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CAMINHADAS - UFRN_ FINAL.pmd
UFRN Universidade Federal do
Rio Grande do Norte
Caminhadas de universitários de origem popular
UFRN
UFRN
Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.
O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.
Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
Organização da Coleção:
Monique Batista Carvalho
Francisco Marcelo da Silva
Dalcio Marinho Gonçalves
Aline Pacheco Santana
Programação Visual:
Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ
Coordenação:
Claudio Bastos
Anna Paula Felix Iannini
Thiago Maioli Azevedo
C183
Caminhadas de universitários de origem popular : UFRN / organizado por Ana Inês Souza,
Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.
148 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)
Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e
as Comunidades Populares.
Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
ISBN: 978-85-89669-40-5
1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração
universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.
Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.
Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.
V. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
VII. Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
CDD: 378.81
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares
Organizadores
Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
UFRN
Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ
Rio de Janeiro - 2009
Coleção
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministério da Educação
Fernando Haddad
Ministro
Autores
Ana Paula de Barros Ferreira
Ana Paula de Souza Santos
Cláudio José Brasiliano da Silva
Dhynefa Katiany de Lima
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade – SECAD
André Luiz de Figueiredo Lázaro
Secretário
Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI
Armênio Bello Schmidt
Dulcineide da Silva Gomes
Edna Polyanna Braz
Edivan do Nascimento
Fábia Misiara Dias da Silva
Coordenação Geral de Diversidade – CGD
Leonor Franco de Araújo
Fabiana Alves dos Santos
Francisco Gilberto da Silva de Oliveira
Gabriela de Oliveira Lima
Programa Conexões de Saberes:
diálogos entre a universidade e
as comunidades populares
Jorge Luiz Barbosa
Jailson de Souza e Silva
Coordenação Geral
Graziele Araújo da Silva
Izabel Cristina de Andrade
Janeide Maia Campelo
Jânio César da Silva
Íris Maria de Oliveira
Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFRN
Irene Alves de Paiva
Elizete Schwade
José Alexandre F. de Freitas
Josenildo Eugênio da Silva
Larissa Nunes Paiva
Coordenação Adjunta
Liz Mônara Araújo Oliveira
Luzia Andressa Feliciano de Lira
José Ivonildo do Rego
Reitor
Ângela Maria Paiva Cruz
Vice-Reitora
Cipriano Maia de Vasconcelos
Maria Rosângela Gomes
Marinalva Gomes de Oliveira
Pâmela Rafaelly de Melo Reinaldo
Renato Galdino de Sousa
Pró-Reitor de Extensão
Wellington da Silva
Prefácio
A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.
A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela
melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma
intensa e sistemática esses objetivos.
Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta
contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um
lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,
por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas.
Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na
cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de
Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,
inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos
o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,
UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os
estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,
UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,
UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.
Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,
ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como
pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em
comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de
1
A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao
menos 35 bolsistas.
práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem
popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,
ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.
Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do
Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19
publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes
e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses
livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que
contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das
camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os
cursos com menor prestígio social.
Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais
justa e uma humanidade cada dia mais plena.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Ministério da Educação
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro
Sumário
Apresentação
Ilza Araújo Leão de Andrade ............................................................................. 9
Introdução
Quando o sujeito se torna autor de sua história: memória e re-encontro
Maria da Penha Casado Alves ......................................................................... 11
Com amor e fé na vida é mais fácil continuar a caminhada
Ana Paula de Barros Ferreira .......................................................................... 13
Um retorno: saudades, desafios, minha vida!!!
Ana Paula de Souza Santos ............................................................................. 18
Persistências e sentimentos
Cláudio José Brasiliano da Silva .................................................................... 27
A trajetória de uma potiguar especial e única
Dulcineide da Silva Gomes .............................................................................. 31
Caminhos e sonhos de uma nordestina
Dhynefa Katiany de Lima ................................................................................. 40
O mundo dá voltas
Edivan do Nascimento ...................................................................................... 50
Minhas memórias de estudante
Edna Poliana Braz ............................................................................................ 54
Da minha vida, do meu caminho, das minhas escolhas
Fábia Misiara Dias da Silva ............................................................................ 60
Minha vida em contínua construção...
Fabiana Alves dos Santos ................................................................................ 63
Conto minha história com orgulho
Francisco Gilberto Silva de Oliveira ............................................................... 66
Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma para sempre
Gabriela de Oliveira Lima ................................................................................ 75
A luta por um sonho
Grasiele Araújo da Silva .................................................................................. 83
Uma princesa chamada Izabel
Izabel Cristina de Andrade .............................................................................. 86
Dos atores e das cenas
Janeide Maia Campelo ..................................................................................... 89
Minha vida, minha poesia
Jânio Cesar da Silva ........................................................................................ 94
Um potiguar de sorte
José Alexandre Félix de Freitas ..................................................................... 100
Da trajetória de um vencedor
Josenildo Eugênio da Silva ........................................................................... 103
A oportunidade que ajudou a construir meu futuro
Larissa Nunes Paiva ....................................................................................... 106
Flor-de-lis
Lis Mônara Araújo de Oliveira ...................................................................... 114
Para sempre Cinderela
Luzia Andressa Feliciano de Lira .................................................................. 118
Significativas vitórias merecem ser registradas
Maria Rosângela Gomes ................................................................................. 123
Antônia sou eu e pode ser você
Marinalva Gomes de Oliveira ........................................................................ 129
O mundo de Pâmela
Pâmela Rafaelly de Melo Reinaldo ............................................................... 136
Natal, verão de 2007
Renato Galdino de Sousa ............................................................................... 139
Páginas da minha vida
Wellington da Silva ........................................................................................ 142
Apresentação
A História da Universidade Brasileira tem as marcas da sociedade onde ela está inserida:
uma sociedade desigual, marcada pelo autoritarismo social, por uma cultura política
construída a partir de valores fincados na idéia da superioridade de uns poucos, uma
sociedade onde os acessos sociais dependem de códigos e senhas do tipo: "Você sabe com
quem está falando?" como bem pontua o antropólogo Roberto da Matta em seu livro Carnavais,
Malandros e Heróis.
A instituição universitária surge, no país, para formar os filhos da elite econômica e
assume modos de recrutamento e de funcionamento que a tornam inacessível para a grande
parcela da sociedade.
Essa realidade começa a mudar nos últimos anos e essa mudança tem a ver com o
avanço da democracia em nosso país, acompanhado, naturalmente, pelo poder de pressão
da sociedade organizada que traz para o debate a questão da justiça social, da inclusão e da
garantia de direitos básicos, do ponto de vista social.
Como não poderia deixar de ser, a questão do acesso aos bens e serviços públicos
começa a ser amplamente debatida, levando o Estado a repensar as regras e as práticas de
suas instituições.
Tornar a universidade pública acessível para aquela grande maioria destituída de
privilégios, de poder econômico, de uma formação educacional adequada (geralmente realizada em escolas privadas) é uma missão que começa a ser encarada pelo Estado brasileiro
nesse momento. E é dentro desse contexto que se coloca o Programa Conexões de Saberes:
um programa do Ministério da Educação que tenta criar condições para apoiar aqueles que,
a despeito de toda as adversidades inerentes à sua condição social, apostaram no sonho da
universidade e chegaram lá.
Para isso foi necessário uma longa caminhada, de incertezas, de medos, de dificuldades de toda a natureza, mas também de fé,de coragem, de ousadia.
Na UFRN esses são os nossos vencedores. Com a leitura dos textos podemos conhecer
diferentes histórias, diferentes estradas que, têm em comum, o idealismo da juventude e a
garra de construir para si, novos caminhos.
Profa. Ilza Araújo Leão de Andrade
Pró-reitora de Extensão da UFRN
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Introdução
Quando o sujeito se torna autor de sua
história: memória e re-encontro
Maria da Penha Casado Alves *
O homem é um ser de linguagem. Na linguagem ele se constitui e constitui o mundo.
A vida tonifica a linguagem e essa tonifica a vida. É pela linguagem que o homem atua no
mundo e se constitui como sujeito nas interações e nas relações com o outro. Ademais todos
os campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. A compreensão dos
atos singulares, como também os processos de sua concretização que se apresentam em
diferentes e inumeráveis nuances, dinamicidade e plasticidade onde o único e irrepetível se
articula à cadeia infinita de comunicação, é o que deveria orientar qualquer trabalho com a
linguagem. Isso porque sempre que nos expressamos verbalmente utilizamos os gêneros do
discurso que são tão heterogêneos e multiformes como são as nossas práticas sociais. Assim,
o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos, únicos,
singulares proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana.
Com esse entendimento sobre sujeito e linguagem, começamos a Oficina de Textos
no Conexões de Saberes, na UFRN. Durante um tempo, nos dedicamos a compreender que
linguagem é interação intersubjetiva e, assim sendo, construída sócio-historicamente
pelos sujeitos. Esse sujeito histórico, em construção, sempre está na fronteira, no limiar
com o outro que o completa e lhe dá acabamento. A singularidade do sujeito se dá pelo
lugar que ele ocupa na história e na vida. Não há álibi para a vida, portanto, não há álibi
para o sujeito isentar-se de estar naquele momento, naquela situação histórica, no evento
de sua própria vida.
Inicialmente, uma das primeiras atividades para essa turma de jovens que iriam contar
a sua história, foi situar-se no tempo. Para tanto, pesquisaram e se inteiraram dos eventos e
da história que marcaram a sua vinda ao mundo. Traçar uma linha do tempo ajudou-os a se
reconherem como sujeitos históricos. Quão difícil foi a tarefa, afinal, a memória sempre foi,
historicamente, prerrogativa dos idosos. Eles eram os responsáveis por rememorar e repassar o legado de suas vidas ou de sua comunidade para os mais jovens. Quem tem história
para contar? Acreditamos que é aquele que muito viveu. Como fazer com que jovens se
colocassem como narradores que têm uma história para contar?
* Professora do Depto. de Letras da UFRN e orientadora da Oficina de Textos do Programa Conexões
de Saberes.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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A leitura de textos autobiográficos ajudou a esses alunos a compreenderem a posição
que o sujeito ocupa quando se dispõe a contar a sua saga pessoal. Lemos, então, autobiografias de diferentes sujeitos, com diferente composição e estilo: da escrita sucinta e dura
de Graciliano Ramos ao relato forte e corajoso de Sila, ex-cangaceira do bando de Lampião.
A leitura proporcionou a desconstrução do mito de que não sabiam fazer, ou melhor, não
sabiam escrever. Ler os textos levou-os a perceber que também poderiam reconstituir a
trajetória de suas vidas, a sua caminhada, a sua saga pessoal.
Com a clareza de que o gênero discursivo emerge e se nutre das práticas sociais e
históricas do uso da linguagem, discutimos, então, qual o gênero mais propício para a
intenção comunicativa "contar uma trajetória de vida". Assim, elencamos alguns gêneros
que poderiam se constituir em instrumentos para esse objetivo: a autobiografia, o poema
narrativo, o memorial, o esquete, a carta pessoal e outros mais. Desses, estão neste livro a
autobiografia com diferentes configurações, o poema narrativo, o esquete com sua estrutura
dramatúrgica e a carta pessoal. Cada um procurou imprimir a sua marca autoral, o seu estilo
e isso foi concretizado pela escolha de epígrafes, de versos de canções tantas vezes ouvidas
e com as quais se identificavam, de frases vindas dos contos de fadas, de frases de pensadores ou autores lidos. Além disso, esse estilo pessoal se evidencia, também, na escrita direta,
sucinta e sem rodeios de alguns como se desejassem o corte, o close apenas naquilo que foi
selecionado; ou na poeticidade daqueles que se embeberam do passado e o reconstituíram
com detalhes, minúcias, pequenos "causos" contados com o sabor da infância.
Sobressai-se desse trabalho, que perdurou alguns meses, a emoção desses jovens
narradores na busca de suas lembranças, de suas memórias. O reencontro com o passado,
mesmo tão próximo quanto o deles, vem marcado com a sensação de se estar de volta aos
locais, aos eventos, aos braços e abraços de amigos, à intimidade da casa dos pais ou dos
parentes. Assim, o sofrimento, a dor das perdas, as dificuldades, as limitações, os preconceitos, a exclusão são ressignificados e olhados com o distanciamento que propicia a reflexão,
a crítica e a indignação. Confirmando que a linguagem é constitutivamente dialógica, as
vozes desses narradores e narradoras vêm atravessadas e marcadas pelas vozes de seus pais,
parentes, amigos ou de uma voz coletiva que os estimulavam para a ruptura, para a luta, para
a conquista.
Destemidos e destemidas, abrem as gavetas de seu passado, muitas vezes, confundido
e enredado ao presente, e se mostram inteiros, fortes, valentes e vitoriosos e vitoriosas... O
combustível para a sua escrita foi a emoção, mas também o propósito de registrar que eles
podem e têm o direito de estarem aqui freqüentando uma universidade pública. O choro que
muitas vezes se fazia presente quando líamos as primeiras versões dos textos, que ora
apresentamos, também era seguido de risos e alegria que acompanham os momentos de
vitórias e conquistas. Eles não tiveram álibis para as suas vidas, mas foram muitos os álibis
construídos para justificarem a exclusão, o abandono, a discriminação.
Quem quer que se interesse por história de vida, por relatos de sagas pessoais, por
registro de conquistas e sonhos, muito encontrará nessas páginas. O acesso à história desses
bolsistas propicia uma emoção rara e, talvez, o reencontro com a sua própria história.
Afinal, somos muitos os que compartilhamos das mesmas condições de vida, de educação,
de acesso ao que é produzido para poucos. Os leitores perceberão o quanto essa leitura
instiga, emociona, revolta e ensina. E que sejam inúmeros esses leitores!
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Caminhadas de universitários de origem popular
Com amor e fé na vida é mais fácil
continuar a caminhada
Ana Paula de Barros Ferreira *
A caminhada é sua e de mais ninguém.
Real Coletivo Dub
Viver é trilhar os caminhos que o destino coloca à nossa frente; é trilhá-los com amor,
fé em Deus, bondade e positividade. Para estar aqui, contando como comecei a trilhar esse
caminho chamado Universidade, tive que dar um passo que mudou totalmente a minha
vida. Sei que devem existir caminhadas mais emocionantes ou até mais comoventes que a
minha; talvez ela seja só mais uma entre tantas outras, porém, esta é a minha caminhada, que
realizo todos os dias e da qual sinto um grande orgulho, por ter forças para continuar
seguindo, mesmo com todas as pedras e obstáculos que surgem.
Eu sou do Hip Hop. Eu sou do Rio.
Rafael Crespo / Marcelo D2
Sou uma jovem de origem popular. Nasci no Rio de Janeiro-RJ, passei parte da minha
infância na casa dos meus avós, em Padre Miguel (periferia do Rio). Apesar das dificuldades, sempre fui muito feliz. Graças a Deus, consigo enxergar a felicidade nas coisas simples
da vida. Minha avó (Dona Nina) foi lavadeira de roupa por muitos anos e dona de casa e
meu avô (Seu Maninho), mestre de obras a vida toda, faleceu em abril de 2006 em decorrência de um câncer no esôfago. Perder meu avô foi muito doloroso para mim, pois ele foi uma
pessoa muito presente na minha infância e cuidava de mim como se fosse meu pai. Eles
sempre cuidaram de mim com o maior carinho do mundo. Minha mãe trabalhava o dia todo
e tentava fazer faculdade durante a noite. Apesar de ter se esforçado muito, ela não conseguiu concluir o curso de Administração. Faltou dinheiro, faltou tempo... Acho que é por
isso que ela me incentiva muito a estudar.
Meus pais não eram casados e alguns anos depois do meu nascimento o relacionamento
deles terminou. Naturalmente, com o passar do tempo, minha mãe conheceu outro rapaz
(Izael) e se casou com ele. Foi por causa do casamento que nos mudamos do Rio de Janeiro.
O marido da minha mãe (o chamo de pai desde pequena) é Cabo da Marinha e foi transferido
para o Nordeste em 1992. Foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Apesar de ficarmos
longe da nossa família, o nordeste é um lugar maravilhoso para viver. Moramos por quatro
anos em João Pessoa-PB e depois em Natal-RN. Hoje, eles (minha mãe, meu pai e meus
irmãos - tenho um irmão de 16 anos Raphael e uma irmãzinha linda com 10 anos, Raphaela)
* Graduanda em Comunicação Social - Radialismo pela UFRN.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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estão morando no Rio novamente. E eu estou em Natal... esse foi o grande passo que
precisei dar para fazer o Curso Superior: ficar sozinha em Natal.
Estudei o Ensino Fundamental em uma escola fundada por uma igreja evangélica
aqui em Natal. A mensalidade era acessível, mas mesmo assim, às vezes, o pagamento
atrasava por falta de dinheiro. Quando cheguei a 8ª série, fui estudar em uma escola
estadual. Já o Ensino Médio, consegui fazer em uma das melhores escolas de Natal: o
CEFET-RN. Estudei muito para a prova de seleção... minha mãe sempre me motivou
bastante (o sonho dela é me ver formada!) e essa motivação dinheiro nenhum do mundo
pode pagar, pois só em saber que existe alguém que me ama muito e acredita sempre nos
meus sonhos, vejo que isso não tem preço e, ainda mais, quando essa pessoa é uma guerreira
como ela. Orgulho-me de ser filha de uma mulher tão corajosa e especial. Tenho-a sempre
como fonte de inspiração.
Assim, ter a oportunidade de ser aluna da escola técnica fez muita diferença na minha
vida. Comecei a conhecer o movimento estudantil, tive excelentes professores que me
passaram importantes noções de política, direitos humanos, etc. Por isso, acredito que nada
acontece por acaso. O destino pôs em minha vida o caminho chamado CEFET e eu lutei
para poder percorrê-lo, e hoje eu sei que foi a melhor coisa que poderia ter acontecido
naquele momento.
Outro fato muito marcante aconteceu neste mesmo período: quando voltei a manter
contato com meu pai Francisco. Já fazia mais de dez anos que não nos falávamos porque,
como ele também era militar, havia sido transferido do Rio de Janeiro.
Mas a dúvida é o preço da pureza e é inútil ter certeza.
Humberto Gessinger
Chegou o terceiro ano e era a hora de fazer vestibular. Surgiu então uma dúvida: que
curso escolher? Estava perdida em relação a isso e optei por Psicologia. Fiz o vestibular e
não passei; esse curso é muito concorrido na UFRN. No ano seguinte, descobri que minha
verdadeira vocação era ser uma Comunicadora Social. Tentei vestibular para Jornalismo e
novamente não passei. Eu ficava muito nervosa na hora das provas... já estava começando
a querer desistir... mas minha mãe estava sempre por perto me motivando. Consegui uma
bolsa de estudos num cursinho e estudei como nunca. Não agüentava mais sofrer decepções
com o resultado do vestibular; eu sabia que tinha potencial, todos têm, mas a prova do
vestibular muitas vezes não é justa. Senti que era o último vestibular que faria, pois me dera
muito bem nas provas. Só uma coisa me deixava triste: meu pai Izael estava para receber a
transferência de volta para o Rio.
A confirmação da transferência dele saiu antes da divulgação do resultado do vestibular. Ficamos todos tristes, afinal de contas, já fazia nove anos que morávamos em Natal.
Minha família se mudou em dezembro, antes do natal e antes do resultado do vestibular;
minha mãe queria tanto estar ao meu lado nesse dia tão importante para nós duas, mas
infelizmente não foi possível, apesar da distância, comemoramos essa vitória.
Felicidade, passei no vestibular...
Martinho da Vila
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Caminhadas de universitários de origem popular
Passei para o curso de Comunicação Social-Radialismo (fui a segunda colocada), foi
um dos dias mais felizes da minha vida. Porém estava com uma pontinha de tristeza porque
tinha que voltar para minha cidade natal, porque era em Natal que estavam meus amigos,
minha vida; queria ter o prazer de estudar na UFRN, mas, naquele momento, isso era inviável:
eu mal sabia o que o destino estava preparando para mim...
Precisei ficar em Natal para resolver a documentação da minha transferência e, como
eu não tenho família aqui, tive que arranjar um lugar para ficar por uns tempos. E foi nesse
momento que uma família muito especial me acolheu: a família do meu ex-namorado,
Lourival, mais conhecido por Loro. São pessoas maravilhosas - Alécia, Polloni e Paloma.
Deus sempre coloca anjos em nossas vidas para nos ajudar a seguir a caminhada. Fiquei
hospedada na casa deles por três meses e fui tratada como um membro da família - até
churrasco teve no dia da minha aprovação no vestibular! Infelizmente, hoje não faço mais
parte dessa família linda (depois que voltei para Natal, nosso namoro terminou), mas amo
muito todos eles e sou grata pelo que fizeram por mim e sempre peço a Deus que continue
abençoando e iluminando sempre seus caminhos.
Resolvido o problema da documentação, viajei para o Rio de Janeiro. Como as despedidas são tristes! Loro, Walkiria (minha melhor amiga) a mãe dela (Aparecida) e mais alguns
amigos foram se despedir de mim. Dizer adeus dói muito, mas era preciso. Eu fui de Natal até
o Rio de Janeiro chorando muito, pois era um novo rumo que estava dando na minha vida.
Apesar de ter nascido no Rio, morava no Nordeste há mais de treze anos e não estava mais
ligada à "Cidade Maravilhosa".
Apesar de tudo, fiquei muito feliz por ter chegado ao Rio (estava morrendo de saudades
da minha família, nunca tinha passado tanto tempo longe dela). Minha mãe como sempre,
muito coruja, quase morreu de alegria. Mas como nem tudo são flores surgiu um problema:
fui até a UFRJ para fazer minha matrícula e entreguei meus documentos na secretaria da
ECO (Escola de Comunicação). Freqüentei as aulas como aluna ouvinte, durante uma semana,
enquanto a minha documentação estava sendo analisada.
Na mochila amassada
Uma quentinha abafada.
O Rappa
Foi uma semana muito intensa. Estava ansiosa para saber se conseguiria me matricular;
com saudades de Natal e dos meus amigos; perplexa com a complexidade que era o Rio de
Janeiro (estava acostumada com uma cidade pequena) e ainda por cima tinha que andar
sozinha no Rio, mesmo não conhecendo nada. A casa dos meus pais fica em Campo Grande
(Zona Oeste do Rio) e a ECO fica na Urca (Zona Sul) - quem conhece o Rio de Janeiro sabe
o quanto esses bairros são distantes. Precisava pegar um ônibus de Campo Grande até a
Central do Brasil, e de lá, outro para a Urca. Para fazer esse trajeto eu gastava mais ou menos
duas horas e quarenta minutos, isso sem engarrafamento na Avenida Brasil. Para chegar à
aula que começava às 13h eu tinha que sair de casa, mais ou menos, às 9h e 30 min. E o valor
da passagem do ônibus? Gastei em um dia R$ 8,00, e sem falar que, ou eu levava uma
quentinha para almoçar ou então teria que gastar mais dinheiro para poder me alimentar na
universidade.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Eu e minha mãe começamos a pensar em alternativas para facilitar a minha ida para as
aulas. Tenho uma tia-avó, Maria Antônia, que mora no bairro Catete (Zona Sul) e que é mais
próximo da ECO. Conversamos e ela permitiu que eu morasse na casa dela. Mas, apesar de
ter encontrado a solução para esse problema, apareceu outro: faltou um documento importantíssimo para efetivação da minha matrícula - declaração da Marinha, atestando que eu
morava com minha mãe e com meu padrasto.
Além desses problemas, tinha o estado de saúde do meu avô. Há dois anos ele estava
fazendo tratamento contra um câncer no esôfago. Ele já estava com 80 anos e sua imunidade já estava muito baixa por causa da quimioterapia e da radioterapia. Depois de quatro
anos sem vê-lo, encontrá-lo tão mal me deixou abalada (ele estava muito magrinho e sem
cabelo. O cansaço era claro no seu rosto). Meu avô foi um grande guerreiro, e como um bom
guerreiro resistiu até acabarem todas as suas forças...
Jamais perca o seu equilíbrio por mais forte que seja
o vento da tempestade
André Sampaio / Hélio Bentes
Diante de tudo isso eu fiquei muito triste. Tinha estudado tanto para passar no vestibular e parecia que eu estava recebendo um castigo no lugar da recompensa. Mas respirei
fundo, pedi ajuda a Deus, calma e paz interior para encontrar uma solução.
Adeus, adeus, adeus mamãezinha. Adeus, adeus, adeus
mamãezinha. Vou embora, eu vou voltar pro meu sertão...
Natiruts
Decidi voltar para Natal. Minha mãe se mostrou forte, disse que apoiaria minhas
decisões, mas senti no seu olhar a tristeza que tomou conta do seu coração. Não é fácil ver
a filha mais velha saindo de casa. Ainda mais nessas condições. Não temos família em Natal
e minha mãe não tem condições financeiras de me bancar - aluguel, alimentação, transporte,
etc. Mas, eu nunca desisto fácil dos sonhos. Sabia que na UFRN tinha Residência Universitária e eu poderia procurar emprego. Contava, também, com a força de amigos que deixei
em Natal. Liguei para minha amiga Walkiria, expliquei o que havia acontecido e pedi para
ficar um tempo na casa dela enquanto me organizava. Ela concordou.
Tem que recomeçar, tem que construir, tem que avaliar
e ter hora para agir
O Rappa
Pronto! Estava decidido. Liguei para meu pai Francisco, perguntei se ele poderia me
ajudar comprando minha passagem de volta (o ano letivo já tinha começado há um mês).
Ele me ajudou e eu voltei para Natal. Atitude louca? Ou um impulso? Atitude ousada
demais? Pode até ser... Mas eu não ia ficar sentada vendo meu sonho escapar pelas minhas
mãos sem fazer nada. O máximo que poderia acontecer era dar tudo errado e eu voltaria para casa.
Após dois meses de aula, e depois de dois meses procurando emprego, soube que a
Pró-Reitoria de Extensão estava selecionando alunos para serem bolsistas do Programa
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Caminhadas de universitários de origem popular
Conexões de Saberes. Na primeira etapa da seleção, foi exibido o clip do I Seminário
Nacional do Conexões de Saberes. Achei um projeto interessantíssimo e fiquei com muita
vontade de participar. Entreguei minha documentação e fiquei à espera.
Quando o resultado da seleção saiu, eu quase que não acreditei: eu tinha sido selecionada. Ao chegar em casa, contei logo a novidade e todo mundo vibrou.
Não tenho palavras para agradecer a força que recebi da minha "Família número 2"
(Walkiria, Aparecida e Dona Elci). Elas são mulheres incríveis; guerreiras que nunca desistem da batalha diária que é a vida; são anjos - novamente os anjos - iluminados. Não sei o
que teria sido de mim se não fosse o apoio delas. Obrigada, queridas!
As atividades do Conexões começaram e eu estou trabalhando na Comunidade
Redinha/África. E sabem que coisa maravilhosa aconteceu? O II Seminário Nacional do
Conexões de Saberes foi no Rio de Janeiro, ou seja, consegui ver minha família e matar um
pouco da saudade.
Nada acontece por simples acaso. Tudo tem um propósito e o destino conspira a favor
daquele que busca trilhar seu caminho de mãos dadas com o bem. Hoje estou morando
sozinha - minha casa não é grande (quarto, cozinha e banheiro), mas é o suficiente - e me
sinto muito feliz, apesar de me sentir um pouco só e a saudade da minha família ser grande.
Estou em paz porque descobri a minha vocação; estou feliz por ser quem eu sou. Tenho
falhas, mas quem não tem? Somos parecidos com borboletas que um dia já foram lagartas.
Mas com amor e fé na vida é mais fácil continuar a caminhada.
Então encontre a paz no seu interior
Não se entregue jamais
E lute com amor.
Rastafeling
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
17
Um retorno: saudades, desafios, minha vida!!!
Ana Paula de Souza Santos*
Comece fazendo o que é necessário, depois
o que é possível, e de repente você estará
fazendo o impossível.
São Francisco de Assis
Contar minha história desde a infância até a fase atual da minha vida, na qual estou aqui,
na universidade é meio complicado contarmos a nossa história de vida, porém, acredito que
esta será uma experiência marcante, principalmente, por saber que você está lendo-a agora.
Então, por que contar minha história? Primeiro, porque espero que a realização
dessa obra possa produzir bons pensamentos e reflexões, novos sonhos, novas expectativas, e junto com tudo isso o "acreditar em si mesmo" em cada um de vocês leitores.
Segundo, porque o ato de contar esta trajetória está me proporcionando um maior conhecimento sobre mim mesma, sem falar no forte sentimento de agradecimento a todos que,
de alguma forma, fizeram parte dessa minha caminhada até a entrada na universidade.
Eu me chamo Ana Paula de Souza Santos e atualmente estou cursando Enfermagem na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Antes de tudo, para mim, é imprescindível iniciar minha trajetória falando sobre o quanto a presença da minha mãe, a Dona
Maria das Graças, foi importante para me direcionar nos meus caminhos.
Tendo ela nascido no interior da Paraíba, na cidade de Campina Grande, no dia 15 de
julho de 1963, nunca soube o que era estar dentro de uma sala de aula, pois além de a escola
ficar muito distante desse lugar, seus pais não a incentivavam muito para o estudo. Meus
avós maternos eram feirantes, assim, com apenas sete anos, minha mãe já os ajudava na
feira, enquanto seus sete irmãos trabalhavam na roça. Nenhum deles teve acesso à educação, pois além de outras dificuldades, as pessoas do lugar não pensavam muito em estudo,
mas sim, em trabalho.
Devido à situação difícil da família, aos quinze anos partiu para a capital João Pessoa
com uma prima. Estando na capital, não conseguia emprego, principalmente, por saber
somente escrever seu nome. Assim, a única alternativa que encontrou foi trabalhar em casa
de família, já que não tinha onde morar, tampouco dinheiro para pagar aluguel. E foi com o
pouco que ganhava de seu trabalho que minha mãe ajudava a família. Acho que ela não
pensou nas dificuldades que teria de enfrentar ao sair de sua cidade no interior, uma vez que
partiu para a capital sem dinheiro e sem moradia, só trazendo o sonho de mudar de vida,
* Graduanda em Enfermagem pela UFRN
18
Caminhadas de universitários de origem popular
mesmo com a pouca idade. Dois anos depois, ela foi morar com uma tia, aqui no RN, na
capital Natal. E foi aqui que ela conheceu meu pai, José Aurino, nascendo desse relacionamento minha irmã Juliana, no dia 4 de abril de 1985 e eu, no dia 10 de novembro de 1986.
Nessa época, meu pai tinha uma boa condição financeira e logo comprou uma casa na
cidade de Parnamirim, no bairro de Emaús, no qual moro até hoje. Meus pais passaram uns
sete anos juntos, até que veio a separação. Eu estava com um ano e alguns meses quando
isso aconteceu. Não lembro nada do nosso convívio em família, não faço idéia do que seja
estar perto dos dois, de vê-los juntos. O que sei é que ele simplesmente vendeu a casa onde
morávamos, deixando minha mãe sozinha com duas crianças pequenas. Em meio aquele
desespero, sem saber o que fazer e a quem recorrer minha mãe só tinha vontade de voltar
para sua família, pois se sentia sozinha no mundo longe de seus parentes. Contudo, sabia
que isso não era possível, porque queria dar um futuro melhor para suas duas filhas, queria
nos dar a oportunidade de estudar.
Quando Deus fecha uma porta abre uma janela
Autor desconhecido
A única opção que tinha era a de morarmos pagando aluguel com o dinheiro que
conseguiu economizar durante alguns anos, mas precisaria trabalhar para nos mantermos.
Felizmente, algo muito bom aconteceu quando Tereza, uma senhora que era nossa vizinha,
nos ofereceu sua casa para morarmos até que nossa situação melhorasse. Mais uma vez Deus
fez-se presente em nossas vidas. Muito agradecida minha mãe aceitou a grande ajuda. A
partir daí, ela passou a conviver mais com um dos filhos dessa senhora, Alberto, surgindo
um novo relacionamento. Agora, passei a ter novamente uma família, uma grande família,
pois eram doze pessoas que moravam na casa.
