos escritores de prestígio.
Explicitadas as referências que norteiam os pontos de vista aqui discutidos, cumprenos então caraterizar o corpus objeto de estudo e discriminar os objetivos desta pesquisa.
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A situação de interlocução eleita para servir de palco para questões relativas à
língua falada e gramática tradicional é uma aula de pós-graduação na área de Língüística
do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Pará. Logo, nosso universo de
informantes é constituído por indivíduos de nível universitário, falantes da norma culta,
em razão de seu grau de conhecimento sobre as possibilidades da língua e da adequação
de suas manisfestações lingüísticas conforme as situações de interação.
Com base nesse material, demonstraremos que a variedade1 lingüística utilizada
pelos informantes (norma falada culta) traz formas tanto autorizadas quanto não autorizadas
pela gramática tradicional, constituindo-se numa emergência de forças opostas, um refluxo
conservador e um fluxo inovador. Em seguida, discutiremos a posição do professor de
língua portuguesa diante dos vários usos da língua e, por fim, questionaremos
procedimentos, sugeriremos posturas.
2. Língua falada e norma gramatical
O discurso da gramática reconhece e/ou avaliza certos usos concretos da língua,
atestando mudanças ocorridas ou em andamento, da mesma maneira como desautoriza
outros, dando a voz à tradição. Comprovamos essa posição analisando, sob o filtro da
tradição gramatical, alguns fatos de língua extraídos de nosso corpus, de modo a verificar
a dialética entre uso e norma explícita, uma relação de interdependência que demonstra
que determinados usos são constrangidos pela norma, e outros, as inovações, quando
constantes, aceitos e divulgados por falantes de grupos sociais de prestígio tendem a se
transformar em norma. Em outros termos, os usos têm forte influência na mudança
lingüística, uma vez que quando formas de expressão consideradas “erradas” passam a
ser utilizadas por pessoas cultas, elas perdem sua conotação negativa de “erro” e passam
a constar na lista do que é “certo” e recomendado.
Muitos usos concretos da língua, no entanto, ainda não são referendados pela tradição
gramatical e são referidos pelos gramáticos sob a rubrica observações. Encontram-se
circunscritos ao que chamam “língua familiar”, “linguagem não cerimoniosa”, “fala vulgar”,
“linguagem coloquial”, dentre outras denominações - uma comprovação de que esses
fatos continuam marginais e ainda não conseguiram vencer a barreira da tradição. A
menção deles, contudo, permite-nos afirmar que estamos diante de mudanças em
andamento e que, se aceitos e confirmados pelos falantes de prestígio, sairão da lição das
observações e passarão a incorporar o corpo das regularidades gramaticais.
2.1. A gente com valor pronominal
No português do Brasil, verficamos que a expressão a gente, com valor pronominal,
na função de sujeito, antes restrito à fala popular ou familiar, é fenômeno freqüente e
regular no discurso oral culto. Essa expressão alterna com a que é correspondente nós.
(1)
Aluno 5.: mas aí a gente tem de ver a perspectiva dos alunos ... porque nós podemos
dizer que é uma forma não marcada [gênero de um substantivo no plural]... e essa forma
não marcada ... influenciou por exemplo a escolha.
Prof.: é verdade
Aluno 5: é uma leitura possível (isso)
[
Prof.: é uma leitura possível... eu gostei do (termo) É uma leitura possível... a gente às
vezes arruma teoricamente... como melhor conVÉM ((risos))... sim... diga
Evanildo Bechara, em sua Moderna Gramática Portuguesa, 37a edição revista e
ampliada, datada de 2001, afirma, na parte resevada às observações, o seguinte a respeito
do emprego de “a gente”:
“O substantivo gente, precedido pelo artigo a e em referência a um grupo de
pessoas em que se inclui a que fala, ou a esta sozinha, passa a pronome e se emprega
fora da linguagem cerimoniosa.”2 (p. 166)
Celso Cunha, na Gramática do Português Contemporâneo, na 2a edição, datada de
1971, diz:
123)
“Na linguagem coloquial, emprega-se a gente por nós e, também, por eu.” (p.
Interessante registrar que Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do
Português Contemporâneo, de 1985, registram a observação sobre o uso de “a gente” da
seguinte maneira:
“No colóquio normal, emprega-se a gente por nós e, também, por eu.” (p.288)
Cumpre-nos pontuar a ambigüidade do termo “normal” em no “colóquio normal”,
que pode ser entendendido tanto como uma paráfrase de “linguagem coloquial”, quanto
uma referência a um uso generalizado e normalizado nas conversas em qualquer situação
de comunicação. De qualquer forma, esse uso ainda não está autorizado pelos gramáticos
na linguagem escrita culta, ainda que seja uma expressão normal na fala culta.
2.2. Você como indeterminador do sujeito
Concorrente do a gente, há a expressão você, que sugere uma certa indeterminação
do sujeito, ou encobre uma 1a pessoa do plural. Esse uso cria um efeito de sentido de
distanciamento, ou para isentar o locutor de alguma responsabilidade que o enunciado
naquela enunciação poderia implicar, ou para afastá-lo do contexto e aproximá-lo do
interlocutor, visto que o sentido primeiro do pronome é referir a pessoa com quem se fala
(Leite, 1997:87).
(2)
Prof.: (bom) ... e o nosso plural em português como em francês também né? ... você
tem cinqüenta mulheres e um homem ... o plural tem que ir para o masculino ... né?
((risos))
Aluno 5: na verdade o plural em português pode vir como forma não marcada também
... seria mais simples não marcar ... o plural
Prof.: é ... mas eu entendo que você pode deixar não marcada ... por exemplo ... se aqui
nós tivéssemos ... vinte pessoas ... dezenove mulheres e SÓ você de homem ... eu não
poderia dizer ...
Na seção relativa às observações, Bechara restringe o uso de “você” à língua familiar:
“Você, hoje usado familiarmente, é a redução da forma de reverência Vossa Mercê.
Caindo o pronome vós em desuso, só usado nas orações de estilo solene, emprega-se
vocês como plural de tu.” (p. 166)
Celso Cunha (1971:211), em referência ao pronome “você”, afirma:
“No português europeu, a forma pronominal tu é de emprego geral. No português
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do Brasil, o seu uso restringe-se ao extremo Sul do País e a alguns pontos da região
Norte, ainda não suficientemente delimitados. Em quase todo território nacional ela foi
substituída por você. Pode-se mesmo dizer que para a imensa maioria dos brasileiros só
há dois tratamentos de 2a pessoa: você, como forma de intimidade; o senhor, a senhora,
como forma de respeito e cortesia”.
Se o pronome “você”, na função de sujeito, referindo a pessoa com quem se fala, é
reconhecido pelos gramáticos de uso generalizado e vai se gramaticalizando como pronome
pessoal ao lado de “tu”, seu uso como indeterminador do sujeito não é sequer aventado,
um uso que é, entretanto, bastante difundido na norma falada culta.
2.3. O ter por haver
Um outro fenômeno de importante menção é a utilização do verbo “ter” com valor
de “haver” impessoal, uma realização que transgride as regras da prescrição gramatical.
Aliás, no português falado, popular ou culto, é alta a freqüência do emprego do verbo
“ter” no sentido de existir, um uso que se tem normalizado nas mais diversas situações de
comunicação em língua falada.
(3)
Prof: ah não ... mas tem um ponto em comum:: também ...
(...)
Prof.: parada quer dizer ... parada entre aspas ... né? tá? ... ah:: curso d’água ... então já
tem uma idéia ... mas ... em português é o volume não é isso? ... tamanho? ...
(...)
Prof.: não é isso? ... tem gente do sul ... também não quero falar do lugar dos outros
(...)
Prof.: a questão de parentesco ... há alguma coisa mais assim evidente pra NÓS do que a
questão de parentesco? (...)
Em relação ao uso do “ter” por “haver”, não flagramos nenhum momento da interação
aqui analisada em que o falante se corrige para atender aos preceitos da tradição gramatical,
o que demonstra o grau de normalidade atingido por esse uso. Mas, esse comportamento
não é regra. Nos arquivos do Projeto NURC/SP, há registros desse tipo de correção, o que
demonstra estar o falante muito preocupado com a geração de uma imagem de falante
culto, conhecedor da norma da gramática tradicional.
(4)
L1: agora tem sempre ...
L2: um ajuda o outro
L1: numa família grande há sempre um com tarefa de supervisor ... por instinto não é
por obrigação ...
(SP-D2 360:188-191, 141)
No caso de falantes das variedades familiar, popular, dentre outras, é muito provável
que ocorra a neutralização entre “ter” e “haver” em proveito do primeiro membro do par,
pelo fato de não existir, para os falantes dessas variedades, contraste semântico entre
esses dois verbos (Fávero, Andrade & Aquino, 1999:59). Constatamos, na realidade, que
Travaglia (1996:42) utiliza o termo “variedade” “
por entender que ele coloca num mesmo nível todos os tipos de variação, ao contrário do termos
‘variante’ (...) que parece dar a idéia de que existe uma forma da língua que é central, típica, melhor e que as
demais são variações dela.“
1
esse contraste está em vias de desaparecimento para os falantes em geral, e o emprego
do “ter” por “haver” está se normalizando no português do Brasil3.
2.4. Alguns casos de regência verbal
Outro campo fecundo, no âmbito desta investigação, é o da regência verbal.
Observamos já consagradas na linguagem culta formal falada e na escrita padrão, formas
outrora condenadas, como é o caso da construção da regência do verbo “chamar”, no
sentido de “dar nome”, “qualificar”, “apelidar”. Se a regência “chamar + objeto + de +
predicativo” foi corrente em Portugal no passado, não o sendo mais atualmente, no
Brasil, ela se firmou durante muito tempo somente na fala popular ou informal, porém,
hoje constitui fato da gramática tradicional - um uso que se transformou em norma.
Assim é que, quando consultamos nossos compêndios gramaticais, verificamos que o
verbo “chamar” é usado:
“a) com objeto direto + predicativo (precedido de preposição de)
Chamaram-no de mentiroso, de ingrato, e de vítima
(Carlos Drummond de Andrade)
(Cunha, 1971:357)
A esse emprego, junta-se a seguinte nota de rodapé:
“1) Esta construção, desusada em Portugal e condenada pelos puristas, é a predominante
na linguagem culta brasileira e tende a sê-lo também na expressão literária modernista”
(Cunha, ibid.)
Essa observação está de acordo com o registrado em nosso corpus:
(5)
Prof.: o que é grande ... o que é largo ... o que é comprido ... nós chamamos de rio
(...)
Prof.: tamanho ... tanto em largura quanto em comprimento ... quando é meNOR ...
dependendo da região ... nós vamos chamar de ... riacho ... uns colocam o diminutivo
de o rio ... riozinho ... quando é MENOR ainda ... a gente chama ... aqui no norte de::
igarapé ... lá no sul de ribeirão
Poderíamos continuar enumerando casos de regência verbal que, na língua falada
culta, constituem fenômenos inovadores, como, por exemplo, o emprego do verbo “assistir”
com objeto direto no sentido de “presenciar”, o uso do verbo “aspirar”, na acepção de
“desejar”, “pretender”, com objeto direto, dentre outros. Fatos, contudo, que permanecem
marginais e circunscritos à “linguagem coloquial brasileira”, conforme advertem os
gramáticos. Nesse particular, Sírio Possenti (1996:39) afirma que “há muitas formas que
nós eventualmente pensamos que ainda estão vivas, porque são ensinadas na escola e
por isso são utilizadas raramente, de preferência na escrita, mas, na verdade, já estão
mortas, ou quase, porque não são mais usadas regularmente. Por exemplo, quem é que
encontra falantes reais que utilizam sempre as regências de verbos como assistir, visar,
preferir etc. como as gramáticas mandam?”.
Diante desses fenômenos e, de tantos outros, igualmente não avalizados pela norma
prescritivo-tradicional, como deve se posicionar o professor de língua portuguesa? Como
lidar com a variação linguística em sala de aula? Façamos, pois, uma reflexão acerca da
posição do professor em relação aos vários usos da língua.
Tirando de Letras
3. A postura do professor de português frente à variação lingüística
Estamos vivendo uma época em que vigoram duas posições contraditórias em relação
à língua e seus usos:
1) a daqueles que entendem que a língua portuguesa está passando por um processo de
degenerescência, quer em razão da invasão de estrangeirismos (recordemos aqui o
polêmico Projeto do deputado federal paulista Aldo Rebelo (PC do B) que proíbe o uso de
palavras estrangeiras, prevendo inclusive, multas para quem as empregar), quer em
decorrência do modo “descuidado” com que os falantes a utilizam (lembremos as tão
populares lições do professor Pasquale; as declarações do acadêmico Arnaldo Niskier,
publicadas na Folha de São Paulo, em 24 de setembro de 1999, - “ (...) pode-se registrar
o fato, facilmente comprovado, de que nunca se escreveu e falou tão mal o idioma de Rui
Barbosa.”;
2) a daqueles que entendem que as variações e mudanças são processos naturais às
línguas (posição normalmente assumida pelos lingüistas e resumida nas palavras de
Marcuschi (2001:43): a língua é “um fenômeno heterogêneo (com múltiplas formas de
manifestação), variável (dinâmico, suscetível a mudanças), histórico e social (fruto de
práticas sociais e históricas) [e] indeterminado sob o ponto de vista semântico e
sintático (submetido às condições de produção)”.