Em junho de 1989, nasceu minha nova irmã, Ana Patrícia, e os seus primeiros meses de
vida são as lembranças mais antigas que tenho. Nesse mesmo ano, minha irmã Juliana inicia
seus estudos, fazendo o Jardim I na Pré-Escola Nossa Senhora da Guia e só dois anos depois
iniciei minha vida escolar nessa mesma escola que era quase vizinha à minha casa. Lembrome com saudades desse tempo, quando as professoras espalhavam brinquedos pela sala, era
uma verdadeira guerra pelos melhores brinquedos, o mais cobiçado era um urso de pelúcia
gigante! Tive uma professora da qual me recordo com carinho, a "Tia Mônica", todos a
adoravam. Foi nesse tempo também que fiz uma grande amizade com Bruna, uma amizade
que existe até hoje. Como estudávamos pela manhã, passávamos o resto do dia brincando
no quintal da casa dela. Aliás, todos os nossos amigos iam para lá também e a sua casa
virava uma creche! Imaginem só a "zona"! Bons tempos aqueles...
Um acontecimento marcante para mim ocorreu no dia 14 de outubro de 1992, o
nascimento da minha irmã mais nova, Ana Caroline. A imagem de minha mãe sentindo as
dores do parto, sendo levada por sua sogra e uma das cunhadas para a Maternidade é algo de
que não consigo esquecer. Quando ela estava com um ano de idade, mais ou menos, eu e
minha irmã Juliana a disputávamos porque adorávamos ficar apertando a pobrezinha! Numa
dessas disputas, acabamos quebrando seu braço de tanto a puxarmos de um lado para o
outro, igual àquela brincadeira "cabo de guerra" (risos!). Gente, não era por maldade, mas
sim porque ela era muito fofinha! Levamos até algumas palmadas nesse dia!
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
19
J Juventude, L Liberdade, M Molecagem...
Cesar Costa Filho, Ronaldo Monteiro de Souza
Bom, já na 1ª série do ensino fundamental (hoje 2º ano), tive que mudar de escola,
porém não senti grandes mudanças, uma vez que a nova escola, chamada Escola Municipal
Nossa Senhora da Guia, localizava-se em uma rua depois da minha casa e era dirigida pela
mesma diretora do Pré. Além disso, praticamente todos os meus colegas também iam estudar lá.
Os quatro anos que passei nessa escola foram maravilhosos! Sinto saudade de tudo:
dos amigos, das brincadeiras antes de começar a aula e durante o recreio, da barulheira
que todos faziam. Eram tantas as brincadeiras, desde aquela que você bate na figurinha
com a palma da mão pra tentar desvirá-la até o contagiante "pular elástico", "amarelinha",
"polícia e ladrão", dentre tantas outras, não esquecendo a clássica "guerra de bolinhas de
papel" que ocorria no intervalo entre as aulas.
Quanto à educação que recebi nas duas escolas, posso reconhecer que, além de oferecerem uma ótima qualidade de ensino, não deixaram a desejar no que se refere a estrutura
física, tanto das salas de aula, como de todo ambiente escolar. Esses fatores somente contribuíram para meu gosto pelos estudos, tornando prazerosa a ida à escola.
A única coisa desse período a qual não aprecio lembrar é o que normalmente se
comemora no 2º domingo do mês de agosto, "o dia dos pais". Ficava muito triste porque
raras eram as vezes em que meu pai vinha visitar-me, e nesse dia eu também não o via. Sem
falar nas comemorações que ocorriam na escola, os cartõezinhos que as professoras pediam
que os alunos fizessem para entregar a seus pais e tudo o mais. Vamos deixar meu pai um
pouco de lado, não sei se voltarei a falar dele.
Quando passei para a 5ª série, no ano de 1998, minha vida mudou consideravelmente.
Primeiro, porque agora teria que ir de ônibus até a Escola Estadual Professor Eliah Maia do
Rêgo. Segundo porque essa escola era totalmente diferente das que eu estudei antes. Mas eu
tinha que me adaptar àquele novo ambiente: a desordem, o ensino altamente precário, as
aulas rápidas, a maioria dos professores descompromissados, tanto quanto muitos alunos,
aquelas salas de aulas com as mesmas cadeiras vazias todos os dias... enfim, um conjunto de
problemas que não me faziam construir uma boa expectativa de futuro, algo que sabemos
que é comumente vivido por grande parte dos alunos de escolas públicas.
Nesse mesmo ano, finalmente, nos mudamos para a casa que meu padrasto havia
comprado há dois anos com o dinheiro que havia recebido com sua demissão do emprego
no qual estava há oito anos. Entretanto, a casa não estava em boas condições de moradia,
com isso, os dois resolveram economizar um pouco para fazer uma reforma. Nessa situação,
minha mãe trabalhou muito, pois o que mais desejava no momento era sair da casa de sua
sogra, visto que os conflitos familiares vinham tornando-se mais freqüentes, criando uma
convivência insustentável. Já meu padrasto ficou alguns meses sem emprego fixo, assim,
não pôde ajudar muito, mas depois conseguiu um emprego. Mesmo assim, não cumpriu
com suas responsabilidades, gastando o dinheiro com bebidas alcoólicas e casas de jogos.
Tantas foram as brigas que eu e minhas irmãs presenciamos e quantas foram as vezes
em que eu e Juliana, a mais velha, interferíamos na discussão, apoiando todas as palavras de
nossa mãe. E neste meio conflituoso, começou a crescer em nós um sentimento de revolta
contra nosso padrasto. Mas foi superando as adversidades e com muito esforço que minha
mãe conseguiu fazer a reforma de nossa casa, a qual se localizava no mesmo quarteirão da
casa onde morávamos.
20
Caminhadas de universitários de origem popular
Retornando ao que eu havia dito sobre a minha nova escola, o fato é que eu passei a
não gostar dela. No início, foi difícil a convivência com os novos colegas de sala, devido
considerá-los muito diferentes dos meus antigos colegas porque eles faziam muita desordem e brincadeiras de mau gosto. Contudo, com o passar do tempo, fui me acostumando
àquele novo mundo. Hoje acho engraçado e ao mesmo tempo decepcionante quando os
meus colegas de sala diziam que eu estudava demais, que eu era uma "CDF", porque "passava cola" para muitos deles. Mas que nada! É que não tinha muito que estudar não! Muitas
vezes as provas eram uma cópia de um exercício anteriormente dado em sala.
O pessimista queixa-se do vento, o otimista espera que ele mude
e o realista ajusta as velas.
Willian George Ward
A cada ano que se passava, tornava-se mais perceptível para mim a realidade na qual
eu me encontrava. Foi quando eu estava na 8º série que realmente senti como um ensino
deficitário poderia me prejudicar, afinal, eu queria concorrer no PROCEFET, o qual é um
exame seletivo com provas de Língua Portuguesa, Matemática e Cidadania para alunos
provenientes de escolas públicas ingressarem no CEFET. Vi nesse exame a oportunidade
de construir uma nova visão quanto ao meu futuro, visto que o CEFET oferece ensino
médio e tecnológico de qualidade. Porém, também sabia que, para alunos como eu, que
passaram por um ensino fundamental precário (de 5º a 8º), o nível das provas era alto, sendo
assim, era preciso muita dedicação para conseguir a bolsa.
Enfim, sabendo das minhas dificuldades logo comecei a me dedicar ao estudo. Não
sabia por onde começar! Quando abria os livros acabava me frustrando! Sentia como se eu
não soubesse de nada! Mas tudo melhorou quando eu e a Bruna passamos a estudar juntas,
o que me ajudou bastante, pois ela estava tendo aulas particulares. A vontade de passar
tornou-se maior, principalmente quando conheci o CEFET, no dia das inscrições. Pensei:
no próximo ano estarei aqui!
Nesse mesmo período, uma amiga da minha mãe convidou-me para trabalhar na sua
pequena loja que se localizava em frente a minha casa. Aceitei na hora, mesmo porque isso
não iria atrapalhar meus estudos. E assim foi até o dia das provas do exame. Quando saí da
sala de provas, senti um grande alívio. Não agüentava mais o pessoal da escola que não
falava em outra coisa. O clima de competição tornara-se insuportável. Até que enfim o dia
do resultado chegou e para minha alegria, e de todos os que torciam por mim, eu passei!
Lembro-me da emoção que senti ao ver o quanto minha mãe ficou feliz pela minha aprovação...
Quando as aulas do CEFET iniciaram, logo pude constatar a disparidade entre esta e
minha antiga escola. Não só em relação à estrutura, como em relação às atividades oferecidas aos alunos como teatro, aulas de música, pintura, dança, dentre muitas modalidades
esportivas. Aquilo tudo para mim era muito novo, algo bem distante da realidade na qual
vivia há pouco tempo atrás.
Entretanto, sabia que ter passado no pró-CEFET foi uma barreira vencida dentre muitas outras que teria que enfrentar. A mais difícil foi, sem dúvida, a superação de minha
deficiência de base do ensino fundamental. Já nas primeiras aulas das disciplinas sentia
dificuldade em assimilar o que os professores falavam, principalmente, em Física, Química,
História e Inglês, enquanto grande parte da turma empolgava-se nas aulas. Isso sem falar nas
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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aulas de Informática! Não conhecia quase nada de computador, enquanto meus colegas
entediavam-se com as aulas. Comecei a me desestimular a cada dia, até que, quando olhei
minhas primeiras notas, acordei! Percebi que não ia adiantar nada ficar reclamando do
ensino que tive no outro colégio, que devia correr atrás do prejuízo e estudar em dobro para
poder me adaptar àquele ritmo de estudo. Graças a Deus consegui ter força de vontade para
superar isso, melhorando meu rendimento consideravelmente. Outra dificuldade foi a de
me manter na instituição. Eram muitas despesas com transporte, alimentação e cópias de
textos passados pelos professores. Às vezes, sentia-me triste por causar tantos gastos a
minha família. Mas, depois vinha o pensamento de que o esforço deles seria recompensado.
Vou deixar a vida me levar pra onde ela quiser, estou no
meu lugar...
Samuel Rosa / Chico Amaral
Quanto à convivência com minha nova turma, essa foi a melhor de todas! Já na primeira
semana, como quase sempre acontece, os grupos foram se formando e convivi com pessoas
maravilhosas que fizeram e fazem parte da minha vida. Eu fiz amizade com um grupo de
meninas e não nos desgrudávamos por nada! Inicialmente, éramos um grupo de seis: eu,
Rosana, Nathália, Monique, Françoise e Kátia. Nos 2º e 3º anos, aumentamos para nove com
Jullianna, Kionara e Layssa. Onde estávamos o barulho acompanhava! Lembrando ao leitor
que eu não era bagunceira, eu e Rosana éramos um pouco mais contidas (risos!). Quando
elas ficaram sabendo que eu iria contar minha história de vida e que seria publicada num
livro, intimaram-me a pelo menos citar seus nomes, porém elas merecem mais que isso, pois
participaram de muitos momentos inesquecíveis da minha vida. Juntas, construímos uma
verdadeira amizade que nos mantém unidas até hoje. Aprendi muito com todas elas!
Quando estávamos no 2º ano, resolvemos até fazer uma camiseta para ficar como mais
uma lembrança desses tempos. Fizemos a tal camiseta como não podia ser diferente, de cor
rosa com alguns detalhes de lilás e uma "Hello Kitty" estampada na frente, uma graça! O
interessante eram as caras dos alunos olhando pra todas nós com aquela camisa "fresca",
como eles diziam, era muito engraçado!
É verdade, leitor, gostávamos mesmo de chamar a atenção (risos!). Esse ano foi maravilhoso porque comecei a sair com meus amigos, a me divertir bastante, não deixando os
estudos de lado, o que é o mais importante. Foi um ano de descobertas: as primeiras festas,
a primeira gota de álcool e também o auto-conhecimento, algo bem marcante para mim
nessa etapa da vida.
Bom, já chegando o final do ano letivo, em 2003, o pessoal da turma só falava no "ano
de vestibular" da UFRN que se aproximava. Abriu uma seleção para alunos ingressarem nos
cursos técnicos ofertados pela escola. Dentre os cursos, inscrevi-me para concorrer ao de
Desenho de Projetos Arquitetônicos, tendo em vista minha admiração pela área de Arquitetura,
além disso, não tinha nenhuma afinidade pelos outros cursos.
Felizmente consegui ser selecionada. Agora era preciso muito esforço para cursar
o 3º ano pela manhã, o técnico à tarde e estudar para o vestibular à noite. Além de
dedicar-me ao ensino médio, havia os trabalhos do técnico que exigiam um pouco mais
de tempo para fazer os projetos que os professores pediam. Fui deixando o vestibular
um pouco de lado...
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Caminhadas de universitários de origem popular
O ano foi bastante corrido. Alguns dos professores que tive nesse ano tornaram-se
inesquecíveis, a professora Neide, de Português e Literatura, o professor João Maria, de
Química e o professor Gerson, de Geografia. Todos sempre abordavam o vestibular, nos
dando força para lutarmos pelos nossos objetivos. Outro professor que tive, de Física,
chamado Calistrato, virou alvo das nossas brincadeiras. Ele era uma figura! Uma amiga,
Françoise adorava imitá-lo, tanto ele, quanto muitos outros, foram suas vítimas (risos!).
Ah, poderia contar mil e uma histórias dessa turma inesquecível. Até o que vivi hoje,
o ensino médio foi a melhor época da minha vida. E como esse ano seria o último no qual
estudaríamos todos juntos, ano de despedida, boa parte da turma queria uma formatura bem
organizada e uma linda festa. Começamos a nos organizar, pesquisar os bufês e tudo o mais.
Fiquei preocupada com o valor que teríamos que pagar mensalmente, pois temia que
minha mãe não pudesse pagar. Ela desejava que eu tivesse uma linda festa de formatura
e sempre deu um jeitinho de pagar as mensalidades. Espero um dia poder retribuir tudo
que ela fez por mim, por ter sempre lutado pelos meus objetivos e me proporcionado
momentos de felicidade.
Nada a temer, senão o correr da luta / Nada a fazer, senão
esquecer o medo / Abrir o peito à força numa procura fugir às
armadilhas da mata escura / Longe se vai, sonhando demais / mas
onde se chega assim? Vou descobrir, o que me faz sentir / Eu
caçador de mim.
Luiz Carlos Sá / Sérgio Magrão
O tempo foi passando e eu ainda não tinha certeza do curso que desejava cursar. De um
lado, havia uma inclinação por Arquitetura, na área tecnológica, e seria bom porque estava
gostando do técnico, que é da mesma área, assim já teria uma boa base quando iniciasse o
superior. Por outro lado, o curso de Nutrição também me atraía, mas isso era pouco para se
decidir a escolha da profissão. No fim, acabei optando por Arquitetura.
Faltava um pouco mais de um mês para o início da realização das provas do vestibular,
quando eu e minhas amigas resolvemos fazer um cursinho de revisão. Na verdade, não
achava que valeria a pena, pois durante o ano não havia me preparado o suficiente e não
seria somente uma revisão que iria me fazer passar. Mesmo assim fiz, até porque minha mãe
não se opôs, pelo contrário, ela dizia que valia a pena investir para tornar sua filha uma
universitária da federal. Assim, fiz a revisão que me ajudou em muitos assuntos, mesmo de
forma um tanto superficial.
Chegou enfim o período de provas. Após as provas de Português e Literatura, fiquei
mais animada. Lembro que durante as provas ouvia a voz da professora Neide dando-me as
respostas. Ela passou praticamente o ano todo enfatizando somente duas obras dentre as
cinco indicadas e para minha sorte ela conseguiu dar umas boas dicas sobre as questões
suspeitas de caírem nas provas. Meu entusiasmo não durou muito, pois nas outras provas
não fui bem, a não ser nas provas de Matemática e Biologia, disciplinas pelas quais tenho
grande afinidade. O resultado foi que passei na 1º fase, mas não fui aprovada.
Não ter passado no meu primeiro vestibular foi algo que não me abalou muito, pois
reconhecia que não havia me preparado o suficiente. E outra, não estava certa do curso
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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que havia escolhido. Grande parte da minha turma foi aprovada e, das minhas amigas,
somente Françoise e Kátia conseguiram a aprovação, mas isso já foi um grande motivo
para comemorarmos...
No mês de fevereiro de 2005, ocorreu minha colação de grau. Fiquei emocionada em
vários momentos. Só pensava na saudade imensa que sentiria de tudo e de todos. O dia da
festa foi sensacional! Sem comentários! Rimos, choramos...
Passada a euforia, retornava o pensamento "mais um ano de vestibular", e esse sim,
com muito mais dedicação. E pressão também, agora teria mais tempo para estudar e decidir
com calma que curso iria seguir. Entrei em um cursinho pré-vestibular pela manhã, após ter
conseguido uma bolsa com um desconto de 50% na mensalidade a qual minha mãe pagava
com muito sacrifício. Continuei o curso técnico durante a tarde, concluindo-o no meio do
ano. E foi só a partir desse período que realmente comecei a estudar de verdade, de julho a
novembro. Adorei essa época de cursinho, pois além de apreciar muito as aulas de boa parte
dos professores, fiz grandes amizades, sobretudo com a Walkíria e o Carlos. Em pouquíssimo
tempo, nossa amizade se firmou e já não nos separávamos. Desabafávamos sobre nossos
medos e expectativas, um dando força ao outro. Passei por momentos difíceis. Estava ficando muito ansiosa, mas foi a fé em Deus e o apoio das pessoas queridas que me seguraram e
me mantiveram firme.
Quanto à escolha do curso, isso foi algo que foi se construindo no decorrer do ano.
Parece que acordei e vi que Arquitetura não tinha nada a ver comigo. Ansiava descobrir
minha vocação, mas isso não acontecia. Comecei a pesquisar sobre os cursos da área
Biomédica, pois tinha certeza que minha área era essa. Logo veio minha admiração pela
Enfermagem e fui me descobrindo na profissão, ao ver a grade do curso e tendo conversado
com alguns conhecidos que já haviam escolhido esta profissão. Parece que após ter decidido sobre o curso, boa parte do estresse foi embora.
Se alguma coisa te opõe e te fere, deixas crescer. É que estás a
ganhar raízes e a mudar. Abençoado ferimento que te faz parir
de ti próprio.
Saint-Exupéry
Nesse período, o CEFET abriu seu vestibular e as provas iriam ocorrer no final do 1º
semestre. Resolvi tentar para o curso de Comércio Exterior, o segundo mais concorrido,
caso conseguisse a isenção da taxa de inscrição. Queria muito conseguir, pois dependendo
do resultado, teria uma idéia do meu nível de conhecimento até o momento, apesar de só ter
me dedicado mais quando terminei o técnico. Consegui a isenção da taxa e concorri à vaga,
mas infelizmente não obtive êxito. Ao saber do resultado chorei desconsoladamente. O
pensamento de derrota tomou conta de mim naquele momento.
Felizmente consegui me recompor desse episódio. Ainda faltavam cinco meses para
me preparar melhor para o vestibular da UFRN. Ao chegar o dia das provas, tentei manterme calma, estava consciente do meu esforço. Após realizar todas as provas, um peso enorme
foi embora. Uma sensação de alívio inexplicável, porém a expectativa do resultado era
muito maior. Agora era só esperar, esperar...
Até que enfim, sai o resultado dos aprovados na 1ª fase. Quando vi meu nome na lista,
não contive a felicidade, pois minha colocação foi excelente. Muitos amigos começaram a
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Caminhadas de universitários de origem popular
dizer que a minha aprovação estava certa de acontecer e isso me incomodou um pouco, mas
ao mesmo tempo me permitiu ter mais esperança de que iria passar.
E novamente a espera pelo resultado final...
Finalmente o resultado final dos aprovados é divulgado. Lembro-me de todos os
detalhes desse dia. Nessa temporada, estava trabalhando como operadora de telemarketing
de uma rede de lojas. Era um emprego temporário, enquanto estava no período de férias.
Caso não conseguisse a aprovação, iria tentar um estágio na área do meu curso técnico. Mas
voltando ao resultado, quando eu estava indo trabalhar adivinha quem me liga? Meu amigo Carlos que me dá a notícia mais desejada de todo o ano, fui aprovada! Fiquei histérica,
me faltou o ar para respirar! Na hora, minha mãe e minhas irmãs não estavam em casa, só
pensava em dar a notícia para elas. Chegando ao trabalho, meus colegas vieram cumprimentar-me e foi aquela festa! Outros colegas de lá também haviam passado, tivemos de nos conter
para não fazer barulho (risos). Na hora do intervalo, encontrei Rosana com um band-aid na
sobrancelha e fiquei muito feliz, para minha surpresa, ela também havia concorrido para o
curso de Enfermagem. Iríamos estudar juntas, a alegria dobrou de intensidade.
Um tempo depois, o pessoal da turma do ensino médio começou a ligar para toda
galera se encontrar para comemorar com os que haviam sido aprovados. A vontade de ir foi
enorme, todavia já estava muito tarde e pensei na minha família. Na hora, pensei que o mais
importante era comemorar com eles. Cheguei em casa eufórica! Todos da vizinhança já
estavam sabendo! Minha mãe, como eu já imaginava, não dominou sua emoção, recebendome já com lágrimas nos olhos. Minhas irmãs, amigos, vizinhos, e até alguns desconhecidos
(risos!), comemoraram minha aprovação. Não tenho como definir a mistura de sentimentos
que me invadiu naquele momento... foi maravilhoso!
Depois de toda comemoração, a ansiedade de iniciar as aulas na universidade foi
ganhando espaço dentro de mim. Estava com medo e ao mesmo tempo numa grande
expectativa de tudo que mudaria na minha vida daqui para frente.
Após minha inserção na universidade, me deparei, novamente, com dificuldades para
a minha permanência na instituição. Eram muitas despesas que minha família teria que
arcar para a garantia dos meus estudos. Comecei a pensar em trancar algumas disciplinas
para poder trabalhar, visto que meu curso ocuparia os horários da manhã e da tarde. Minha
mãe preocupava-se muito com isso, pois não queria me prejudicar. Dizia que daríamos um
jeito, o que sempre conseguiu cumprir.
No entanto, Deus sempre dá um jeitinho de mostrar o quanto ama seus filhos... surgiu
a oportunidade de concorrer a uma bolsa de um projeto de extensão da universidade, o
Conexões de Saberes. Inscrevi-me e felizmente consegui a bolsa.
Antes de me integrar ao Conexões, não sabia direito como ele funcionava e o interesse
inicial foi a ajuda de custo. Hoje, percebo o quanto as atividades envolvidas nesse programa estão contribuindo em muitos aspectos da minha vida, tanto acadêmica como cidadã,
tendo em vista tudo que estou aprendendo e também por promover um novo olhar para as
questões sociais. Por meio do Conexões de Saberes estou tendo a oportunidade de uma
formação, que seja, de fato, universitária, ao desenvolver atividades que primam pelo
ensino, a pesquisa e a extensão. E, além disso, estou podendo conviver com meus amigos
bolsistas, estudantes de origem popular que, como eu, lutaram muito para poderem estar
aqui hoje e espero que façam parte da minha vida por muito tempo. Alguns estão tornandose muito especiais pra mim...
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Então, já chegando ao fim de meu relato, posso dizer que sou uma pessoa feliz, tanto
na profissão, pela qual me apaixono a cada dia, quanto nas atividades desenvolvidas nas
comunidades populares, no Conexões, com a família, com os amigos...
Agradeço, mais uma vez, a todos aqueles que, juntos comigo, construíram essa história.
Agradeço a educação que recebi e recebo da minha família, aos meus amigos, aos professores,
enfim, isso não seria possível se não existissem pessoas tão importantes e indispensáveis
para compartilhar e viver tudo o que a vida pode nos oferecer.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Persistências e sentimentos
Cláudio José Brasiliano da Silva*
Não existe inteligência se antes não há
sensibilidade; Não há nada no intelecto que
antes não tenha passado pelos sentidos.
Amílcar de Castro
Olá! Tenho uma história muito simples, não é uma história triste nem feliz, porém
orgulho-me de tê-la vivido.
Nasci no dia 12 de agosto de 1987, ano em que é posta uma pedra no meio do caminho
de um mestre das crônicas e poemas brasileiro, Carlos Drummond de Andrade. O mundo
evoluía e a minha família também, com a minha chegada e a primeira televisão da família.
Comecei a estudar cedo, com três anos lá ia eu para a escola. Todos os dias eu chorava e
voltava para casa reclamando da professora, pois ela maltratava os alunos. Tempos depois
descobriram que ela bebia muito. Não posso dizer que sempre gostei de estudar, fui até
reprovado uma vez, na 2ª série, na escola Chapeuzinho Vermelho, hoje chamada
Educandário Amarante onde estudei até à 2ª série. Fui reprovado por vários motivos, alguns
deles era o gosto pelo esporte e o outro era a preguiça mesmo.
Quando passei a estudar na escola Vicente de França Monte, em São Gonçalo do
Amarante, continuei sem querer estudar, ia até à escola, esperava uns 10 minutos e ia jogar
bola. Quando chegava em casa, simplesmente dizia a minha mãe que a professora não tinha
ido, até que a minha prima, que estudava comigo, disse ao meu pai que passei quase uma
semana sem ir à escola. Por isso tudo, tomei uma grande bronca e tive que voltar a estudar.
No ano seguinte, cheguei à 5ª série, na mesma escola. Fiquei muito orgulhoso, porque
tinha em mente que as pessoas que estudavam no período vespertino eram bastante inteligentes e eu passei a querer estar lá. Quando começaram as aulas, a minha primeira vontade
foi entrar no time da escola, mas não consegui naquela série. Nem na sexta série. No ano 2000,
que considero um ano para esquecer, levei uma pancada no joelho e tive que colocar gesso;
fraturei o braço e ainda tive que fazer uma prova de recuperação com a mão esquerda. Mas isso
não é o que me faz pensar que o ano foi o pior da minha vida: o que me aconteceu de pior nesse
ano foi uma cirurgia de redução no braço fraturado. Antes de sair de casa, o meu pai disse a minha
mãe: “Se não der certo, pode ficar por lá mesmo”. Isso sim, dói na alma de um filho.
Mas passado o susto da cirurgia, voltei com o ânimo renovado. Na 7ª série, consegui
entrar no time da escola. Nessas alturas, já tinha percebido que estudar poderia me dar
* Graduando em Engenharia Civil pela UFRN.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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algum futuro estável. Passei a gostar muito de Matemática, mas acho que já gostava, porque
a única matéria que passei na 2ª série foi Matemática. Nesse ano passei por muitas emoções,
das quais jamais irei esquecer, porém a maior felicidade da minha vida estava para chegar
nas férias da 7ª para a 8ª série.
Nessas férias ocorreu o que me fez estar hoje aqui, escrevendo essas palavras que
re-constituem minha vida. Agradeço tanto a Joselma quanto aos meus pais por ter me
ensinado a alegria das vitórias e a sabedoria das derrotas. Conheci-a na 4ª série, mas nunca
cheguei a trocar uma só palavra com ela, somente tive a ousadia de conversar com essa
garota na sétima série.
Nas férias, passeando, encontro Joselma e fico completamente encantado com sua beleza
e, por já ter prestado muita atenção nela, sabia da sua inteligência e carinho com os outros.
Incrivelmente passei a pensar, rezar, implorar a Deus para que ela estivesse na mesma turma
que eu na 8ª série. Concomitantemente, iniciei meus estudos para o exame de seleção do
CEFET-RN, já que minha mãe tinha o sonho de me ver estudando em uma instituição federal.
Começaram as aulas e, chegando na sala, olhei rapidamente para ver se o nome dela
estava na lista de alunos. Estava! Fiquei muito feliz. Mas a felicidade iria aumentar bastante
no decorrer das aulas, principalmente, quando conheci Adriano dos Santos Silva. Ele era o
professor de Matemática da escola e se tornou um grande amigo tanto na escola como fora
dela. Passamos a ter um sexto horário destinado ao exame e nessas aulas passei a me destacar como aluno de Matemática incentivado por dois motivos: um era o desejo de vencer na
vida; o outro, ser notado por uma pessoa que é especial aos meus olhos.
Para ser notado, passei a fazer tudo que ela fazia: participar das missas, entrar na turma
da crisma e participar até do coral da igreja, essa não deu; saí rapidamente. Sempre estudando,
era de casa para escola, da escola para casa e de casa para o treino da escola.
No dia 23 de maio de 2002, dei um presente a Delma (Joselma) como um simples
amigo, porém, depois desse dia não quis mais ser somente um amigo, passei a investir tudo
em um sentimento que estava se moldando e viria a ser grandioso. Fazia muitas loucuras por
ela, principalmente nos jogos da escola, onde de vez em quando fazia um gol e lhe dedicava.
Fui até expulso uma vez por tirar a camisa do time e mostrar uma outra camisa dizendo: Eu
estou apaixonado por você. Mas valeu o sacrifício.
Após varias peripécias, chega a hora do exame. Todos confiavam em mim e nos
outros, é claro. Mas eu confiava mais em Joselma do que em mim. Fizemos a primeira prova
e, logo depois, fizemos a segunda. No dia do resultado, duas pessoas tinham passado eu, e
uma menina, para a minha tristeza, não era Joselma. Foi até bom isso, porque eu tinha que
consolá-la e acabei namorando-a, mas não sei se ela realmente correspondeu tão intensamente.
Passada a euforia da aprovação no chamado pró-CEFET, iniciaram-se os estudos para
o EXAME DE SELEÇÃO. Este destinado aos estudantes das escolas privadas; aquele,
somente aos estudantes de escolas públicas. O fato marcante na minha vida nesse período se
deu logo após o resultado do concurso, pois a filha de um grande amigo de meu pai passou
e fez uma grande festa em sua casa. Ela convidou o professor Adriano e como o professor
não queria ir sozinho me convidou. Até aí tudo bem. Mas quando cheguei em casa, contei
a meu pai que tinha ido a uma festa para comemorar a aprovação da filha de um amigo dele.
Então o meu pai de repente começou a chorar me dizendo que não tinha como realizar uma
festa para comemorar a minha aprovação. Fiquei completamente arrasado e prometi a mim
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Caminhadas de universitários de origem popular
mesmo que iria fazer de tudo para dar uma vida digna aos meus pais.
Pouco tempo depois, a tentativa de namoro acabou e as aulas no CEFET-RN começaram
onde tive praticamente a mesma história. Além de estudar, queria entrar no time de futsal da
escola. No primeiro ano, não entrei, pois o objetivo principal eram os estudos. De início,
tive muitas dificuldades porque vinha de uma escola que não me dava tantas motivações
para ir atrás do conhecimento, porém obtive bons resultados e passei para o segundo ano.
No segundo ano entrei no time de futsal da escola e realizei mais um sonho: conhecer
outro estado do Brasil! Fui participar do Encontro desportivo entre CEFET’s do Norte e
Nordeste (EDECENNE) no estado do Pará. Foram quase dois dias de viagem, mas valeu a
pena pelo segundo lugar que conseguimos na competição. Também no ano de 2004,
intensifiquei os estudos para o vestibular, como já tinha em mente o que queria cursar
ficou mais fácil de me dedicar, principalmente, às matérias discursivas. Desde pequeno,
quando brincava de fazer casinhas de areia com pedaços de tábuas, sonhava em me tornar
um Engenheiro Civil, até mesmo porque sempre convivi com a construção, já que o meu
pai é pedreiro.
Ainda estudando para o vestibular, passei para o terceiro ano e vi que deveria estudar
ainda mais, já que não tinha condições de pagar um cursinho preparatório. Contudo, não
deixei o futsal de lado e fui novamente ao EDECENNE dessa vez no Piauí. Lá só saía do
quarto com ar-condicionado para ir tomar banho, beber água e jogar. Ô lugarzinho quente!
Nessas alturas o CEFET-RN já se encontrava em greve, o que piorava ainda mais a situação
dos alunos que iriam prestar vestibular e não tinham condições de pagar um cursinho.
Assim, me dediquei e estudei bastante até o dia do vestibular.
O primeiro dia do processo seletivo foi muito especial para mim, pois ali juntei todas
a minhas forças para iniciar uma jornada de quatro dias muito longos. Eu ia fazer as provas
pela manhã e quando chegava só dava tempo de tomar banho, almoçar e ir para o aulão de
véspera. Chegava em casa muito tarde, pronto para dormir e acordar bem cedo no outro dia
para fazer tudo novamente.
Após a passagem das provas do vestibular, o CEFET-RN retoma as suas atividades
normais, porém, para os alunos do terceiro ano a única vontade de ir à escola era rever os
amigos e torcer até chegar o dia do resultado do vestibular. Pouco tempo depois, saíram os
aprovados da primeira fase do vestibular 2006. Fiquei um pouco tenso porque fiquei na
posição de número 94, num total de 100 vagas disponíveis ao curso. Mas como eu já falei,
me dediquei muito, principalmente às matérias especificas, e então chegou dia do resultado
final. Eu estava em casa assistindo à divulgação e com o rádio ligado no último volume,
para que todos na rua escutassem o meu nome. Um pouco antes da saída do resultado, o
telefone da minha casa toca. Mal eu atendo, e já soa aquela linda voz de Joselma me
parabenizando pela aprovação (ela ficou sabendo do resultado pela Internet). Fiquei muito
feliz por ter sido aprovado. Saí como um louco para cortar o cabelo e festejar com todos os
meus amigos que tinham conseguido a mesma vitória. No dia seguinte fiquei sabendo que
fui o 43º colocado.
As aulas na universidade estavam previstas para começarem mais ou menos um mês e
meio após o resultado final, porém o CEFET-RN não tinha a menor condição de finalizar as
aulas a tempo. Então passamos a ter aulas em dois turnos, aí sim, todos os alunos se
desinteressaram completamente das aulas. O momento mais interessante após o vestibular,
foi a festa de formatura onde todos nos reencontramos e festejamos muito. Na semana
seguinte, iniciariam as aulas na UFRN.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Agora, chegamos ao fim da minha trajetória do ensino fundamental ao médio e o
ingresso na universidade. Preciso agradecer do fundo do coração a todos que estiveram ao
meu lado sempre me dando força para não desistir dos meus sonhos e, principalmente,
nunca deixar de ser a pessoa que eu sempre demonstrei ser ao longo de vários anos
convivendo com um grande grupo de amigos.
Gostaria muito de listar todos os amigos marcantes que tenho, mas o espaço é curto
para tantos. Por isso destaco alguns. Tenho o maior orgulho de poder passar horas
conversando com Hill Hitler sobre os mais variados assuntos. São poucas as pessoas que
podem contar com um “psicanalista” igual a Rodrigo que me envolve com sua capacidade
de resolver os problemas alheios, porém não consegue resolver os seus. Tenho amigos
como Werick que cresceu junto comigo e hoje é um exemplo para muitos, por saber usar a
sua inteligência para conquistar vitórias. Tenho amigas como Nani que sempre consegue
me criticar de alguma forma. Outro grande amigo é Josenilson que é em muitas horas o meu
pai, irmão e conselheiro.
Destaco, ainda, meus pais que fazem de tudo para me ver feliz e conquistar várias
vitórias na vida. E, sem dúvida, agradeço a Joselma por ter me dado a oportunidade de sentir
um lindo e verdadeiro sentimento correndo por todo o meu corpo. Obrigado por ter me
ensinado o caminho do conhecimento e, principalmente, por fazer com que eu pudesse
mostrar a muitos que um simples aluno de uma escola municipal do interior do estado do
Rio Grande do Norte pode conseguir chegar à universidade e fazer o curso que sempre
sonhou. Espero que você, Joselma, possa seguir sempre em frente pelo caminho que escolheu para sua vida. Possa ser bem feliz e quando precisar ouvir alguém dizer EU TE AMO,
avise-me que eu repito isso para você a toda hora, pois o meu amor é firme, fiel e verdadeiro.
Espero que gostem dessa história, porém, o que quero passar a todos é uma das inúmeras maneiras de se querer vencer na vida. A minha foi o amor pelos meus pais e por uma
pessoa especial para mim. Sei que para podermos vencer iremos passar por muitas dificuldades
e será sempre necessário algo que nos faça pôr os pés no chão e alguém para nos dizer que
nunca devemos desistir dos nossos sonhos.
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Caminhadas de universitários de origem popular
A trajetória de uma potiguar especial e única
Dulcineide da Silva Gomes*
Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são
melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são
muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis.
Bertold Brechet
Caro leitor, quero deixar bem claro que irei aproveitar o máximo desse espaço, porque
é impossível descrever em uma lauda todas as lembranças de uma pessoa única e especial
como eu, e, se assim fosse, não teríamos uma autobiografia, apenas, talvez, vagas lembranças, ou então meus 30 anos de existência teriam sido inúteis, sem grandes fatos e sem razão.
No entanto, foram eles repletos de fatos marcantes que guardo, relembro e vivencio sempre
que sinto necessidade de voltar a eles e ver o quanto me transformei na pessoa que hoje sou:
forte, decidida, educada, responsável, enfim, são muitos adjetivos e não dá para falar de
todos, pois quem me conhece sabe das minhas virtudes e defeitos também.
Todos nós temos uma história de vida, nascemos, crescemos e chegamos à fase adulta,
e nesse desenvolvimento sofremos influências socioculturais constantes e mutáveis e, por
elas, obtemos nossa formação como homem sociável dentro dos padrões da sociedade.
Nesses últimos 30 anos houve muitos acontecimentos e movimentos que marcaram a vida
e a realidade de quem viveu neles.
Ressalto, ainda, que fazer essa autobiografia não foi somente relembrar o passado,
mas vivenciá-lo novamente, todos os fatos aqui relatados, proporcionaram uma volta real
no tempo, imaginemos, assim, que a máquina do tempo realmente funcionou dentro do meu
ser e pude contemplar novamente todos os fatos que mais marcaram minha vida. Se eu fosse
colocar tudo o que desejo mesmo, o livro "Caminhadas de universitários de origem popular
conteria apenas a minha história".
Por ser um longo relato, talvez pouquíssimas pessoas venham a ler, ou até mesmo seja
lido apenas pelos que me conhecem, amigos, parentes, professores, enfim, aqueles que têm
realmente o gosto pela leitura e o interesse de conhecer um pouco da trajetória de vida dessa
potiguar. Fico feliz, porque pelo menos, a professora Penha1 já o leu e gostou do que relatei.
* Graduanda em Pedagogia pela UFRN.
1
Maria da Penha Casado Alves - Professora formada em Letras e responsável por ministrar a Oficina de
produção de textos.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Alguém me disse: "Não há vitórias sem que antes haja lutas. Pode haver desânimos
diante das tribulações do cotidiano, como também há espaços a conquistar. Portanto, devemos levantar a cabeça e ir à busca desses espaços". Na verdade, são esses espaços que
busquei e busco em toda minha vida.
Não tenho lembranças desses primeiros fatos, pois não os presenciei, deles sei apenas
o que me contam. Eles tiveram início em 1973, quando Djalma, um rapaz do interior da
Paraíba, veio trabalhar em Natal e conheceu uma interiorana potiguar de nome Laudeci.
Surge, então, um sentimento entre eles que os levou à decisão de se unirem com o propósito
de constituir uma família e alcançar a tão sonhada felicidade.
Nasce em 1975, a primeira filha do casal, muito linda! O tempo foi passando, passando,
de repente a criança adoece e para a tristeza do casal vem a óbito. Além da tristeza pela
perda da filha, Laudeci, por acaso, descobre que seu marido, Djalma, tem outra família
paralela. O desespero foi tão grande que ela decidiu que o melhor era terminar aquela relação.
Entretanto, diante de uma grande crise de relacionamento, já prestes a separar-se, a mulher
sente-se mal e descobre que está grávida de dois meses, e, mais, ela lembra que o seu pai,
muito conservador, não a aceitaria de volta em casa com filhos. Esse filho foi o bastante
para que esse casal que se amava viesse a repensar as decisões antes estabelecidas, pois
ainda no ventre tornou-se um elo forte de união e a prova disso é estarem juntos por mais de
33 anos.
Já estamos no ano de 1977, muitos acontecimentos históricos surgem nesse contexto
no Brasil e no Mundo, entre eles a libertação da Etiópia da França; na África do Sul, iniciase a repressão contra organizações e meios de comunicação anti-apartheid. No Brasil, a
divisão do estado de Mato Grosso em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; a entrada de
Raquel de Queiroz, primeira mulher aceita como membro na Academia Brasileira de Letras;
a despedida do rei Pelé como jogador profissional que encerrou sua carreira jogando no
Cosmos, marcando um gol no Santos, seu primeiro time; a criação, por Chico Mendes, do
primeiro sindicato rural de Xapuri; ressalta-se também, nesse contexto que os brasileiros
sofriam com a grande repressão militar no governo de Ernesto Geisel.
Mas chamo sua atenção, leitor, para o acontecimento mais importante desse ano:
exatamente no dia 4 de fevereiro. Olhe só o que aconteceu! Nesse dia nasce aquela criança
que, de certa forma, foi responsável pela união daquele casal, uma criança especial, branquinha, carequinha, de olhos claros, muito meiga e amada por todos que a cercavam. É isso
mesmo! Falo de mim. Haja vista que dentro de uma imensa população mundial calculada
em mais de cinco bilhões de habitantes estava eu, um ser único e especial, que nasceu para
brilhar e resplandecer dentro desse universo populacional. Olhe, eu sou tão especial que,
conta minha mãe, as pessoas disputavam a honra de me levar para passear.
Apesar de sermos muitos e semelhantes biologicamente, não somos iguais, somos
únicos e singulares, tais quais os flocos de neve que se apresentam semelhantes, e, no
entanto, não há um que seja igual ao outro. Fico feliz nesse momento por saber que sou uma
pessoa especial e muito importante para a sociedade, portanto, se eu não existisse, com
certeza, o rumo da história da humanidade seria outro.
Depois do meu nascimento, consolidando mais ainda a união dos meus pais, veio o
nascimento dos meus três irmãos Dulcicleide, Denílson e Dailton. Meu pai decidiu ser um
homem sério, não mais ter família paralela a nossa. Sempre foi um homem responsável,
nunca nos deixou faltar nada, na medida do possível, era pai amoroso, atencioso, trabalha-
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Caminhadas de universitários de origem popular
dor e honesto. Não dá para enumerar todos os bons adjetivos a que ele faz jus, mas posso
dizer que sempre me deu colo e apoio em todos os momentos de minha vida até nos dias
atuais, mesmo já sendo uma menina "grandona" como sou hoje.
Minha mãe sempre foi uma mulher dedicada ao lar, nos ensinou a primeira educação,
sempre nos aconselhando a sermos humildes, verdadeiros e unidos acima de tudo. Tal como
meu pai, ela foi e continua sendo uma grande mãe, torre de sustentação do lar, mulher
virtuosa que defende e protege o filho com unhas e dentes, mas que também o corrige em
seus erros e o aconselha a andar sempre no caminho que idealiza ser o correto.
Apesar de não termos tido muitos brinquedos, (naquele tempo era mais difícil, pois
um brinquedo custava um bom dinheiro) lembro-me, como se fosse hoje, dos brinquedos
criados por nós mesmos da natureza e no quintal de nossa casa, das brincadeiras de roda, de
pular corda, de pular o elástico, corrida, esconde-esconde, tica-tica, amarelinha, casinha,
bonecas das mais simples, enfim, tudo que os nossos recursos alcançavam. Lembro-me das
ruas sem paralelepípedo nem asfalto, muito verde, calangos de todos os tamanhos, pássaros
e borboletas de todas as cores muito lindas, tudo parecia um festival: o que raramente - em
conseqüência da urbanização - se vê hoje em dia. Também não posso esquecer da TV, em
minha casa, local onde se reunia a criançada da vizinhança para assistir ao Sítio do Pica
Pau Amarelo e ao Balão Mágico. Nada tenho a reclamar desse tempo, pois, fui muito feliz
nessa primeira fase.
Ainda mergulhada em minhas lembranças, fico a meditar acerca de minha vida escolar.
Tinha quatro anos, quando pedi a meu pai para que me colocasse em uma escola, pois sentia
vontade de freqüentá-la, principalmente, quando via outras crianças indo estudar com seus
cadernos e cartilhas em mãos. Meu pai falou para mim que só iria me colocar na escola
quando eu completasse cinco anos. Pacientemente aguardei a tão sonhada e almejada data...
O meu primeiro dia de aula foi muito especial. Foi na Escola Estadual Monsenhor
Mata, no turno vespertino, no ano de 1982. Lembro-me como se fosse hoje, a tia Nilma nos
organizando em fila, e com as mãos nos ombros uns dos outros íamos para sala que era
ampla, colorida, cheia de multi-meios2 e composta por 8 mesinhas com 4 cadeirinhas cada
uma. Logo fizemos grupinhos de colegas.
A tia Nilma era um amor de pessoa, alta, morena clara, cabelos longos, olhos escuros
e aparentava ter aproximadamente 25 anos. Bem calma, nos tratava com carinho, por isso,
era querida por todas as crianças da sala.
Ao longo do ano, aprendi muitas músicas infantis e de roda, a interpretar as leituras
dos livros por meio dos desenhos, a cantar, as letras do alfabeto e os números. Tenho
recordações dos primeiros espetáculos de João Redondo a que assisti e pelos quais até hoje
sou apaixonada. Um fato que me marcou muito era quando chegava a hora do lanche, pois
quase todas as crianças tinham uma lancheira, menos eu e a Paula, mas teríamos que nos
conformar, tendo em vista que nossos pais não podiam nos dar uma naquele momento.
Ao terminar o ano, meu pai me transferiu para outra escola, no bairro em que morávamos,
pois a primeira escola ficava em outro e as despesas com ônibus pesavam no orçamento.
Então, ele me matriculou na Escola Estadual Professora Maria Queiroz. Entrei lá na préescola, onde fui alfabetizada. Quando fui para a primeira série, já sabia ler corretamente,
2
Todos os materiais utilizados para auxiliar no aprendizado, como alfabetos móveis, jogos de montar,
quebra-cabeça, brinquedos educativos e de recreação, jogos de números, lápis de cor, massa de modelar,
material para teatrinho de faz de conta e outros.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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porém precisava refinar mais a interpretação.
Há um fato que sempre lembro quando trabalho leitura, produção e interpretação de
texto com meus alunos. Esse fato ocorreu quando estudava a primeira série. A professora
passou uma leitura para fazermos em casa, sendo que, no outro dia, ela iria "cobrar" de cada
um de nós. Cheguei a casa e fui ler a história recomendada pelo professor. Aproximei-me do
meu pai e perguntei o que era lona. Meu pai sem saber o que dizer me levou em frente a um
carro da coca-cola e me mostrou um enorme pano cobrindo a carga e falou que aquilo era
uma lona. Eu, inconformada, continuei a perguntar se a macaca comia aquilo. Meu pai
coçou a cabeça e logo respondeu que não, era impossível uma macaca comer aquilo. Continuei a insistir, pois o livro dizia que a macaca comia lona. Ele já não estava entendo mais
nada e pediu para ver o livro que imediatamente mostrei a ele. Ao ver o livro, caiu na
gargalhada. Sabe qual era o titulo da leitura? A MACACA COMILONA. Daí, passei a
entender que a macaca não comia lona, e que ela era muito gulosa e comia de tudo.
Mergulhando no ano de 1985, recordo as aulas da professora Telma Lúcia, na segunda
série do primário. Naquele tempo, a segunda série era como se fosse um reforço da alfabetização. Os alunos que não conseguissem as habilidades da leitura não eram promovidos para
a série seguinte. A professora Telma tinha duas turmas de segunda série, uma no matutino e
outra, no intermediário. Como as turmas eram mistas (tinha alunos alfabetizados e não
alfabetizados), para facilitar sua prática pedagógica, ela decidiu separar: os que sabiam ler
iriam para o intermediário, e os que não sabiam, ficavam no matutino. Assim, sempre que
um aluno do matutino era promovido para o intermediário, era uma alegria para ele, pois
iria encontrar novamente com outros colegas que já tinham sido promovidos antes, além de
receber os aplausos da turma.
Lembro-me fortemente do dia em que fui promovida. Todos os dias praticava a leitura,
me esforçava para que quando a Tia Telma me chamasse para a leitura, eu estivesse pronta.
Os dias se passavam e nada de ser chamada. Então protestei e indaguei a tia sobre o porquê
de não ser chamada. Então, a tia abriu o livro, que tinha como título “Começo de conversa”,
e me pediu para ler em casa, por 15 vezes, as duas histórias: "A égua e a água" e "Festas
Juninas". Cheguei a casa, li, reli, confesso, não li 15 vezes, porém, o suficiente para me
apresentar. No dia seguinte, logo no início da aula, ela me chamou para a leitura das histórias indicadas, e as li na frente de todos. Não convencida, a professora fecha o meu livro e me
dá outro que eu nunca tinha visto antes cujo título era "A mágica da comunicação" e abriu
em uma história de título "Biquinho". Claramente eu li: Era uma vez um passarinho chamado
Biquinho... Essa frase entrou em minha história de tal forma que não sai da minha mente.
Logo após a leitura dessa frase, fui aplaudida pelos colegas e recebi um abraço da professora.
Nossa! Aquela sensação foi muito gostosa, não apenas porque iria rever meus coleguinhas já promovidos anteriormente, mas porque seria um passo a mais para conseguir
avançar para a série seguinte.
Nessa escola, estudei do pré à quarta série, tive ótimas professoras, sempre fui uma
aluna dedicada e estudiosa, sem modéstia, sempre recebi elogios e boas notas, motivo pelo
qual minha mãe sempre chegava contente nas reuniões de pais e mestres. Meus professores
de educação infantil foram excelentes, atualmente, tive o prazer de rever duas delas, a
Telma e a Marluce, que foram personagens marcantes em minha vida.
Como a quinta série no Maria Queiroz era ofertada no turno noturno, meus pais
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Caminhadas de universitários de origem popular
acharam melhor me matricular em outra que tivesse essa série durante o dia. E foi para a
Escola Estadual Deputado Márcio Marinho que fui transferida. Esse ano de 1988 foi um
ano muito ruim para todas as escolas devido às greves de professores e mesmo a falta deles.
Contudo, conheci muitos amigos e novos professores. O inesquecível Lúcio José, professor
de Português, o qual emprestava seus livros para lermos e desenvolvermos mais a leitura.
Sempre responsável e amante da profissão, nunca faltava às aulas, e mais tarde, merecidamente, passou a ser diretor da escola.
Ainda em 1988, no meu bairro, havia um enorme terreno, parte dele era tomado pela
vegetação e outra parte servia como campo de futebol, local onde os homens da comunidade
batiam peladas e faziam campeonato de futebol entre os times do bairro ou inter-bairros. De
repente, todo o terreno estava limpo, nenhum vestígio daquela vegetação, nem traves de
futebol, mas carros de materiais de construção chegavam naquele local, e juntamente com
os materiais, engenheiros, mestre de obras e um batalhão de pedreiros e serventes. Rapidamente a obra ia tomando forma, a população curiosa queria saber de que se tratava, pois
parecia ser uma obra grandiosa e logo ali na periferia. Porém, tudo deixou de ser mistério
e a maioria já sabia que era uma Fundação Bradesco, mesmo não tendo consciência dos
benefícios que traria a muita gente da comunidade.
Assim, a Fundação Bradesco ficou pronta e só faltava selecionar os alunos para começar
as atividades educacionais no ano seguinte. Lembro-me que minha mãe passou o dia inteiro
no sol para poder conseguir fazer as inscrições dos meus irmãos e a minha. Mesmo não
tendo idéia da importância de ser aluno dessa instituição, minha mãe já o calculara. Para
mim era apenas uma escola como qualquer outra na qual tinha estudado.
Depois de aproximadamente um mês, saiu o resultado: eu e meus irmãos fomos
selecionados. Nesse dia foi o meu primeiro contato com a escola. Pude ver sua estrutura
física e fiquei encantada com tudo que via: pátio encerado, quadras de esportes, biblioteca,
salas bem organizadas, serviço de som, cortinas, consultório médico e odontológico, tudo
bem limpo e agradável de ver, coisas nada parecidas com as demais escolas antes freqüentadas.
As aulas começaram no dia 22 de fevereiro de 1989, eu tinha 12 anos e estava na sexta
série. Foi nessa escola que recebi (não menosprezando a educação antes recebida que também
foi muito boa) uma educação consistente que me permitiu acesso e inclusão no caminho de
novos conhecimentos. Por isso, os seis anos que passei lá foram marcantes em minha vida.
Não ficaram somente as marcas da educação que recebi lá, mas marcas das amizades, das
experiências do cotidiano. Aprendi a ser mais forte, ir sempre em busca de meus objetivos,
direitos, responsabilidades, e respeitar o próximo, enfim, todos esses valores continuam
internalizados em minha mente. Além disso, permanecem na memória as atividades que realizávamos lá como: a semana da cultura, peças teatrais, as competições esportivas e as ginásticas da
aula de educação física, os passeios e excursões, as palestras, as festas juninas e do estudante,
como também, todos os amigos, os funcionários com quem interagíamos diariamente, os professores, a direção, e a Cristina, nossa orientadora pedagógica. Ah! Como foi bom esse período!
Momentos especiais que vivenciei, e sempre recordo, eram as férias no sítio do meu
avô (materno), para lá eu ia todos os anos. Depois de um ano de estudo, pelo menos uma
semaninha eu passava com meu avô, com minhas primas com quem brincava, tomava
banhos nas lagoas e aprontava as travessuras de menina ou mesmo as de quando era já
adolescente. O sítio do meu avô era muito grande, limitado por um rio, de frente dava para
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ver o mar. Ficava a duas léguas da cidade mais próxima, não tinha água encanada, pois toda
água vinha diretamente da fonte (cacimba), e nem energia elétrica, por isso a noite o céu
ficava lindo e bem estrelado, coisa que não se vê em uma cidade urbanizada.
Meu avô, de quem herdei geneticamente a cor dos cabelos, dos olhos e da pele, era um
homem muito bonito, cabelos lisos e claros, de cor branca e de olhos azuis, por isso o
chamavam de Luiz Branco. Além da pesca, praticava uma agricultura familiar e de subsistência, cultivava algodão, batata-doce, milho, feijão, mandioca, uma pequena horta, e ainda tinha muitos coqueiros. Pela manhã, eu ia com minhas primas à praia e na volta ficávamos numa lagoa cristalina que se formava todo ano ao pé de uma duna. Era tão bom que, às
vezes, perdíamos a noção do tempo e da fome e passávamos o dia todinho lá. Saía branca e
voltava para casa vermelha. Sinto muitas saudades do meu avô, mesmo já fazendo 4 anos
que ele nos deixou, mas o que conta é que, além de minha avó, que faleceu quando eu tinha
9 anos, ele também vive em minhas lembranças.
Mais uma vez quero chamar a atenção de vocês, leitores, para o que vou relatar. Até
porque, creio eu, vocês estão vivenciando essa fase, visto que a juventude hoje é algo que
não tem fim, basta cada um sentir-se jovem e não envelhecerá. Há algum tempo atrás, ouvi
que aquilo que nos faz envelhecer não é a idade. Começamos a envelhecer à medida em que
passamos a renunciar os nossos ideais, sejam eles de vida ou profissionais. Eu, pelo menos,
quero ser jovem até meus últimos dias de vida, pois como falei no início desse relato, quero
sempre driblar os desânimos e ir em busca da conquista de espaços, trilhando caminhos para
a sua realização.
Logo após o término do ensino médio na Fundação Bradesco, entrei no mercado de
trabalho, meu primeiro emprego foi em um dos supermercados da cidade. Lá fiz muitas
amizades e foi um período que me marcou muito pelo fato de ter encontrado um grande
amor, o Roberto. Ah! Sei que vocês irão gostar dessa parte e não vou relatar os amores de
antes porque não acho tão relevantes. Bem, quando comecei a trabalhar nesse supermercado,
namorava um rapaz chamado Diógenes, mas nosso relacionamento já não estava mais tão
firme, nos víamos muito pouco devido aos nossos horários de trabalho e também porque
não havia mais aquele encanto, nem o mesmo sentimento do início da relação.
Ao longo da semana, fui fazendo amizade com o Roberto e que não demorou em
declarar que estava gostando de mim não apenas como amiga, mas queria namorar comigo.
Todavia, eu já tinha namorado, o Diógenes, e ele também tinha namorada. Conversamos
um pouco sobre isso e decidi que seria melhor não tocarmos mais nesse assunto, e sugeri
que ficássemos mesmo na amizade. Após algumas semanas, aconteceu algo inesperado.
Quando cheguei ao refeitório não quis a comida, pois estava muito ruim nesse dia e resolvi
almoçar em um restaurante self service, pertinho da empresa. Quando chego lá, imaginem
quem encontrei por lá, isso mesmo, o Roberto. Quis voltar, mas ele já tinha me visto, e
acabei almoçando com ele. Após o almoço, me pediu para conversarmos um pouco, enquanto não chegava a hora de voltar para o trabalho, assim, fomos para uma pracinha
pertinho dali. Então, falou-me que foi transferido para o mesmo horário que o meu e estava
muito feliz, pois passaria mais tempo a me observar. Não passou muito tempo, para ele
terminar o namoro dele, e eu com o Diógenes. E logo começamos a namorar.
Foi muito bom o período que passei com o Roberto, mas nem todo amor dura para
sempre e não foi diferente entre nós. Passei dois anos sem namorar, somente trabalhando e
realizando atividades na escolinha do departamento infantil da Igreja Batista, na qual estou
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Caminhadas de universitários de origem popular
até hoje. Em 1999, iniciei o curso de ciências sociais na UFRN, do qual sempre gostei, e
nesse mesmo ano conheci o Geraldo, um sergipano que veio para Natal no intuito de
trabalhar. Nos conhecemos, namoramos, noivamos e casamos no ano de 2000. Após o
casamento, as coisas ficaram diferentes, pois meu marido não queria mais que eu estudasse
e começaram as brigas. Para contornar a situação, resolvi fechar o curso no intuito de voltar
no ano seguinte, porém no início do ano de 2001, o Geraldo passa mal, e urgentemente, é
levado para uma cirurgia, e nela um erro médico, por parte do anestesista, deixa-o sem
movimentos e sem sensações nos membros inferiores.
Agora, sim, minha vida tomou outros rumos e foi para bem longe do que tinha planejado, de modo a não mais poder voltar a estudar. Meu marido precisou fazer fisioterapia e
eu tinha que acompanhar todos os processos de reabilitação, além de ter compreensão
nos momentos de depressão, pois não foi fácil, para ele, aceitar o que acontecera. E, assim,
foram quatro anos de fisioterapia diversificada, a ponto dele melhorar bastante, pois já sentia
as sensações, já ficava em pé, andava com o auxílio das muletas e do andador e já fazia tudo
sozinho. Com todo esse progresso na reabilitação do Geraldo, voltei a pensar no que até o
momento estava adormecido em mim: a vontade de estudar, fazer um curso superior e seguir
uma carreira acadêmica. Decidi, assim, estudar para o vestibular de 2006.
Tão logo falei em voltar a estudar, minha família me apoiou, pois sempre desejaram
que eu me formasse, até ganhei recursos para fazer um cursinho, e durante o ano de 2005 me
preparei para o vestibular, mesmo contra a vontade do Geraldo. Eu estava decidida a não
abandonar meus ideais e prosseguir estudando. Inscrevi-me no curso de Pedagogia, pois no
momento já era coordenadora do departamento infantil da minha congregação e todo esse
tempo que trabalhei lá me incentivou a fazer Pedagogia, embora não possa esquecer que
tive influências de uma grande amiga, Evanir Pinheiro, professora de educação infantil do
município, que me deu a dica de prosseguir em um curso voltado para o que eu já desenvolvia
e que gostava muito de fazer.
Ao longo do ano de 2005, fiz um cursinho e, como era de se esperar, meu marido se
opunha aos meus ideais, a ponto de me pedir, por várias vezes, que eu fizesse uma escolha:
ou ele ou os meus estudos. Diante de tudo isso, mesmo às vezes querendo desistir de tudo,
vinha em minhas lembranças as aulas de literatura do professor Josivan, a quem devo muito
por me orientar e me fortalecer com seus conselhos. E, assim, segui estudando e me
preparando para o concurso.
Na noite anterior a primeira prova do concurso, Geraldo me pressionou a fazer a
escolha, ou ele ou fazer as provas. Eu já estava determinada a não renunciar aos meus
objetivos e disse a ele, que não iria abandonar o que já tinha idealizado para mim. Confesso!
Chorei e não dormi bem, e mesmo triste fui fazer as provas... Ao término das provas do
concurso, quando cheguei a casa comecei a arrumar minhas coisas, no intuito de voltar para
a casa de meus pais, apesar de não ter ainda falado para a minha família o que tinha acontecido.
Quando Geraldo viu que eu estava arrumando a bagagem, logo me chamou para conversar
e pediu que eu não saísse de casa. Pediu, pediu até que aceitei ficar.
Já em janeiro de 2006, no dia do resultado da segunda fase do concurso, reservei o dia
para assistir ao resultado pela TV. Não somente eu, como também algumas pessoas que
torciam por mim e por outros amigos que tinham prestado o concurso. Assisti sozinha ao
resultado, enquanto meu marido se recolhera na garagem para não ver. Ele logo soube do
resultado e que eu tinha sido aprovada. Fiquei muito feliz, pois meus esforços não tinham
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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sido em vão, e, pela primeira vez, meu marido me abraçou e me deu os parabéns e disse que
não tinha ido assistir ao resultado porque já sentia que eu tinha passado.
Comecei bem o primeiro período. Como sempre fui dedicada ao que faço, não seria
diferente em relação a minha carreira acadêmica. A única coisa que me preocupava era
encontrar uma forma de adquirir recursos para me manter estudando, pois meu marido não
queria contribuir em nada, nem com as passagens de ônibus, e nem queria que eu trabalhasse.
Fiquei desnorteada, sem saber o que fazer. Meu pai passou a me ajudar com as passagens.
Então, passei a procurar me inscrever em algumas bolsas na faculdade, porém, dificilmente
quem é do primeiro período podia vir a ser bolsista. Insisti na busca e vi um cartaz do
Departamento de Educação, que informava a seleção de bolsista para trabalhar na alfabetização de jovens e adultos em sua comunidade. Inscrevi-me nessa bolsa e fiquei
aguardando os resultados.
Ao longo da semana, uma colega do curso, Marijara Bandeira, que já era estagiária de
apoio técnico, informou-me que tinha escutado por acaso alguém falar que a Pró - Reitoria
de Extensão iria abrir inscrições para uma bolsa voltada para os estudantes de origem
popular. No dia seguinte, a professora Érika Gusmão avisou em sala de aula que as inscrições
estavam abertas para a bolsa Conexões de Saberes e leu o edital. Confesso que fiquei um
pouco triste, porque mesmo não tendo pago a taxa do vestibular, eu não tinha tido Argumento
de Inclusão3 para entrar na faculdade, pois já fazia mais de 10 anos que eu tinha concluído
o ensino médio. Mas fui assim mesmo fazer a inscrição. Lá tive notícia de que mesmo não
tendo os argumentos de inclusão eu poderia me inscrever, desde que tivesse sido isenta da
taxa do vestibular. Saí muito contente e confiante.
Fui selecionada para as duas bolsas para as quais me inscrevi e tive que optar por uma
delas. De um lado, a bolsa de alfabetização seria muito boa, porque se tratava especificamente de suportes para o meu desenvolvimento em meu curso. Por outro lado, a bolsa do
Conexões de Saberes me encantou muito, pois sempre desejei executar alguma ação na
minha comunidade de origem a fim de contribuir com uma melhoria de vida daquela
população. Assim fiz a opção por esta última. Quando comecei a trabalhar no Programa
Conexões de Saberes, em casa não tinha paz, pois todos os dias surgiam discussões porque
tinha que sair a campo e desenvolver as tarefas do programa.
Enquanto isso, eu estava cursando uma disciplina de Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação, com a professora Rosália Silva. Estudávamos sobre os valores e as
valorações e isso tudo me encantava. Aprendi que, em toda atitude do ser humano, há
desejos e sacrifícios pelos quais os valores são movidos e que, posteriormente, todo esse
sacrifício será superado pelo prazer de usufruir aquilo, porque se lutou para conquistar,
por isso, estamos sempre nos sacrificando para obter o desejável, isto é, sempre passamos
por um processo de valoração do objeto desejável que implica, quase sempre, na perda de
outras coisas. Quero dizer, com tudo isso, que novamente o meu marido pediu para que eu
escolhesse entre ele ou a minha vida acadêmica. E o preço que pago por buscar o meu
desejável foi o fim do meu casamento, que já durava sete anos.
O Programa Conexões de Saberes tem sido uma experiência gratificante em minha
vida pessoal e profissional. Por meio desse programa, tenho me desenvolvido melhor nas
3
É um sistema de pontuação adicional que toma como referência critérios sócio-econômicos e de desempenho dos candidatos da rede pública no vestibular.
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Caminhadas de universitários de origem popular
atividades de meu curso, além de ter me dado a oportunidade de interagir com pessoas de
quase todo o Brasil, durante o seminário nacional que aconteceu no Rio de Janeiro em
novembro de 2006, onde pude rever, também, meus irmãos os quais não via há mais de 15
anos. Hoje, desenvolvo em minha comunidade de origem, o projeto Felipe Camarão:
Caminhos de Diálogos, que é de uma ONG (Visão Mundial), juntamente com mais duas
bolsistas do Conexões (Larissa Nunes e Luzia Lira). Elas estão envolvidas em uma pesquisa
para a construção do marco lógico da comunidade, e eu com o Baú de Leitura que visa o
incentivo à leitura e a contribuição para a formação de bons cidadãos.