A primeira posição reproduz um discurso autoritário que gera discriminação e
preconceito e nega a capacidade lingüística do aluno. Ou seja, um discurso que tem como
única referência a norma escrita dos grupos de prestígio, um ideal de língua correto e
belo que deve ser seguido por todos indiferentemente das situações de interlocução. Um
discurso que, de antemão, alija e estigmatiza aqueles que não dominam essa norma
prescrita. Ela ignora, portanto, que “todas as línguas variam, isto é, (que) não existe
nenhuma sociedade na qual todos falem da mesma forma” (Possenti, 1996:33-34). E,
assim, institui normas de escrever e falar segundo um prisma extremamente prescritivo e
ortodoxo, desconsiderando a questão da variação lingüística.
Em relação às palavras estrangeiras, o professor Leodegário de Azevedo Filho, em
matéria publicada na Veja (29 de agosto de 2001), a respeito do Dicionário elaborado
pela equipe de Antônio Houaiss, diz que “tudo o que vem de fora para simplificar permanece.
Não adianta espernear. Quem dirá ‘controle de embarque de passageiros’ em vez de
‘check-in’?” (p.121). Na verdade, o uso de palavras estrangeiras, mais especificamente,
do inglês, decorre da liderança tecnológica dos Estados Unidos e, como bem lembra a
matéria da revista, “antes do inglês, o francês teve o status de língua franca do mundo –
e atraía sobre si a mesma fúria nacionalista dos defensores do idioma pátrio” (p.121).
O discurso da segunda posição, ao contrário, admite que toda língua é variada, e
que não são os grilhões dos decretos ou da gramática tradicional que frearão suas
mudanças, já que é da natureza da língua a variação. Sob essa ótica, consideram-se as
realizações concretas da língua, tanto falada quanto escrita, sem confundir seus papéis e
contextos de uso e sem discriminar seus usuários (Marcuschi, 2001:22).
Claro está, para nós, lingüistas e professores de língua portuguesa, que postura
assumir e defender. Mas talvez não estaja claro como fazer desse discurso nossa prática,
uma vez que parece residir em nós mesmos as forças antagônicas da inovação e do
conservadorismo.
Dionísio (2001:75-76) atesta a presença dessas forças contraditórias e do
descompasso entre discurso e prática quando analisa alguns livros didáticos de português.
Eis o que nos diz a pesquisadora:
“Azevedo (Palavras e criação: língua portuguesa. São Paulo, FTD, 1996), apesar
de afirmar que ‘as línguas não são imutáveis, pois sofrem alterações’ e que ‘as línguas
Os grifos nas citações são nossos, para destacarmos o registro da língua que autoriza tais formas.
2
também não são uniformes; refletem as diferenças entre os grupos de falantes e as
diversas situações em que a fala ou a escrita ocorrem’, propõe uma atividade em que o
fragmento de texto utilizado evidencia uma atitude preconceituosa dos personagens (a
própria professora e os demais alunos) em relação ao aluno que fala numa variedade
diferente da que a professora usava:
(1)
‘5. Rodrigo veio do sítio para a escola doidinho para aprender e descobrir os segredos
que havia no encontro das letras. Leia o diálogo dele com a professora.
- Rodrigo, trouxe os exercícios da semana passada? Perguntou ela, cumprindo a
promessa de cobrar.
- Eu truce, mas o di onti eu num consegui...
Nem acabou a frase e dona Marisa berrou:
- Repita: eu trouxe, mas o de ontem não consegui.
Rodrigo repetiu certinho, mas tremendo, vermelho e gaguejando. A sala morria de rir.
Rodrigo queria morrer, sumir, virar inseto e voar.
- E por que não conseguiu?
- Tive alguns probremas e num tinha quem mi insinassi.’
(Elias José. Uma escola assim eu quero para mim. São Paulo, FTD, 1993)
Agora responda:
a) A língua reflete as diferenças entre os grupos de falantes. Por que Rodrigo fala diferente
da professora?
Resposta do Manual do Professor: Pessoal
b) Você acha que Rodrigo deve aprender a falar e escrever na linguagem culta? Por quê?
Resposta do Manual do Professor: Pessoal.”
Observa-se, em relação à tarefa proposta, que:
- a menção das variedades lingüísticas não significa respeito por elas;
- não se discutem a discriminação e o ridículo a que o personagem Rodrigo foi
exposto, visto que não se discute sobre “os risos dos alunos” nem sobre “os berros
da professora”;
- o manual não orienta o professor na condução de um debate que leve em conta a
adequação da linguagem às circunstâncias de uso.
Como se evitar então a contradição entre o que dizemos crer e o que fazemos em
nossas aulas? Como fazer de nosso discurso nossa prática?
O caminho parece estar nas escolhas que empreendemos e na maneira como as
trabalhamos em sala de aula. Nossa prática docente deve concorrer para o pleno
desenvolvimento da competência comunicativa (lingüística, sociolingüística, textual e
estratégica) de nosso alunado, possibilitando-lhe o trânsito pelos mais diferentes contextos
de uso, posto que a língua constitui uma ferramenta da qual nenhum indivíduo pode
prescindir ao longo de toda sua vida, onde quer que ele viva e qualquer que seja sua
atividade. Cabe à escola “ensinar os alunos a perceberem a riqueza que envolve o uso
efetivo da língua como um patrimônio maior do qual não podemos abrir mão”, e não,
“formar lingüistas ou gramáticos e muito menos analistas da fala, analistas de texto ou da
conversação” (Marcuschi, 2001:30).
Os fatos de língua devem ser observados em função das variações inter- e
intraculturais, interpessoais e situacionais. Em assim sendo, a gramática do certo e errado
cede lugar à gramática do adequado e do preferível, tendo em vista as potencialidades
das formas lingüísticas em relação às situações de interlocução.
Imagine-se o constragimento de um professor que, após recriminar o uso do ter por haver, lesse em sala de aula
Drummond: “No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho.“, ou então Chico
Buarque: “Tem dias que a gente se sente/ como quem partiu ou morreu...“.
3
Tirando de Letras
É função da escola ensinar o português padrão, ou melhor, as normas cultas falada
e escrita. Porém, se o aluno não se apropria dessas normas é porque não se criam
condições para essa apropriação. Talvez esse insucesso esteja relacionado à mitologia do
preconceito lingüístico4 (“português é muito difícil”; “é preciso saber as regras gramaticais
para escrever e falar bem o português”, etc.) e a estratégias de ensino-aprendizagem que
não levam em conta práticas efetivas, significativas e contextualizadas.
Advogamos uma pedagogia (numa trilogia que considere conjunto de métodos,
conteúdos informativos e indivíduos alvo da ação educativa) que privilegie a exposição
dos alunos aos dados que têm de internalizar por meio de leitura e escritura, releitura e
re-escritura, para depois então passar à descrição e sistematização dos fatos de língua,
até mesmo porque só se pode falar sobre algo quando se tem domínio desse algo. Um
trabalho que trate os textos (e não orações isoladas ou regras gramaticais dadas a priori)
em função da adequação ou não, a seu contexto de enunciação (modalidade de língua,
registro, situação, interlocutores, objetivos comunicativos dos produtores desses textos,
etc.), um trabalho em que a correção (sim, é preciso corrigir) não humilhe, castigue,
reprove, estigmatize. Nesse fazer, espaço deveria ser aberto à reflexão sobre como a
língua situa e classifica o indivíduo em relação à sociedade em que vive, sobre os valores
sociais das variedades lingüísticas. Dessa maneira, estaríamos chamando a atenção de
nossos alunos, alertando-os mesmo, para a avaliação social por que passam os usuários
das diferentes formas de falar, porquanto a língua fornece meios para a identificação
social de seus falantes.
Em linhas gerais, sugerimos que nossa prática em sala de aula considere:
a) produções lingüísticas, faladas e escritas, autênticas de falantes reais em situações
de uso de fato ocorridas;
b) a variação sem preconceito e discriminação;
c) os papéis desempenhados pelos falantes nas situações de comunicação;
d) as características estruturais e comunicativas dos diferentes gêneros textuais (as
inúmeras realizações empíricas de texto – carta, telefonema, conversa, palestra, aula,
notícia, telegrama, resumo, relatório, monografia, etc.).
Há atualmente inúmeras publicações que podem nos ajudar a refletir sobre as
relações entre variedades lingüísticas (faladas e escritas) e gramática tradicional assim
como podem nos auxiliar em nossas práticas pedagógicas. Leituras que nos permitem
repensar posições, que nos oferecem importantes subsídios para tratar de questões relativas
à norma, uso, fala, escrita, e que podem nos orientar na otimização de nossa atuação
profissional.
Há ainda um acervo bastante variado de registros de língua falada que podem ser
utilizados pelo professor em sala de aula, como material para investigação e produção do
conhecimento. Podemos também constituir nosso próprio banco de dados, coletando,
junto com nossos alunos, textos autênticos de língua falada e língua escrita em diferentes
contextos de uso, que poderão servir de objeto de nossa pesquisa-ação.
Gostaríamos finalmente de ressaltar que nosso compromisso enquanto professores
deve ser com um processo de ensino-aprendizagem sensível às diferenças individuais e
socioculturais, um fazer que não banalize o preconceito e nem naturalize a “beleza” e
“correção” de determinadas variedades lingüísticas. Ensinar sim as normas cultas, mas
para a transformação e não para a perpetuação das relações de poder e controle. Nesse
sentido, a assimilação das normas cultas “pode ser uma arma para romper o processo
reprodutor de nossa sociedade, no nosso caso, o processo de reprodução lingüística que
tende a silenciar usos não-prestigiados e os seus usuários” (Mattos e Silva, 2000:27),
uma assimilação que promova a libertação, pois é só dominando o que os dominantes
dominam que o dominado se liberta (Saviani,1997:66). Nosso investimento é decerto a
longo prazo, mas dele depende uma sociedade mais crítica e mais justa onde se respeitem
as muitas e variadas falas.
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Saviani, Dermeval (1997). Escola e democracia. 31a edição. Campinas (SP), Autores Associados.
Travaglia, Luiz (1996). Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramáticas no 1o
e 2o graus. São Paulo, Cortez.
Tirando de Letras
MULHERES & MULHERES: dondocas e
proletárias durante a belle-époque
Raimundo William Tavares Júnior
Mestre em História Antiga pela UFF.
Professor da Universidade da Amazônia- UNAMA
INTRODUÇÃO
Procuramos trabalhar nessa pesquisa com os ideais a respeito da mulher veiculados
por várias instâncias políticas e ideológicas que tentam construir uma imagem de doçura,
recato, ócio e submissão a qual se procura alcançar. Esse ideal está intimamente ligado à
práticas de controle do corpo e da sexualidade como forma de criar uma família mais
compatível com os ideais de um capitalismo em expansão. Como recorte espaço-temporal
escolhemos a chamada belle- époque, no final do século XIX e início do XX, na cidade do
Rio de Janeiro, no momento de profundas reformas urbanas relacionadas ao projeto de
urbanização e higienização da cidade.
No entanto, a tentativa de criação do gênero feminino, segundo o projeto das
elites, encontrará forte resistência nos meios populares, onde a mulher costureira, doceira,
lavadeira, prostituta, em função de sua situação concreta apresentará ideais e
comportamentos bastante diferentes dos pretendidos. Para buscar esse ideal de mulher
pesquisamos alguns um semanário de ampla divulgação à época, a Revista Fon Fon
num período de dois anos de abrangência.
O Brasil e o Rio Janeiro na aurora do Século XX
Com advento da etapa monopolista do capitalismo, aumenta a influência dos países
centrais sobre as áreas coloniais periféricas. Isso é viabilizado através do desenvolvimento de
técnicas de comunicação e transporte e, a partir de 1873, com a exportação de capitais para
empréstimos governamentais e a instalação de uma infra-estrutura de meios de comunicação,
transporte e bens de capital para as indústrias extrativas e de beneficiamento de matériasprimas. Dessa maneira é favorecida uma acumulação mais vultosa da produção industrial. Essas
mudanças se verificaram principalmente em países que possuíam uma certa acumulação primitiva
de capital como o México, Argentina e o Brasil e nas grandes cidades que eram capitais, portos
ou as duas coisas.
Essas mudanças, ao nível local, tiveram apoio das oligarquias e setores ligados à
importação. No Brasil, isso se dá, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX,
“coincidindo” com a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, instauração da
República e a hegemonia dos setores oligárquicos ligados ao café.