Concluindo, quero apenas dizer que não me arrependo da escolha que fiz. Lembro-me
que em uma das aulas de literatura do professor Josivan, um dos alunos perguntou a ele por
meio de um bilhete, acerca de uma possível escolha, entre o coração e a razão, e logo
sabiamente, ele respondeu que devemos escolher aquilo que menos nos fará sofrer. E isso
guardei. Escolhi o caminho da razão, apesar de ter sofrido nesse caminho, acredito que
estou sofrendo menos por buscar aquilo que de fato é desejável para mim. E a vida é assim,
às vezes, temos que perder algo para ganhar outros.
Agradeço a todos que fizeram e que fazem parte da minha história e que, diretamente ou não, tenham contribuído para a realização dos meus ideais, tanto pessoais,
quanto profissionais.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Caminhos e sonhos de uma nordestina
Dhynefa Katiany de Lima *
As nuvens mudam sempre de posição, mas
são sempre nuvens no céu. Assim devemos
ser todo dia, mutantes, porém, leais com o
que pensamos e sonhamos; lembre-se: tudo
se desmancha no ar, menos os pensamentos.
Paulo Baleki
Tudo tem que ter um início
Nasci no dia 12 de junho de 1986, às 16:30h. Ao nascer, recebi o nome de Dhynefa
esse nome um tanto complicado foi dado por meus pais que gostavam muito de um seriado
da televisão chamado "casal vinte" que tinha como personagens principais Jhenefe &
Jhonatan. Meu pai como é músico resolveu dar uma modificada na sonoridade do nome
mudando um pouco sua escrita (para não dizer quase tudo!), por isso as pessoas têm dificuldade de aprenderem ou pronunciarem meu nome, mas nem por isso deixaram de gostar dele.
Sou natural da cidade de Luís Gomes, mas morei boa parte da minha vida em Major
Sales, ambas pertencentes ao Estado do Rio Grande do Norte e pelas quais tenho um enorme
carinho e respeito. Sempre digo que sou um "tiquinho" de cada uma delas. Hoje, tenho que
morar em Natal, capital do Estado, onde curso Bacharelado em Química pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.
Infância: das fases da vida, a mais bela
Como sempre diz Dona Soligardes, minha mãe, fui dos seus três filhos a mais quieta.
Nessa fase da vida, gostava de aprontar alguma travessura de vez em quando, e quando isso
acontecia no mínimo ficava de castigo ou levava umas palmadas bem merecidas, outras não.
Lembro-me que uma vez tomei quase todo o suco que minha mãe fez para meu pai, Seu Neto
Lima e, que após ter feito isso, enchi a jarra com água e coloquei um pouco de açúcar. Logo,
o suco ficou bem clarinho e quase sem gosto. Quando meu pai chegou, com aquela sede e foi
beber o suco: eu só ouvi os gritos chamando meu nome; eu, é claro, já sabia do que se tratava
e fui para perto dele já chorando e dizendo que não tinha sido eu. Ele, obviamente, não
acreditou e foi logo me passando um castigo: me colocou debaixo da mesa e disse que
enquanto não bebesse todo o suco, não sairia de lá. Enfim, não consegui beber o suco e já
estava horas debaixo da mesa, então, minha mãe intercedeu por mim e só assim consegui sair
do castigo.
* Graduanda em Química Bacharelado pela UFRN.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Tive uma infância maravilhosa, cheia de brincadeiras e um pouco de aventura juntamente com meus irmãos Dhonatan e Deusiene que nessa época ainda era um bebê. Nós três
vivíamos entre tapas e beijos, mas como era a mais velha dos três sempre sobrava para mim.
Adorava brincar, principalmente de bonecas, juntamente com minhas amigas e empinar
pipa com meu irmão. Eu mesma fabricava as pipas, muitas vezes minha mãe brigou
comigo por gostar desse tipo de brincadeira masculina. Teve uma época que despertou
em mim e meus irmãos o espírito de pescadores e tínhamos um pouco do incentivo do
nosso pai, pois ele adorava pescar, principalmente, por lazer e nós adorávamos ir junto para
tomar banho de açude.
Assim, como toda criança, eu tinha sonhos e uma imaginação fértil, muitos dos
meus desejos, não puderam ser realizados por eu ser pobre, enquanto outros, foram fortalecidos pela minha força de vontade e pelo apoio dos meus pais, vó Salete e tio Clovís,
mas hoje, posso dizer que muitos estão sendo concretizados.
Os primeiros passos para a vitória
Quando fiz cinco anos, minha mãe me matriculou em uma escolinha particular. Lá,
aprendi a escrever minhas primeiras palavras e isso fez com que despertasse meu interesse
para os estudos. Na época, a aula que simplesmente detestava era a de caligrafia e não era
por menos: a minha letra era, e ainda é, muito feia. No entanto, sempre fui uma aluna muito
dedicada, sempre querendo aprender algo novo. Passados dois anos, já estava na primeira
série, e esta era a turma que iria me acompanhar até o ensino médio, ou seja, toda aquela
galera (desde os tímidos aos desenrolados, incluindo os chatos e os metidos) ficaram juntos
por muito tempo.
Com a chegada da primeira série, outras mudanças ocorreram como, por exemplo, a de
escola: deixei de estudar em uma instituição particular e fui para uma pública onde concluí
meus estudos. Meus primeiros anos escolares foram muito divertidos e cheios de criatividade,
principalmente, nas datas comemorativas como São João e 7 de setembro, pois adorava
vestir as fantasias relacionadas a essas datas, por exemplo, nos desfiles de 7 de setembro, já
fui índia, flor. Até representei a minha escola vestida de colegial no grande desfile de 7 de
setembro! Lembro que em algumas festinhas da escola sempre aconteciam apresentações
artísticas dos alunos, como dança, canto dentre outras. Em uma dessas festinhas, a minha
professora me colocou para cantar, pois já que era filha de cantor tinha que herdar tal talento
do pai, mal sabia ela que eu detestava cantar... então, é chegado o grande dia da apresentação,
já tinha ensaiado tudo com meu pai durante a semana e estava tudo certo. Meus pais
foram assistir à apresentação. Quando chegou minha vez, lá fui eu toda nervosa: comecei
até bem, mas no meio da música esqueci o restante da letra, meu pai ainda tentou me
ajudar, porém não teve jeito.
Passados alguns anos, fui descobrindo o que realmente queria, então estabeleci uma meta
na vida: iria estudar para ser uma "Doutora" como se diz lá no interior. Tinha muita vontade de
estudar em uma escola de melhor qualidade, mas como as condições financeiras me impediam,
então, só me restava apelar para os livros e com isso ser uma das melhores da turma.
No ano de 1997, já estava cursando a 5ª série e novamente tive que mudar de escola,
passando a estudar na Escola Estadual 26 de Junho que, na época, não possuía sede própria
e funcionava boa parte em prédios alugados e espalhados pela cidade de Major Sales. A
nossa turma foi a primeira da escola que tinha alunos na faixa etária de 11 a 18 anos de
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idade. Em conseqüência disso, ganhou o apelido de creche do 26, o que nos incomodava
bastante. No entanto, os desafios aumentariam, pois teria novas disciplinas pela frente e,
para agravar um pouco mais a situação nessa mesma época, sob pressão do meu pai, começo
a trabalhar na banda musical dele como cantora. Como já disse, eu detestava cantar e, por
muitas vezes, chorava nos ensaios de desgosto, porque o que queria mesmo era estudar e
brincar com minhas amigas e irmãos.
O trabalho, como era de se imaginar, começou a interferir nos meus estudos, pois
cheguei algumas vezes a dormir na sala de aula já que estudava à noite, devido a escola
naquela época só funcionar nesse horário. Recordo que minha professora, Dona Socorro
Silva, pediu para falar com meus pais para saber o que estava acontecendo, pois via que eu
estava desatenta nas aulas, dormindo durante as explicações e que minhas notas estavam
baixando. Isso de nada adiantou, já que meu pai insistia que continuasse a cantar, conseqüentemente, ele começou a cobrar mais de mim nos estudos e no trabalho.
Nos anos seguintes até a 8ª série, tudo estava correndo bem nos estudos, a escola
finalmente passava a ter uma sede e tudo estava bem, até que o professor de Matemática
adoeceu e os médicos constataram que ele tinha um coágulo no cérebro e que não poderia
mais ensinar por tempo indeterminado. Inicialmente, a diretoria contratou dois professores
provisórios que já chegaram no meio do ano letivo, ou seja, não foi possível que concluíssem todo o conteúdo. No ensino médio essa situação agravou-se ainda mais, pois a diretoria
não conseguia professores de Matemática e quando conseguia era aquela velha e famosa
operação "tapa buraco": chegavam no meio do ano letivo, passavam alguns trabalhos para
obtenção de notas e pronto; estava concluída a disciplina, ou seja, quase nada havia de
aprendizagem.
Durante meu ensino médio, a escola passou por diversos tipos de problemas os quais,
não estava preparada para resolvê-los, como a falta de professor de Matemática, a gravidez
da professora de Química, que precisava de um substituto (e que só chegou no 2º bimestre
do 2º ano!), a construção de suas ampliações, a qual chegava a interferir nas aulas, tudo isso
contribuiu para que houvesse uma defasagem em meu ensino que até hoje, mesmo estando
em uma universidade, sinto as conseqüências, pois, muitas vezes, necessito de alguns
desses conhecimentos e, simplesmente, tenho que correr atrás do tempo perdido para tentar
reverter essa situação. No mais, tudo corria bem, os professores eram e ainda são pessoas
maravilhosas, com as quais aprendi muito, não só assuntos relacionados ao ensino, mas
lições de vida que sempre levarei comigo.
Por falar em amigos, não posso esquecer-me da minha "turminha" de sala e de festas, a
famosa turma da pipoca composta por Fabiana, Oscamaria, Virgínia e eu. Éramos amigas
inseparáveis. Toda noite, no horário do intervalo, íamos ao centro da cidade para comprarmos pipocas (daí o nome da turma) e conversarmos sobre tudo que estava acontecendo na
cidade, só para descontrair...
Nossa classe era bastante criativa. Nas aulas de educação artística, os meninos sempre
levavam instrumentos musicais para a sala e era uma festa só. Chegamos uma vez, durante
o 3º ano, até a montar um coral, para uma apresentação na escola. Nesse mesmo ano, fui a
escolhida para representar a turma, no concurso de mais bela garota estudantil do colégio.
Minha mãe, inicialmente, não quis deixar, mas por fim com a ajuda de tia Sonaly consegui
convencê-la. Então é chegado o grande dia do desfile, lá estou toda bem vestida e muito
elegante, por sinal. Sinceramente estava disputando só por disputar, e fiquei até surpresa
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Caminhadas de universitários de origem popular
com o resultado, não me recordo bem com quantas garotas concorri, acho que numa faixa de
onze meninas. Então, é anunciado o resultado. Lembro que começou do menor para o
maior. Iam sendo divulgados os nomes e nada do meu sair. Então é chegada a divulgação
das três finalistas do turno da noite e meu nome finalmente saiu, ganhei o primeiro lugar.
Minha mãe não acreditou quando viu o resultado, nem eu, e ficamos muito felizes.
Ainda teve a final disputada na gincana, onde cada turno tinha sua representante.
Nesse dia, porém, fiquei em segundo lugar, por uma diferença de quatro pontos da primeira colocada.
Minha família: a base de tudo que sou
Não poderia escrever minha caminhada neste livro sem falar daqueles com quem
aprendi a viver, a caminhar, a sonhar, enfim, aqueles que estão presentes em quase todos os
momentos da minha vida: falo da minha família a qual é muito grande, tem problemas como
qualquer outra, mas que não a impedem de permanecer junta, apesar de todas as desavenças.
Vou começar lhes falando sobre o meu bisavô, o senhor Antônio Batista, mais conhecido por Antônio de Hermógenes. Homem digno, analfabeto sim, mas possuidor de um
saber brilhante, que construiu tudo que tinha por meio de muito trabalho e digamos "sorte"
porque era dono de casas de jogos que naquele tempo eram um bom negócio, como também
devido a uma herança que depois de muitas brigas, e até morte, conseguiu herdar e administrar
todas as terras e bens que eram dos seus pais.
Ele não era homem de meias palavras, quando queria dizer alguma coisa dizia logo na
"cara" e por essas e outras coisas era conhecido por ser uma pessoa bruta, ignorante e, ainda
por cima, valente, ou seja, era uma pessoa de temperamento forte, mas de um coração
generoso que sempre ajudava a quem o procurava. Em conseqüência disso, chegou à carreira
política, foi eleito duas vezes para vereador e estava no seu segundo mandato quando
faleceu. Eu sempre adorava ir a sua casa e, principalmente, a seu engenho de cana-deaçúcar, que fica localizado na zona rural da cidade de Luís Gomes, para onde ele tinha
maior orgulho de me levar. Quando era tempo de moagem, me levava para conhecer todo o
processo de fabricação de rapadura, lembro que sempre me dizia: "minha bisneta, esse forno
é muito quente tenha cuidado, minha fia, e além do mais já aprendeu a puxar alfininho?"
Com isso, me dava um pedaço de cana melado de mel para eu ir aprendendo a puxar. Isso é
uma das coisas das quais me recordo bem e quando lembro do meu bisavô, encho meus
olhos de lágrimas e sei que se ele estivesse vivo tudo para mim e minha mãe teria sido
diferente, mas sei que onde quer que ele esteja, está olhando e me protegendo para que
minha trajetória seja menos árdua.
Mas vamos falar de uma mulher guerreira, aquela que me gerou, amamentou, sustentou e que me ama como nunca ninguém nesta vida vai me amar: minha mãe, dona Soligardes,
uma mulher batalhadora que, até hoje, vive lutando para que nós, seus filhos, tenhamos o
que comer e vestir e que mesmo com todas as dificuldades, nos ensinou a ser pessoas
honestas e humildes. Ela buscou sempre nos mostrar os caminhos que temos para seguir,
cabendo a nós, claro, tomar as decisões que achássemos melhor. Essa é minha mãe, uma
pessoa que teve, desde muito cedo, de trabalhar para ajudar seus pais, tanto na agricultura
como em casa. Ela casou-se muito jovem com meu pai na esperança de uma vida melhor,
mas logo percebeu que não iria ser bem assim, pois a luta estava apenas começando, uma
vez que meu pai era desempregado e só pensava em música e em montar uma banda. Ela, na
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época, trabalhava no CSU (Centro Social Urbano) como professora de alfabetização,
mas logo ficou desempregada, porque o governo desativou o projeto. Ela já tinha esse
bebezinho lindo (que sou eu) que a motivava diariamente a suportar os martírios que a
vida estava lhe impondo.
Então, finalmente, as coisas iam mudar, pois meu pai viajou para São Paulo e lá
conseguiu juntar um pouco de dinheiro com as vendas de algumas peças de crochê, e
também com dinheiro de seu trabalho, retornou para casa. Com essas economias acumuladas, comprou a tão sonhada banda. Era pequena, pertencia à igreja e muitos de seus
aparelhos e instrumentos não funcionavam (para não dizer quase tudo). Então, meu pai,
que conhecia um pouco de eletrônica, começou a reciclar e consertar os objetos. Enfim, a
banda estava montada e seu primeiro nome, se bem me recordo, era, Eclipse do Sol.
Naquela época, ter uma bandinha no interior dava um bom dinheiro. Minha mãe
também conseguiu um emprego de agente de saúde e depois de algum tempo teve que ser
transferida para Major Sales. Meu pai sempre foi um homem cheio de sonhos. Hoje, mesmo
sua banda não dando mais lucros, ele não desiste de lutar para que esse sonho permaneça vivo.
Falando em meus pais, eles se conheceram em uma festa na cidade de Luís Gomes.
Minha mãe, dona Soligardes, era uma mocinha tímida, charmosa, de apenas 16 anos; já o
meu pai, seu Neto Lima, um paraibano charmoso de 18 anos que, ainda por cima, sabia
cantar e tocar violão, ou seja, era o "terror das menininhas" da época. Ao se conhecerem,
apaixonaram-se e no ano de 1985 se casaram na esperança de viverem felizes para sempre.
Dessa união, nasceram três lindos filhos: Dhynefa (que sou eu), Dhonatan e Deusiene.
Meus irmãos têm temperamentos bem diferentes do meu. Dhonatan é aquele tipo de
garoto bem caseiro, calado, que adora cuidar de bichos como galinhas, cachorro, pássaros,
é um típico menino do interior. Já Deusiene é aquele tipo de garota bem desenrolada, que
conhece todo mundo da cidade, é meiga, carinhosa, talentosa, mas muito "danada" e dá um
trabalho que só nós sabemos! Costumamos dizer que ela é a artista da nossa casa. E eu sou
assim, sincera, extrovertida, batalhadora, carinhosa, um pouco estressada de vez em quando
e, dizem as más línguas, sou um pouco pessimista, mas isso não é verdade, apenas analiso
todas as possibilidades das coisas darem certo.
O casamento dos meus pais, depois de muitas brigas, idas e vindas, chegou ao fim.
Nós, como ainda éramos crianças, ficamos com nossa mãe. Hoje, meu pai já formou outra
família e ambos são felizes como estão.
A minha família, como já havia dito, é muito grande e se fosse falar de cada um talvez
esse texto deixasse de ser minha biografia e passasse a ser minha árvore genealógica.
Contudo, digo que com cada um deles aprendi algo: com meus avós, aprendi a ser forte e
digna nos momentos difíceis; com meus tios e tias, aprendi a ter determinação e força de
vontade para sempre estar apta a aprender coisas novas; com meu pai, aprendi a sonhar e
lutar pelos meus sonhos; com minha mãe, aprendi a ser guerreira, batalhadora, dizer o que
penso e, acima de tudo, andar sempre de cabeça erguida não importa o que aconteça.
Como quase todas as garotas que conheço, também penso em formar a minha própria
família e esse pensamento está se tornando cada vez mais forte e concreto, desde que
conheci um homem maravilhoso, aquele que havia desejado como meu príncipe encantado.
Um homem com uma história de vida brilhante, apesar de todas as dificuldades que passou,
nunca mediu e nem mede esforços para alcançar seus objetivos. É companheiro, amigo,
carinhoso e apareceu na minha vida como um raio de sol em dias frios, para dar mais alegria
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Caminhadas de universitários de origem popular
ao meu coração. Esse é Fernando, meu namorado o qual amo muito e se nós continuarmos
nos amando assim como hoje, com essa harmonia de pensamentos e espírito, logo estaremos formando a nossa tão sonhada família.
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Vinícius de Morais
A grande batalha: acesso e permanência na universidade
Após o término do ensino médio, passei um ano sem estudar. Nesse tempo, além de
cuidar da casa, passei a me dedicar um pouco mais ao grupo teatral, do qual já participava
há alguns anos. Comecei a trabalhar como locutora de uma rádio local, dava aulas particulares, além de ajudar minha mãe a tomar conta da funerária que nessa época, já estava
instalada em um quarto na casa onde morávamos. Nesse mesmo ano, cantei na quadrilha
junina da minha tia Solange, só que dessa vez cantei por prazer, pois amo de verdade essa
quadrilha, e esse foi um dos momentos mais felizes da minha vida.
No entanto, ainda tinha em mente aquela idéia fixa de estudar, passar no vestibular e
ser uma "doutora", com o objetivo de dar uma vida melhor para minha família. Porém, sabia
que se continuasse no interior isso talvez não fosse possível, porque lá as oportunidades são
poucas (para ser otimista) e, digamos, já existem os "escolhidos", ou seja, eu não fazia parte
dessa fatia. Foi então que surgiu o convite de tia Deusdete (Deta) irmã de meu pai, para
morar em sua casa, juntamente com sua família. Inicialmente não queria ir, mas depois
percebi que seria minha única oportunidade de realizar meu sonho, por isso, agarrei com
"unhas e dentes" o que estava me sendo oferecido.
Chegando na casa da minha tia Deta, o seu esposo por quem tenho muito respeito e
gratidão, a quem chamo de tio Clóvis desde criança, tratou logo de me matricular como
ouvinte, na escola pública onde ainda hoje é professor de Física. Como vó Salete me dava
uma ajuda de cinqüenta reais por mês, ele me matriculou em um cursinho popular que só
funcionava nos sábados e também me orientou a freqüentar uns aulões populares e
gratuitos nos domingos.
Logo no primeiro contato com as aulas, percebi que era tudo diferente do interior. Os
professores cobravam mais, o conteúdo tinha muitos assuntos que ainda não havia estudado.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Principalmente no cursinho, sentia muito essa diferença. Isso tudo fez com que começasse
a entender o que era esse mundo chamado vestibular o qual desejava muito enfrentar para
conseguir ter acesso à universidade. Inicialmente, imaginava que a batalha ia ser difícil,
mas não tão difícil quanto foi. Digo isso, porque só quem passou pelo que passei, sabe o
quanto é difícil morar em uma cidade grande e em uma casa de família, por mais que seja sua
família. Tudo são flores no início, depois de certo tempo, você passa a conhecer verdadeiramente quem são as pessoas.
Não nego que, por muitas vezes, pensei em desistir de tudo e voltar para o interior,
porém, quando lembrava que era a única esperança de minha mãe e meus irmãos, me fortalecia e engolia o que fosse preciso para alcançar meu objetivo. Nos momentos de angústia,
contava com o apoio da minha prima Maísa, tio Clóvis e Delmira uma grande amiga que
estava passando por dificuldades parecidas com as minhas.
Passados alguns meses, já estava bem próximo do vestibular e foi anunciado quanto
custaria a taxa de inscrição, que era de noventa e nove reais. Quando soube disso, fiquei
atordoada: como minha mãe com apenas um salário mínimo, poderia pagar um valor tão
alto? Foi quando fiquei sabendo que existia uma taxa de isenção oferecida pela universidade.
Então, resolvi me inscrever para tentar ganhar, passei um mês esperando ansiosamente pelo
resultado, e quando saiu estava lá meu lindo nome. Como tinha ganhado a taxa de isenção,
fiquei muito feliz e agradecida a Deus por essa primeira vitória, agora, era só esperar o
período de inscrição.
Quando fui me inscrever, já havia decidido fazer vestibular para Química- Bacharelado,
porque gostava da área e via as possibilidades de um mercado cada vez mais promissor.
Depois de meses me preparando, é chegada a hora das provas. Foram quatro dias de muita
correria, mas não fiquei nervosa durante as provas, pois me sentia tranqüila devido ao que
havia estudado e sabia que estava dando o melhor de mim. Minha mãe, nesse período, como
é católica, tratou logo de fazer um monte de promessas, caso eu fosse aprovada.
Passado o vestibular, minha preocupação era outra: como me manter morando em
Natal se fosse aprovada ou não? Isso porque gostaria de continuar estudando até ser aprovada.
Então, entrei em contato com Ednete, uma amiga do interior que morava na Casa da
Estudante, para me informar como poderia ser selecionada para morar lá, pois na casa da
minha tia não poderia e nem queria continuar morando mais. Ednete me explicou que
precisaria passar por uma prova e um teste sócio-econômico. Enfim, fiz as provas juntamente
com um monte de meninas, todas do interior; terminei a prova muito satisfeita e com
grande esperança de ser aprovada.
Finalmente, passado esse período de provas, retornei para o interior e aguardava
ansiosamente pelos resultados das minhas batalhas. Minha mãe estava muito feliz pelo
meu retorno. No dia 31 de dezembro de 2005, recebo uma ligação, quando atendi era a
presidente da casa da estudante, então, minhas pernas começaram a tremer, fiquei gelada,
até que ela disse que tinha sido aprovada em 3º lugar para morar lá. Comecei a chorar
juntamente com minha mãe, pois aquela vitória era a garantia de mais três anos morando e
estudando em Natal.
É chegado o novo ano (2006) e junto com ele novas perspectivas. A garantia de morar
em Natal já tinha, faltava saber, apenas, se iria passar no vestibular, mas não iria demorar
muito para saber o resultado. No início de janeiro, seria divulgada a lista de aprovados. Só
fiquei sabendo do resultado dois dias depois da divulgação. Pois estava no interior e lá não
46
Caminhadas de universitários de origem popular
havia a transmissão da TV Universitária e também não tinha internet na cidade. O único
lugar que tinha internet na cidade era a prefeitura. Como minha mãe trabalhava lá, pediu a
um amigo de trabalho que olhasse o resultado, e eu fiquei em casa aguardando sua chegada.
Nunca vou esquecer aquela cena: lá vinha minha mãe em pleno sol do meio dia,
branca que nem a neve, quando se aproximou de mim fui logo perguntando: O que foi mãe?
Eu não passei? Então, ela me abraçou dizendo: “Parabéns, minha filha, você passou, graças
a Deus, valeu a pena tudo o que você agüentou e se esforçou para alcançar isso, minha
química!” Dizendo isso, ambas choramos e eu ao mesmo tempo gritava que nem uma
loucas. Aos poucos, meus amigos e vizinhos vieram me parabenizar, até Dona Socorro
Nazário (Corinha) diretora do colégio, ligou para a rádio da cidade para me felicitar pela
vitória. Meus familiares ficaram muito felizes!
Passada a euforia da aprovação, retornei à Natal a fim de me instalar na casa da
estudante e fazer minha matrícula na universidade. Chegando à Casa da Estudante, fui
conversar com a presidente da casa. Estava tudo indo bem, até que eu disse que tinha
passado no vestibular, então ela falou que não poderia ficar lá, mesmo tendo sido aprovada nas provas da casa, não teria direito aos três meses de carência que era dado às moradoras e aquela casa era para meninas que vinham do interior para fazer ensino médio ou
estudar para o vestibular nas escolas e cursinhos da capital e não para aprovadas no
vestibular, para isso existem as residências universitárias. Dito isso, me falou que muitas
meninas estavam de férias e que, por enquanto, poderia ficar.
Uma das meninas da casa me acolheu em seu quarto, enquanto suas parceiras de
morada estavam viajando. Durante esse tempo, procurei me informar como era feito o
processo seletivo da residência universitária, pois precisava conseguir esse espaço se não
teria de abandonar o curso e voltar para casa, ou seja, teria lutado em vão. Foi nessa mesma
época que conheci Rosângela, uma menina que também estava na Casa da Estudante na
mesma situação que eu, pois havia passado no vestibular e também não podia ficar lá. Após o
período de matrícula, na primeira semana de aula as meninas que moravam no quarto, onde
eu estava, chegaram. Foi então que me desesperei sem saber o que fazer e nem para onde ir.
Foi nesse momento de aflição que Ednete retornou de férias juntamente com sua irmã
Janete, também aprovada na prova da Casa. Como somos bastante amigas, naquele momento
ela me deu todo apoio que precisava como podia, me ofereceu um canto em seu quarto até
que eu conseguisse a residência, no entanto, havia um problema: reza o estatuto da casa que
cada moradora só pode ficar com visita na casa por um período de quinze dias. Passado esse
período, a visita tem que ir embora e só pode retornar para ficar depois de três dias.
Durante esse meio período, já tinha dado entrada no pedido de residência, assim como
Rosângela. Só faltava a assistente social do Departamento de Assistência ao Estudante
(DEAE) ir visitar a minha casa no interior. No início, fiquei com medo dela não fazer a
visita, pois são oito horas de viagem de Natal a Major Sales. Somente sosseguei quando
soube que ela era de Alexandria uma cidade próxima da minha e coincidentemente a "terra"
de Rosângela.
Nas vésperas do carnaval, viajei para casa, onde aguardaria a chegada da assistente
social. Minha mãe já estava ansiosa com a demora da esperada visita. Quando foi sexta-feira
pela manhã, Margarida, a assistente social do DEAE chegou em minha casa, fez uma entrevista com minha mãe para confirmar as informações que eu tinha dado.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
47
Retornei para Natal e continuei morando na Casa da Estudante. Depois de certo tempo
morando lá, senti que minha presença começava a incomodar algumas companheiras de
quarto das minhas amigas e já não me sentia bem naquele ambiente. Procurava ficar o
máximo de tempo possível na universidade. Então, depois de um tempo, saiu a lista das
contempladas com a bolsa de residência e ao verificá-la vi que meu nome estava como uma
das contempladas juntamente com o de Rosângela. Como já tínhamos criado um forte elo
de amizade, optamos por morar juntas na residência Biomédica que naquele momento
tinha uma casa que estava sendo reativada após uma reforma. Fomos uma das primeiras a
chegar, pois já não suportávamos mais a nossa situação na Casa da Estudante.
Agora estava realmente feliz e sossegada, pois, finalmente, tinha conseguido garantir
a tão sonhada permanência na universidade.
Conexões: a esperança de uma aluna de origem popular
Início de curso, também significa início de gastos. Minha Vó Salete continuava a me
ajudar financeiramente, e sou muito grata por isso! Só que, depois de um tempo, as coisas
começaram a complicar financeiramente e a ajuda dela não era mais o suficiente, pois mal
dava para comprar as passagens para ir a universidade. Então, comecei a procurar por uma
bolsa, qualquer uma que viesse estava aceitando, porém estava muito difícil já que estava
apenas no 1º semestre.
Estava quase desistindo, quando Rosângela me avisou de uma tal reunião sobre um
programa chamado Conexões de Saberes. Inicialmente, pensava que era alguma espécie de
seminário da área de humanas com apresentação para calouros. Só depois vendo Rosângela
procurando alguns documentos, tive a curiosidade de perguntar: para que isso? Ela respondeu
que os documentos eram para uma bolsa do Programa Conexões de Saberes, ou seja, ela
tinha falado a palavra chave: bolsa. Continuando a conversa, descobri que alunos calouros
de qualquer curso, com ingresso na universidade por isenção da taxa de inscrição ou
argumento de inclusão poderiam concorrer a uma vaga.
Tratei logo de organizar os documentos necessários e fui até o DEAE fazer minha
inscrição. Não falei nada para minha mãe e tão pouco para minha família, não queria que
eles criassem expectativas. Um mês depois saiu o resultado, tanto eu, como Rosângela e
Pâmela tínhamos sido contempladas com a bolsa. Quando Pâmela chegou me dando os
parabéns, minha mãe estava do meu lado e ficou sem saber direito o que estava acontecendo
e os motivos das felicitações, já que não era meu aniversário. Expliquei-lhe, então, que
tinha dado entrada em pedido de bolsa e estava esperando o resultado e, como ela podia ver,
o resultado havia sido positivo.
No meu primeiro contato com o Conexões de Saberes, sinceramente não sabia o que
iria fazer realmente. Aos poucos, fomos conhecendo seus objetivos. De início, ficamos
sabendo que íamos ter oficinas de textos para nos auxiliar na produção de um livro chamado Caminhadas e que também participaríamos de grupos temáticos (GT'S) para debatermos
sobre diversos temas, como por exemplo, cultura e identidade em comunidades populares,
do qual faço parte, com o objetivo de elaborarmos um artigo científico para publicação
nacional, e por fim, haveria uma apresentação de projetos de extensão para que nós escolhêssemos aquele que achássemos melhor para nossa inserção em comunidades populares.
Feitas essas apresentações, me identifiquei com o projeto de extensão PROTECC
(Programa de Trabalho, Educação e Cultura no Campo) juntamente com outros bolsistas.
48
Caminhadas de universitários de origem popular
Esse projeto é desenvolvido na região do Mato Grande no interior do Estado. Foi proposto
que trabalhássemos na comunidade assentada Aracati, município de Touros. O coordenador desse projeto, professor Deusimar Brasil, propôs que montássemos uma oficina de alfabetização, pois havia piscicultores analfabetos. Nós, de cara, aceitamos o desafio, e todos os
sábados, nos deslocamos de Natal para a comunidade.
Hoje, não nos limitamos só às aulas de alfabetização de jovens e adultos, agora
também trabalhamos com atividades que proporcionam lazer, cidadania e aprendizado,
como, por exemplo, seção de cinema, oficina de política pública, cursinho Pró-CEFET e
Escola Agrícola de Jundiaí e teatro.
É muito gratificante chegar à comunidade, ser bem recebida e, acima de tudo, saber
que, de uma forma ou de outra, temos a mesma origem desse povo, pois, assim como eles,
sou de origem popular e posso dizer que a cada dia que vou à comunidade é uma forma de
contribuir como cidadã para que meu saber não se reduza só à universidade.
O último suspiro de uma escrita
Que minha história não seja vista como o registro do sofrimento de uma pobre menina
do interior nordestino, mas sim como a história daquela garota que teve um objetivo, lutou
e, muitas vezes, teve de se superar para mostrar a todos e até a si mesma, que todo sonho e
objetivo são possíveis de realização quando verdadeiramente queremos e lutamos por ele.
Não importa as pedras e os espinhos que enfrentamos pelo caminho, mas sim a confiança e
a fidelidade que devemos ter conosco e a com nossos ideais.
Por fim, quero dedicar essa breve autobiografia à minha mãe, a meus irmãos Dhonatan
e Deusiene, ao meu pai, a todos meus familiares, a Fernando, meu namorado, a todos que
torceram por mim nessa caminhada e a você, leitor, que tem sonhos e objetivos na vida.
Saiba que aconteça o que acontecer nunca se deve desistir dos sonhos e ideais: se eu
consegui, você também pode!!!
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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O mundo dá voltas
Edivan do Nascimento*
- É, difícil acreditar que ia chegar onde
estou e minha vida ia mudar e mudou.
Chorão
Sempre gostei de escutar histórias de pessoas que saíram do nada e chegaram a
algum lugar. Quando escutava tais histórias ficava imaginando se algum dia ia poder
contar a minha. Bem, hoje estou tendo a chance de poder contar um pedacinho de uma
caminhada difícil, mas até aqui compensadora, porque aprendi o bastante para poder
sobreviver na "selva" do dia-a-dia.
Contarei nas linhas adiante, não uma história de terror, nem tão pouco um conto de
fadas, mas sim uma história de uma pessoa que fez do sonho uma realidade e não se
intimidou diante dos desafios que a vida nos impõe.
Sou do interior do Rio Grande Norte e nasci em uma cidadezinha chamada Nísia
Floresta. Sou o terceiro filho de seis que minha mãe teve. A vida não foi nada fácil para
nós, pois quando nasci meu pai abondonou minha mãe e passamos por uma grande
dificuldade financeira, porque ele não nos dava nada, mas com a ajuda de familiares
conseguimos passar por essa parte amarga da vida.
Do meu tempo de infância lembro-me de poucas coisas. Apesar de a vida ser muito
difícil para minha família, agradeço a Deus, porque, quando criança, nunca precisei
trabalhar. Minha mãe sempre fez o possível e até mesmo o impossível para que seus
filhos continuassem na escola firmes e fortes. Brinquedos? Só feitos por mim mesmo.
Com minha criatividade, pedaços de tábuas e latas transformavam-se em carros; mangas
verdes viravam bois e um bolo de meias velhas era minha bola de futebol. Quando
cheguei à primeira série tinha sete anos e comecei a estudar na escola estadual professor
Manoel Laurentino, que ficava próximo a minha casa. Desde a pré-escola, nunca gostei
de estudar e agora é que não queria mesmo, porque tinha ouvido falar horrores da senhora que seria minha professora. Diziam que ela puxava as orelhas dos alunos, gritava e era
muito ruim. Mas, mesmo assim, fui obrigado a estudar com ela. Nos primeiros dias de aulas,
tudo foi normal, porém com o passar dos dias ela começou a mostrar quem realmente era...
O tratamento era diferenciado. Para ela, quem tinha dinheiro era dono da inteligência e merecia toda atenção do mundo; e quem não tinha dinheiro, meu caso, não tinha
inteligência e muito menos atenção de sua parte e se perguntasse alguma coisa era logo
* Graduando em Química pela UFRN.
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Caminhadas de universitários de origem popular
chamado de burro. Das coisas que me falaram sobre a professora, a única que não aconteceu
foi ela ter puxado minha orelha ou algo semelhante. Como previsto, só quem tinha
dinheiro passou e os outros repetiram de ano porque, segundo ela, nenhum tinha condições
para ser aprovado.
No ano seguinte, continuei no mesmo colégio, porém, com uma professora totalmente
diferente. Essa era daquelas que gostava mesmo do que fazia. Era alegre, divertida e, além
de tudo, ensinava muito bem! Esclarecia todas as dúvidas de qualquer aluno que se dirigisse
a ela com qualquer pergunta. Nesse ano tive ótimas notas e como consequência fui aprovado
por média. Dai em diante, passei pelas mãos de vários professores e professoras bons e
"disparei" sem repetir sequer um ano.
Quando completei doze anos, cheguei à quinta série e a um novo colégio chamado
Yayá Paiva, localizado no centro da cidade. Embora sendo um colégio público, o ensino
era de ótima qualidade. Lá fiz boas amizades e também foi nesse colégio que vi a educação
como a única porta aberta para uma vida melhor.
Lembro-me que estava na oitava série quando um professor de Matemática resolveu
levar a turma para conhecer a feira de CIÊNCIAS E TECNOLOGIA (CIENTEC), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Fiquei impressionado com o que vi. Sempre me
chamou muito a atenção a tecnologia, pois sonhava em ser cientista e como tinha muitas
invenções e experiências, o que vi me impressionou bastante. O professor explicou o que
era preciso para que pudéssemos entrar na tal universidade. Ainda me lembro de suas
palavras: “Qualquer um de vocês pode chegar até aqui, desde que estude bastante e não
desistam da grande caminhada da escola à universidade”. Diante dessas palavras fiquei
empolgado e, desde então, fiquei pensando na rara hipótese de algum dia chegar a universidade, aprender uma profissão e exercê-la.
Continuei estudando no mesmo colégio e quando percebi, já estava no terceiro ano do
ensino médio, ou seja, ano de vestibular. Logo decidi não fazer o exame, pois não me sentia
preparado e, o principal, não tinha dinheiro para pagar a taxa de inscrição, que era de
oitenta reais na época. Mas os professores do meu colégio conseguiram dez inscrições para
o vestibular. Então organizaram um processo seletivo para os alunos que já tinham concluído
e para aqueles que iam concluir: seria aplicada uma prova e os dez primeiros colocados
ganhariam a inscrição.
Outra vez não me animei a fazer o tal processo seletivo, que os professores organizaram,
porque ia competir com alunos que já haviam concluído e que também estavam fazendo
cursinho, ou seja, tinham se preparado o ano todo. Contei o motivo de meu desânimo para
um professor de Química, que eu admirava muito, e ele me alertou dizendo que nem sempre
quem faz cursinho está preparado e que muitas vezes isso é uma grande ilusão. Orientou-me
ainda para o fato de que a força de vontade que cada um tem dentro de si é mais forte, caso
deseje, você conseguirá o que quiser.
Ao ouvir esse incentivo, inscrevi-me e comecei a estudar, pois faltavam poucos dias
para a prova. As inscrições seriam na quinta-feira e no domingo aconteceriam as provas. No
domingo me desloquei para o local e no horário previsto fiz a prova. Não fiquei com muita
esperança de conseguir êxito, pois tinha muita gente fazendo a tal prova.
Fiquei surpreso quando na segunda-feira, logo ao entrar na sala da aula, uma amiga me
dá os parabéns. Perguntando-me: -Você já olhou a lista dos aprovados? Respondi que não.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Então ela disse: -Você conseguiu o segundo lugar!!!! Fiquei radiante de felicidade. Só tinha
um problema: Faltavam três meses para o vestibular. Mesmo assim, continuei a estudar. Fiz
o vestibular sem nem saber muito bem o que era. Fiz mais por experiência mesmo. Diziam
que era um bicho de "sete cabeças"e eu adoro desafios!!! Outra vez minha capacidade me
surpreendeu. Passei na primeira fase do vestibular e, por pouco, muito pouco mesmo, não
consegui passar na segunda fase e ingressar no curso de Engenharia Mecânica. Mas tudo bem!
Na entrada do ano novo, fogos queimando e em minha mente um só pedido: passar no
vestibular. Comecei a estudar para valer, em casa mesmo, pois não tinha dinheiro para pagar
um bom cursinho. Minha jornada de estudos era de cinco horas diárias. Muitas vezes, a
baixa estima chegou a me consumir. Às vezes, eu parava e me perguntava. "Para onde tu
vai? Melhor ficar na tua"! Outra coisa que me atormentava era o fato de não ter um trabalho,
afinal já era "de maior" e "quem cria filho barbado é gato" pensava eu.
Foi então que surgiu a oportunidade de trabalhar como garçom em uma das praias de
minha cidade, Nísia Floresta. Planejava trabalhar durante o dia e estudar à noite, quando
chegasse em casa. No primeiro dia de trabalho, já tinha a "manha" de trabalhar como garçom, mesmo não tendo nunca trabalhado nessa profissão antes. Gostei! Estava ganhando
meu dinheirinho. Mas à noite, a hora de estudar passava despercebida diante do cansaço e
eu sempre dizia: Amanhã eu estudo!!! Com a precisão me obrigando a sempre deixar meus
estudos para amanhã, fui pouco a pouco esquecendo meu ideal. Muitas vezes, a necessidade
fala mais alto que ele. Tempos passaram-se e começou a não mais dar certo o trabalho. O
dono da barraca dizia coisas humilhantes com todos que trabalhavam para ele. Então decidi
sair do trabalho.
Hoje, penso que foi até bom isso ter acontecido. Sabe lá Deus qual seria o meu destino
hoje! Bem, dá para se ver que nada acontece por acaso. Sem nada para fazer voltei a
estudar novamente. Vi muitas coisas acontecerem, amigos do tempo da escola, por sinal
muito inteligentes, se perderem nas drogas. Convites é que não me faltaram, mas não aceitei
nenhum. Alguns zombavam de mim dizendo: "Olha, lá vai o intelectual, não sai nem mais
de casa! Já vi muitos estudarem em escolas boas, e não conseguiram. Imagina esse aí". Isso
só me dava força mais e mais para estudar e um dia ter o prazer de esfregar minha aprovação
na cara de quem zombava ou não acreditava em mim.
O tempo passou e eu segui estudando sem dar ouvidos a ninguém. No dia da inscrição,
saí de casa decidido a tentar novamente Engenharia Mecânica, mas na hora "H" mudei para
Química por causa de dois fatores: baixa concorrência e também porque gostava do conteúdo.
Enfrentei a maratona de quatro dias de vestibular no ano de 2005 e a sorte estava
lançada. Agora só me restava esperar. Quando saiu o resultado da primeira fase, eu nem
acreditei. Na colocação parcial, fiquei em décimo terceiro e na final mantive a mesma
colocação. Estava, assim, aprovado aquele de quem todos duvidavam. Isso foi um tapa na
cara de muita gente, inclusive, de alguns de minha própria família.
Quando surgiram os boatos de minha aprovação, todos vieram perguntar se tinha sido
eu mesmo. E só eu tinha o prazer de responder que sim e mostrar que eu era capaz de chegar
a algum lugar. Outros tentavam me desanimar, dizendo que eu não teria dinheiro para pagar
as passagens e comprar os livros, que eram muito caros, mas eu não ligava para isso.
Depois da minha entrada na universidade, muitos pensamentos mudaram a meu
respeito. Hoje, minha ex-professora, aquela da primeira série, fala para minha irmã, que
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Caminhadas de universitários de origem popular
estuda com ela, que eu sempre fui um menino muito inteligente. Algumas pessoas que
nunca olharam sequer na minha cara, hoje me cumprimentam. Engraçado...
Hoje, estou cursando o terceiro período de Química e só queria deixar, aqui registrados,
os meus agradecimentos: primeiro a Deus, porque foi ele que me deu forças e saúde para
lutar; depois, a minha mãe, pessoa que mais me incentivou e continua me incentivando;
agradeço, também, àqueles que disseram que eu não ia conseguir, pois foram eles que me
deram forças para lutar e mostrar que eu era capaz, e por fim, e não menos importante que os
outros, a todos que compõem a equipe do Conexões de Saberes, por terem me dado a
oportunidade de deixar, aqui registrado, um pequeno pedaço, creio eu, da minha história.
Meus sinceros agradecimentos.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Minhas memórias de estudante
Edna Poliana Braz*
No fundo eu sou simplesmente...
um nordestino de maneiras calmas e
sentimentos fortes um ser humano
consciente de suas posições no mundo...
uma alma eternamente apaixonada pela vida.
Paulo Freire
Cresci em um país onde as desigualdades sociais são acentuadas, onde o pobre é visto
como um sujeito sem valor, e pior ainda, é visto como um ser humano incapaz de alcançar
seus sonhos e de lutar por eles de forma digna. Essa é a realidade de boa parte da nação
brasileira. A vocês, leitores, tentarei mostrar o que fiz para impedir que essa realidade
afetasse a minha vida.
Nasci no dia 13 de julho de 1986, numa cidade do interior do nordeste, Pedro Avelino.
O nordeste é visto como um local repleto de miséria, fome e seca, mas essa região é muito
próspera, com bastantes recursos naturais e atividades significativas para a economia do
país. O nordeste enfrenta muitos problemas, como qualquer região brasileira: desemprego,
desigualdade social, má educação, miséria, fome entre outros.
A cidade onde nasci fica localizada no sertão Potiguar, possui quase 7 mil habitantes,
gente simples e acolhedora. Sua economia gira em torno do comércio, funcionalismo público
e agricultura, das comidas tipicamente nordestinas (cuscuz, buchada, carne de bode,
macaxeira, queijo de coalho...). Os pontos de encontro da juventude ainda são as pracinhas
e barzinhos da cidade. Pena que esses momentos eu não pude vivenciar, pois saí dessa
cidade aos 6 anos de idade e fui morar na capital, Natal.
A vida no interior era difícil, meus pais sempre trabalharam muito para sustentar seus
quatro filhos. Minha mãe não trabalhava, e meu pai não tinha uma profissão certa. Ele
trabalhava com tudo que lhe aparecia, de agricultor a garçom. Até que surgiu uma possível
oportunidade para que meu pai viesse a ter melhores condições financeiras e dar uma vida
melhor para a nossa família. O cunhado da minha mãe tinha uma oficina em Natal e convidou
meu pai para trabalhar nela. Sem nenhuma experiência na área, mas com o desejo de melhorar
de vida, aceitou o convite e veio morar, sozinho, na capital.
Isso foi um tormento para mim, pois com apenas 5 anos de idade, me separei, pela
primeira vez, do meu querido pai. Chorei muito, apesar de no momento não saber, realmente,
* Graduanda em Pedagogia pela UFRN.
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Caminhadas de universitários de origem popular
que essa separação iria ser melhor para a nossa família. Nós passamos um ano e três meses
sem a presença cotidiana do chefe de casa, mas minha mãe foi quem assumiu esse papel e o
encarou com garra e dedicação, sempre nos ensinando o respeito a vida. A presença do meu
avô materno foi muito importante nesse período.
Ele era um homem valente, trabalhador. Um homem que sabia quando era hora de
brincar e hora de impor o respeito diante de seus filhos, netos, amigos e familiares. Um
agricultor que dava muita importância ao seu trabalho e esquecia de sua saúde, que é o mais
importante. Essa sua dedicação exaustiva ao trabalho, levou-o, aos setenta anos, a um
tormento que durou cerca de oito anos, e teve início quando fez uma cirurgia para amenizar
o problema de hérnia que já o atormentava há alguns anos. Quatro anos depois, passou dois
meses internado no Hospital Walfredo Gurgel, por problemas intestinais, provocado por
estar constantemente, exposto ao Sol. Ao sair do hospital, foi gradativamente esquecendo
das coisas e das pessoas.
Eu sentia uma tristeza grande quando chegava à sua casa e percebia que meu querido
avô não reconhecia a neta, que ia à feira com ele, que brincava em seu colo e passava boa
parte do tempo em sua casa. Ele morava na zona rural da cidade onde nasci, na fazenda
Riacho do Meio. Antes de vir morar em Natal, ia todo final de semana para lá. Lembro
quando chegava o sábado, acordávamos cedo, eu e meus irmãos, e íamos para a pista esperar
o carro do leite para pegarmos carona até a fazenda. Recordo-me que, durante a semana,
como estudava, não podia ir para lá, mas meu avô vinha todo o dia deixar o nosso leite, que
ele mesmo tirava fresquinho das vacas. No dia 28 de fevereiro de 2000, esse sofrimento teve
fim, veio a óbito o homem que muito trabalhou, sacrificou seus sonhos em favor dos seus
filhos e netos. Com muito carinho, dedicação e diálogo revestiu seus filhos de valores que
os transformaram em adultos responsáveis e conscientes.
Em junho de 1993, minha família se mudou de vez para Natal onde meu pai morava.
Após quatro horas de viagem, em um caminhão de mudança, chegamos à tão sonhada cidade
grande, e assim, nossa família estava completa outra vez. Meu pai já tinha alugado uma casa
para morarmos; esta, era pequena (éramos seis pessoas); tinha apenas uma sala, uma cozinha,
um quarto e um banheiro. A casa ficava localizada na zona norte dessa cidade, mais precisamente no bairro Pajuçara. Lá vivi durante nove anos, realizei sonhos, passei por momentos de
alegrias e tristezas, conheci pessoas maravilhosas que marcaram e fizeram parte da minha
história, e também me apaixonei pela primeira vez. Mas não foi tudo às mil maravilhas,
passamos momentos difíceis que só foram superados com muita fé e união familiar.
O estudo foi o bem mais valioso que meus pais sempre se esforçaram para nos
proporcionar. Apesar das condições financeiras insuficientes para nos colocarmos em boas
escolas, sempre nos incentivaram a estudar e esse esforço foi fundamental para o meu
desempenho escolar. Minha alfabetização se deu em casa por incentivo de minha mãe, que
me alfabetizou com a tradicional cartilha do abecedário, assim, ela saciava a minha curiosidade pelas letras. Quando fui à escola, pela primeira vez, aos cinco anos de idade, já sabia
ler e escrever, por exemplo, o meu nome. Minha alfabetizadora apesar de só ter cursado até a
antiga quinta série, ensinou seus quatro filhos a ler. Sua forma de ensinar não tinha métodos
científicos, mas certamente ajudou na nossa formação.
Recordo-me do caderninho em que fazia meus rabiscos. Quando chegava da escola
corria para ele, para mim o meu mundo se resumia naqueles riscos e escritos que nele fazia.
Não sei explicar o porquê, mas a escrita sempre me fascinou mais que a leitura. Anotava
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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tudo nesse caderno, não chegava a ser uma espécie de diário, pois, o que escrevia ia além de
histórias da minha vida, eu criava historinhas, gostava mais de fazer isso do que, simplesmente, relatar algo a respeito de mim.
A minha trajetória escolar iniciou-se ainda quando eu morava no interior. Fui para a
escola, pela primeira vez, aos cinco anos de idade, chamava-se Escola Estadual Abel Furtado.
Lá iniciei na pré-escola, mas, graças ao esforço da minha mãe de me ensinar, estava bastante
adiantada em relação aos outros alunos, assim, não cheguei a concluir essa série, e dessa
forma fui direto para primeira, aos seis anos, e me adaptei muito bem a esse nível. Dessa
série não tenho muitas recordações só lembro que minha professora se chamava Maria
Damiana e que as suas aulas eram de grande incentivo à prática da leitura. O motivo pelo
qual afirmo, isso é que ela nos levava para biblioteca, fazíamos diversos tipos de leituras,
produzíamos textos etc. Relembrando as suas aulas, o que mais admiro era sua criatividade
ao ministrar as aulas. Apesar dos precários recursos disponíveis na escola pública, ela
conseguia ultrapassar essas barreiras e fazia a diferença ao lecionar as suas aulas.
Quando vim para Natal, em 1993, fui estudar na Escola Estadual Cônego Luiz
Wanderley. Como me mudei no mês de junho, concluí a primeira série já em Natal. Essa
mudança de escola em termos de conteúdo didático não foi difícil acompanhar, pois, como
a escola também era estadual o nível não variou. Mas o que me afetou foi o lado afetivo,
pois tive dificuldades em me relacionar com a turma e senti o preconceito por ser do interior, como dizia Albert Einstein "Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um
preconceito". Além do mais sempre fui muito calada e tímida o que dificultou mais o
relacionamento, apesar disso consegui concluir a série e fui aprovada com ótimas notas.
Agora, já na segunda série, o meu envolvimento com a turma foi melhor, apesar da minha
timidez consegui fazer algumas amizades fortes e meu desempenho foi ainda melhor.
Creio que toda essa minha dedicação aos estudos desde cedo se deva ao apoio que
sempre tive dos meus pais, que apesar do pouco estudo, estiveram presentes ativamente em
minha trajetória escolar. Principalmente a minha mãe, pois, o meu pai trabalhava e só estava
em casa à noite, mas, apesar do cansaço ele fazia questão de saber como estava o nosso
desempenho escolar. Na primeira e segunda séries, era minha mãe que me auxiliava nos
exercícios escolares; nas séries seguintes, tive o auxílio dos meus irmãos mais velhos.
A quinta série foi marcada pela minha primeira nota vermelha, logo em matemática,
matéria que sempre gostei. Foi uma decepção! Sempre me esforcei tanto para aprender os
conteúdos e tirar boas notas... chorei com medo da reação dos meus pais e por tê-los decepcionado, mas minha mãe com paciência procurou junto ao professor o motivo da nota
baixa, e o meu pai nunca soube dessa nota. Ele não admitia que nós ficássemos em recuperação, nem tampouco fôssemos reprovados. Fiz outra prova e consegui recuperar a nota e o
mais importante aprendi o conteúdo. Na sexta série, tive algumas dificuldades, pois os
conteúdos ficavam cada vez mais complexos, e também a escola na qual estudava foi
atingida pela greve dos professores. Cerca de dois meses sem aulas. Na volta às aulas, um
acúmulo de conteúdo, alguns são passados; outros, deixados de lado por falta de tempo para
serem vistos.
Chegando à sétima série a dificuldade aumentava, pois o conteúdo não passado na
série anterior era exigido nesta, e agora? Meus professores, ao invés de trabalhar o conteúdo
da sétima, passavam o assunto que não foi visto na série anterior, porque era preciso para
podermos avançar. Outra vez a greve dos professores se fez presente, o que, conseqüente-
56
Caminhadas de universitários de origem popular
mente, dificultou a aprendizagem dos assuntos destinados à sétima série. Esse acúmulo de
conteúdos dificultou muito o meu aprendizado. Durante as greves, procurava revisar os
conteúdos trabalhados em sala e adiantava alguns que ainda não tinham sido trabalhados
pelo professor. Algo que me marcou na sétima série foi um concurso de redação que teve
na escola e o tema era o uso das drogas: o prêmio era troféu e medalha. Fiz uma ótima
redação e ainda consegui o terceiro lugar. Ganhei uma medalha, mas o que mais me
emocionou não foi a medalha, mas ver o brilho de felicidade nos olhos dos meus pais.
Na oitava, ano de conclusão do ensino fundamental, diziam que era a mais difícil e
que muita gente era reprovada. Felizmente, não foi o que aconteceu comigo: obtive boas
notas e consegui mais uma vez a minha aprovação, além de ter adquirido vários conhecimentos. Esse ano foi muito bom, pois, não teve greve. Apesar de todas as dificuldades
enfrentadas no ensino fundamental, consegui concluí-lo. O que me entristece é saber que
não tive uma base escolar muito boa o que, em parte, se refletirá no meu desempenho
acadêmico. Também me entristece mais ainda quando percebo que hoje, no mundo
informatizado com uma tecnologia avançadíssima, milhares de crianças e adolescentes que
estudam em escolas públicas ainda passam pelo mesmo problema que passei: falta de professores responsáveis com o aprendizado dos alunos, greves, precariedade nas estruturas
das escolas, inexistência de recursos didáticos entre outros.
O ensino médio estudei na Escola Estadual Professor Edgar Barbosa. Como no ensino
fundamental, o médio também foi atingido por algumas greves. A dificuldade agora não
está só nas greves. Nesse nível de ensino o governo não fornecia livros didáticos, os professores indicavam livros para serem comprados ou então, era à base da cópia mesmo. Como
não tinha condições para comprar os livros, tirava cópias, utilizava os da biblioteca da escola
ou tomava emprestado dos amigos. Como a escola ficava longe de casa, precisava pegar
ônibus, várias vezes faltava à aula por não ter dinheiro para pagar a passagem. No primeiro
ano do ensino médio, mais uma vez decepcionei os meus pais, tirei minha segunda nota
vermelha agora em português. Dessa vez meu pai ficou sabendo e foi na certa uma repreensão. Fiz a prova de novo e consegui recuperar a nota. Sentia muitas dificuldades para
compreender os conteúdos, pois muita coisa que os professores estavam passando nunca
tinha visto, principalmente, nas disciplinas de física e química com as quais estava tendo
contato pela primeira vez. Na disciplina de matemática não tive muita dificuldade; já na de
português, sofri um pouco para aprender porque no ensino fundamental mal tive professor
de português. Apesar dessas dificuldades, fui aprovada para o segundo ano. Nesse, sofremos
com as greves e com a falta de professor fixo para a disciplina de física, mas aprendi alguns
conteúdos em casa com a ajuda de meu irmão Érico que já estava na universidade cursando
Engenharia Elétrica.
O ano de 2003, era o ano das decisões e de conclusão do ensino médio. Na escola, os
professores tentavam passar um conteúdo direcionado para o vestibular. Meus colegas só
falavam nas provas do vestibular da UFRN, tinha uma amiga que já fazia cursinho preparatório para o vestibular. Em casa, meus pais não me pressionavam, só diziam para eu fazer a
escolha que achasse melhor, mas eu sentia que eles sonhavam com mais um filho na universidade. E agora? Chegou o dia da inscrição do vestibular, os meus amigos se inscreveram e
eu resolvi não fazer vestibular naquele ano de conclusão. Meus pais em nenhum momento
ficaram contra minha atitude, expliquei que não me sentia preparada e que no ano seguinte
à minha conclusão do ensino médio eu faria. Adorava a minha turma, do ensino médio, com
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
57
ela percorri uma longa trajetória, amadureci muito, passamos momentos de luta, decepções
e brincadeiras. Fiquei triste em não poder participar da festa de formatura, porque meu pai
estava desempregado e não tinha como pagar a despesa da festa.
Em 2004, estava decidida a fazer a prova do vestibular, mas para que curso? Fiquei em
dúvida entre Psicologia e Pedagogia, mas no dia da inscrição coloquei para História e, o
motivo foi a concorrência que era baixa em comparação aos outros dois que estava em
dúvida. Pensava que, como era meu primeiro vestibular, deveria escolher um menos concorrido, também porque não tinha estudado tanto o necessário para enfrentar o concorrido
vestibular da UFRN. Vestibular esse meritocrático que não leva em consideração as origens
dos vestibulandos de camada popular. Fiz as provas e em janeiro de 2005, anuncia-se a lista
dos aprovados no vestibular e dos meus olhos uma lágrima de tristeza escorre ao não ver o
meu nome naquela lista. Minha família, como sempre, nos momentos difíceis me apoiou e
ajudou a vencer os obstáculos. Depois de algumas reflexões, não pensei nesse momento
difícil como o fim do mundo, e sim como mais um obstáculo a ser superado, pois foi nesse
momento difícil que consegui crescer.
Agora, em 2005, decidida realmente que queria fazer vestibular para Pedagogia comecei
a dedicação aos estudos. Tinha algumas apostilas de cursinho cedidas por um primo e uma
amiga, algumas provas anteriores de vestibulares, além de alguns livros didáticos de Física,
Química, Matemática, Português e Biologia. Fui atrás de uma bolsa de desconto para cursinho,
consegui uma em um dos melhores de Natal. A mensalidade ficava cinqüenta reais mais
oitenta do material, fora o gasto com transporte. Como nessa época meus irmãos estavam
trabalhando, eles se juntaram e pagaram o meu cursinho, porque se fosse só com o salário
mínimo de meu pai não teria condições de fazer esse preparatório.
Comecei a me dedicar mais, pois teria que passar naquele ano, não poderia deixar essa
chance passar. Eu ia todos os dias para o cursinho, prestava atenção às aulas e estudava em
casa até tarde da noite e não perdia os aulões. Quando foi chegando o mês de agosto tinha
aula de segunda a domingo, e eu não perdia. Senti muitas dificuldades, pois tinha conteúdos
que eu não tinha estudado e teria que estudá-los, além de revisar o que já tinha visto, isso em
menos de um ano. Quantas noites cansadas e tantas coisas que gostava de fazer tive de
abdicar em nome do sonho de entrar numa Universidade!
Nos dias 27 a 30 de novembro de 2005, dias da prova do vestibular, todo aquele
cansaço transformou-se em força para ir os quatro dias com a segurança de que tinha feito
boas provas e com a esperança de um resultado positivo. E no último dia de prova, estava
com uma vontade enorme de tomar aquele banho de mar que ficou adiado durante todo o
ano. Terminado o período de provas e a certeza de missão cumprida, agora é só aguardar o
resultado! No mês de dezembro de 2005, saiu o resultado da primeira fase (provas objetivas). Um obstáculo foi superado: passei nessa fase na quadragésima segunda posição. A
realização de um sonho depende da dedicação e disso tinha certeza.
Um mês depois, já em 2006, saiu a lista do resultado final, agora é tudo ou nada.
Estavam em casa eu, meu irmão e minha irmã. A lista sai primeiro na televisão, por volta das
11h. Como meu curso é na área de Humanas, não demora tanto, mas a minha ansiedade era
tanta que não esperei o resultado pela televisão, liguei logo o computador e olhei a lista
pela internet. Meus dedos corriam pela tela do computador até chegar à letra "e", quando vi
o meu nome na lista dos aprovados no vestibular da UFRN. Dos meus olhos escorreu uma
lágrima de alegria seguida de muitos pulos e abraços em meus irmãos. Poucos minutos
58
Caminhadas de universitários de origem popular
depois, saiu na televisão o meu nome, e a emoção foi maior, meus vizinhos vinham me dar
parabéns e eu chorando agradecia. Não esperei minha mãe chegar em casa, liguei para ela
contando da aprovação. À noite quando meu pai chegou do trabalho, pude ver em seus
olhos a alegria que estava sentindo com a minha aprovação. Ainda fiquei mais contente
quando soube que minha posição tinha sido a décima, isso significava que iria entrar já no
primeiro semestre.
Vivemos numa sociedade dividida em classes, onde uma minoria tem certos privilégios, impedindo que a maioria usufrua dos bens produzidos, e entre esses bens está a educação da qual é excluída grande parte da população. Digo isso porque vivencio essa opressão
presente no sistema educacional brasileiro. Consciente disso, encontrei no curso de Pedagogia um meio para lutar por uma educação que vise à formação de cidadãos conscientes dos
seus direitos, capazes de criticar e de atuar, ativamente, na sociedade. Ratifico isso com as
palavras de Paulo Freire: "Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo,
torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o
sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela
tampouco a sociedade muda".
O sonho de entrar na UFRN foi realizado. E agora? Como custear os estudos? Gastos
virão com materiais, alimentação e transporte. Como meu irmão já estudava na Universidade,
foi me dando algumas orientações, dizendo para ficar atenta às vagas de bolsas, e até mesmo
me auxiliando financeiramente. Entrar na Universidade, trouxe muitas esperanças e experiências que muitas vezes não são valorizadas e incorporadas ao saber crítico solicitado por ela.
Inicialmente, senti muita dificuldade em me expressar, em falar em público e em expor as
minhas idéias. Ações bastante exigidas no curso de Pedagogia, pois fazemos muitos
seminários e exposições orais.
Só posso resumir o ano de 2006 como sendo o "ano das realizações", pois nesse ano
além de ter entrado na universidade, consegui, ainda, no primeiro período, inscrever-me
para uma oferta de bolsas no Programa Conexões de Saberes. Uma dessas vagas tinha que
ser minha, e assim foi: consegui ser selecionada para o Programa. Este tem garantido a
minha permanência na Universidade e também está possibilitando uma experiência
inigualável que é a atuação na extensão permitindo uma conexão de saberes entre a Universidade (saber científico) e as comunidades populares (saber popular). Para mim, a extensão
e a conexão é transferir o que se sabe e aprender o que se ensina. E esse aprender é o que,
como diria Anísio Teixeira, refaz e organiza nossa vida.
Nunca me esqueci do seguinte conselho dos meus pais: "meus filhos, a única coisa
que posso oferecer de valor a vocês é o estudo, então o agarre com força e coragem, pois só
este fará de vocês pessoas felizes e com ele vocês poderão vencer na vida e realizar todos os
seus sonhos". Esse conselho me acompanha até hoje, e sem sombra de dúvida é o que me
fortifica para ultrapassar todas as barreiras e fazer de mim uma pessoa vitoriosa.