Ao nível ideológico, essas mudanças tentam passar a idéia de Progresso que nada mais
era do que a tentativa de se vivenciar as novas relações de cunho capitalista. Assim, há um
maior controle da família e sexualidade. Para a família burguesa se tratava de buscar a
diferenciação e superioridade em relação às classes populares o que as leva a se colocarem sob
a tutela médica. Para as camadas populares era necessário que se impusessem um tipo de
família higienizada, disciplinada, responsável para preparar o trabalhador da nova sociedade.
Para isso, a mulher deveria contribuir para que o homem assumisse o sustento da casa,
ocupando-se, ela, apenas com o lar e os filhos. Deveria, também, tirar o homem do “cabaret”,
da rua, diminuindo as despesas sociais do Estado em relação aos desperdícios individuais e ao
sustento de orfanatos.
Tirando de Letras
Toda a política em relação às camadas populares foi mais repressiva do que educativa
ao se prender vagabundos, destruir cortiços, afastar os pobres do centro da cidade,
expulsar grevistas etc. Para os médicos, a preocupação era fazer as famílias produzirem
cidadãos ordeiros e trabalhadores, e se expressou mais claramente com as reformas
urbanas. Para os juristas, a preocupação era também preparar o cidadão ordeiro, pacífico
e com uma nova moralidade, fosse através do controle direto – polícia e punições jurídicas
– ou indireto – difundindo papéis e imagens sociais a serem valorizadas, principalmente
através dos processos criminais. Em suma, o trabalhador teria que ter obrigações
domésticas para se adaptar facilmente à disciplina do trabalho. Era necessário reprimir
seu modo de viver, considerando bárbaro e inculcar-lhes valores, formas de comportamento,
compatíveis com a nova ordem e vigiar-lhes a rua e o espaço de lazer.
A cidade do Rio de Janeiro possuía no início do século uma população de 691.565
habitantes com um crescimento de 68% entre 1900 e1920 numa média de crescimento
de 3,2% ao ano. As exportações se aceleram na primeira década (63,7%). Há grandes
inversões de capital britânico, através de empréstimos, construção de ferrovias e portos.
Com a consolidação da República são afastadas da cena política as elites tradicionais e
grupos republicanos mais radicas. Observa-se, também, uma intensa atividade econômica,
financeira e industrial.
A população recebe grande fluxo imigratório¹, tornando-se culturalmente
heterogênea e aumentando as rivalidades étnicas e nacionais. Com o aumento populacional
diminuem as oportunidades de emprego e os salários. Em conseqüência, aumenta a
carestia, doenças, dificuldades de moradia, superlotando-se as casas de cômodo, estalagens,
cortiços e aparecendo as primeiras favelas. Há um aumento da freqüência aos botequins,
aumentam os vagabundos, mendigos, criminosos, alcoólatras, prostitutas e
subempregados. Nesse cenário a r eforma de Pereira Passos tenta consolidar a nova
ordem com seu ideário de progresso e higienização. Na verdade, atinge os objetivos do
capital, beneficiando os setores ligados à construção civil, aos meios de transportes e ao
grande comércio importador, articulado ao capital internacional. Se propõe a acabar com
a imagem da cidade insalubre e insegura. Com a imundície a promiscuidade, afastar o
perigo das barricadas a atrair o capital internacional.
Refletindo o panorama cosmopolita da cidade do Rio, no início do século a Revista
Fon Fon publica este artigo²:
O Rio é uma cidade cosmopolita
(...) Com efeito, aqui há gente de todas as nacionalidades, desde o
inglês dos bancos até o china que vende camalô e fuma ópio no beco da
Música – passando pelo português comerciante do subúrbio, o turco fófo
barato, o italiano das verduras, o alemão das casas de chop e o judeu das
casas de penhores que pode ser inglês, francês ou alemão, mas no fundo é
sempre judeu³.
O ideal de trabalho e enriquecimento pelo trabalho que a nova ordem tenta impor
é exemplificado nessa suposta carta de um carregador a um deputado que estava tentado
instituir a proibição do trabalho aos domingos:
(...) Sou carregador e livre pensador (...) Sou forte, muito forte
mesmo, agüento muitas arroubas na cabeça e como não tenho montepio,
nem espero uma pensão do congresso, trabalho muito, pois quero fazer
pecúlio para negociar ou comprar terras; por isso pego tudo, topo tudo,
qualquer carreto, faça sol ou chuva, seja dia de festa ou não. O seu projeto
não consulta os meus interesses (...) minha saúde e minha robustez só podem
o descanso do sono; Segundo (...) o meu dever é trabalhar para enriquecer,
pondo de parte, pontos de vista religiosos a respeito do repouso semanal
(...) amo a sociedade, quero-me rico, conde do Papa, proprietário e Vereador4.
Esse artigo, além de colocar na boca de um suposto carregador – que dificilmente
seria alfabetizado e se exprimiria nesse tipo de linguagem – a recusa de tirar um dia da
semana para descanso – o que está mais próximo do ideal patronal da época (ainda
estamos longe da legislação trabalhista) também passa a idéia de que o trabalho é o
principal meio de ascensão social, escondendo a mais-valia presente no sistema capitalista.
O Cotidiano das Camadas Populares
A Moradia
A cidade do Rio de Janeiro, no início do século, sofreu um grande crescimento
populacional, em decorrência, principalmente da imigração. Com isso, aumenta a demanda
por habitação o que o encarecerá preço do aluguel. A população pobre procurou, de
preferência morar nas freguesias centrais, onde havia o centro dos negócios, proximidade
do porto e casas comerciais. Era ainda, no centro, onde se estabeleciam atividades artesanais,
manufatureiras, comerciais e industriais.
O tipo de residência das camadas populares eram principalmente as casas de
cômodo, estalagens, cortiços e mais tarde as favelas. As casa de cômodo eram velhos
casarões em que o interior era dividido em pequenas partes. Nessas minúsculas divisões,
muitas vezes habitavam um número elevado de indivíduos. As estalagens compunhamse de pequenas casinhas ao redor de um pátio onde havia lavanderias e aparelhos sanitários.
O cortiço oferecia condições mais miseráveis do que as estalagens. Interessante observar
é que para as elites havia uma hierarquização que ia das casas de cômodos, considerada
inferior às estalagens e cortiços. Essa hierarquização baseava-se na oposição: vida coletiva
promíscua / vida familiar individualizada5.
Nesse momento, negros e imigrantes conviviam com nas mesmas condições. Apesar
da insalubridade dessas moradias, havia relações comunitárias bastante fores, e, nos
cortiços, a presença da taverna ou armazém e outros serviços como: alfaiates, sapateiros,
marceneiros, latoeiros e restaurante.
Com a urbanização promovida pela Reforma Pereira Passos, houve o deslocamento
em massa dessas populações para as áreas mais periféricas da cidade, obrigando o gasto
da população com o transporte. Vale lembrar ainda, que além das precárias condições
habitacionais, a população pobre era objeto de incessante vigilância policial, não só nos
locais que freqüentavam – ruas, quiosques, botequins – como nas suas próprias moradias.
O lazer e manifestações culturais
As ruas, praças, quiosques, botequins, sociedades dançantes, constituíam o espaço
de lazer preferido pela população pobre. No entanto, como já foi dito acima, a ação
policial vigiará e muitas vezes impedirá o acesso da população a esses locais. A polícia
procurará reprimir suas manifestações culturais como: os terreiros, o jogo do bicho, o
samba, a capoeira. Serão perseguidos também, principalmente a partir de 1903, os vadios,
ébrios, prostitutas, cartomantes, mendigos, capoeiras, caftens, etc.
As tavernas ou armazéns da esquina se constituíam em ponto de encontro das
camadas populares. As mulheres e crianças conversavam das janelas abertas e nas calçadas.
A praça em torno da igreja, era junto com a taberna, local de reunião, principalmente de
mulheres, onde se vendiam ervas, amuletos e havia curandeiras e cartomantes.
Tirando de Letras
Os festejos religiosos davam aos pobres oportunidade de autoidentidade e expressão.
O festival do santo só se torna solene durante a missa. Os mafuás eram festividades para
ajudar a construção de matrizes nos subúrbios. Aconteciam, aos domingos, nas praças
onde montavam pequenas barracas em que se vendia quase tudo.
Se as elites moradoras do Botafogo, Laranjeiras e Tijuca ouviam música operística,
valsa, modinha e os setores médios tinham preferência pelas polcas, quadrilhas e
schottisches; as camadas populares preferiam o samba, o maxixe e o batuque. No carnaval
popular estava presente os cordões, blocos e ranchos da Praça Onze (chamada de pequena
África pela presença marcante de traços culturais de ex-escravos baianos). O carnaval
tinha o caráter universalista, cósmico dando ênfase “a categorias mais abrangentes como
a vida em oposição à morte, alegria em oposição à tristeza, os ricos em oposição ao
pobres”6.
Apesar da intensa repressão direta e ideológica, as populações pobres afirmarão
sua identidade, no período estudado, e, em alguns momentos resistirão de forma violenta
através de motins espontâneos ou na Revolta da Vacina em 1904. O conflito também se
fazia presente no interior de micro-grupos populares como momento de disputa de poder
ou extravasamento de tensões.
A mulher
O ideal de mulher
No tocante a mulher havia todo um ideal vivenciado pelas elites. Esse ideal tinha
raízes nos trabalhos de Lombroso para quem a mulher era biologicamente inferior ao
homem, no positivismo de Comte que achava as mulheres como complemento ao homem
através do: “amor materno”, ternura, simpatia, pureza, moral mais elevada; e da medicina
que atestava a: sua fragilidade física, delicadeza, debilidade moral, sentimentalismo,
imaginação viva, indisposição para atividade intelectuais, sendo suas principais virtudes:
fraqueza, sensibilidade, doçura, indulgência, recato e submissão.
As mulheres que não realizassem o ideal do amor matrimonial e de maternidade
seriam discriminadas como: solteiras, prostitutas, apaixonadas. A mulher não deveria:
sair só, ir à determinados lugares como bordéis, não efetuar pândegas, ir à bailes, freqüentar
hospedarias, fantasiar-se, sair à noite a menos que fosse para reuniões privadas em
bailes, teatros, jantares e recepções.
As relações sexuais deveriam ocorrer dentro do casamento, sendo desculpadas as
relações extraconjugais do homem por ser “biologicamente” inerente a ele.
Reproduzindo o ideal de mulher, mais facilmente aplicado àquelas da elite temos o
seguinte artigo do “Fon Fon”: “Os sábados do Fon Fon. (...) Uma bela senhora Mme
Bulhoens Silva grande e esbelta, com umas mãos de estátua e um pensativo de cegonha.”7
Falando de um bilhete por ela enviado: “(...) um clássico bilhete de grande dama
róseo, perfumado escrita num nervoso e com a caligrafia irrepreensível das moças d alta
educação.”8
No fundo, a idéia que se tinha é que havia uma suposta natureza feminina que, de
acordo com o nível de educação poderia ou não, ser aprimorado. Outro pequeno verso
procura sintetizar a “mulher”: “Pensamento Profundo (Dr. Picolino). Em quatro verbos se
define a mulher: mamar, amar, domar e teimar.”9
Temos agora a visão preconceituosa das elites acerca do divertimento das
empregadas domésticas:
“Criadas ... que catam
Alegres rouxinóis da... cozinha e do... tanque. Conhecem de cor e
salteado todo o repertório carnavalesco do Chuveiro de Prata e da Flor de
Botafogo e são freqüentadoras assíduas dos bailes das Mutações.
Enquanto a panela ferve com o jantar dos patrões, ou enquanto
ensaboam a lingerie diária, distraem-se cantando, numa vozinha fina e
aflautada o último sucesso dos cordões amados, a última novidade das
modinhas populares.
(...) à noite preparam-se e vão espiar o seu guarda civil ou o seu
Mata-Mosquito. Às quintas e domingos perfumam-se medonhamente para
disfarçar um pouco a gasolina e vão à avenida Beira Mar.
Chama-se Maria... ou então... Doroles e Carme”10
Temos ainda o preconceito contra a mulher que não alcança o ideal feminino do
casamento e maternidade: “Dr. Picolino: a solteirona é sempre uma obra que não encontrou
editor.”11
E por último, a visão de mulher e de sua futilidade, vista pelas elites nesta sátira a
um suposto Clube Feminino:
“ Ladies Clube
Nesse futuro clube (...) vão ser tratadas importantes questões. Será
objeto de debate a extinção completa do registro de nascimento. Só assim
(...) acaba-se (...) com o termo de idade que tanto faz sofre às senhoras.
Em seguida, a assembléia estudará os melhores feitos das mangas
dos vestidos, o comprimento das saias, as aves que devem enfeitar os chapéus
e outras presentes cogitações do belo sexo.
Haverá semanalmente lições de suspender o vestido, de pisar e usar
o leque (...) O edifício do clube será na Av. Central, canto da R. do Ouvidor,
cuja entrada será absolutamente vedada aos homens, havendo no vestíbulo
uma grande estátua em homenagem à costureira, com quatro baixo relevos
alegóricos à Fábrica de Tecidos, à de Perfumes à de Sapatos e ao... Talento
dos homens.”12
A mulher das camadas populares
Pelas próprias condições objetivas e valores diversos dos dominantes, frutos de
determinadas opções culturais13, as mulheres pobres vivam de forma diferente à mulher
da elite. Os valores das classes dominantes ou eram rejeitados ou redefinidos,
reinterpretados dentro da realidade daquelas mulheres.
Dessa maneira, as mulheres pobres, em grande parte não se adaptavam às
características dadas como universais ao sexo feminino como: submissão, recato,
delicadeza, fragilidade. Elas trabalhavam muito, inclusive realizando a dupla jornada de
trabalho, na maioria das vezes ainda brigavam, falavam palavrões etc.
“Tinham relações sexuais sem passarem por um longo namoro;
declaravam conquistas amorosas, sentiam prazer na relação sexual,
procuravam este prazer, contrapondo o ideal da elite da maternidade. Saíam
só, voltavam tarde, não renunciavam ao lazer da rua ou a necessidade de
sobrevivência. Usavam um vocabulário por vezes ‘vulgar’ não trocavam um
amasiamento amoroso por um casamento formal.”14
O ideal de virgindade, casamento e honestidade tinha valor diferente do das classes
dominantes.
“Os compromissos afetivos eram geralmente decididos sem
intervenção de nenhum familiar, não havia prazos, horas e lugares para suas
saídas, namoravam, transitavam sozinhas pelas ruas e bondes da cidade
Tirando de Letras
sem dificuldade e decidiam sobre roteiros e companheiros a qualquer
momento.”15
Não havia uma associação entre virgindade e casamento, ocorrendo relações sexuais,
via de regra, antes do casamento. Aliás o amasiamento quase sempre substituía o
casamento formal, seja por dificuldades financeiras ausência de propriedade ou por opção.
Nos amasiamento a relação entre o homem e a mulher era mais igualitária do que no
casamento das elites. Para a realização do amasiamento ou casamento das mulheres
pobres não havia a necessidade de cumprir o ritual do flirt16, namoro e noivado que eram
vigentes entre mulheres da elite. Vejamos agora como se desenrola o namoro das elites e
como estava afastado do dia a dia das mulheres pobres.
“Fases da Lua
Primeiros idílios castos e tímidos.
Êxtases das primeiras contemplações. Beijos das primeiras
liberdades. A sala discretamente às escuras. Infindáveis narrações cotidianas
daquele atribulado amor, a que o papai se opunha e que a mamã protegia às
ocultas e a Genoveva, a criada, ajudava. O cenário é o de sempre – um
recanto da janela à noite. Primeiros beliscões, primeiras liberdades, enquanto
a mamã veneravelmente derramada na solidez amparadora da vasta cadeira
de balanço cochila calmamente.”17
Enquanto as mulheres das classes dominantes levavam uma vida de ócio, as
mulheres pobres se inseriam cedo em atividades produtivas e não encaravam as funções
econômicas incompatíveis com a feminilidade, embora também desempenhassem o serviço
doméstico.
“Estas mulheres, em sua maioria, não se casavam e tinham que
trabalhar muito. Exerciam tarefas consideradas mais adequadas às mulheres
como: lavadeiras, engomadeiras, costureiras, doceiros, rendeiras – que eram
as menos remuneradas. Algumas exerciam o pequeno comércio e, com a
existência de algumas indústrias, havia também operárias. Muitas eram
prostitutas.”18
Apesar de uma maior autonomia, a mulher pobre sofria violências: devido a falta
de trabalho muitas vezes eram obrigadas a ocupar espaços nas áreas condenadas pelo
sistema como: cartomantes, bicheiras, prostitutas, vagabundas e por isso eram vítimas
constantes das arbitrariedades policiais. O desconhecimento do corpo, a ignorância acerca
da sua sexualidade impedi-as, muitas vezes, de usufruir o prazer. O hábito de se considerar
a mulher como objeto descartável, substituível na velhice, a dupla jornada de trabalho, a
contradição entre o ideal da maternidade e a necessidade de trabalhar fora – sem tempo
suficiente de socializar os filhos – também foram e ainda são formas de violência sobre as
mulheres das classes subalternas.
E, contrariando o ideal de fragilidade, ternura e submissão, a mulher pobre brigará
com vizinhas, locatárias e até com seus companheiros e exercerá, muitas vezes, de violência
inusitada contra crianças e menores que lhe estavam subordinados.
CONCLUSÃO
O mais importante deste trabalho foi comprovar que as camadas populares foram
capazes de redefinir e vivenciar valores outros que não o que lhes queriam impor as
elites, com sua idéia de progresso e higienização. Isso é explicado pelas condições concretas
de sua existência como também por opções por outros valores culturais pré-existentes. A
mulher dessas camadas vivenciará sua sexualidade de forma diferente ao ideal, como
estabelecerá relações diferentes com seu companheiro, trabalhará, estabelecerá outras
formas de lazer e oferecerá resistência pacífica e violenta ao padrão vigente da mulher
meiga, frágil, materna e fria sexualmente.
Isso nos leva a reafirmar que, embora a ideologia dominante tente se impor a toda
a sociedade, isso não se dá de forma mecânica e pacífica. As camadas populares reagirão
e, contraditoriamente, muitos dos seus traços culturais, considerados bárbaros acabarão
por se impor às elites. É o caso do carnaval, como era vivenciado pelo povo, do samba,
terreiros e até do violão.
Acreditamos também, que a reação popular, frente a dominação – consubstanciada
na idéia de progresso – das elites, no período estudado, tem sucesso parcial. Pois, se
garante certo espaço de manifestação dos valores populares, não tem, ou não pretende
ter nenhum projeto de mudança global da sociedade.
1.
2.
3.
4.
5.
Ex-escravos, portugueses, espanhóis, italianos, sírio-libaneses, etc.
Todos os artigos extraídas da Revista Fon Fon serão colocados na ortografia ora vigente
Revista Fon Fon nº 17
Revista Fon Fon nº 16
Soihet, Rachel, Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana,
1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. p. 143
6. Soihet, Rachel, op. cit. p. 60
7. Revista Fon Fon n.º 1
8. Idem n.º 1
9. Idem n.º 2
10.Revista Fon Fon n.º 6
11.Revista Fon Fon n.º 16
12.Revista Fon Fon n.º 18
13.Esteves, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano ,IFCS-UFF, 1987
diss. de mestrado mimeografada . p. 237
14.Idem, ibdem p. 229
15.Idem, ibdem p. 302
16.Conjunto de olhares e gestos simbólicos das elites que antecediam o casamento. Esteves
Martha ob. cit. p. 274
17.Revista Fon Fon n.º 2
18.Soihet, Rachet ob. cit. p. 23
Tirando de Letras
CONCEPTISMO E FILOSOFIA
Elìas Hernandez Inostroza
Graduado em Letras pela Universidade da
Amazônia.Cursando Mestrado na UNICAMP
O tema do conceptismo, como estilo literário que integra os conteúdos de estudos
da disciplina Literatura Espanhola, pode ser abordado sob diversos aspectos, dentre os
quais, foi escolhida sua relação com a filosofia. A importância de estudar tal relação se faz
manifesto se observamos que o conceptismo desenvolve seus jogos de linguagem tendo
como substrato idéias e conceitos que fazia parta das correntes de pensamento moral e
filosófico existentes no século XVI, na Europa e na Espanha, lugar de onde se originou.
Pelas características de esta pesquisa, quanto a seus objetivos, podemos comentar
a necessidade de incorporar no estudo das obras literárias, elementos das ciências e do
conhecimento humano, de forma de poder compreender com maiores luzes as
particularidades de tal ou qual obra, seus embasamentos culturais e referencias aos fatos
históricos e sociais, dos quais certamente aproveitará material para se realizar como obra
mimética, recriando a realidade.
No caso em estudo, o conceptismo pode-se relacionar com duas formas de
pensamento existentes na Espanha do Século de Oro. Uma corrente moralista, desenvolvida
por teólogos e padres da Igreja Católica como uma retomada da Escolástica medieval
com um caráter crítico e moderno; a outra é um neo-estoicismo, advindo dos textos
latinos redescobertos no Renascimento e traduzidos ao vernáculo, que tiveram ampla
difusão na Europa.
Estas formas de pensamento que circulavam pelos centros culturais de Espanha,
na forma de tratados, livros ou peças de teatro, pode-se encontrar na obra dos dois mais
destacados escritores conceptistas: Baltasar Gracián e Francisco de Quevedo e Villegas.
Tentaremos mostrar como estes escritores incorporavam nos textos os elementos filosóficos
que alimentavam as duas linhas de pensamento em voga à época.
Sem pretender esgotar o tema, muito pelo contrário, cientes de que este estúdio é
de longo alento e precisa de trabalho paciente, domínio aprofundado das diferentes
linhas de pensamento, um amplo conhecimento histórico da época, e principalmente, o
aprofundamento no estudo da obra conceptista em suas diversas características, hoje
apresentamos estes escritos com a intenção de colaborar na discussão acadêmica do
tema.
ESPANHA E SUA ÉPOCA
Encontramos no século XVI o florescimento e a decadência de Espanha, que chegou
a ser o reino mais poderoso da Europa. Basta recordar que a partir do descobrimento de
América por Colombo, em 1492, a coroa espanhola deu início à conquista de extensos
territórios nas novas Índias. Alcançou tal magnitude que se podia ouvir nas cortes a
famosa frase: “o império em que o sol nunca se poe” fazendo alusão às Filipinas, as
colônias na América e África. A empresa foi altamente lucrativa para ela, pois os novos
territórios foram fartos em especiarias, ouro e prata, esmeraldas e outros produtos, que
afluíam em navios vindos de Cartagena, Lima, Veracruz ou Habana. Este comércio de
metais preciosos criou uma corte poderosa em Madri, da qual Carlos V soube aproveitar
Tirando de Letras
para governar os Paises Baixos, controlar a França e não se importar com a Inglaterra. O
dinheiro e metais que alimentavam o mercantilismo ajudaram a financiar a ContraReforma, da qual a Espanha se constituiu no seu mais poderoso baluarte, na Europa e na
América, colocando as artes barrocas ao seu serviço. O palácio El Escorial Monastério de
San Lorenzo (1563-1586), construído sob o reinado de Filipe II, é um reflexo desta
dualidade que imperava no século XVI. De um lado a necessidade de um palácio real para
a corte e de outro o monastério austero e frio na serra de Guadarrama.
Fora de Espanha o mundo estendia seus limites e consolidava impérios poderosos.
Na África sub-sahariana, desde 1400 se desenvolvia o poderoso império de Songay, no
atual território e Mali. Na Índia, o império Mogol vai-se estender desde 1526 até a
segunda metade do século dezoito, controlando extensas populações agrárias nas bacias
do Indo e do Ganges. Como exemplo de sua arte, o conjunto do Taj Mahal (1661) na
cidade de Agra, reflete a mais sofisticada arte mortuária. Mais perto da Espanha, o
Império Otomano (1300 – 1922) estava em pleno apogeu, dominando desde a Hungria
e os Bálcãs, a Criméia, a Ucrânia, boa parte da península Arábica, a Anatólia e o norte da
África. Este império turco teve sua capital na milenar Constantinopla. De seu poderio nas
artes e as ciências, hoje a cidade de Istambul é um museu a céu aberto (veja Hágia
Sófia). Já do outro lado do Atlântico, a França, a Holanda e a Inglaterra davam início a
novas conquistas, em território americano. Os ingleses na Virgínia (1607) e logo na baia
de Massachusetts, os franceses subindo pelo Mississipi e os holandeses fundando sua
colônia na ilha de Manhattam. Essas conquistas dão início a um intenso desenvolvimento
que vai culminar na formação de um novo estado.
Nas terras da velha Europa correm as novas idéias do pensamento moderno. No
campo da religião católica, se está vivendo a grande divisão da Reforma (1517-1648),
movimento liderado por Lutero e Calvino, e que acabou com a hegemonia de Roma. O
poder da Igreja, até então associado ao poder terreno da nobreza, muda agora de mãos.
A nascente burguesia luta por uma religião mais acorde com sua realidade, com o mundo
centrado no humanismo do Renascimento. A esta divisão que veio do norte, destruindo o
poder da Igreja Católica, Roma vai responder de forma enérgica, em diversas esferas. Ao
nível das idéias vai se voltar a uma filosofia doutrinária – a Escolástica. No plano das
artes, o dinheiro das cortes que apóiam à Igreja – Espanha, Nápoles, parte da França –
vai fluir para pagar os artistas, pintores, arquitetos, literatos, músicos e suas obras,
desenvolvendo um estilo artístico grandioso, o Barroco. Nas cortes, as bolsas de ouro
vindo da América passavam de mão em mão, até Velásquez, El Greco, Herrera. Na
Europa setentrional, as idéias humanistas se movimentaram em diversas direções, sob o
amparo de uma burguesia que toma consciência de seu poder social e de suas ambições
culturais e políticas. Da Rússia até a Irlanda, concentrando-se em Flandres, Holanda e
França, diversas correntes vão cobrar vida: o deismo, o empirismo, o enciclopedismo e
uma nova forma de pensar, com destaque para Kant, Galiléu, Locke, Copérnico, Descartes,
Newton.