Estou vencendo graças, primeiramente, a Deus que me deu sabedoria para aprender
e discernir; segundo, ao esforço dos meus pais que iluminou o meu caminho com a luz
mais brilhante que puderam encontrar que é o estudo e, também, passaram para mim
valores de humildade, honestidade, dignidade e religiosidade que me transformou em
uma adulta responsável e consciente; terceiro, a minha vontade de aprender. Sigo, digamos,
uma vida simples, mas, acima de tudo, de muitas lutas, vitórias e derrotas, enfim, estou
vencendo na vida...
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
59
Da minha vida, do meu caminho,
das minhas escolhas
Fábia Misiara Dias da Silva*
Palavras apenas, palavras
Pequenas, palavras
Momentos
Marisa Monte / Morais Moreira
Particularmente falando
Quando nasci em 19 de novembro, meus pais moravam no interior em São Paulo do
Potengi, mas por falta de oportunidade de emprego, tiveram que ir morar em Natal, mas eu
não pude ir com eles, pois era pequena, então fiquei morando com meus avós maternos até
os três anos de idade. Depois desses três anos, vim morar em Natal com meus pais. Morávamos
em uma pequena casa nos fundos do quintal da casa dos meus avós paternos e, só depois de
seis anos, meu pai pôde financiar a nossa casa própria, que ficava no conjunto vizinho ao
que meus avós paternos moravam. Eu estava "louquinha" para ver a casa e, finalmente, fui
conhecê-la: era uma pequena casa que tinha apenas um quarto, uma sala, um banheiro e
uma cozinha bem pequenina. Até o quintal era minúsculo, mas para mim isso não tinha
importância, pois a casa era nossa. Fiquei feliz com ela, pois agora eu podia dizer que era
minha casa.
Fiz muitos amigos, e um desses amigos era especial, mas eu não sabia o porquê disso,
só sabia que gostava de conversar com ele e de sua companhia. Apesar de gostar muito dele,
hoje não mais estamos juntos. Foi muito difícil para mim, mas "felizmente" eu iria voltar
para São Paulo do Potengi e assim seria mais fácil esquecê-lo. Como fui tola ao pensar que
a distância me faria esquecê-lo!!! Eu não acreditava que isso estava acontecendo! Como
pode ser? Mas por quê? Na minha cabeça havia várias perguntas, mas eu não conseguia
encontrá-las. Depois de seis meses, eu pude ir ver minhas amigas e pude vê-lo também. Foi
emocionante, meu coração disparou, eu não me agüentava de pé, mas depois desse dia, eu
percebi que ele não era o mesmo, que o tempo o tinha feito mudar.
Por alguns meses eu consegui esquecê-lo, eu não sei se por não termos mais contato ou
porque a vida fez com que eu me preocupasse com coisas mais importantes. Um acontecimento triste em minha vida foi o falecimento do meu avô paterno em junho de 2005. Parece
até que pressenti, pois na noite anterior eu senti meu coração bem apertadinho, como se
alguém estivesse esmagando-o. Mas hoje já estou conformada, pois sei que de onde ele
estiver, estará nos abençoando.
* Graduanda em Estatística pela UFRN.
60
Caminhadas de universitários de origem popular
Como tudo começou na vida acadêmica
Comecei a estudar com quatro anos de idade. A primeira escola foi o Jardim Escola
João e Maria, lá estudei até a quarta série. Depois estudei no Centro Educacional Andorinha
onde fiz a quinta e sexta séries. Foram dois anos muito bons, pois fiz muitos amigos e, em
especial, uma amiga que reencontrei depois de 10 anos, aqui no Conexões. Fiz a sétima e
oitava série, na Escola Estadual Augusto Severo. Durante a oitava série eu estudava para
fazer o processo seletivo do CEFET (Centro Federal de Educação Tecnológica). Lá eu iria
fazer o ensino médio e o curso técnico, infelizmente, só passei no técnico. Com isso, fiz o
ensino médio na Escola Estadual Desembargador Floriano Cavalcanti. Terminei o segundo
grau em 2001 e o curso técnico em 2002. Apenas depois de dois anos do término do ensino
médio, pude fazer meu primeiro vestibular.
Felizmente consegui a taxa de isenção, assim pude fazer o vestibular sem pagar inscrição.
Consegui a isenção três anos consecutivos. Meu primeiro vestibular foi para Fisioterapia, o
segundo para Ciências Contábeis e o último para Estatística. Hoje, eu vejo que passei no
curso certo, pelo menos em relação aos três que tentei. Minha preocupação era onde eu iria
morar em Natal? Como iria me manter, já que meus pais não tinham condições e eu nem
tinha emprego? Quando a "ficha caiu", percebi que esse era mais um desafio. Foram dez
meses de sofrimento, pois era muito cansativo ir e vir todos os dias de São Paulo do Potengi.
Quando foi mais ou menos no mês de agosto, um ''anjo'' apareceu na minha vida. Um
"anjo" que, apesar de não me conhecer direito, chamou-me para ir dormir em sua casa
quando eu precisasse. Assim, eu poderia fazer o curso tranqüilamente, pelo menos um
pouco mais aliviada.
No segundo semestre, tentei a residência, que era um lugar onde poderia morar e fazer
as refeições diárias. O resultado saiu e eu tinha ficado na espera, em quarta colocação. Em
novembro, a Assistente Social me chamou e disse que eu já poderia ir para a residência. A
partir desse mês, ficou mais fácil para mim, pois eu teria mais tempo para estudar. Hoje,
estou no terceiro período do curso de Estatística e se Deus permitir, irei concluí-lo.
O Conexões na minha vida
Fiquei sabendo da inscrição para o processo seletivo do Conexões de Saberes por
intermédio da coordenadora do meu curso. Ela foi até à sala de aula e disse que tinha que
falar com alguns alunos, citou o nome de oito alunos e dentre eles estava o meu. Até o
momento não sabia o que era o Conexões. Depois, ela explicou que era um projeto que
viabiliza o acesso e permanência na universidade pública de jovens oriundos de escola
pública e/ou comunidades populares. Eu tinha uma semana para providenciar os documentos
para a inscrição. Não foi difícil, pois ainda morava no interior e como eu ia e vinha todos os
dias, consegui organizar quase todos os documentos em apenas um dia. O único que deu
trabalho para conseguir foi a declaração da minha participação em algum projeto social.
Graças a Deus e a meu irmão, que ficou até 1 h da manhã em frente à casa do padre para que
ele assinasse a declaração, eu consegui comprovar essa atividade. Ainda bem que o sobrinho
do padre é amigo do meu irmão e acabou fazendo companhia a ele, pois o padre estava
viajando e só iria chegar tarde da noite.
Depois de dois meses, o resultado saiu. No início de julho de 2006, participei da
primeira reunião. Foi nessa reunião que eu conheci todos os bolsistas e professores que
iriam fazer parte do projeto Conexões de Saberes. Em agosto, foram apresentados alguns
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
61
projetos de extensão para que pudéssemos escolher um. Escolhi o "Universidades Cidadãs".
Esse projeto tem o objetivo de ajudar o assentamento "José Rodrigues Sobrinho", que fica
no interior de Nova Cruz. Nele eu atuo como professora do EJA (Educação de Jovens e
Adultos) e tenho a ajuda de uma monitora que se chama Maria Aparecida que mora no
próprio assentamento. Só percebi a grandiosidade desse projeto depois do Seminário
Nacional do Conexões de Saberes, que aconteceu no Rio de Janeiro em novembro de 2006.
Foi ótimo, pois pude adquirir muita experiência, pois lá vi a fundo as propostas do
Conexões e vi que para conseguir algo na vida só depende de nós, estudantes de origem
popular. Hoje vejo que é muito gratificante ver todos aqueles rostinhos ao chegarmos ao
assentamento. Eles são muito esforçados e fazem com que nós tenhamos mais garra para
continuar o trabalho. Eu só tenho que agradecer a todos eles que moram no assentamento
ou cidades vizinhas, pois sem eles nós não poderíamos dar as aulas e nem poderíamos
colaborar com a comunidade.
Agradecimentos
Muito obrigado a todos, porque sem vocês eu não poderia fazer o meu trabalho.
Agradeço a minha família, aos meus amigos que moram em São Paulo do Potengi; a minha
turma de Estatística 2006, aos que participam do Conexões (principalmente as professoras).
Não posso esquecer-me de agradecer aos meus alunos do assentamento onde trabalho e
agradecer em especial a um anjo (Luana), pois se não fosse por ela eu não teria conseguido
participar do Conexões. Agradeço também às meninas que moram comigo na residência
universitária, pois elas me ajudam na vida acadêmica.
Não se esqueçam: para vocês terem um futuro melhor precisam estudar e seguir seus
sonhos, pois eles só poderão ser realizados se persistirem e acreditarem em vocês mesmos...
Eu não poderia de deixar de agradecer a todos que me ajudaram nesta minha trajetória.
Não posso citar nomes, pois daria umas três ou mais folhas, mas todos eles sabem a
importância que cada um teve ou tem na minha vida!
Muito obrigada!
62
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha vida em contínua construção...
Fabiana Alves dos Santos*
E até lá, vamos viver
Temos muito ainda por fazer
Não olhe para trás
Apenas começamos...
Renato Russo
Um pouco sobre mim...
Demorei tanto imaginando uma forma de começar a contar a minha saga, que resolvi
iniciá-la revelando essa dificuldade para vocês. Eu estava com medo de parecer chata,
falando que nasci em Parelhas-RN, dia 26 de maio de 1988, que meu nome não tem uma
origem lógica e que eu sou a mais nova de três filhas... isso seria muito sem graça!
Então, depois de tanto pensar: aqui está meu começo de história! Está um pouco sem
nexo, mas continuemos...
Sempre fui muito tímida, tinha vergonha de tudo. Lembro que quando comecei a
estudar, gostava que meu pai me levasse para a escola porque ele me deixava na porta da
sala de aula, ao contrário da minha mãe que não passava do portão da escola. Mas o mais
importante é que, acreditem se quiser, essa vergonha toda é responsável pelo meu sucesso
estudantil. É isso mesmo que vocês acabaram de ler: minha timidez me ajudou demais. Isso
porque eu tinha tanta vergonha de perguntar qualquer coisa à professora, que fazia de tudo
para não ter dúvidas, prestava atenção a tudo que ela falava, não conversava com ninguém.
Era esse meu "segredinho".
Estudei na mesma escola, da primeira série do primário até o terceiro ano do ensino
médio. Isso fez com que eu ficasse conhecida entre os professores e até por alguns
funcionários lá da escola: quase todos gostavam de mim e reconheciam minha capacidade.
De forma indireta, toda essa relação de amizade com meus mestres me deixou mal acostumada. Quando entrei no ensino médio, tive que começar a conviver com professores
novos, já que tinham matérias também novas. Eram eles, os professores de Química e
Física. Tentei logo ganhar a confiança deles. Com o professor de Física não foi tão difícil,
ele na realidade era formado em Matemática (peculiaridades de escola pública) e, mesmo
tendo fama de reprovador, eu me saí relativamente bem na disciplina. O problema mesmo
era com o professor de Química. Minha vontade de ser reconhecida por ele era tanta que
tive a ousadia de me inscrever para as Olimpíadas de Química do Rio Grande do Norte.
* Graduanda em Engenharia Civil pela UFRN.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
63
Fiz a prova e, para a surpresa de todos, fui classificada. Fiquei em sétimo lugar no estado,
assim como um colega meu. Fomos os únicos estudantes de escola pública que se classificaram nessas olimpíadas. Depois disso, meu professor começou a me chamar até de
"doutora". Quem diria!
Mas por favor, não pensem que eu sou uma "CDF" chata, que vive de estudar e tal,
pelo contrário, nunca fui a melhor da sala e também nunca tive de abdicar das minhas
diversões por causa dos estudos.
Algumas realizações...
Em 2004, quando fazia o segundo ano, fui selecionada para estagiar no TRE-RN da
minha cidade. Era ano de eleições e o CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola),
procurava estudantes com bom desempenho nos estudos para participar de uma experiência
de trabalho. E adivinha quem foi selecionada? Eu! Ah, foi muito bom, aprendi toda a
sistemática do processo de votação. E, para quem não sabe, organizar uma eleição dá
bastante trabalho!
Eu confesso que tive de fazer um esforço tremendo para não me dar mal no colégio, até
porque, com o dinheiro que eu ganhava da bolsa, comecei a freqüentar aulas de informática
e ainda participava de um grupo de dança.
Foi muito difícil conseguir tempo para estudar. Eu aproveitava os horários vagos
entre uma atividade e outra, mas não deixava de jeito nenhum os meus "livrinhos" de lado.
Eu tenho a impressão de que essa foi a época em que eu mais aproveitei os meus estudos,
deve ser porque eu trabalho melhor quando estou sob pressão. Ainda hoje, na Universidade,
deixo para fazer trabalhos de última hora (crianças, não façam isso em casa!).
Mas o presente ainda não nos interessa, voltemos à história...
A decisão...
O ano de 2005 começa, minha bolsa acaba e surge outra preocupação: o Vestibular.
Para falar a verdade, eu não pensava em fazer vestibular para Engenharia Civil. Como eu
sou do interior e na minha cidade não tem universidade, imaginava fazer algum curso
oferecido pelo CERES (UFRN de Caicó/RN, uma cidade próxima a minha). Ainda não tinha
passado pela minha cabeça morar em Natal, pois essa era uma realidade muito distante para
mim, já que meu pai ganhava, e ainda ganha muito pouco trabalhando como eletricista.
Sabia que seria quase impossível sair da minha cidade e estudar na capital.
Na época em que essa dúvida pairava em minha mente, tive a influência de uma amiga
que fazia o curso de Física. Ela me convenceu de que Física é a melhor ciência do mundo,
e que eu deveria fazer o mesmo curso que ela. Eu simplesmente me apaixonei pela matéria.
Nesse mesmo período, havia uma casa em construção bem em frente a minha residência. Eu
passava o dia observando aqueles homens trabalhando, dos quais a maioria não tinha
sequer o diploma de ensino médio. O que mais me intrigava era que para levantar aquelas
paredes, tais homens se utilizavam de vários conceitos de Física. Incrível! "Mãe, já tomei
minha decisão, vou ser pedreira!".
É claro que eu falei isso de brincadeira, mas é bem verdade que estava decidida a me
envolver com essa área, tanto que decidi fazer o vestibular e tentar uma vaga no curso de
Engenharia Civil da UFRN. Pronto, foi tomada a minha decisão. Agora era só estudar para
as matérias mais importantes e esperar o grande dia.
64
Caminhadas de universitários de origem popular
Mais correria...
Logo no início do ano, assisti a umas aulas de Física e Química com um amigo meu.
Essas aulas duraram aproximadamente um mês e meio e foram, sem dúvida, meu grande
impulso. Depois disso, comecei a estudar por conta própria, freqüentava a biblioteca de
minha cidade de segunda a sexta. Estava decidida a passar, e não media esforços para isso.
Paralelamente ao vestibular, surgiu na minha escola a oportunidade de fazer as primeiras Olimpíadas Brasileiras de Matemática das Escolas Públicas. Não estudei para fazê-las,
afinal já tinha estudado muito Matemática, pensando no vestibular. As provas das olimpíadas
foram realizadas no mês de junho e, para variar, eu as fiz.
Em novembro saiu o resultado e eu havia me classificado. Ganhei medalha de prata e,
com isso, uma bolsa de iniciação científica pelo CNPq. Fiquei feliz demais! Foi em novembro também que fiz o tão esperado vestibular. Gostei muito das provas e estava todo mundo
confiando em mim.
O resultado da primeira fase do vestibular saiu bem cedo e minha posição parcial foi
14ª. A partir daí, minha mãe já começou a providenciar minha partida para Natal, mas sem
exageros. Todo mundo tinha a certeza de que eu iria passar, mais do que eu até, afinal, meu
curso oferecia 100 vagas e seria muito azar cair todas essas posições na segunda fase.
Em janeiro de 2006 saiu o resultado final. "Passei!" E em 12º lugar... Eu fiquei feliz,
mas também muito preocupada, afinal nunca tinha passado sequer um mês longe da minha
família, por isso tive muito medo de desistir e querer voltar para casa. Nos primeiros três
meses de curso, tive que morar na casa de um tio, numa cidade chamada Parnamirim, situada
na grande Natal. Foi muito difícil me acostumar a tudo isso, mas mais difícil ainda foi ter
que sair de lá. Em maio desse mesmo ano, consegui uma vaga na residência universitária,
confesso que eu estava cansada de tanta mudança! Mas como sabemos, o costume vem com
o tempo e, agora, as meninas da residência são minha família. Estou muito feliz aqui!
A bolsa do Conexões de Saberes veio em junho e trouxe muita coisa boa. Tenho
certeza de que meus pais não teriam conseguido me manter aqui em Natal até agora, sem a
ajuda da bolsa. Além disso, aprendi que, independente do seu curso, é muito importante
para todos, atentar para as causas sociais e que tudo nessa vida é uma questão de oportunidade. Eu recebi a minha e pretendo lutar para que outras pessoas de origem popular como
eu, possam ter também a sua oportunidade.
Agradecimentos...
Tenho muito que agradecer, principalmente à minha família linda, que sempre me deu
apoio e que sem ela não teria condições financeiras e psicológicas de chegar até aqui; ao meu
querido amigo Honorato que, não tenho vergonha de dizer, foi o maior colaborador para a
minha aprovação no vestibular; às minhas amigas Fafá, Basília e Lalá, que sempre me acompanharam nas tão rotineiras visitas à biblioteca; aos meus queridos professores de uma vida
inteira, Rita, Marizete, Expedito, entre outros; ao meu tio Tutu e a sua família, que eu amo
demais e que me deram casa, comida e muito carinho; a minha amiga Klívia, que me ajudou a
gostar de Física e que me auxilia muito aqui em Natal; às meninas da residência, que são minhas
amigas para todas as horas; a todos os amigos que acreditaram em mim; ao meu namorado
querido Jânio, que é um exemplo de perseverança e que nunca me deixa desistir dos meus
ideais; e a Deus, responsável por colocar todas essas pessoas maravilhosas no meu caminho.
Vocês foram e continuam sendo minha força. Eu não vivo sem vocês!
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Conto minha história com orgulho
Francisco Gilberto Silva de Oliveira*
Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não pára...
Será que é tempo que lhe falta prá perceber?
Será que temos esse tempo prá perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara (tão rara)...
Lenine e Dudu Falcão
Não parto do princípio de contar aqui quem sou, mas de fazer uma reflexão acerca do
que vivi. Não que isso deva ser usado como lição de vida, mas sirva de inspiração e ânimo
para quem luta por seus objetivos, e também para aqueles que pensam que pobre nasceu
para ser pobre e, portanto, deve contentar-se em não progredir. É impressionante como as
coisas se realizam! Tentarei mostrar, por meio de minha trajetória, que difícil é bem diferente
de impossível, se é que existe algo do tipo para quem acredita em Deus. Considero ótimas
todas as experiências que vivenciei, pois sempre fica o aprendizado e uma lição de vida.
Lápis de cor, bicicleta, bombom... Eu vejo o relógio acelerar pra trás
Angélica
Nasci na cidade de Lagoa Nova, interior do Rio Grande do Norte, aos 12 de junho de
1985. Ano de abertura para novos horizontes: o Brasil entra no processo de redemocratização,
após a ditadura militar. Importantes descobertas e avanços no campo científico: nascem, em
Paris, os primeiros trigêmeos de proveta e os médicos conseguem, pela primeira vez, trocar
o sangue de um feto por meio de uma transfusão intra-uterina. Fenômenos naturais "remexem", literalmente, o planeta: um terremoto de 8,1 graus na escala de Richter destrói um
terço dos edifícios da cidade do México, além da erupção do vulcão Nevada Del Ruiz na
Colômbia e do ciclone que arrasou Bangladesh. Tem início o mega evento Rock in Rio, no
Rio de Janeiro. Os Estados Unidos e a China firmam acordo de colaboração nuclear para
fins pacíficos. Esse é o ano internacional da juventude, e aquele em que a novela Roque
Santeiro estreou e alcançou algo próximo a 100 pontos no Ibope, sendo assistida por mais
*
Graduando em Jornalismo pela UFRN.
66
Caminhadas de universitários de origem popular
de 60 milhões de telespectadores. Também nesse ano o cometa Halley passa, próximo à
Terra, pela segunda vez no século XX.
Usufruí de uma infância memorável, talvez tudo seja memorável quando vivido intensamente. Não foi nada do outro mundo. Eu brincava com os amigos e adorava estudar. Não via
a hora de ir para a escola. Eis aqui talvez um dos primeiros segredos para a felicidade (que eu
vou contar só para você, estimado leitor), afinal de contas, eu sou o cara mais feliz do mundo,
um dos segredos é: gostar do que faço. Fazer as coisas com prazer e não por obrigação, porque
se foi por um dever, este torna-se um martírio que, no final das contas, só vai prejudicar você
mesmo. Então, quer ser feliz? Faça o que lhe faz sentir bem. O resto é resto.
Posso me considerar um bom aluno, o que não me isenta das briguinhas na saída do
colégio, na pré-escola! Brinquei de tudo. E como é bom ser criança, como é bom poder viver
em um mundo lúdico de fantasias sem preocupações. As saudades da infância são memoráveis: a casa em que morava, os brinquedos, o dia de feira, estórias que meus pais contavam,
o sítio da minha tia, a casa de vovó e vovô, a cidade de brinquedos que construí embaixo do
cajueiro do quintal, as festinhas com a meninada da rua, esquecer do que ia comprar no
supermercado, quando chegava lá, ou ter que repetir durante todo caminho, a inexplicável
emoção do primeiro dia de aula, a primeira colação de grau, o xixi na roupa pra não perder
o tempo do intervalo indo ao banheiro, a primeira peça teatral (na qual eu era o Sol)...
E eu que achava que isso tudo era muito sem graça... Hoje vejo o quanto foi legal.
Cada momento em nossa vida é interessante o suficiente se vividos realmente. Por isso,
como dizem alguns "a vida é agora", é só aproveitar a dádiva do presente. O grande barato
de nossas vidas é o conjunto simétrico e harmonioso que Deus, na sua plena onipotência,
nos permite desfrutar. Felicidade não é um lugar comum, é um processo contínuo. Não é
algo que estará pronto em um lugar à sua espera nem depende apenas de um fator. É para
ser vivida. Ela deve ser contemplada no ápice da simplicidade. Enfim, sentir essa
maravilhosa emoção de sentir-se renovado a cada novo dia, pois "ser feliz não tem preço".
A vida tão simples é boa, quase sempre...
Ana Carolina
Então lembro de outro segredo da felicidade: as pessoas que nos inspiram a
sermos melhores, nossos ídolos! Os da infância talvez sejam o meu pai e meu irmão. O
primeiro, pelo famoso estereótipo do pai herói; e o segundo, como companheiro fiel de
aventuras. Na transição entre a infância e a adolescência algumas coisas mudaram: com
a separação dos meus pais, tivemos que mudar de casa e eu fiquei praticamente morando
com meus avôs maternos Antônia e Vivaldo (esses juntamente com minha mãe, Lourdes,
são ídolos da vida toda).
Minha mãe, minha tia e meu irmão, depois eu, também fomos morar em outro bairro
(genuinamente de origem popular) no qual vivi até a entrada na universidade. Esse espaço
no qual vivi cerca de 60% da minha vida, é hoje um lugar com elevado risco social. Detém
altos índices de prostituição e analfabetismo, em nível regional. Os humildes moradores de
lá são boas pessoas, às vezes, fadadas à mesmice e humilhações a que são submetidas todos
os dias devido à desigualdade social. Para elas, a única opção de renda que lhes é apresentada, fora a ajuda assistencialista do governo federal, é o sacrificante, sub-humano e quase
escravo, trabalho em casas de farinha ou na roça.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
67
Na escola, principalmente, no ensino fundamental, era da turma que sempre estava à
frente. Tenho também ótimas lembranças dessa época. Meus professores eram grandes
inspiradores. A escola onde estudei desde a pré-escola, foi palco dessa algazarra toda.
Aprontei com os amigos da escola muitas aventuras, vivíamos inventando moda na hora de
apresentar os trabalhos, que eram cada vez mais criativos e caprichados. A relação com os
professores era de parceria mesmo, de amizade. Durante esse período, apresentamos um
verdadeiro festival de peças teatrais. Eu as escrevia e todos se juntavam para dar vida aos
textos. Era muito divertido, pois ensaiávamos no meio da rua, na praça, nas calçadas...
algazarra inesquecível. Não podia ser melhor: estudar e se divertir. Sempre adorei ler, e, na
oitava série, era um dos leitores mais assíduos nas bibliotecas da escola e da cidade!
Afinal de contas, aprender é minha grande paixão. Recordo-me de dormir na casa dos
meus avós e ficar até tarde lendo, muitas vezes, o mesmo livro ou revista e sonhando com a
vida. Continuamente, busquei o lado positivo de tudo, pois sempre tento me colocar no
lugar do outro e sentir se determinadas atitudes eram pertinentes. Outras vezes, também,
conheci o outro lado da história e, assim, pude entender melhor várias coisas.
Quando estava no finalzinho da 6ª série, entrei para o grupo de jovens da igreja. Foi
uma experiência muito proveitosa para minha formação humana, porque nesses grupos
pude aprender muitas coisas relevantes para qualquer ser humano e aprendi, também, um
monte de "coisa" que não julgava correto. Mas ao longo do tempo construí minha autonomia
para saber o que era coerente ou não fazer. Sou católico, mas nem por isso concordo piamente
com o que a igreja prescreve.
Pois sei que para além das nuvens o Sol não deixou de brilhar só
porque a terra escureceu...
Kleber Lucas
Quando entrei no ensino médio, havia uma única escola que atendia à demanda da
cidade, e não poderia se diferente das demais do estado: superlotação das salas, falta de
professores para algumas disciplinas, horários reduzidos. Os professores procuravam dar o
melhor de si, em meio àquela precariedade toda. Hoje, esse problema continua e está ainda
pior, está em "evolução". Em 2001, quando comecei a cursar o 1º ano surgiu uma oportunidade de emprego, por isso, passei a estudar à noite. A escola não oferecia as melhores condições
como já falei e também não era interessante passar o dia trabalhando. Minha rotina era sair de
lá, passar em casa para jantar, tomar banho e ir pra aula. Mas foi uma experiência de imensurável
valia para minha vida, pois além de fazer algo com o qual me sentia útil, podia ainda, ganhar
um dinheirinho e até ajudar em casa. Minha mãe, separada do meu pai, era quem batalhava
para que nada faltasse em casa e foi um prazer poder contribuir, mesmo que de uma forma
pequena, para que a responsabilidade não recaísse toda sobre ela. Trabalhar de certa forma
limitava minha vida estudantil, pois só podia estudar na escola e sozinho nas horinhas vagas
do trabalho. Às vezes, o cansaço me desestimulava. Os amigos com quem eu queria continuar
compartilhando emoções estudavam à tarde.
Os problemas, quando superados, parecem pequenos e inofensivos e na verdade são,
nós é que as vezes damos importância demais a eles. É muito importante, nesses momentos,
poder contar com alguém, que mesmo sem que você fale sobre suas angústias compreende
e dá aconchego. Eu felizmente posso contar com pessoas assim!
68
Caminhadas de universitários de origem popular
É muito importante para o nosso crescimento, tanto pessoal como profissional,
diferenciais como ir além do que apenas nos é oferecido. Pensando assim, consegui superar
as péssimas condições da escola pública, a preocupação com comida, o que fazer para comprar o material. Isso sim é que é mérito. Driblar toda essas desigualdades. Isso sim é conquista!
Recordo-me, ainda, de muitas atividades legais que participei: movimentações das
datas comemorativas, quadrilhas juninas, espetáculos teatrais, concursos literários, campanhas
sociais entre outras.
Em 2002, finalmente pude estudar à tarde. Foi tudo muito legal, mas agora já não tinha
emprego. Foi o tempo em que minha mãe decidiu trabalhar fora e era eu quem tomava conta
da casa pela manhã. Mesmo sendo humilde, nunca precisei deixar de fazer algo por falta de
recursos. Minha família, meu orgulho, nunca me deixou faltar nada e se algumas coisas
tinham que ser limitadas eles sempre me ensinaram a lidar com isso. A gratidão e o orgulho são
tão grandes que palavras não são suficientes para expressá-las. Se, como dizem, família a gente
não escolhe, eu sou infinitamente grato a Deus por ter me dado a melhor família do mundo!!!
Para concluir o ensino médio, não foi fácil também. A estrutura da escola não comportava o número de alunos existentes, além do que faltavam professores. Antes (2001 e 2002), a
prefeitura cedia uma escola municipal, recém comprada, como anexo, mas em 2003 devido a
"chiliques" e politicagem entre o prefeito e o governo do estado, essa concessão acabou e os
alunos tiverem que se "espremer" na escola que passou a funcionar em 4 turnos. Dias de caos
inevitável! Às vezes, como não dava tempo de fazer limpeza nas salas, até porque o número de
funcionários era insuficiente, eram os próprios alunos que se mobilizavam. Estudei numa sala
mínima em que era um sufoco sair da carteira de tão apertado que era. Comíamos giz, pois o
espaço era mínimo entre as carteiras e o quadro, assim, mal dava para o professor se movimentar durante as aulas. Mas foi o maior barato! Lembro como era divertido...
Apesar de tudo, a vida é tão breve que se a gente jogar a felicidade para o alto, somente
porque uma coisinha ou outra não deu certo, o tempo passa e você fica perdido, sem ter
vivido o que era bom.
Mesmo sendo um estudante "antenado" com o que estava acontecendo e mesmo já
concluindo o ensino médio, não sabia o que era universidade, tampouco que podia ter
acesso a ela. Para mim, o vestibular era uma prova e pronto. Era o que eu sabia. Essa foi uma
das razões pelas quais dediquei pouco esforço para fazê-lo; a outra, foi que não consegui ser
isento da taxa de inscrição e como não tinha noções claras do que o ingresso na universidade
me proporcionaria, não fiz grandes esforços. Na cidade havia um grupo que se reunia para
estudar para o vestibular, do qual também não participei, pois não conhecendo de verdade
o que era aquilo tudo não quis me meter. Onze pessoas foram aprovadas no vestibular
(número até então inédito na cidade). A forma pela qual 99%, das pessoas de Lagoa Nova,
ingressavam na universidade para cursar Letras ou Pedagogia, era um convênio entre a
instituição e a prefeitura. Apenas alguns corajosos tinham tido a audácia de tentar romper
com essa desigualdade.
Quando terminei o ensino médio me senti como grande parte dos egressos: não tinha
mais o que fazer. Restava, então, arranjar um emprego por lá (do tipo embalador de supermercado, servente de pedreiro ou na agricultura, o que sinceramente não tenho a mínima
vocação!). Fui convidado para ser um dos monitores do grupo de estudo pré-vestibular e
impulsionado pela aprovação dos meus colegas e apavorado pelas "oportunidades" que
restavam, aceitei. A partir de então, começou minha verdadeira escalada rumo à UFRN.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Eu vou gritar para o mundo ouvir e acompanhar toda minha
escalada e ajudar...
Erasmo Carlos e Roberto Carlos
Mesmo não sabendo nada sobre a prova e muito menos sobre a universidade, encontrei
um desafio a ser superado. Além de ter que estudar para prestar vestibular teria que orientar
os colegas do grupo. Fui monitor de Língua Portuguesa. Embora nunca tivesse feito a prova,
como a maioria dos monitores, estava ali uma iniciativa louvável. Em pouco mais de um mês
do início das aulas, recebi a proposta para ser coordenador e aceitei na hora. Foi mais um
estímulo para que eu me dedicasse a fundo em conhecer como aquilo tudo funcionava.
A primeira coisa em que me empenhei a fazer foi organizar tudo, deixar com cara mais
de cursinho do que de ensino médio. Passou a se chamar ASSOVEST. Montamos, então,
uma parceria com uns colegas que estudavam em um cursinho particular da cidade vizinha
e eles nos mantinham informados sobre as tendências, além de compartilhar o material.
Estes colegas que viraram amigos pela relação de união e cooperação que desenvolvemos
ao organizarmos as atividades (aulas extras, simulados, seminários literários, sempre pesquisando e divulgando como funcionavam as provas).
Nada era fácil, todos pagavam uma quantia simbólica para manter o grupo, mas muita
coisa faltava e nós tínhamos que correr atrás, mas muita gente nos ajudava. Funcionávamos
em uma escola municipal, cedida pelo diretor que era sensível à iniciativa, já que não
tínhamos apoio da secretaria municipal de educação. Em síntese, esse é um projeto do qual
muito me orgulho de ter estado à frente. Apesar de ter alcançado uma notável quantidade de
aprovações, só em 2004 alcançou visibilidade e reconhecimento da sociedade. A equipe de
monitores e colaboradores em geral foi fundamental nessa evolução. Apesar de poucas
pessoas terem sido aprovadas, foi uma experiência de extrema valia.