O CONCEPTISMO: GRACIÁN E QUEVEDO
O termo conceptismo teve sua origem na obra Conceptos espirituales, escrita por
Alonso de Ledesma em 1612, e na qual aparecem algumas formas de linguagem que
diferiam das obras renascentista. As agudezas de conceitos utilizadas junto com figuras
de linguagem como as elipses, as antíteses, a polissemia de termos e a oposição dos
contrários caracterizam este estilo, em que se valoriza o laconismo, a economia de termos
para expressar uma idéia. Ja diz Gracián: “Lo bueno si breve, dos veces bueno”, São
exponentes deste estilo, no teatro, as obras de Pedro Calderón de la Barca – La vida es
sueño; El gran teatro del Mundo. Luis Vélez de Guevara – El diablo cojuelo, los autores de
empresas ou alegorías como Diego de Saavedra F.
Destaca como o teórico dentre eles, o nome de Baltasar Gracián (1601-1658)
um dos mais grandes moralistas espanhóis. Nasceu em Calatayud (Zaragoza), estudou
em Toledo e ingressou na Companhia de Jesus em 1635. Ensinou em Madri, Zaragoza,
Tarragona e Calatayud. A diferença dos outros escritores, ele não procurou a fama, o
apóio do público nem altos cargos. Com tal vida, ele foi arguto perscrutador da sua
sociedade e do humano. Podemos destacar entre suas obras: El criticón (1655), alegoria
entre mentor e em três volumes, pelo qual recebeu censura e seqüestro dos textos, A
validade de sua crítica tem ficado em destaque hoje em dia. Na Agudeza y arte del
ingenio (1642) desenvolveu os artifícios do conceptismo. El Discreto (1646) aponta para
a formação do homem em sociedade.
Francisco de Quevedo y Villegas (1580-1645), nasceu em Madri, ocupou cargos
na corte e estudou na Companhia de Jesus, na Universidade de Alcalá e logo na de
Valladolid. Na corte ele procura a proteção do duque de Osuna. Após viajar a Nápoles
com a corte, é encarcerado na La Torre e logo em Uclés (1621) marcando-se no seu
caráter o pessimismo e a acidez da sua crítica. Casou com uma viúva, para logo se
separar e envolto em novos e escuros assuntos envolvendo o duque e Olivares, ficou
preso quatro anos para logo de sair, doente, vir a falecer.
Sua obra é imensa e altamente complexa e contraditória. As obras satíricas e
burlescas mais conhecida incorporam o máximo ingenio, tanto na sua visão do mundo
real quanto à forma e a linguagem: La vida del Buscón llamado don Pablos (1626), Los
Sueños (1605-1622) cinco peças curtas conceptistas, em que se vertem tudo o horror e o
desengano do mundo, denunciando os vícios e enganos de testos e ofícios do mundo.
Sua obra moralizante atinge as críticas ao governo, com base no estoicismo e a filosofia
de Séneca: Política de Dios, gobierno de Cristo, tiranía de Satanás (1626) em que idealiza
um governo e Marco Bruto (1646), na qual critica os governantes da Espanha, à moda de
Plutarco. A poesia metafísica, amorosa, satírica, religiosa y moral, mais de mil ao todo,
foram compiladas em Parnaso español (1648) e Las tres musas (1670). Poesia leve e
popular tanto quanto seria e profunda, num estilo ágil, que exige do leitor esforço para
captar as figuras de dicção. Sua obra crítica e satírica se evidencia no paradigma conceptista
“Érase un hombre a una nariz pegado”, atacando de forma implacável seus inimigos. Na
poesia amorosa, de modelo petrarquista, a profundidade do sentimento alcança cumes
de perfeição do amor dano sentido à vida. Seu exemplo: “Cerrar podrá mis ojos la
postrera” em que a morte não vence o amor:
“su cuerpo dejara, no sin cuidado
serán ceniza, mas tendrán sentido
polvo serán, mas polvo enamorado”
Ao passo do tempo, tema recorrente e angustiante na literatura barroca, foi
dedicado:
Ayer se fue, mañana no ha llegado
hoy se está yendo sin parar un punto.
Soy un fue y un será y un es cansado.
Tirando de Letras
A FILOSOFIA MODERNA
Os séculos XV e XVI apresentam uma série de pensadores, explica Marías (1982),
que não apresentam grande notoriedade ou continuidade, mas que constituem a base
do pensamento moderno. Eles mantem vivo o pensamento filosófico que permite
sentar as bases da nova metafísica européia, mantendo a tradição medieval e grega
junto com uma nova forma de pensar a natureza.
Encontramos assim, Nicolau de Cusa e Giordano Bruno, os físicos modernos e
os escolásticos espanhóis. Justifica-se esta agrupação, pois os dois primeiros pertencem
à filosofia renascentista, os físicos concebem uma idéia moderna de natureza, com
base no nominalismo medieval com pressupostos rigorosamente filosóficos, ao tempo
que esta nova física permite entender a metafísica idealista do séc. XVII. Já os teólogos
espanhóis com o seu sentido de síntese da filosofia medieval em novos moldes
adequados à época, fazendo do seu escolasticismo renovado a base de novas formas
de pensamento prático, como o direto internacional. Formado por jesuítas e dominicos,
homens engajados nos problemas do seu tempo, este núcleo que se irradia a partir
do Concilio de Trento, vai ter importância decisiva nas lutas entre a Reforma e a
Contra-Reforma. Por tal motivo, a influencia de Suárez se fará sentir em Leibniz,
Descartes e os filósofos alemães até Hegel.
Nicolau de Cusa (1401-1464) Nasceu em Cusa, estudou em Pádua e foi cardeal e
bispo de Brixen. Formado na Escolástica, desenvolve temas, como a mística especulativa,
que pertencem à filosofia moderna. Para ele, Dios é o infinito; o mundo e o homem, o
finito; Deus redentor sintetiza a união do finito e do infinito.Desde este ponto central sua
filosofia o conhecimento pode-se alcançar pelos sentidos (sensus), o entendimento (ratio)
e a razão (intellectus) que levam ao conhecimento de Deus. Porém, existe uma mente
divina e uma mente humana, e desta última se interessa por conhecer o mundo, com o
fim de pô-lo de acordo com Deus. A unidade do infinito explica a diversidade do mundo.
Cada elemento do mundo é uma unidade, um microcosmos, na qual Deus nunca se
repete. Encontramos, neste filósofo, o germe de um tema da filosofia moderna, voltada
para a natureza e o homem. Esta explicação das individualidades das coisas e do homem,
e seu conhecimento pela ratio estará presente nas sátiras do conceptismo.
Giordano Bruno (1548-1600) é considerado o mais importante filósofo do
Renascimento. Na obra de Marías (1983) comenta-se que nasceu em Nola, fez parte da
ordem dominicana, a qual deixou, acusado de heresia. Após viajar pelo norte da Europa,
regressou a Roma, onde foi encarcerado e queimado pela Inquisição, aumentando sua
importância. Tendo como base à filosofia natural, as idéias de Copérnico e Nicolau de
Cusa, ele desenvolve a idéia de um Deus panteísta e alma do mundo, causa immanens, e
harmonia do Universo. Separando-o do Deus da religião. Para ele, o universo é infinito,
belo, pleno e cheio de vida, e com ele a natureza. Aqui ele se perfila nas idéias modernas.
Incorpora as unidades vitais, a mona monadum, substancia do todo presente nas partes.
Seu panteísmo influirá em Leibniz, Espinoza e Scheling.
Os físicos modernos, ao partir da metafísica nominalista, evoluem para uma ciência
natural, que se diferencia em dos aspectos - o método físico e a idéia de natureza – da
ciência aristotélica e medieval. Com base em Copérnico até Newton será elaborado todo
um corpus da física, modificada sucessivamente por Einstein, Planck, a mecânica ondulatória
e a física nuclear. Vejamos os principais:
Nicolau Copérnico (1473-1543), nasceu em Polônia, cônego, estudou medicina,
astronomia e matemática. Publicou De revolutionibus orbium caelestium, em que propõe
um sistema solar heliocêntrico. Suas idéias foram muitos contestadas, porém encontrou
seguidores na Espanha.
Juan Kepler (1571-1630), astrônomo alemão, com base nas idéias de Copérnico,
deu-lhes formulação matemática, propondo órbitas elípticas, valorizando a matemática
nas ciências.
Galileu Galilei (1564-1642), nasceu em Pisa, e deu fundamentos à física moderna,
pelo seu método e a natureza do objeto de estudo. A Igreja reconheceu o alto valor do
seu pensamento.
Isaac Newton (1642-1727), físico, matemático, filósofo e teólogo inglês,
representa a melhor expressão da física moderna, fundada em princípios unitários gerais.
Desenvolve a lei da gravitação universal, e interpreta a mecânica em formulação matemática.
Seu Philosophiae naturalis principia mathematica destaca dentro das obras do
conhecimento, ao desenvolver o método indutivo como forma do conhecimento, e considera
a natureza movida por razoes filosóficas e fundada em supostos metafísicos, que não são
de competência das ciências e sem da filosofia.
Marías (1983) continua a explicar a Escolástica espanhola, como um ressurgimento
importante, que culmina com o Concilio de Trento, no qual os grandes teólogos defrontemse com os problemas propostos pela Reforma e ao humanismo do Renascimento. As
obras do tomismo e da patristica são revisadas e comentadas num trabalho de atualização
às necessidades do momento, tais como o direito dos índios, o direito internacional. Estes
escolásticos, formados em Paris, vão-se juntar em Salamanca, Toledo e Alcalá, justamente
os lugares em que os conceptistas tiveram sua formação. Dali influenciariam o pensamento
em Roma e Coimbra. Com interesse centrado na religião, essa Escolástica não toca os
problemas filosóficos de cheio e perde sua força. Dentre os teólogos domínicos, que
organizaram a Igreja no séc. XIII destacam: Francisco de Vitoria (1480-1546), Domingos
de Soto (1494-1560), Melchor Cano (1509-1560) e Domingos Báñez (1528-1604). No
grupo dos teólogos jesuítas, podemos assinalar: Afonso Salmerón (¿?), Luís de Molina
(1533-1600), Fonseca (¿?).
Francisco Suárez (1548-1617), jesuíta granadino, conhecido como doctor eximius,
foi professor em Segóvia, Ávila, Valladolid, Roma, Alcalá , Salamanca e Coimbra. As suas
Disputationes metaphysicae e o tratado De Anima concentram sua postura em relação a
toda a tradição escolástica. Fiel ao tomismo, sua obra discute com liberdade os grandes
problemas da época, revisando e ordenando os conhecimentos acumulados em séculos.
Com base em Aristóteles, na primeira obra ele estuda o problema do ser com uma
metafísica independente das questões teológicas, separando teologia e religião. De especial
ingenio e perspicácia são suas idéias sobre a personalidade, a pessoa. Observamos aqui
um traço que marcará a sátira e as obras morais de Gracián e Quevedo. Já na sua obra
Tratado das leis, vemos como Suárez reconhece que o poder, derivado de Deus, está no
povo. Para ele o rei não recebe o poder de Deus, e sem do consentimento do seu povo.
Esta tese será desenvolvida nas sátiras e críticas ao governo, que fazem parte da vasta
obra de Quevedo.
MORALISTAS E POLÍTICOS
Consideramos importante complementar esta revisão das idéias filosóficas com o
que Emile Bréhier (1979, p. 226) denomina de “renascimento do estoicismo”. Mais perto
de uma ordenação e direção da consciência que de uma doutrina filosófica racional, o
estoicismo popular renasce com a leitura das obras dos clássicos Cícero, Marco Aurélio,
Epicteto, Plutarco e, principalmente, Séneca. Para o autor, esta idéias persistiram sempre,
Tirando de Letras
como um fundo tênue, marcado em obras de moral produzidas por Alcuino, Hildeberto
de Lavardin e, incluso em Roger Bacon, pelo que não seria propriamente um “renascimento”
dele. A moral do estóico não se opõe às doutrinas cristãs, a despeito do horror com que
Calvino vai-se manifestar contar dele. Os livros dos clássicos, traduzidos ao francês, vão
impregnar os espíritos de uma ordenação moral da conduta dos homens, que o cristianismo
favorece. Aqui encontramos a ligação direta com a obra de Quevedo e de Gracián,
observando as sátiras e obras de moral.
Descartando aspectos meramente filosóficos do estoicismo, a doutrina é
vivenciada publicamente por pensadores, escritores e homens públicos da época, que a
aplicam nas suas obras e trabalhos, na sua vida. A modo de exemplo, Bréhier (1979, p.
228), falando de Guilherme de Vair (1556-1621), em Paris, comenta: “escreveu o Traité
de la Constance et Consolation ès calamitez publiques (1590) (...) animado do desejo de
servir à pátria, de curara a França de todos os males, do luxo da nobreza, da simonia da
Igreja, da perversao da justicia”. Ressalta a coincidência com a vida e o trabalho de
Quevedo, o qual padeceu por diversas vezes a prisão, as injustiças da justicia, numa corte
em decadência, volúvel e corrompida, como a de Valladolid e a de Nápoles. Para Bréhier
(1979, p. 228) estes moralistas entendem que, “a fonte de nossos males [está] num juízo
mal regulado, cuja reforma depende de nós”, citando a Charrom na sua obra, complementa
“como condição para a sabedoria a libertação de erros e vícios mundanos e de paixões’e a
plena liberdade de espírito, tanto em juízo quanto em vontade’ [que] se acompanha do
preceito de ‘obedecer e observar as leis, costumes e cerimônias dos pais’ (...) e cabe ao
moralista pintar as paixões e suas causas”.
Consignamos aqui, que al mesmo tempo, se desenvolvia uma política realista, que
via nos povos e as sociedades os jogos de força, desconhecendo o poder divino do
governante. Não importam os meios, com tal de conseguir os objetivos, é um aforismo
da obra e Nicolau Maquiavelo (1469-1527), O Príncipe. É o problema do tirano, pelo
qual o povo se deixa manejar, renunciando ao seu direito natural já que as sementes do
bem estão dispersas e se corrompem com facilidade, comentado por La Boétie (15301563) e citado por Bréhier (1979).
A LOUCURA DO MUNDO
Tentaremos neste ponto do trabalho, juntar as duas peças do tecido, alinhavando
algumas considerações entre o pensamento filosófico barroco e a obra crítica e moralista
de Quevedo. Desde já, pedimos ao leitor atento sua compreensão para o resultado de tal
tessitura, considerando nossas mínimas habilidades no ofício.
Procuramos dentre os temas da literatura do barroco espanhol, a loucura do mundo,
para delimitar nosso final de trabalho, tendo em conta a preponderância de esta visão nas
obras barrocas de uma forma geral. Na seguinte passagem de El mundo por dentro,
observamos como as mazelas são chamadas de coisas boas:
“ Sustenta, por parecer señor, caza de halcones, que lo primero que
matan es a su amo de hambre con la costa, y luego el rocín en que los
llevan, y después, cuando mucho, una graja o un milano. Y ninguno
es lo que parece (...)? No ves a los niños preciarse de dar consejos y
presumir de cuerdo? Pues todo es hipocresía.(...) El zapatero de viejo
se llama entretenedor del calzado; el botero, sastre del vino, que le
hace de vestir; el mozo de mulas, gentilhombre del camino; el bodegón,
estado, el bodegonero, contador; el verdugo se llama miembro de la
justicia y el corchete criado; el fullero, diestro; el ventero, guésped, la
taberna, ermita, la putería, casa; las putas, damas; las alcahuetas,
dueñas; los cornudos, honrados. Amistad llaman el amancebamiento,
trato a la usura, burla a la estafa, gracia la mentira, donaire la malicia,
descuido la bellaquería...” (Quevedo, 1996, p. 278-280)
Esta ordem moral subvertida é princípio da loucura do mundo. Aparece no cotidiano
da sociedade o discurso contrário ao bem moral. Este discurso, de tanto bater acaba por
ser considerado como o normal, o correto. Então a loucura manifesta-se na tentativa da
volta ao verdadeiro. Porém, parece difícil ou impossível. Buscamos associar o tema do
pensamento e da loucura na literatura e nos deparamos com alguns comentários de
Michel em relação à exclusão do pensamento:
“Desde a alta Idade média, o louco é aquele cujo discurso não pode
circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja
considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem
importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo
autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no
sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um
corpo: pode ocorrer também, em contrapartida, que se lhe atribua,
por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma
verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de exagerar com toda
ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber”.
(Foucault, 2000, p. 10).
Comenta-se que era, através de suas palavras que se reconhecia à loucura nas
pessoas, e justamente esse discurso era observado com uma dupla percepção. Pensamos
que de uma parte, esta palavra representa o perigo, a crítica de que não tem compromisso
com a sociedade, pois fora dela está, e como tal constitui-se em ser paria, inimigo. De
outra, a veritas que impregna esse discurso é develadora, evidencia o que estava oculto
aos olhos e aos corações. Como tal será de valor numa postura de conhecimento profunda
e verdadeira, que atinge o campo da conduta moral.
Encontramos em Sueño de las Calaveras (Quevedo, 1996, p. 419), a seguinte
passagem: “... Trás ellos venía la Locura en una tropa con sus cuatro costados: poetas,
músicos, enamorados y valientes, gente en todo ajena deste día” lo que nos hace refletir
que, para o narrador (autor) a loucura estava em muitos, fazendo formação militar, e por
vir dos “cuatro costados” ela era fruto de linhagem antigo, de valor nobiliário. Incluídos
os poetas, que por falar já estão condenados, encontramos juntos os músicos e os
enamorados, estes justamente porque quando acertados pelas setas de Cupido, não
sabem o que falam e falam sem saber. A música sempre foi considerada plena de poder
sobre os homens, e como tal, tem sofrido a censura de muitos governos ditatoriais. Já
dos valentes, o ardor de suas causas, suas arengas inflamadas de paixão vai-lhes cegar o
raciocínio. Somando, o discurso na boca deles é perigoso, pois foge desse controle, que a
loucura arrebata, e até no dia do Juízo Final, dele carecem.
Nas obras de Quevedo, como em muitas outras, a personagem do louco nos
permite conhecer os recônditos dalma humana, e suas mais baixas degradações. Ele se
apresenta como a voz da consciência em médio a uma sociedade surda, cega, ou, na mais
das vezes, conivente com a desordem moral. É na desordem, na loucura do mundo às
avessas, isto é, o inferno e seus territórios, que a realidade toma forma de loucura,
caracterizando a sátira no seu mais fino estilo e que atinge a todos, sem perdão, como
encontramos em Sueño de las Calaveras:
“ fueron juzgados filósofos, y fue de ver cómo ocupaban sus
entendimientos en hacer silogismos contra su salvación. Mas lo de los
Tirando de Letras
poetas fue de notar, que de puro locos querían hacer a Júpiter malilla
de todas las cosas...” (Quevedo, 1996, p. 422)
Em nossos dias, temos podido observar como a loucura tomou conta do mundo:
não basta com assistir filmes com temática referida a um outro mundo, o da loucura, em
“Hombre mirando al sudeste” (argentino) ou “Trem da vida” (ucraniano); participamos
do capitalismo mais selvagem na forma de economia globalizada e, há dias, à destruição
de milhares de vidas nos atentados de New York & Washington.
Hoje a censura se manifesta no silencio, nas entrelinhas de um discurso livre,
tachado de louco, para o qual os médicos, os psicólogos vam-se posicionar em uma
atitude de controle, de velada censura silenciosa. Nos dias do Barroco na Espanha, tal
seria impossível, pois as idéias moralizantes vindas pelos livros traduzidos do latim se
encontravam nas prateleiras das universidades e dos colégios, estavam circulando de
mão em mão entre estudiosos, copista e intelectuais. Nos mesmos claustros em que
ensinou Suárez, aprenderam Quevedo e Gracián. Os espíritos elevados da época estavam
incorporando esses pensamentos neo-estoicos em suas produções. Cedo é que Quevedo
começará sua poesia satírica popular. Do seu contato com a corte em Valladolid vai-se
originar sua prosa moralista, hoje muito valorizada. Gracián aproveitou sua atividade
como professor para elaborar seus escritos moralizantes, de cunho altamente estóico (a
sua vida dá exemplo disto).
A censura funcionava de forma diferente; o escritor era mandado longe, afastado a
uma prisão. Para contrarestar essa situação, eles valiam-se dos mecenas e patronos,
como o duque de Oliveiras para Quevedo.Na sua sombra protetora, a língua mais ferina
atacava impiedosa, como neste soneto:
Casamiento Ridículo
(Parnaso, 418)
Trataron de casar a Dorotea
Los vecinos con Jorge el extranjero,
De mosca en masa gran sepulturero
Y el que mejor pasteles aporrea.
Ella es verdad que es vieja, pero fea;
Docta en endurecer pelo y sombrero;
Faltó el ajuar y no sobró dinero,
Mas trújole tres dientes de librea.
Porque Jorge después no se alborote
Y tabique ventanas y desvanes,
Hecho tiesto de cuernos el cogote,
Con un guante, dos moños, tres refranes
Y seis libras de zarza, llevó en dote
Tres hijas, una suegra y dos galanes. (Quevedo, 1989, p. 192).
Uma forma de relacionar a loucura do mundo com a filosofia neo-estoica, pode-se
encontra na percepção do mundo em movimento, com os dois princípios contrários em
movimento incessante e os quatro elementos em permanente tensão. Desta situação viria
o equilíbrio do mundo numa cadeia de “alternativas – finito, redondo, móvel, não vazio,
infinito” – num movimento circular, um ciclo eterno.(Mondolfo, 1973, p. 276).
Na obra de Quevedo, interpretamos que do outro lado do mundo real, este outro
mundo ao avesso, o mundo da loucura. E que os personagens de seu universo literário
transitam de um para outro, num misto de esperteza e impunidade diante da ordem das
coisas. Isto parece reforçar-se quando da elaboraçao dos seus “sonhos”, em que o sonhado
é a realidade e a realidade parece à utopia, em uma imágem especular que se refrata ad
infinitum, para o mal, claro.
FINALE, MA NON FINIS
Este esboço de um trabalho de pesquisa, que relaciona a literatura do conceptismo
com as correntes de pensamento existentes na Espanha do Século de Ouro, conclui no
meio do caminho, pois temos elencado algumas características da vida e obra de Francisco
de Quevedo e Baltasar Gracián, ambos máximos expoentes da literatura de estilo conceptista
na Espanha, revisamos someramente algumas idéias filosóficas em boga na época áurea
e dissemos duas palavras sobre conceptismo. No fim, incorporamos o tema barroco da
loucura do mundo e tentamos correlações com os pontos anteriores. Pensamos,
positivamente, na necessidade de continuar a estudar estes temas, pela sua relevância na
compreensão da literatura universal e de nosso fazer como universitários em nosso espaço
amazônico. Reconhecemos as diversas limitações de tempo, capacidade de analise maior
e de fontes bibliográficas necessárias para dar continuidade a estudos desta índole.
Concluímos agradecendo o incentivo, a colaboração e orientação de diversas pessoas,
recebida durante o fazer deste trabalho.
BIBLIOGRAFIA:
BRÉHIER, Émile. História da filosofia. t. 1. trad. Eduardo Sucupira. São Paulo: Mestre Jou, 1979.
CRUZ, Benilton. Texto para o curso de Letras. (mímeo). Belém: Unama, 2001.
Encyclopaedia Brittanica Inc. Encyclopaedia Británnica. William Benton Publisher. 23 v. Chicago.
1973.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. trad. Laura Sampaio. (Coleção Leituras Filosóficas).
São Paulo: Loyola, 1996.
MARÍAS, Julián. História da filosofia. 6. ed. Porto: Sousa & Almeida, 1982.
QUEVEDO Y Villegas, Francisco de. In: ENCICLOPEDIA Microsoft® Encarta® 98 ©. New York.
Microsoft Corporation. 1997. 1 CD-ROM.
_________. Los sueños. Editor Ignacio Arellano. (Coleção Letras Hispánicas). Madrid: Cátedra,
1996.
_________. Poesía selecta. Editor Lia Schwartz & Ignacio Arellano. (Coleção Universitas - 9).
Barcelona: PPU S.A., 1989.
Tirando de Letras
Os Mortos de James Joyce:
a Literatura e o Cinema.
Jozebel
Graduado em Letras pela Universidade da Amazônia.
Cursando Mestrado na UNICAMP
Códigos diversos. Tempo. Espaço. Imagens e palavras. A relação entre os textos
está na urdidura da vida que, como um grande arquês, se repete e se renova, mapeando
quadros da condição humana. É noite de Natal, início do século, pessoas amigas se
encontram, se confraternizam para comemorar o nascimento de Cristo, como reza a
tradição cristã-burguesa. As irmãs Kate e Júlia e a sobrinha Mary Jane organizam o
encontro anual, com detalhes e presteza, como manda as regras da hospitalidade irlandesa,
na casa onde moram há muitos anos. Os convidados são velhos conhecidos, parentes,
alunos. Piano, dança, récita, discurso, ceia, planos para o próximo ano, esta é a situação
que se repete na trama narrada por Joyce em The Dead, adaptada para o cinema por
Tony Huston, mas os enredamentos tecem teias de tensões, revelações, epifanias, e as
duas formas de expressão se misturam e se completam.