Prestei meu primeiro vestibular para Jornalismo. Foi uma confusão na hora da escolha
do curso, pois eu não tinha, como grande parte das pessoas, uma idéia fixa desde criança
sobre qual carreira seguir. Pensei em várias possibilidades (graças a Deus, escolhi a certa!).
Após fazer a inscrição, não quis nem dizer realmente para que iria prestar vestibular. O medo
da discriminação (como pode uma pessoa de classe popular e tudo mais passar num curso de
elite? Nunca iria conseguir! É muito difícil! Faça pra professor mesmo que é mais fácil!
Você não tem condições de estudar fora). Enquanto alguns desencorajavam com esse tipo
de comentário, muitos me apoiavam. Era engraçado que tinha gente que depositava tanta
confiança em mim que dizia: se você não passar, ninguém passa... (pouquíssimos passaram). Por pouco não passei. Foi uma sensação horrível de frustração, estava na expectativa
de um resultado positivo já que havia obtido uma boa classificação na primeira fase.
A vida me ensinou a nunca desistir, nem ganhar, nem perder,
mas procurar evoluir...
Chorão
Mas a vida não pára. O tamanho reconhecimento do nosso trabalho e da importância
de um projeto para pré-vestibulandos, além da nossa vontade em continuá-lo no ano
seguinte, fizeram com que a secretaria municipal de educação, em uma nova gestão, desse
apoio para que pudéssemos estruturar um cursinho. Um professor, que já era da rede privada
70
Caminhadas de universitários de origem popular
de cursinhos, foi designado para comandar a empreitada. Fui convidado para lecionar
Geografia, mais uma vez mergulhei pra aprender, me dediquei bastante às aulas, e o esforço
foi recompensado. De modo geral, a melhor nota dos alunos foi em Geografia: das cinco
questões discursivas, quatro tínhamos trabalhado o assunto de forma detalhada e uma foi
dada exatamente como caiu na prova, usei na aula a mesma fonte, inclusive. Adorei essa
produtiva experiência! Também fiz o ENEM três vezes obtendo ótimas notas (entre bom
e excelente, bem além da média nacional).
A essa altura também experimentei outras maravilhosas experiências do conhecimento.
Antes mesmo do cursinho começar, fui convidado para ser professor de jovens e adultos.
Como estudaria à noite, fui trabalhar à tarde no centro de convivência de idosos, durante
dois meses. Foi uma experiência muito complicada, pois era mais um desafio para mim, mas
transcorreu da melhor maneira possível. Nesse pouco tempo, acompanhei um senhor, que
mesmo já tendo freqüentado outras oficinas de alfabetização, não havia conseguido grandes
resultados. Juntos, conseguimos uma coisa da qual não me julgava capaz de fazer: ele
escreveu seu nome e começou a ler algumas palavras!
A vida não pára e as oportunidades vão surgindo: acho que tudo que Deus nos concede
é um reflexo de algo que fizemos antes. Se fizemos bem, então é só esperar que venham
coisas melhores. Assim, fui convidado pela secretaria de educação para substituir uma
professora de Língua Portuguesa que estava com problemas de saúde. Fui ser professor na
escola de ensino fundamental na qual estudei. Aceitei de primeira, porque embora
gostasse do centro de convivência de idosos, eu adorava aquela escola. Foi maravilhoso,
eu me sentia bem podendo trabalhar lá e contribuindo de alguma forma com a casa que
tanto fez por mim.
Por causas pessoais, o coordenador do cursinho teve que se afastar, então eu e minha
grande amiga e companheira tivemos que segurar a barra. Foi uma experiência fascinante e
muito complicada. Lutamos para que esse cursinho fosse implantado e que contemplasse o
maior número de pessoas possível. No início, a procura foi muito grande, mas nem todos
conseguiram ficar. Alguns não entenderam e saíram falando mal. Grande parte dos alunos,
por não saberem como funcionava um cursinho, acabavam seguindo o velho estilo de
descaso do ensino médio e, como esperado, a desistência foi grande.
Pena que apesar do apoio da secretaria municipal de educação e da batalha que foi
construir o cursinho, alguns alunos não tinham aproveitado a oportunidade. Outra carência
que tínhamos era a falta de professores qualificados para dar aulas em pré-vestibular, já que
eram profissionais da rede municipal de ensino, ou seja, habituados a atuarem no ensino
fundamental. Realizamos seminários, sessões de cinema, simulados, oficinas de literatura,
estudávamos uns nas casas dos outros e acabávamos ganhando a torcida dos familiares e
amigos. Entre outras tantas atividades, superamos os desafios e as próprias expectativas.
Assim, no final das contas, a meta foi cumprida e mais um recorde de aprovação na UFRN
foi estabelecido.
Valeu a pena, eh, eh. Valeu a pena eh, eh...
O Rappa
Dessa vez eu também consegui, além da aprovação na federal, uma bolsa integral para
cursar gestão em marketing, pelo PROUNI em uma faculdade privada. Como não poderia
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
71
ficar com as duas, escolhi a UFRN. Agora bem mais seguro de que esse era o curso que
queria, estava disposto a mudar de vida para realizar essa meta. Além do mais estava por
dentro de como era o vestibular, nos mínimos detalhes, e quase tudo que a universidade
poderia oferecer para pessoas provenientes do interior do estado.
Como Deus é infinitamente sábio e providencia para que tudo em nossas vidas
transcorra da melhor maneira possível, praticamente todos meus companheiros de luta
passaram também. Essa era a nossa caminhada rumo à UFRN, digo nossa porque essa conquista era também das pessoas que fizeram acontecer tudo isso comigo. A interação era tão
grande que até na prova do vestibular, que tínhamos que fazer na cidade vizinha, ficamos
numa casa (A Casa do Pobre, uma espécie de instituição gerenciada por uma freira), para,
além de dividirmos as despesas, dividirmos momentos de muita alegria. Nesse ano, até
minha mãe e minha tia foram tomar conta da gente... Só quem viveu esses momentos sabe da
singularidade deles e de quanto é saudoso lembrá-los.
Dia do resultado: uma emoção inesquecível. Estava um pouco receoso pelo fato de
que no outro ano tinha ficado em uma posição melhor na primeira fase e mesmo assim não
consegui passar. Embora estivesse confiante, a aflição era total. Na manhã do dia 16 de
janeiro de 2006, preferi nem sair de casa para evitar as especulações. Como o resultado só
seria divulgado na internet após meio dia e o site estaria congestionado, quis aguardar para
ver à tarde. Durante toda manhã o pessoal ligava direto para mim a fim de saber a que
horas saía, onde podiam ver... por volta do meio dia, quando meu primo Fagundes ligou
para perguntar se eu já sabia do resultado, nem liguei, achava que era apenas mais um
querendo saber do resultado e eu disse que não sabia ainda e que provavelmente só saberia
à tarde, ele disse: você passou, Jaqueline acabo de ver seu nome na lista dos aprovados na
TVU!
A primeira atitude foi olhar para o céu e agradecer a Deus... cara, fiquei tremendo...
entrei em casa, atônito: - Mãe passeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeei!! Aí não dava mais para
segurar. Eu, ela e Míria choramos de alegria. Até hoje me emociono ao relembrar esse
momento fantástico em minha vida. A emoção era tão forte que eu não consegui ficar
quieto. Fui contar para vovô e vovó, que também ficaram muito felizes, embora, como
somos muito apegados, não gostassem tanto da idéia de que eu passaria a morar longe deles.
Saí sem destino... no caminho, encontrei Raiane e Cristina que já vinham felizes por Ana
Paula, minha grande amiga, ter passado. De longe, gritavam e eu pensava que elas já sabiam
da minha provação, que nada! Quando eu disse, a festa foi grande! Fomos avisando a todo
mundo... foi uma alegria tão maravilhosa que até quem não tinha passado comemorou
conosco. Entre desfile de carro pelas ruas da cidade na maior zoada, festas e felicitação dos
familiares, amigos e até desconhecidos foi mais de uma semana só de comemoração!
Isso foi uma vitória para minha família, pois fui o primeiro da família a entrar na
universidade. Minha mãe torceu muito para que eu tivesse conquistado isso, mas ficava
preocupada em como seriam as coisas dali em diante. Às vezes, ela dizia que era melhor
tentar um mais fácil, quem sabe para mais perto e que assim eu poderia continuar morando
em casa e quem sabe continuar trabalhando, mas como se diz, e eu acredito tanto que sou
uma prova disso, é preciso ousar para ser feliz. Mesmo que amasse minha família demais eu
precisava traçar meus próprios caminhos e concretizar meus objetivos.
Quanto a como eu iria providenciar a minha ida para Natal, e como me manteria lá, foi
um desafio superado logo quando isso passou a ser real. Achei muito interessante meu avô
72
Caminhadas de universitários de origem popular
Vivaldo dizer para um dos meus primos se ele teria coragem de fazer como eu: ter "enfiado"
a cara no mundo sem nem conhecer ninguém direito e conquistar o que eu estou conquistando. A primeira coisa que se questionava era onde eu iria ficar. Meus colegas já moravam
na residência universitária, mas isso nem era uma coisa totalmente certa e nem poderia ir
para lá imediatamente. Como minha mãe me manteria lá? Nunca havia parado para pensar
nisso, mas até agora não me faltou nada. Mãe, vovó, vovô, minhas tias, pai, meus amigos e
meus irmãos queridos são de fundamental importância no apoio para tudo, pois eu me
joguei para tentar concretizar meus sonhos e eles estão sempre comigo. A parte material foi
apenas um detalhe, perto do apoio que eu recebo deles.
Histórias, nossas histórias, dias de luta dias de glória...
Chorão
Cheguei à UFRN pela primeira vez, no dia do cadastramento, sozinho e praticamente
tremendo e pensando como eu ia me virar ali. A universidade me deslumbra até hoje com a
possibilidade de crescimento que ela nos dá. É verdadeiramente um universo a ser descoberto.
Consegui ficar na residência universitária, mas precisava ainda de algum trabalho para que
pudesse me manter. Apesar de minha família me ajudar, tudo é muito limitado e eu também
não podia ficar dependendo deles por toda vida. Foi então que o Conexões de Saberes
entrou com mais uma participação fundamental. Além do dinheiro para que eu pudesse
me manter, ele tem toda uma programação que contribui bastante para minha formação
acadêmica, ou seja, além de poder permanecer na universidade isso se dará com uma
excelente qualidade.
É muito legal saber que você deixa orgulhoso alguém por suas iniciativas. Talvez eu
tenha tido a oportunidade de ir com a galera, sabe? Eu podia simplesmente ter aceitado as
migalhas que a sociedade deixa para os das classes "inferiores", mas eu preferi lutar contra
o vento, se bem que o vento só vai contra para quem não quer que ele vá a seu favor! Eu
posso provar que foi difícil, mas que não é impossível.
Mais um segredinho para ser feliz: construa a vida e sua felicidade alicerçadas no que
lhe faz bem, no que é positivo. Quantos aos problemas, esses não nos devem "pré-ocupar",
como já dizia o Dalai Lama: “se um problema tem solução, não precisamos nos preocupar,
pois ele irá se resolver, e se não tem solução, também não é necessário preocupação, pois
isso não o solucionará”. E, na verdade, eles sempre se resolvem, mas nem sempre como a
gente gostaria que fosse. Nem sempre o que pedimos é o que realmente é o melhor para nós.
Por isso, Deus cuida em não nos atender com os pedidos errados.
Sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu...
Serginho Meriti
Acho que minha vida não tem grandes descobertas, apenas coisas simples e que, às
vezes, deixamos passar despercebidas e, pior, quase sempre acabamos esquecendo que os
detalhes fazem toda diferença. O que tenho a fazer ao chegar até aqui é simplesmente
agradecer... à mãe, que mesmo nas situações mais adversas sempre me apoiou, pois sem ela
nada disso seria realidade. Ela que sempre torceu por mim. Fazia-se de "durona", mas na
hora da partida nos fez chorar juntos pelas saudades causadas pela separação. O amor é o
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
73
que nos faz suprir a falta a cada dia. Sei que está sempre cuidando de mim e pedindo a Deus
que me proteja... à vovó e a vovô, meus heróis de sempre, exemplos de dignidade e sabedoria
e que, junto com minha mãe, seguram a barra. Orgulho-me muito, muito mesmo deles...
nossa separação talvez ainda seja muito dolorosa, mas superamos com a certeza de que
Deus nos mantém unidos pelo afeto e esta é uma separação meramente física, pois não há
um só dia em que não esteja com eles no meu coração. Aos meus adorados irmãos: Míria
(miroka) a menina que eu mais amo no mundo, minha amigona do peito; George, embora
sejamos muito diferentes, torço para que se dê bem na vida! Juntos vivemos várias peripécias...
ele é mais um dos meus heróis. Na casa do meu pai tem mais três: Gerliane, Jerônimo
(happynboka) e Jeromir (mikinho) que tornam minha vida uma festa. Meu pai, apesar de
vivermos um pouco distantes, também sempre me ajudou como pôde. Outra turma a quem
devo muito são minhas tias e meus primos que sempre estão do meu lado. Na verdade, além
de sermos familiares, somos amigos e sempre estamos compartilhando momentos maravilhosos. Aos amigos em geral, e em especial Ana Paula, que em algum momento da minha
vida estiveram comigo ou permanecem desde sempre, também louvo a Deus por poder
desfrutar de sua companhia fraterna. Amo muito todos vocês. Às pessoas chatas que de
alguma forma complicaram a minha vida, fazendo-me na verdade superar as dificuldades e
me tornar uma pessoa mais forte. Agradeço ainda aos meus mais recentes amigos - conexistas
e professores - por vivermos juntos tantas emoções e aprendizados.
Por fim, agradeço a Deus por nos dar exatamente o que precisamos para sermos felizes,
independentemente da situação: eu vou ter sempre alguém para me ajudar a vencer, alguém
muito especial... que me faz continuar acreditando que ser feliz vale muito a pena. Por isso,
eu sou e sempre serei. O maior segredo para isso é viver... com as pessoas que você ama. Hoje
posso afirmar sem medo que as coisas na minha vida deram e dão certo!
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Caminhadas de universitários de origem popular
Sou sempre eu mesma, mas com certeza não
serei a mesma para sempre
Gabriela de Oliveira Lima*
Havia um tempo, em que eu vivia um
sentimento quase infantil... Havia o medo e a
timidez, e um outro lado que você nunca viu...
Paulo Ricardo / Luiz Schiavon
Não só é bom como também é muito difícil e satisfatório poder estar aqui, nessas
poucas linhas, contando para vocês um pouco do que já vivi nesses meus 18 anos de vida...
foram muitas experiências boas, muitas mágoas, muitos momentos de harmonia e de muita
felicidade. Minha vida sempre foi invejável (risos), tenho muito orgulho de poder contar para vocês tudo por que já passei. Espero não servir de espelho para ninguém, mas
sim de exemplo para as pessoas que querem e têm a capacidade de lutar e conseguir
realizar seus sonhos...
Irei falar para vocês com a escrita mais direta possível, assim, estarei deixando que você,
leitor, mergulhe na minha vida e entre em minha intimidade... sinta-se "Gabriela" e viva a
sensação de ser um(a) grande vencedor(a). Você merece muito mais que isso, meu querido(a)
leitor(a). Você é e sempre será um(a) vencedor(a), é só querer e lutar...
Mergulhe agora no meu, ou melhor, no seu diário de vida...
Meu diário, novembro de 1987
Parelhas-RN
Mamãe, papai, a partir de agora posso chamá-los assim...
Tô sendo gerada, não sei se na hora certa, mas tenho certeza que serei bem recebida...
Pois é, queridos pais, hoje faço um mês de embrião, já começo a tomar forma e sinto
muito forte o amor de todos por mim... eita, será que a mamãe tem a conta certinha de meus
dias de vida embrionária? Porque amanhã é o meu terceiro mês aqui dentro desse lar. Sinto
um pouco de tristeza, o que será que está acontecendo???
Enfim, tá chegando o meu dia, vou sair daqui e ficar mais próxima da mamãe, que até
hoje está tendo muito cuidado com esse meu habitat, cuidando bem de mim...
Vó, vô, tios, tias e, principalmente, mamãe, hoje estão todos muito felizes, posso até
ouvir os elogios... que criança bela!!! Que coisa linda... tantos papéis coloridos estão
entregando pra mamãe, são presentes... esse meu novo mundo aqui é tão bom... mas espera...
sinto falta de alguém... cadê o papai?
*
Graduanda em Estatística pela UFRN.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Ah, é isso, aquele dia em que me senti muito triste... no dia do meu terceiro mês de
embrião, lembra? Pois, então, naquele dia papai tava indo embora, abandonou a mamãe...
mas não fica triste, mamãe, irei sempre lhe fazer companhia e prometo ser uma boa filha!
É, hoje faço três anos, estou morando com minha vó e meu vô, vim de Natal (capital)
direto da casa da minha madrinha, tava morando com ela... minha vó e meu vô são pessoas
que, junto com minha mãe, sempre deram tudo por mim e me amam muito. Mamãe estuda,
trabalha como empregada doméstica, mas não me deixa faltar nada. Minha mãe é a melhor
mãe do mundo! Você vó, tem um papel essencial na minha vida, você sempre será MEU
PAI. Vó, nunca fique longe de mim, precisarei sempre da senhora...
Ah, acabei de conhecer meu pai, quase esqueci de contar pra vocês... não correu tudo
como eu esperava, mas pelo menos ele se lembrou de mim. Tudo bem... mesmo nesse dia ele
não me deu tanto carinho...
Hoje vou pela primeira vez à escola. Isso pra mim está sendo ótimo, vou freqüentar a
Escola Estadual Jesus Menino, cursarei aqui o meu maternal e depois o pré I.
Agora eu quero dividir algo com vocês. É muito engraçado: eu, com apenas quatro
anos de idade, juntei-me com uma coleginha do pré, que também se chama Gabriela (Gabi),
e fugimos da escola... (risos), fugimos para a casa dela. Chegou a noite e a minha mamãe
tava a minha procura em todo lugar, sem falar que todo mundo perguntava pra mim: Qual o
nome de sua mãe? A minha resposta era: Mamãe... assim ficou bastante difícil para as
pessoas ajudarem, não é? Não lembro bem como me encontraram, mas lembro que já era
bem tarde da noite...
1993... estou fazendo o pré II na Escola Cenecista Arnaldo Bezerra, aqui passarei esse
ano e o próximo.
Gente, hoje é o dia do meu diploma de alfabetização, eu tô muito feliz e tensa, serei a
juramentista... Ah, sem contar que meu padrinho será o menino mais gato da turma... (risos),
meu primo Rafael l.
Tô agora com meus cinco anos completos. Vou para a Escola Estadual Barão do Rio
Branco, onde irei cursar da primeira à quarta série. Minha primeira série está sendo com a
Jackeline, minha professora preferida; a segunda, será com Tia Graça e a terceira e quarta,
com Tia Aracy, também uma excelente professora. Esse tempo da minha vida está sendo
ótimo. Tempo de muita inocência, de muita descoberta, de muita felicidade, de aprendizado, de muito conhecimento, de "paquerinhas"... (risos).
Agora o sonho de infância está se realizando: o sonho de ir para um colégio de
segundo grau, com aquela farda de jeans, caderno na mão... sem lancheira e "bem importante", afinal, é colégio de adulto... (risos). É muito bom, são vários professores, outras experiências, outra vida, outros horizontes, outros pensamentos...
Minha mãe, sempre com muita dificuldade para me sustentar e me dar de tudo sozinha... meu pai, depois daquele dia nunca mais apareceu. Eu já começava a entender um
pouco da vida, a revolta chegava perto de mim, então, comecei a não procurá-lo mais, até
porque eu tava sempre quebrando a cara, pois ele não estava nem aí pra mim.
Só mais um pequeno detalhe que eu ainda não tinha falado pra vocês: minha mãe tava
com um namorado desde que completei meus três anos, quando viemos morar com minha vó.
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Primo muito especial a quem aqui quero deixar minha eterna gratidão pela pessoa que é... Rafael, eu te
amo muito... obrigada pelo carinho, eu sou muito grata a você.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Um tempo depois, a gente já estava morando com ele, e quando completei meus seis anos,
minha mãe me deu um irmão: Íkaro Breno era o bebê mais lindo que eu já havia visto,
loirinho, e bem branquinho. Era meu primeiro irmão e, dois anos depois, eu ganhei a minha
querida irmã, também muito bela: Ayllana Louyze. Hoje eles são essenciais na minha vida,
quero vê-los crescer para sempre estarmos bem unidos para darmos de volta pra mamãe tudo
em dobro do que ela sempre fez e fará por nós...
Meses depois da mamãe ter meu irmão, meu vô materno (PAI) faleceu. Foi muito triste
pra mim, pois ele era meu ombro, meu divertimento, meu amigo, meu professor. Vovô era
tudo pra mim. Hoje, a falta que ele faz é ainda maior, mas tenho certeza de que lá de cima ele
torce muito por mim, obrigado por tudo, meu vô. Eu, particularmente, sempre fui uma
pessoa rodeada de amor e a distância de Dinarte (pai biológico) nunca fez muita falta.
Pai pode ser que daqui a algum tempo,
Haja tempo pra gente ser mais,
Muito mais que dois grandes amigos, pai e filho talvez...
Fábio Jr.
Não porque ele não seja importante pra mim, mas porque foi ele quem não me cativou.
Sempre esteve muito distante e não me dava tanto carinho quanto as pessoas que estavam
sempre do meu lado, como por exemplo: a família do esposo da minha mãe, pessoas que
sempre me deram muito amor, pessoas especiais a quem só tenho a agradecer; Vovó Mariquinha,
titia Ivanira, titia Iaponira, Iranildo, Ivandro, Ivanilson e, até mesmo, Ivânio (esposo da
mamãe); sem falar também nas minhas tias maternas, Zuneide, Zuleide, e principalmente,
"Zilma" que esteve sempre do meu lado, nunca me deixou só, sempre me dando conselhos,
minha segunda "mãe". TE AMO MUITO, TIA!!! Amo muito vocês!
Estou terminando o meu segundo grau, apesar dos muitos acontecimentos que já se
passaram e dos momentos difíceis que enfrentei, quero muito fazer uma faculdade, me
formar e ter um futuro para oferecer tudo que minha mãe merece: a primeira coisa que
almejo é dar-lhe de presente uma casa. Mãe, eu vou conseguir! Você vai ser muito mais
feliz!!!
Faculdade aqui no meu interior, só se for a uma hora de viagem, e com poucos cursos.
O que eu mais me identifico é Matemática, mas aqui na minha cidade já existem muitos
formados na área e a maioria está sem campo de trabalho. Eu tenho é que fazer um curso que
possa dar um futuro pra mim, ou pelo menos que eu possa trabalhar e ter um bom rendimento e aqui, onde moro, não tem nada que possa me deixar satisfeita, ou seja, "trabalhar no que
gosto".
Caso eu não faça faculdade lá em Caicó, terei que ir morar na capital e isso vai ficar um
pouco complicado pra mim. Mas foi o que eu escolhi. Vou prestar vestibular para Estatística2
e vou cursar faculdade em Natal. A preocupação da minha mãe é onde vou morar e a minha
é: como mamãe irá me sustentar na capital em uma Universidade. Mas eu vou lutar. O
resultado virá no futuro, vou tentar e só desistirei quando realmente não der mesmo.
2
A escolha do meu curso deu-se com a ajuda de um super amigo que vou adorar colocar o nome dele
aqui: Ismael, uma pessoa de muito carisma, tem sido para mim nesses últimos anos uma pessoa muito
especial, obrigada, PADRINHO!
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
77
Hoje é o grande dia. O primeiro dia das provas do vestibular. A partir de hoje irei todos
os dias, durante quatro dias para Caicó. Minhas provas estão sendo aplicadas no Campus da
UFRN. À noite, depois do jantar, estávamos todos na praça (risos) debatendo as provas... eu
estava meio nervosa, as pessoas não estavam confiantes no que eu estava fazendo, porém,
eu estava muito segura...
Meu Deus, hoje eu tô muito confiante, sei que a surpresa que farei a mamãe será muito
boa. Ela vai ficar muito feliz... três horas da tarde, tô de saída pra lan house para ver o
resultado... o menino não está conseguindo acessar a página e meu desespero só aumenta...
até que enfim ele conseguiu!
- Gaby... você passou...
Passei!!!??? O dono da lan house já está com o barbeador, só para não deixar passar em
branco aquela coisa de raspar a sobrancelha.
Meu Senhor, como tu sois bom, só quero chegar em casa e contar a novidade...
Quando eu estou chegando em casa, a vizinha pergunta se eu passei, eu toda feliz
respondo que sim. Ao entrar em casa, minha mãe ouviu minha resposta e quando olho pra
ela já está chorando: Passou??? Passei, mãe...(ela ainda não estava acreditando!) Nos
abraçamos. Minha mãe me desejou tudo de bom, mas eu ainda assim sentia a preocupação
dela quanto ao lugar onde eu iria ficar...
Quando a felicidade acalmou, sentamos e fomos conversar...
- E agora, Gabriela? Onde você vai ficar?
Eu realmente não sabia o que responder, mas estava sempre lembrando de meus
padrinhos, Clotildes e Nildo3. Mas sempre que eu tocava no assunto de ir pra lá, minha mãe
me repreendia, falava que não daria certo... mas depois de criar coragem eu falei.
- Mãe, eu irei pra casa de tia Colo.
- Minha filha, não vai dar certo, tia Colo não tem mais saco de viver com uma jovem
como você, ela tem que ter descanso, não vai dar certo...
Hoje está fazendo um mês que saiu o resultado, minha mãe me fala que ligou pra meus
padrinhos, falou sobre o assunto e eles me aceitaram...
Tudo estava correndo sempre bem pra mim... Minha mãe costuma dizer agora que eu
nasci com uma estrela na testa e que se, Deus quiser, eu serei uma pessoa realizada...
Hoje são 21 de janeiro de 2006, um dia depois do fim da festa do padroeiro de
minha cidade (São Sebastião). Fui para a capital onde irei passar agora uns anos para
construir um futuro.
Dia de fazer minha matrícula. O medo de não saber fazer nada dentro do Campus me
consome, mas eu vou lá, afinal, não tenho mais minha mãe pra me auxiliar... (risos). Aqui é
muito bom. Nossa, essa universidade vai ser um ponto de crescimento e tanto pra mim: acabei
de receber um papel com um anúncio de uma tal de bolsa residência e bolsa alimentação,
não sei nem do que trata isso, mas vou guardar esse papel, minha tia pode me explicar...
- Tia, eu recebi esse papel agora lá na faculdade...
- Gabriela, vou falar com alguém que possa me explicar isso, eu também não sei...
- Tudo bem tia, vou esperar...
Começaram minhas aulas, meus colegas parecem ser muito legais, com exceção de
alguns, como sempre a impressão que temos em cada início de ano na escola...
3
Pessoas que participaram ao extremo de minha criação e foram essenciais para eu ser o que sou hoje.
78
Caminhadas de universitários de origem popular
Fiz amizade muito fácil. No terceiro dia de aula, parecia até que todo mundo já se
conhecia... cada dia que vou chegando à faculdade, as pessoas ficam falando sobre uma
história de trote, e eu não sei nem do que se trata... Mariana, uma das amigas que conheci na
faculdade, não está mais cursando, mas até hoje mantemos contato e somos muito amigas, era
quem mais falava do medo que tinha de passar por esse trote e eu nunca perguntei o que era.
Duas semanas depois de aula, estávamos na sala esperando o professor, e de repente, entram
dois rapazes...
- Nós somos do CA de Estatística, estamos passando aqui pra receber vocês e...
Nessa hora, uma multidão de gente invade a sala e começa a bater nas mesas e a
gritarem:
- É o trote...
Comecei a tremer, não sabia o que era aquilo... começaram a nos pintar, depois
amarraram todo mundo numa corda só e fomos para os corredores do Campus daquele
jeito... depois de passearmos pela universidade, eles nos levaram pra um sinal e ali nós
passamos a manhã inteira pedindo dinheiro para quem passava de carro... depois disso, os
veteranos pegaram tudo o que conseguimos e fomos pro famoso BAR DE MÃE, um
barzinho perto da faculdade para onde os universitários vão se distrair, principalmente na
sexta a tarde (risos).
Esse dia foi ótimo... muito bom mesmo.
Hoje, minha tia chega pra mim e fala sobre aquela bolsa residência. Trata-se de lugares
reservados exclusivamente para estudantes provenientes do interior que não tinham
condições de morar na capital para cursar uma faculdade. Fiquei muito feliz. Hoje mesmo
vou fazer minha inscrição. Liguei pra mãe, ela disse que ficou feliz. A sua preocupação em
me ver na casa das pessoas estava prestes a ter um fim.
O resultado da bolsa alimentação tinha saído duas semanas depois que eu tinha feito
a inscrição. O resultado da residência, com mais três dias. Eu fiquei na sexta suplência para
residência e fui contemplada com a alimentação.
Passei assim mais uns dois meses na casa da minha madrinha.
Numa tarde de domingo aconteceu uma pequena discussão aqui na casa de meus
padrinhos, eu estou voltando pra casa da minha mãe, apesar de estar em plena semana de
prova na faculdade, mas vou tentar ligar pra minha amiga da faculdade, Liliane (lili)4, aliás,
não vou deixar meu sonho ir embora assim.
Quando liguei pra ela, falei que iria desistir do curso, pois não tinha onde ficar e pedi
para passar na casa dela nem que fosse uma semana para pelo menos poder falar com a
assistente social sobre minha situação. Ela aceitou e me recebeu muito bem. Tratavam-me
como se fosse da família...
Ainda passei um mês na casa dela e hoje vou passar no Serviço Social pra ver o que
elas podem fazer por mim, porque na casa de Liliane não posso mais ficar...
Quando a assistente social falou pra mim que tinha minha vaga, fiquei hiper feliz e fui
logo ligar pra minha mãe... tudo está dando certo, graças ao meu bom Deus...
Hoje estou na residência universitária, aqui é muito bom, ao contrário do que as
pessoas inventam. Aqui, a gente cresce muito, aprende mais, faz "irmãs", pessoas especiais
4
Essa foi uma peça chave no meu “quebra cabeça”. Ela caiu na minha vida como um anjo, tenho muito a
lhe agradecer, pois é uma pessoa muito especial pra mim, como também sua mãe Inalva e sua família, que
sempre me receberam de coração aberto.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
79
que você encontra por aqui. Eu moro numa casa com mais vinte e três meninas, divido o
quarto com três, somos muito unidas, elas contribuem muito pra minha vida, e assim estou
aprendendo a viver a cada dia...
Mais uma benção caiu sobre mim. No belo dia em que a coordenadora do curso de
Estatística chegou na sala e chamou pelo nome de seis alunos que tinham prestado vestibular
em 2006, (calouros) e que tinham sido beneficiados com a taxa de isenção da inscrição e
usufruído do argumento de inclusão.
- "Vocês estão sendo convocados a fazer uma inscrição para concorrerem a uma bolsa
de extensão do Programa Conexões de Saberes." Eis o que ela informou.
Estou muito feliz, quero conseguir essa bolsa, assim, minha mãe ficará mais tranqüila
para utilizar seu dinheiro sem precisar me ajudar.
Fiz minha inscrição e dentro de um mês saiu o resultado. Eu fui selecionada e um lugar
nessa bolsa já era meu... como sempre liguei pra mamãe:
- "Não acredito filha, que coisa maravilhosa! Muito bem, minha querida, você vai ser
uma pessoa muito feliz... parabéns..."
Minha vó, então... nem se fala! Ficou muito feliz mesmo, todos estavam repletos de
alegria por mim, estavam me vendo lutar...
Comecei a atuar no Conexões, nas primeiras semanas de abril. As primeiras impressões
eram de que seria muito chato trabalhar com isso. Nos dois primeiros meses, a gente estava só
se conhecendo, descobrindo o que seria o programa, qual a intenção, quais os objetivos, mas
quando tivemos que começar a atuar nos projetos de extensão, foi ficando bem satisfatório,
tudo começou a mudar, e eu me sentia muito útil ajudando a comunidade...