O conto faz parte da coletânea de contos Dubliners, na Irlanda, primeira obra em
prosa do autor. The Dead é o último dos 15 contos do livro, publicado em Londres, em
1914, após 9 anos de litígio do autor com a justiça. Segundo a biografia de Joyce, a obra
teria sido censurada pelo tipógrafo, na época também responsável por essa função junto
com o editor. Ele alegava que alguns contos tinham linguagem indecente e que criticavam
o regime irlandês. Daí, há toda uma polêmica em relação as possíveis alterações necessárias
à publicação, negadas pelo autor, que se defendia dizendo que retirar os conflitos, proposto
pelos editores, seria mutilar o texto, destruir o arcabouço proposto. “Se elimino tais
elementos, como há de ficar a história moral de meu país? Luto pela manutenção desses
elementos, pois creio que, ao escrever o meu capítulo da história moral do meu país
exatamente da forma como fiz, dei o primeiro passo para a libertação espiritual de minha
pátria”.(Joyce, apud José Roberto O’Shea, 1991 – Introdução de Dublinenses, 1993).
The dead, o mais extenso conto do volume, não constava do primeiro manuscrito
e foi incluído como uma forma de mostrar a hospitalidade irlandense e, de certa forma,
redimir o autor das críticas contundentes ao seu país, inscritas nas demais narrativas da
coletânea. Mesmo assim, o tom da crítica à Irlanda não desaparece deste texto.
O filme baseado no conto, traduzido como Os Vivos e os Mortos, tem o roteiro foi
escrito por Tony Huston, é o último de John Huston, e teve indicação para dois Oscar da
Academia. Angélica Huston e Donal Mc Cann protagonizam a película, produzida em
1997, com duração de 95 minutos, categorizado como drama pela LooK Vídeo. Além
deles, também participam as atrizes Helena Carrol, Cathleen Delany, Ingrid Craigie e
Rachel Dowlig.
UM BREVE OLHAR SOBRE AS PERSONAGENS:
 As moradoras do sobrado.
Miss Kate e Miss Júlia, as irmãs Morkan. “As duas velhotas eram pequeninas e
vestiam-se com discrição”(p.181), solteironas, responsáveis pelo baile anual, desde que o
irmão morrera. São personagens emblemáticas da hospitalidade irlandesa.
Júlia “era alguns centímetros mais alta que a irmã. Seu cabelo, preso e encobrindo
ligeiramente as orelhas, era acinzentado; e igualmente acinzentado, com sombreados
escuros, era seu rosto grande e flácido. Embora tivesse postura firme, o olhar vago e a
Tirando de Letras
boca entreaberta davam-lhe aparência de alguém que não sabia onde estava nem para
onde ia”(p.181). Mesmo bastante grisalha, atuava como primeiro soprano em encenações
e na Festa é convencida a apresentar-se e, então, canta uma de suas canções preferidas,
Arrrayed for the bridal, de Ballini (a informação da autoria não está no conto), traduzida
no filme como:
Vestida para a boda
Olhem a beleza dela
Uma grinalda branca entrelaçada
Em cima sua bela fronte
Invejo a gaze
Que suavemente a envolve
E brinca com os cachos do seu lindo cabelo.
No momento em que canta, sua voz já não espelha a idade, é forte e límpida e
domina todos os trinados que embelezam a melodia sem atropelar uma nota sequer,
informa o narrador. “Acompanhar aquela voz, sem olhar para o rosto da cantora, era
deixar-se levar num vôo veloz e seguro”(p.193). Nas imagens fílmicas, a câmera, ora em
panorâmicas, ora em close ou detalhe, rememora um passado através de objetos expressos
na letra da canção, (elementos das bodas da irmã morta?). Um belíssimo momento de
tensão da trama, é como se esse cantar fosse o derradeiro da personagem, pois, além
dos elementos já descritos, símbolos religiosos misturam-se à cena, dando-lhe um tom
de réquiem.
Kate “era mais animada. Seu rosto, mais saudável do que o da irmã, era só rugas e
sulcos, como uma maçã vermelha e seca e enrugada, mas seu cabelo, trançado à moda
antiga, conservava o tom de nozes maduras”. (p.181), Devido suas condições físicas, que
a impossibilitava a grandes movimentos, como o de sair muito à rua, dava aulas de
música para principiantes, em casa, num velho piano do quarto dos fundos.
As duas, entre outras coisas, são responsáveis por receber e encaminhar as
convidadas mulheres ao quarto de vestir, para que se desfaçam das pesadas roupas de
inverno e se arrumem para a recepção natalina.
No filme, as irmãs guardam diferenças físicas bem maiores, que as descritas no
conto. Júlia (Helena Carroll) é alta, de postura elegante e Kate (Cathleen Delany) baixa e
gorda. Estas configurações físicas dão para a primeira um tom de sobriedade e seriedade,
que se coaduna perfeitamente com sua imagem trocando as folhas das partituras que
estão sendo executadas ao piano, e para a segunda um jeito bonachão e extrovertido,
que incorpora a animadora do salão durante as danças.
Mary Jane, sobrinha das duas, morava com as tias desde ainda garotinha, quando
o pai, irmão delas, morrera. Garantia o sustento da casa como organista em Haddington
Road e como professora de música. Fizera Conservatório e todos os anos apresentava,
com seus alunos, concertos. Na festa, responsabilizara-se em receber os convidados, mas
também em animar o salão.
Lily, filha da empregada, “era esbelta, estava na flor da idade, e tinha a tez pálida e
os cabelos cor de feno”(p.179). Morava com as senhoras desde pequena, quando costumava
embalar sua boneca de pano, sentada nos degraus da escada. Acabara os estudos e
acreditava que “os homens de hoje só querem saber de conversa fiada e de se aproveitar
da gente”(p.180). Na noite da festa, além de ser responsável por serviços domésticos,
também tinha como função receber e encaminhar os convidados masculinos, indicandolhes ou ajudando-lhes a tirar e guardar os trajes de inverno.
Os convidados. “Todo mundo que as conhecia vinha ao baile: parentes, velhos
amigos da família, integrante do coro em que Júlia cantava, alunos de Kate que porventura
já tivessem idade de freqüentar baile e até mesmo alguns alunos de Mary Jane”(p.177).
O casal Conroy:
Gabriel, sobrinho preferido das irmãs Morkan, filho de Ellen, a irmã mais velha, já
falecida. “Era um jovem forte e de boa estatura. O tom corado de suas faces subia até
quase a testa, e ali dispersava-se em manchas amorfas e avermelhadas; em seu rosto
escanhoado cintilavam as lentes cristalinas e os aros dourados dos óculos que lhe protegiam
os olhos suaves e ao mesmo tempo inquietos. Seu cabelo preto e brilhante era repartido
ao meio e penteado numa longa curva por trás das orelhas, revelando uma pequena onda
formada pela marca do chapéu”(p.180). Era professor e escrevia uma coluna literária.
Sentia imenso prazer neste trabalho de resenhista, principalmente em manusear capas e
virar as páginas dos livros que acabaram de sair das gráficas, ao mesmo tempo que
também adorava passear pelos sebos da cidade. Na Festa, era a figura mais esperada
pelas tias, e funcionava como uma espécie do anfitrião, sendo responsável pelo discurso
e por trinchar o peru (no filme, ganso), prato principal da ceia. Era marido de Gretta.
Gretta - há poucas descrições físicas da personagem no conto, contudo, através do
olhar do marido, poder-se-ia dizer que tinha uma silhueta esbelta, cabelos cor de bronze,
apesar de, num solilóquio, Gabriel confessar que “não ousava dizer nem para si mesmo
que o rosto dela já não era belo...”(p.220). Durante o desenrolar da primeira parte da
ação, o leitor é informado que a sogra opôs-se ao casamento do filho, alegando que a
pretendida era filha de uma roceira esperta, questão que o próprio narrador desfaz,
afirmando a complacência da nora ao tratar dela nos momentos anteriores aos estertores.
É ela quem detona todo o sentimento de nostalgia, de introspecção e de impotência
diante da vida e da morte de Mr. Conroy, no final do conto.
Os Malins, mãe e filho:
Freddy Malins, a chegada mais temida da festa. As anfitriãs preocupavam-se com a
possibilidade dele provocar cenas contrangedoras, devido ao seu alcoolismo. É descrito
como um “homem de uns quarenta anos de idade, tinha a altura e o porte de Gabriel, e
os ombros um tanto caídos. Seu rosto era gordo e pálido e os únicos vestígios de cor
estavam localizados nos lóbulos carnudos das orelhas e nas narinas largas. Tinha traços
grosseiros: nariz chato, a fronte convexa e lábios inchados e protuberantes. As pálpebras
pesadas e o cabelo ralo e emaranhado davam-lhe um aspecto sonolento. Gargalhava
estridentemente...”(p.186) Chegara, na confraternização, um tanto cambaleante.
Mrs. Malins “era uma velhota corpulenta e doente, de cabeça branca”(p.191). O
filme a evidencia como uma pessoa chata, inclusive nos diálogos, ela é indiciada como a
responsável pelo comportamento do filho. Morava em Glasgow com a filha casada.
Miss Ivors, Molly. “Jovem franca e falante, de rosto sardento e grandes olhos
castanhos. Não usava decote e o largo broche preso à gola de sua blusa estampava o
emblema irlandês”(p.188). Faz críticas à postura de Gabriel, de quem era amiga há muitos
anos, em relação ao seu descaso com seu país, chamando-o publicamente de anglófilo, o
que o deixa irritado:”Obviamente, a moça, ou mulher, ou seja lá o que for, era bastante
patriota, mas tudo tem a sua hora”(p.191). Não participa do jantar, recusa-se com a
justificativa de não ter fome e que já passava da hora de se retirar. No filme, esta passagem
é explicada pela personagem com a necessidade de parcipação de uma reunião do Partido.
Mr. Bartell D’Arcy, jovem moreno, com um belo bigode, o tenor de voz
belíssima,”toda Dublim está empolgada por ele”. É tido como convencido devido ao fato
de negar-se, durante toda a festa, a cantar, alegando um resfriado horrível e rouquidão,
mas é a canção cantada por ele, no final da comemoração, The lass of Aughrim, que faz
explodir e que acompanha o momento narrativo da epifania. A canção é traduzida, no
filme, desta forma:
Tirando de Letras
Se você foi a garota de Aughrim
Como suponho que seja
Dê-me a primeira prova
Que houve entre nós dois
Daquela noite
No morro deserto
Quando nos encontramos
O que lamento dizer agora
A chuva cai sobre a minha cabeça
E o orvalho molha minha pele
Minha criança jaz
Fria em meus braços
Mas ninguém me deixa entrar.
Mr.Browne apresenta-se como “um sujeito alto, de rosto enrugado, bigode rijo e
grisalho e pele morena”(p.184), de sorriso largo e galanteador. Durante toda a noite, faz
chistes com os convidados, e é uma espécie de contraponto, referenciado em várias
passagens do conto. Proferia religião diferente dos demais presentes.
Das demais personagens, poucas referências, pouca importância na trama: Miss
Daly, pianista, tocou uma valsa; Miss Power; Miss Higgins; Miss O’Callaghan; Miss Furlong,
aluna de Mary Jane; Mr. Fulham, proprietário da casa onde moram as irmãs Morkan; Mr.
Bergin; Mr. Kerrigan; uma jovem de faces rosadas e vestido violeta que chama para a
quadrilha; quatro rapazes; as crianças .
Outras personagens, além dos mortos, presentificam-se nas falas dos participantes,
como argumento ou explicitação de algum fato: o papa; o padre Healy; o tenor negro do
Gaiety; as célebres cantoras de ópera; as pessoas que iriam a Connacht; a Bessie, babá
dos filhos de Gabriel e Gretta; Constantino, irmão de Gabriel, e etc.
No filme, há uma personagem que não aparece no conto, surge para introduzir a
récita na festa e explicitar o tom literário que percorre todo o texto na figura de Gabriel.
Mr. Grace declama Votos Partidos, mas não faz referência ao autor, todavia indica que a
tradução para o irlandês é de Lady Gregory. O texto é um poema romântico, em que o/a
amante reclama o amor prometido. As metáforas e comparações, para expressar essa
dor, são tecidas com elementos do mundo natural, habitantes do ar (aves),da terra
(caprinos) e da água (peixes) e com a melodia dos assobios, dos gritos, do balir das
ovelhas. O reclame se encerra com a desilusão, que culmina com o medo da perda da fé:
Era tarde a noite passada
O cão falava de você
O pássaro cantava no pântano. Falava de você.
Você é o pássaro solitário na floresta,
Que você fique sem companhia
Até achar-me.
Você prometeu e mentiu,
Disse que estaria junto a mim,
Quando os carneiros foram arrebanhados.
Eu assobiei e gritei cem vezes,
E não achei nada lá,
A não ser uma ovelha balindo.
Prometeu algo difícil
Um navio de ouro sob um mastro prateado,
Doze cidades e um mercado em todas elas
E uma branca e bela praça a beira mar.
Você prometeu algo impossível.
Que me daria luvas de pele de peixe
E sapatos de pele de aves
E roupa da melhor seda da Irlanda.
Minha mãe disse para não falar com você
Nem hoje, nem amanhã, nem domingo.
Foi um mal momento para dizer-me isso.
Como trancar a porta após a casa arrombada.
Você tirou o leste de mim
Você tirou o oeste de mim
Tirou o que existe a minha frente.
Tirou o que há atrás
Tirou a lua
Tirou o sol de mim.
E meu medo é grande
Você tirou Deus de mim.
? Os mortos (pela ordem de aparição no conto):
Pat, pai de Mary Jane, depois de sua morte, as irmãs levaram a única sobrinha para
morar com elas.
Ellen, mãe de Gabriel, irmã mais velha das Morkan, casara-se com T.J.Conroy,
funcionário do cais do porto. O filho estranhava que a mãe não tivesse nenhum talento
musical, pois era referida como o cérebro da família. As irmãs deixavam transparecer um
certo orgulho da sisuda e conservadora senhora, que escolhia o nome dos filhos e
encaminhava-os na profissão. Era guardada por Júlia e Kate com um retrato em frente ao
espelho do aparador, onde trazia um livro aberto e apontava alguma coisa para Constantino,
seu outro filho.
Patrick Morkan, pai das duas, velho cavalheiro, fabricante de goma/cola, era todo
metido a elegante, um encômio. Tinha um cavalo, Johnny, que uma vez resolveu montálo para ir assistir uma parada militar, acompanhando a fina flor local. E ele, o cavalo, o
colocou em maus lençóis, por ter ficado a rodar em torno da estátua de um cavalo, não se
sabendo se o ato foi ocasionado por uma paixão eqüínea ou se achou que estava de volta
ao moinho, onde trabalhava.
Michael Furey, amor da adolescência de Gretta, morreu aos 17 anos, vitimado por
uma doença que se agravou no momento em que foi despedir-se da amada que partiria
para um colégio interno. Morreu por mim, revela Gretta ao marido, depois de ouvir a
canção que a fez rememorar todo um passado desconhecido de Gabriel. A epifania é o
momento desta lembrança.
A TRAMA, OS TEMAS.
A ação acontece em dois momentos de uma noite de Natal. No primeiro, a alegria
da festa: a tradição da música e das danças- a valsa, a quadrilha, os lanceiros; da ceia,
vinhos, refrescos e variado cardápio; dos discursos melancólicos, invocando o passado,
questionando o presente e prevendo o futuro; enfim, da confraternização. O segundo, o
da epifania, das revelações, da melancolia e das reflexões. Nos dois tempos da trama, um
elemento conduz o fio narrativo: as imagens da neve, que tanto compõe o cenário de
alegria quanto a tristeza, são recorrentes em todo o conto. “Essa neve é indiciada desde o
Tirando de Letras
princípio do conto e lentamente se acumula pela repetição de certas palavras-chaves: frio,
sombras, parado, morto, escuro, negro, branco”(Sá,1979:184).
Os enredamentos da trama tecem os temas.
A coletânea, segundo J.R.O’Shea, organiza-se em torno de quatro temas principais:
infância, adolescência, maturidade e morte, dentro destes é essencial as abordagens
sobre paralisia, vida e morte, epifania.
Ao escrever The dead, Joyce “foi motivado pela intenção de apresentar ao mundo
uma visão mais indulgente da Irlanda”(p.11). E o próprio autor confessa que foi severo
demais com a Irlanda e não fez jus aos atrativos e à beleza do país. Daí, um dos temas
abordados pelo autor ser a hospitalidade irlandense, apresentada através das personagens
Júlia, Kate e Mary Jane Morkan. E nada mais adequado, do que o tom solene de um
discurso, para esta loa aos irlandense e à hospitalidade, na voz de Gabriel Conroy:
A cada ano que passa aumenta minha convicção de que nenhuma tradição
honra tanto o nosso país e deve ser defendida com mais fervor do que nossa
hospitalidade. A meu ver trata-se de uma tradição impar entre as nações modernas.
Alguns podem dizer que, no nosso caso, essa hospitalidade é mais um defeito do
que uma qualidade da qual devemos nos orgulhar. Mesmo que isso seja verdade,
trata-se, creio eu, de um defeito magnífico, um defeito que espero seja sempre
cultivado entre nós.[...] a tradição da autêntica hospitalidade irlandesa, sincera e
cordial, a nós legada por nossos antepassados e que por nós deve ser legada a
nossos descendentes, há de permnecer viva. (p.202/3).
Mesmo assim, o autor não deixa de jogar com temas que critiquem a sociedade.
A igreja é apresentada com imagens antagônicas e enfoques diferenciados. Na
queixa de Kate em defesa da irmã, que passara a vida toda se dedicando ao coral da
igreja e agora foi substituída por pessoas mais novas, ela responde à sobrinha que tenta
ponderar a ação dos representantes de Deus:
Eu sei muito bem que é pra honrar Deus, mas não vejo nada de honrado
quando o papa manda botar pra fora do coral senhoras que se mataram a vida
toda e recruta uns fedelhos pra ocuparem seus lugares. Suponho que seja pelo
bem da Igreja, já que a medida partiu do papa. Mas não é justo, Mary Jane; não
está certo. (p.194/5)
Outra referência ao tema, aparece quando a Mrs. Malins anuncia a ida do filho para
o mosteiro Mount Melleray, durante duas semanas para se tratar, e os presentes falam do
ar puro da região, da hospitalidade dos monges e da não cobrança dos serviços. Neste
momento, intervém Mr. Browner, incrédulo, fazendo considerações a respeito do
despreendimento material dos religiosos. Mesmo assim, Mary Jane explica que pessoas
ao sair de lá, deixam doações ao monastério. E a conversa ainda continua com exposições
sobre as regras da congregação.
O racismo é apresentado, sutilmente, na discussão sobre ópera, durante o jantar,
quando Freddy Malins, comentando sobre um espetáculo, declara que o dono da mais
bela voz é um tenor negro e pergunta a Mr. Bartell D’ Arcy o que ele achava. É Mr. Browne
quem responde à pergunta, em voz alta, ironizando, “só mesmo o Freddy, pra descobrir
as coisas que valem a pena”. A que ele replica com aspereza: “E por que não teria uma
boa voz? Só porque é preto?”(p.198).
“Epifania é uma manifestação espiritual, uma relação transcendental entre o
universo interior e exterior. Em termos literários, o escritor moderno, capitulando
diante da impossibilidade de compreender o caos que o cerca, busca indícios externos
que o levem a significados internos”(p.12).
Dublinenses é uma coleção de epifanias, uma das maiores criações estilísticas do
autor. O estudo de Olga de Sá (1979:192) sobre o tema aponta três tipos de epifania ou
três níveis de procedimento epifânico na obra de Joyce.
1. A epifania-visão como revelação presentativa, imediata, provida ou não de
desenvolvimento,explicitação,comentário.
2. A epifania-crítica como reversão irônica ( a antiepifania).
3. A epifania-linguagem(revelada na própria palavra), epifania operativa ao nível
da microestética.
Riquelme (1992:69) considera dois modos de epifania, o fantástico e o realista. Ele
assegura o segundo tipo como condutor dos Dublinenses , pois todos os contos são
narrados de maneira realista e “as estórias e seu estilo dividem com as epifanias a meta
de desmascarar uma cultura que Joyce desprezava, por considerá-la paralítica”.
Considerando a epifania como este momento mágico de revelações e de aparições,
acrescentaria ao momento epifânico de Gretta - que acontece no topo da escada, quando
ouve a música The lass of Aughrim cantada por Mr. D’Arcy, que a revolve ao passadouma outra ocasionada pela declaração do seu segredo ao marido, que, de uma certa
forma, detona um outro processo único de memória dos mortos, de aniquilamento da
vida futura projetada no/por Gabriel.
O tema central deste conto é a interrelação entre vivos e mortos. As referências aos
mortos, reiteradas do início ao fim do conto, são mencionadas de diferentes maneiras.
Algumas vezes, apenas para situar uma personagem ou uma ação. É o que acontece com
a citação de Pat, que explicita o fato da presença de Mary Jane com as tias e traz uma
marca de mudança espacial, o endereço de Stoney Batter para Usher’s Island, e,
consequentemente, de condição financeira, elas transferem-se para uma casa escura e
lúgubre, a parte superior do sobrado de Mr. Fulham. A presença de Ellen evoca toda uma
discussão sobre educação dos filhos, o poder e a primazia da mulher nos comandos do
lar, ao mesmo tempo que reforça a subjugação daquele de condição financeira-social
inferior, no caso o marido. O riso corporificado na figura de Patrick Morkan e de seu
cavalo Johnny, é celebrado no movimento entre vivos e mortos.
Por que aquele que quer morrer de amor interessaria na vida? Para Michael Furey,
por nada, ou melhor, pelo próprio amor ou pelo amor da amada, sem este nada mais tem
sentido. O sentimento arrebatador de uma adolescência romântica, que é capaz de levar
o amante às últimas consequências, está na pele deste personagem. A partida da amada
e a impossibilidade de sobreviver a sua ausência, joga com um último momento de
possibilidade de rever o amor e desvelar-se numa despedida derradeira e trágica, fazendo
da morte um êxtase da vida. Gretta vai partir para um colégio interno e Michael é impedido
de vê-la, ele foge e no meio de uma tempestade, a alcança arrumando as malas: sua
saúde frágil não resistiria ao frio. Uma semana mais tarde, ela sabe de sua morte.
Este drama, revelado ao marido na parte final do conto, faz com que ele se coloque
em xeque e relativize suas concepções de vida e de morte e devaneie sobre o tema.
Gabriel, após o discurso, o vinho, a dança, as despedidas alegres, a caminhada na neve
ao longo do rio, sonha com a chegada ao hotel e uma noite de amor. Ele revive, na
memória, momentos felizes de seu casamento e projeta tornar a lembrança desses êxtases
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presente, sem perceber o que acontecera com a mulher ao ouvir a música do final da
festa. Após a declaração de Gretta, questiona qual a importância que ele, realmente,
tivera na vida de uma mulher que teve um homem capaz de morrer de amor por ela. A
esposa adormece e o marido, corroído de ciúmes do amante-fantasma, a observa e
imagina o que mais teria acontecido entre os dois, além do relatado. E, então, medita
sobre a vida e sobre os mortos, reflete sobre a vida dos que partiram e projeta a morte de
pessoas vivas. Compreende a fugacidade da vida, chora defronte da janela, vê a neve e
sente o frio da alma, percebe que nevava também no cemitério solitário da colina onde
Furey está enterrado e que o gelo também se “acumulava sobre as cruzes inclinadas e
sobre as lápides, sobre as pontas das grades do portão, sobre os espinhos”. Neste estado
de melancolia profunda sente sua alma desfalecer e ouve a neve “precipitando-se
placidamente no universo..., descendo como a hora final sobre todos os vivos e todos os
mortos”(p.222).
Depois destes rascunhos de escritura, baseado, principalmente, no texto literário,
retomo a uma fala inicial, em que declarei que as duas formas de expressão, a literatura
e o cinema, se completam, para acrescentar que outras formas artísticas são fundamentais
na composição do quadro de época: a música, as danças, as fotos, os bibelôs, as telas,
até mesmo a imaginária Música ao Longe, além dos próprios autores e textos literários
citados ao longo da narrativa.
O filme guarda o texto literário, mesmo que em alguns momentos acrescente,
como é o caso do poema e das letras das canções, e de um personagem; subtraia, pois
não seria possível abarcar toda a temática de um texto tão rico, daí o diretor fazer suas
escolhas; ou desloque a ordem dos diálogos ou das personagens. E, ainda que,
compreendendo a inerência das linguagens, uma a palavra e a outra a imagem, os planos,
tomadas e movimentos de câmera, induzem ao mesmo jogo de enredamentos e ao clima
da narrativa verbal.
Nota: Deixei de tratar de temas referentes a análise textual, como construção da
narrativa, aspectos estilísticos, estudo do narrador, e de especificar itens para tempo e
espaço, assim como dos recursos referentes a análise do filme, como enquadramentos,
movimento de câmeras, ritmo cinematográfico, porque considerei ser necessário para
tanto um trabalho de maior monta, o que este comentário não se propõe.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Joyce, James. Dublinenses. Tradução de José Roberto O’Shea. São Paulo: Siciliano, 1993.
Os Vivos e os Mortos. Filme de John Huston. São Paulo: LooK vídeo, 1987.
Riquelme, John Paul. Stepen Hero, Dublinenses e Retrato do Artista Quando Jovem.
Tradução de Suzana Kampff Lages in Riverrun: Ensaios sobre James Joyce. Organizado
por Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
Sá, Olga de. O conceito e o procedimento da epifania in A escritura de Clarice Lispector.
2ª edição. Petrópolis: Vozes; Lorena: Faculdades Integradas Tereza D’Avila, 1979.
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