Hoje, estou muito feliz, recebendo minha bolsa, sabendo que não terei mais que ligar
pra minha mãe pedindo pra que me mande algo, pois sei que mesmo que não pudesse mandaria... enfim, o Conexões veio na hora certa e no momento mais justo. Sem falar que, além de
contribuir com minha permanência na universidade, está contribuindo com o meu processo
de desenvolvimento aqui dentro. Estar no programa está sendo muito satisfatório para mim...
Queria muito poder fazer vários exemplares desse livro para compartilhar com vocês
momentos bem interessantes da minha vida, mas tudo bem, se Deus quiser teremos outras
oportunidades...
Tenho um ideal: me formar, ser uma boa profissional. Quero estar entre os melhores e
ser o melhor. Ver a vitória de meus irmãos, tornar minha mãe realizada, dar em dobro tudo
que ela já fez por mim.
Vou aproveitar para colocar aqui nomes de pessoas que sempre farão parte de minha
história e que guardarei no meu coração com muito carinho, pois eu os amo muito, se não
fosse eles talvez eu não estivesse aqui, muito obrigado pela força.
Primeiramente, gostaria de homenagear a todas as pessoas que de uma forma ou de
outra passaram pela minha vida e se tornaram especiais... desde já, sintam-se homenageados
por fazer parte dessa minha história que está sendo publicada graças à força e contribuição
de cada um de vocês para o meu crescimento.
Lucélia, Itamara, Celiana, Magna, Renyelle: amigas que foram fundamentais para
minha vida, eu as amo de coração, jamais esqueçam disso.
Gleibson, Rubens, Leandro Jr., amigos que funcionaram como peças de concreto para
o muro da minha vida se sustentar. Foram poucos os momentos que passei com alguns,
porém, estes foram muito especiais pra mim.
80
Caminhadas de universitários de origem popular
Joeverton e sua família, pessoas que apareceram na minha vida de repente e que a
mudou completamente: me acolhem e me tratam super bem, me dão de qualquer forma um
suporte. Ele é uma pessoa que me entende, me ajuda, tem um carinho enorme por mim e me
dá atenção. Gosto muito de você, seu nego!
Alexandre Magno: um dia namorados, pra sempre amigos. Tenho muito carinho por
você, muito obrigado por tudo. Você é muito especial, não esqueça nunca de que pode
contar sempre comigo. Torço muito pra que você seja super feliz e consiga sua realização
pessoal e espiritual, conte sempre com meu ombro amigo.
Agradeço, também, a uma pessoa que não faz muito tempo que nos conhecemos, mas
esse pouco tempo de contato já foi suficiente para que eu pudesse perceber que não estou
sozinha nesse mundo. Amigo Jeykson, muito obrigado por você estar sempre comigo. Isso
porque em um dos momentos mais delicados da minha vida você, sem nem mesmo conhecer
minha história, tentou me entender e buscou "estudar sobre mim" (risos) e vem me ajudando
até hoje... sei que posso contar com você sempre... amo você de coração, amigo!
Madrinha Prof. Aldinete: você foi uma pessoa que soube me cativar, me fez ter um
carinho por você como eu nunca consegui ter por alguém tão rápido... te amo...
Agradeço aos militantes dos movimentos em que estou inserida: militantes dos movimentos estudantis, em especial ao movimento Sonhos que Podemos ter. Vocês são pessoas
muito especiais e me deram apoio num momento em que precisei muito. Aos militantes do
movimento de casas de estudante: a delegação da UFRB que se fez presente no ENNECE
(Encontro Norte e Nordeste de Casas de Estudante), a delegação de Alagoas que esteve
presente no mesmo encontro, a todos das delegações da UFRB, UFBA, UFAL e UFRN que
estiveram no ENCE (Encontro Nacional de Casas de Estudante) assim como as demais
delegações que também constroem o movimento. Também tenho muito a agradecer aos
componentes da banda Penteios de Gato que são amigos muito especiais.
Essas são, entre tantas outras pessoas, a quem dedico essa minha história. Quero que
saibam que eu tenho um carinho especial por cada um que passou na minha vida...
Esses nomes também estão guardados no meu coração, cada um na sua forma
especial de ser:
Suele, Eliane, Cineide, Carlos, Romerito, Jandira, Dilza, Raquel, Denisia, Écio, Joedna,
Juciara, Matheny, Helayla, Alexandre C., Rômulo, Cláudia, Valdério, Roberto, Luciana,
Rangel (scooby), Fernando (UFRB), Valter (UFRB), Adriano (UFRB), Alex (Cadeado).
Todos os residentes da UFRN que se fazem presentes comigo, Rakel, Wagner, Vanessa,
Adna, Markus, Almino, amigos distantes, Romenigue, Lili, Dostoyevsck, Inácia, Edno,
Ayane, Alexandre, Pércia, Mércia, Pedro. Meus colegas de faculdade por quem tenho
carinho enorme, Fábia, Júlio Cezar, Hachyally, Manasses, Luana. Todos os professores
pelos quais já passei e que de uma forma ou de outra contribuíram pra que eu pudesse estar
aqui: Marizete, Francisco, Aluízio5, Medeiros, professoras do Conexões de Saberes: Penha,
sem ela essa obra não teria a grandeza que tem; Íris, na sua ausência o Conexões não seria o
mesmo; Ilza, muito obrigada pela atuação e dedicação ao Projeto; Ana Eugênia, pela
paciência para conosco e o grande Professor Deusimar que nos acolheu de braços abertos e
confiou em nós pra podermos atuar em conjunto com ele...
5
In memorian: “Quem amamos nunca morre, apenas se vão antes de nós.” Frase do conexista Josenildo Eugênio.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
81
Agradeço, ainda, às pessoas que aparecerão na minha vida daqui pra frente e que virão
pra construir junto comigo minhas realizações... pessoas que serão amigos, colegas, companheiros, enfim, que me ajudarão de uma forma ou de outra e que merecerão meu carinho.
Desde já, está aqui expressa minha gratidão a todos...
Agradeço muito também as meninas-"irmãs" que moram comigo na residência. Elas
são especiais e muito importantes para o meu crescimento... agradeço muito às assistentes
sociais: Maria das Graças, Rosângela e Margarida, pela dedicação para com os residentes
assim como ao Professor Marciano Furukava (secretário de assuntos estudantis).
Obrigadão a todos...
Valeu por tudo, eu amo vocês, e isso é o mínimo que posso fazer para mostrar o enorme
significado de cada um na minha vida...
Agradeço, principalmente, a Deus por ter me dado tantas oportunidades de escolha
pra trilhar os caminhos e por ter me concedido a vida que tenho, por ter me enviado para as
mãos de uma pessoa tão abençoada que é minha mãe e por estar sempre comigo... agradeço
pelas pessoas que Ele colocou na minha vida, pelos obstáculos, pelas derrotas... pelo amor,
pelas decepções... Senhor... muito obrigada por tudo...
Devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o Sol nascer, devia
ter arriscado mais, Até errado mais, ter feito o que eu queria fazer...
Sérgio Britto
Beijos, Gaby!!!
Natal, abril de 2007.
82
Caminhadas de universitários de origem popular
A luta por um sonho
Grasiele Araújo da Silva*
Bebida é água.
Comida é pasto.
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
Arnaldo Antunes / Marcelo Froner /
Sérgio Britto
Minha história será mais uma, senhores leitores, que virá compor este livro, mas não
pensem que é só mais uma, ela é sim “a minha história” a qual terei o prazer de contar para
todos que desejam ler e apreciar uma história de dificuldades sim, mas, principalmente, de
muitas vitórias.
O início é bem parecido com todas, ou seja, contarei sobre a minha origem. Sou de
uma típica família brasileira simples, hulmide e guerreira sempre. Meus queridos pais me
passaram valores que um ser humano deve levar consigo para toda vida como: honestidade,
dignidade, educação e respeito ao próximo. Tive uma infância tranqüila, brinquei muito
com o meu irmão e brigamos muito também, coisas de irmãos, quem não passou por isso?
Minha vida escolar, desde os primeiros rabiscos, das lágrimas da época do jardim de
infância até os primeiros problemas de Matemática e a decoreba da tabuada foi essencial e
muito importante para mim.
Nos meus 11 anos de idade, houve uma verdadeira mudança em minha vida, pois meu
pai se aposentou e nos mudamos para o Rio Grande do Norte, que é o estado de origem dos
meus pais. Inicialmente, estranhei muito a morada e só o tempo me fez gostar e adotar como
minha esta linda cidade que é Natal (RN), lugar onde cresci e amadureci como pessoa.
Tenho lembranças maravilhosas do lugar onde nasci que é Niterói (RJ), lá fui muito
feliz e se deu o início de toda a minha trajetória até a quarta série do ensino fundamental.
Já aqui em Natal, ingressei na quinta série do ensino fundamental. Enfrentei as
dificuldades de todos os jovens que estudam em escolas públicas: falta de professores,
muitas greves, má estrutura da escola e até mesmo a violência no bairro onde se localizava
a escola atrapalhou o meu rendimento escolar.
Meus pais ficavam preocupados com o fato de eu ir com o meu irmão para escola,
enfim, sobrevivi a todos esses e a outros contratempos e estou aqui contando para vocês um
pouco de tudo o que vivi e aprendi.
* Graduanda em Aqüicultura pela UFRN.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
83
Bem, o ensino médio foi todo durante à noite na mesma escola em que concluí o
ensino fundamental. Senti a falta das matérias que não tive a oportunidade de estudar no
primeiro grau (ensino fundamental), principalmente a base de Matemática que, infelizmente,
não vi em série nenhuma do primeiro grau.
Como sabemos, amigos leitores, é durante a fase do ensino médio que se amadurece a
idéia de vestibular na cabeça dos estudantes. Só que durante minha passagem pela escola,
os coordenadores não deixavam clara a importância do vestibular para o jovem e como
aquele exame poderia decidir a sua vida.
Mas nada disso foi obstáculo para mim, como se diz aqui no Brasil: “sou brasileira e
não desisto nunca”, enfim, estava destinada a ultrapassar qualquer barreira em busca de
minha realização profissional.
No ano seguinte da minha conclusão do ensino médio (2001), entrei em um cursinho preparatório para o vestibular. Na primeira semana de cursinho, logo percebi como faziam falta as
matérias do primeiro e segundo grau que eu não tinha visto ou até mesmo o que vi não dava nem
para o começo. Eu tinha mesmo que iniciar tudo desde a base até os assuntos mais complexos...
Foram 1, 2, 3, 4, e só no 5º vestibular tive o prazer e a satisfação de ingressar na UFRN,
com muito esforço, aulões, cursos isolados, cursinho, noites perdidas de sono, aulas pela
TV!!!! Enfim, 5 anos que valeram a pena. Levarei para sempre comigo esta experiência que
é única: a batalha por uma vaga na Universidade Pública.
Durante os 5 anos de estudo para ingressar na Universidade, ouvi várias piadinhas de
mau gosto do tipo: “Deixa de insistir com o vestibular, isto é coisa para filho de rico o que
você pensa que é, vai trabalhar para encher a barriga que você lucra mais”. Escutei de tudo,
até mesmo que não seria capaz, mas isso tudo só me deu incentivo para mostrar que mesmo
com todas as dificuldades poderia atravessar os portões da UFRN.
Quando passei no vestibular, comemorei em casa com minha família e meu noivo que
tanto me apoiaram na caminhada. Devo muito o ânimo ao seu João, meu pai, e dona Socorro,
minha mãe. Ao Paulo Junior, meu noivo, que sempre foi muito perseverante.
Ao chegar na UFRN para o cadastro dos calouros foi que a minha ficha caiu de verdade:
estava eu finalmente na Federal! É um outro mundo, cheio de possibilidades que não
existiram no tempo de escola. Na Universidade tudo acontece ao mesmo tempo e me cabe
estar atenta para não deixar as oportunidades preciosas passarem.
Logo no 1º semestre, fiquei sabendo de uma bolsa de extensão em um projeto novo
Conexões de Saberes, que buscava jovens de origem popular, assim como eu. Um dos
critérios da seleção para a bolsa era que o estudante fosse calouro e de origem popular.
Inscrevi-me e consegui uma vaga entre as vinte cinco oferecidas.
Foi por meio do programa que tive a oportunidade de viajar de avião para o II Seminário
Nacional do Conexões de Saberes. Como presente, estava eu voltando, depois de 13 anos,
ao estado onde nasci, o Rio de Janeiro.
Irei agora falar do projeto de extensão do qual faço parte. Ele fica em um assentamento
agrário de nome Aracati, localizado no município de Touros (RN). Os moradores do local
são pessoas simples e muito receptivas. A experiência de viver esse projeto é única para
mim, pois poder presenciar um novo modo de vida e trocar experiências com as pessoas do
local tem sido maravilhoso: levarei essa experiência para toda a vida.
Como já havia dito antes foram 5 vestibulares, todos um atrás do outro: 2 para Enfermagem, 2 para Farmácia e o último em que fui aprovada, Aqüicultura. O curso trabalha com
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Caminhadas de universitários de origem popular
cultivos aquáticos e todo ecossistema aquático. Tenho o prazer de dividir essa experiência
com uma colega de curso, Izabel Andrade que, em sala de aula, fica em grupo diferente, mas
agora nos aproximamos e tenho um carinho especial por ela.
Ofereço essa pequena parte da história da minha vida, primeiramente a Deus por
permitir que meus pais pudessem nascer, crescer, se conhecerem, se relacionarem e proporcionarem o meu nascimento para poder estar aqui contando um pouco do que se passou na
minha trajetória.
Aos meus queridos e amados pais que me trouxeram ao mundo há quase 25 anos atrás.
Quero aqui deixar registrado que eles são a minha fortaleza, meu tudo, a razão de estar
buscando um futuro melhor para garantir uma velhice mais confortável e tranqüila para
eles. (Seu João e dona Socorro, amo muito vocês!).
Agradeço também ao meu irmão, João Carlos, e a uma pessoa que alegra a minha vida
e a de todos lá de casa, o meu sobrinho e afilhado João Nicollas. (Amo vocês, meus queridos!).
Ao Paulo Junior, meu noivo, por tudo que já passamos juntos, todo o meu amor. Se
não fosse sua ajuda para conseguir bolsas de estudos em cursinhos e pagar cursos isolados
e aulões, enfim, não estaria escrevendo essas linhas para este livro. (Amor, te amo muito!).
Enfim, a toda minha família e amigos, em especial a minha avó que não está entre nós,
a vovó Elizia Emília e a outra avó que está viva, a vovó Roselita. Tanto vocês confiaram
que eu chegaria lá, que estou aqui. (Queridas vovós amo vocês!).
E a vocês, leitores, pela atenção, pelo fato de abrirem este livro e lerem a minha
história. Muito obrigada a todos!
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Uma princesa chamada Izabel
Izabel Cristina de Andrade*
Viver e não ter a vergonha de ser feliz,
cantar e cantar e cantar a beleza de ser um
eterno aprendiz ah eu sei, eu sei que a vida
devia ser bem melhor e será, mas isso não
impede que eu repita: é bonita, é bonita e
é bonita.
Gonzaguinha
O alicerce de tudo
Por que esse título para a minha história? Porque muitas pessoas brincam com o meu
nome, lembrando da princesa Izabel Cristina, que possuía vários nomes e assinou a lei
áurea, lei essa que libertou os escravos. Assim, gosto da brincadeira e também do
nome, é claro!
Sou a caçula de cinco filhos, moro com os meus pais no bairro Potengi, em Natal/RN.
Os meus irmãos (dois homens: Gilvan e Josivan e duas mulheres: Josi e Zeti) começaram a
trabalhar muito cedo para ajudar em casa. Comigo foi diferente, pois tive a oportunidade de
estudar mais tempo e conseguir o ingresso na universidade. As minhas irmãs, Josi e Zeti,
tentaram duas vezes o vestibular, cada uma, mas não conseguiram a aprovação. Os meus
irmãos, Gil e Josivan, sempre gostaram mais de trabalhar. Tenho um sobrinho de onze anos,
filho de Josi, super sapeca, mas é a alegria de todos e, principalmente, dos meus pais,
Ivonildo e Izabel.
Entrando na escola
Da primeira a quarta série estudei na Escola Estadual General Dióscoro Vale (todas as
vezes que fazíamos trabalhos, tínhamos que colocar o nome da escola completo Escola
Estadual General Dióscoro Vale, haja paciência fazer isso todas as vezes!). Sempre tirava
notas boas, por isso muitos pediam ajuda, a famosa cola, mas eu tinha medo de ser percebida
pela professora na hora da prova. Lembro de uma vez que fui escolhida para representar a
turma em uma gincana. Era feita uma pergunta e tínhamos que pular com um saco de náilon
(com as pernas dentro do saco) e pegar a resposta do outro lado em um papel no chão. Caí
no meio do caminho, desesperada e com o joelho machucado. Levantei rapidamente e
ainda consegui pegar a resposta e assim ganhar a prova.
* Graduanda em Aqüicultura pela UFRN.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Apesar de ter participado dessa gincana, nunca fui muito espontânea. Era muito
tímida, tinha apenas três amigas, Deise, Renata e Valéria, pois desde a primeira série
estudava com elas. Era um tempo bom, sem muitas responsabilidades, nos divertíamos
muito. Lembro que Renata trazia uns cartões com poemas e dava para a gente, e eu os
guardei por um bom tempo. Nessa época, meu pai trabalhava de cobrador de ônibus e conseguiu uma bolsa parcial, em uma escola particular, meus irmãos pagariam a outra parte.
Quando fiquei sabendo, não acreditei que iria deixar os meus amigos e a escola na qual
estudara quatro anos, mas minha família explicou que o ensino seria melhor, eu teria boas
oportunidades, e por isso, aceitei.
Da quinta à oitava série estudei no Centro Educacional Andorinha, que não era uma
super escola, mas era onde eu podia estar. Fiz esportes, tive aula de informática, de Inglês
(era só o verbo TO BE, mas tudo bem!). Fiz muitas amizades, e uma delas reencontrei no
Conexões (Fábia); com outras mantenho contatos. Mas nessa escola não consegui manter o
meu rendimento, fiquei até uma vez em recuperação na sétima série na matéria de Desenho. Na
oitava série, comecei a me preparar para ingressar no CEFET. Como era de uma escola
particular, só fazia uma prova (quem era da escola pública fazia três provas). Não consegui
passar, fiquei triste, mas não adiantava me lamentar.
O Segundo Grau: vida e descoberta
Com a não aprovação para o CEFET, procurava agora uma escola boa, pois meu pai
não tinha condições de me manter em um colégio particular, por isso procurei o ensino
público. Matriculei-me no Anísio Teixeira, que tem um bom ensino técnico profissionalizante.
Fazia o curso de Contabilidade. No primeiro ano, vimos o básico de todas as matérias,
com professores estagiários. Com isso, vocês percebem a dificuldade que iria ter quando
prestasse o vestibular! No segundo ano, das matérias do vestibular, só tínhamos Português
e Matemática, as demais eram da área técnica, por exemplo, Administração, Economia,
Matemática Financeira. No terceiro ano, comecei a me preparar para o vestibular. Como
estudava pela manhã, iniciei o cursinho à noite, era cansativo, porém continuei a fazê-lo.
A batalha
Mesmo com essas dificuldades no ensino, tentei o vestibular para Ciências Biológicas.
Fui eliminada logo na primeira fase, tinha acertado apenas uma questão em Química, uma
das matérias essenciais da área. Mas não desisti e tentei novamente para Biologia. Fazia
cursinho à noite, estudava durante o dia, e ia aos aulões no final de semana. Nesse ano
(2001), estudei muito com uma amiga minha, Ana Ruth. Ia a casa dela toda tarde estudar, se
bem que, às vezes, ficávamos conversando e a tarde ia embora. À noite íamos ao cursinho.
Ela tentou vestibular para Direito, mas esse ano não era o nosso. No ano seguinte, mudei o
turno para a noite e ela tentou Letras - Português. Torci muito por ela, pois me ajudou muito
e é uma grande amiga. Ela conseguiu a aprovação, mas eu não. Fiquei à procura de outra
pessoa para estudar. Minha vizinha, a Fernanda, também tentou o vestibular para Biologia.
Passei a estudar com ela todos os dias, à tarde e à noite, depois passamos a estudar também
pela manhã. Era muito engraçado quando levava uma mesinha para a casa da Fernanda para
podermos estudar. Todo mundo na rua ficava olhando para mim, nós nos divertíamos muito
com isso, apesar da situação ser também difícil.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
87
Após quatro meses de estudo, ela foi chamada para trabalhar na Vale do Rio Doce. Eu
estava acostumada com a rotina de estudos; com a ida dela para o Pará, perdi o ritmo,
acordava tarde e estudar sozinha não era a mesma coisa. Resultado: mais uma reprovação.
No ano seguinte (2005), comecei a trabalhar no período da manhã, mas sempre deixava um
tempo para estudar. Iniciei um cursinho no meio do ano, mas o "pique" não era o mesmo. Já
não queria um curso tão concorrido. Fiquei na dúvida entre Engenharia de Alimentos ou
Aqüicultura (estudo dos animais aquáticos) e tentei mais uma vez.
Um Sonho: Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Fiz o vestibular para Aqüicultura no final de novembro de 2006, só corrigia as provas
quando terminava tudo. Fui bem, fiquei satisfeita com os acertos. Quinze dias após, saiu o
resultado da primeira fase, tive uma boa colocação (a vigésima das 30 vagas oferecidas pelo
curso). O resultado final só sairia no dia vinte de janeiro, mas saiu dia dezesseis. Estava
trabalhando, quando cheguei em casa, o resultado estava saindo na TV e no rádio. O meu
curso era um dos últimos, mas o primeiro da Biomédica. Diana, uma amiga que faz Serviço
Social, me ligou perguntando o meu nome completo, porque tinha uma homônima na
turma. Diana olhou, e meu nome estava lá, consegui a aprovação! Abracei os meus pais e a
Zeti me ligou dando os parabéns. Nem acreditava que agora era uma universitária!
Conquista
As aulas iniciaram no final de fevereiro, e no segundo dia de aula foi o trote, pagamos
uns micos, mas é normal. Também com as aulas, começaram as preocupações com os gastos,
já que não podia trabalhar, pois o curso é manhã e tarde, e sabia que meu pai não podia
ajudar em tudo. Pedi muito a ajuda de Deus, pois não queria desistir do curso. Mas no
primeiro semestre deu tudo certo. No segundo semestre, foi melhor ainda, consegui a bolsa
do Conexões de Saberes. Já participo da pastoral social na Igreja, onde trabalho também em
comunidades populares, e ajudo na pastoral da criança. Estou adorando, aumentei os meus
conhecimentos, conheci a realidade de outros cursos. Não sei quanto tempo a bolsa vai
permanecer, mas quero aproveitar tudo o que acontecer no Conexões. Agradeço a Deus por
tudo que conquistei, pela minha família maravilhosa, meus amigos, a minha turma de
aqüicultura, ao pessoal que estudou comigo no ensino fundamental, a turma do Conexões,
aos professores que participam deste projeto, a você, Grasiele: obrigada por tudo e a todos
que participaram direta ou indiretamente da minha vitória.
Sonhe com aquilo que você quiser, vá para onde você queira ir,
seja o que você quer ser por que você possui apenas uma vida e
nela só temos uma chance de fazer aquilo que queremos.
Autor desconhecido
88
Caminhadas de universitários de origem popular
Dos atores e das cenas
Janeide Maia Campelo *
Não faças do amanhã o sinônimo de nunca,
nem o ontem te seja o mesmo que nunca
mais. Teus passos ficaram. Olhes para
trás... mas vá em frente pois há muitos que
precisam que chegues para poderem seguir-te.
Charles Chaplin
I Ato
Na última fila, ainda tímida, pois era uma experiência nova, encantadora...
Casa cheia, luzes acesas, apagadas e depois acesas outra vez. Até que apagaram
novamente e o silêncio foi absoluto. Na última fila, contorcendo-se toda para não perder
nenhum detalhe, esperando entrar em cena uma grande atriz e, quando ela entrasse, o palco
seria só dela. A ela que seriam direcionados todos os olhares, dela seria a iluminação
especial, todos os comentários seriam a seu respeito. É... aquele era o seu momento. Era
aquilo que ela sabia fazer, que fazia de melhor. E eu, na última fila, tinha feito parte de tudo
aquilo. Eu estava emocionada, era novo, era mágico. Por um momento, como se também
tivesse vivido por trás das cortinas, pude ser eu, sem personagem, apenas eu, encantada com
mais uma experiência nova. Exatamente como naquele dia, aquele, não há muito tempo...
ele nunca saiu da memória...
Cena I
(Personagem em primeiro plano, fala ao telefone).
- Só liguei pra dizer que você está de parabéns. Acabei de ver em uma página na
internet, você passou.
- Tá. Obrigada.
Foi assim, sem euforia, sem exclamações. Não que eu não estivesse feliz, é que eu
ainda não conseguia acreditar que era verdade, que tinha conseguido, que era eu. Foi um
ano difícil, sei muito bem dos dias e noites que estudei, do longo percurso até aqui. Sim, as
lembranças daquele ano me tiram as palavras...
*
Graduanda em Letras pela UFRN.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
89
(Insegurança e ansiedade caracterizam o comportamento da personagem, que chora
sem querer, enquanto põe roupas amassadas dentro de uma mochila velha. Personagem em
segundo plano, quarto pouco iluminado).
Arrumei as malas. Era a primeira vez que saía de casa, sem saber direito o que queria
(projetos de vida aos dezessete são tão instáveis quanto às previsões do tempo), sem saber
como fazer para conseguir. Briguei com meu pai, minha mãe, meus antigos conceitos,
briguei com meu mundo. Estava na hora de compor meu personagem, subir no palco para
contar a minha história...
E foi isso que escrevi no meu diário naquela noite antes de viajar para Assu (interior
do RN) para morar com uma amiga, e trocar os desenhos animados pelo diário de notícias:
(Saudades antecipadas, palavras novas num diário velho. Quarto, diário e uma presença,
existia outra pessoa lá).
Meia-noite. Estou na casa de uma amiga (tive de vir dormir aqui, pois viajaremos
juntas amanhã) estou com muitos sonhos, com muitos medos... mas não foi isso que disse ao
meu pai há alguns momentos, não disse para ele que não é o que gostaria de estar fazendo,
e sim, o que precisa ser feito.
O estranho é que não sei se estou preparada, não sei se isso tudo está realmente
acontecendo. É difícil acreditar que se foram os tempos da escola, da feira de ciências...
acho que isso é saudade, saudade antecipada. Estou começando a acreditar que não importa o
tamanho da distância, não interessa se é um quarteirão, um bairro, um país. A saudade acaba
sendo a mesma. Acho que vou ter de encontrar novos namoradinhos, tomar novos banhos
de chuva, descobrir outra sorveteria legal... vou ter de tornar outras ruas especiais...
Vou fazer tudo isso e vou fazer mais! Vou lutar por um sonho maior, um sonho que
acredito ser capaz de tornar real, vou trabalhar e estudar muito, vou entrar na universidade,
me formar, tentar uma vida melhor. Pois sei que não posso ficar aqui e deixar as coisas
passarem, deixar os anos passarem, hipnotizada pela programação da TV. E se toda
caminhada começa com o primeiro passo, acho que já está na hora de dar o meu... é... acho
que não estou sozinha nessa...
Novo cenário, novos personagens, textos novos. E eu? Eu tinha acabado de concluir
o Ensino Médio. Na escola, fui apresentada a Machado, a Darwin, aos verbos transitivos...
adicione a isso Beatles, Kurt Cobain e algumas roupas rasgadas e bem vindo à minha vida.
Foi assim, todo o tempo de escola e, quando terminei, foi exatamente como um verbo
transitivo que eu me senti, afinal o que fazer? Para que fazer?
Estava atrás das cortinas, não sabia quem estava na platéia, com quem poderia me
deparar quando acendessem as luzes, por quem eu chamaria quando o silêncio chegasse, e
quem entraria a cada ato. Não havia script, não havia ensaio. O que faria quando errasse o
texto que não escrevi?
(Luzes. Crianças conversam em outro lugar do palco.)
- Eu quero outro!
- Mas por quê?
- Ah! Não tá bonito, eu quero outro!!!
90
Caminhadas de universitários de origem popular
- Tá bom, vou ver se tem outro...
- Tá aqui, mas tenta colorir direitinho, porque foi o último.
Não sei o motivo de nunca levar a tia Aninha (minha professora da segunda série) a
sério, talvez porque já soubesse que não adiantava ela dizer que era a última vez que me
daria o desenho, pois sempre que eu chegasse e dissesse que estava arrependida de ter
pintado o sol de azul e as árvores de cor-de-rosa ela acabaria me dando outro desenho até eu
achar que estava perfeito.
Há tempos que não lembrava da tia Aninha, há tempos que não a vejo, mas hoje, as
lembranças das breves conversas que tinha com ela me remetem a algo maior.
O cenário em que me encontro, já foi mais colorido, mas nunca foi tão real. E essa
realidade foi em grande parte, pintada pelas minhas mãos, pelas escolhas que fiz, se foram
boas ou ruins, não sei, o que sei é que as vejo quando estou só, quando fecho os olhos e que
elas me fazem “voltar no tempo” por alguns instantes... fiz muitas pinturas para o meu
cenário, pintei coisas nas quais acreditava, coisas que me davam alegria, que me davam
medo e, vez por outra, as vejo, as toco, as retoco.
Era o meu cenário, era o meu mundo. E foi nele em que vivi até os treze anos.
(Fim do primeiro ato. Luzes no palco. Personagens em 1º plano. Retrospectiva marcada
pelo jogo de cor e luz).
II Ato
Cena I
(Pai e mãe da personagem aparecem, em segundo plano, conversando. Personagem,
em primeiro plano, parece tentar ouvir vozes).
- Não dá, vamos ter de vender.
- Tem certeza? Vamos fazer outro empréstimo, quem sabe dessa vez dê certo.
- Não dá, são muitos prejuízos, é melhor resolvermos isso o quanto antes, já estou
muito cansado, já não agüento mais!
- E de que vamos viver agora?
- Não sei, não sei...
Foi o que ouvi atrás da porta que dava entrada para cozinha. Eram meus pais que
conversavam. Faziam contas e mais contas e falavam sobre a venda de um pequeno mercadinho
que possuíam no bairro em que morávamos e do qual tirávamos todo o nosso sustento.
A conversa acerca da venda tornou-se cotidiana e, por conseqüência, do conhecimento
de todos nós, já que eu sou a terceira de seis filhos.
Não entendia nada. Escutava, ficava preocupada, tinha medo do que seria dali para
frente e, como qualquer adolescente de quatorze anos, acreditava que tudo daria certo,
afinal, era o meu pai que resolveria tudo, sim, heróis podem tudo!
Meus pais venderam o mercadinho e tudo o que acharam necessário, inclusive, duas
motos que eram o xodó do meu pai, nos mudamos para uma casa de qualidade inferior e
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
91
passamos por algumas privações que apesar de nunca termos sido ricos, não estávamos
acostumados...
Tudo aquilo me fez duvidar das minhas pinturas...
Meu mundo não era aquele. O que havia acontecido com os desenhos que fiz?
Não vi a tia Aninha, não podia pedir outro desenho, e tentar colorir de outra forma, só
restava arrumar as coisas da melhor forma possível, encontrar outra maneira de mudar o tom
daquele céu...
(Fim do II ato. Mudança de luz para marcar a mudança de tempo).
III Ato
Cena I
Foi por isso que naquela noite, por um momento, acreditei que tudo o que sonhei
tinha acabado em pizza.
(Luzes. Personagem sentada escreve).
“Eram uns quinze, todos comemorando a aprovação no vestibular de UFRN e eu lá
perguntando se era calabresa ou muzarela... voltei à cozinha para conferir os pedidos,
estava cansada. Trabalho todas as noites, a noite inteira, já não tenho tempo (nem ânimo)
para estudar, acho que entrar na universidade está se tornando um sonho cada vez mais
distante, ainda parabenizei a galera, e ainda ouvi uma vozinha que resistia, insistia em dizer
que valia a pena sonhar”.
Era a minha chance, tinha de fazer alguma coisa para conseguir entrar na universidade, tinha de aprender a me virar sozinha, e fiz. Foi por isso que decidi ir, que decidi correr
atrás de um sonho que nem sabia direito qual era. Não tinha muitas certezas, não sabia
direito o que era universidade, mas sabia que não queria ficar ali, e que meus sonhos
também não... foi com essa certeza que “larguei” Santa Cruz (também interior do RN)
cidade onde sempre moraram (e ainda moram) meus pais, terra onde cresci.
(Fim do III ato. Fecham-se as cortinas).
IV Ato
Cena I
(Personagem em primeiro plano, aparenta nervosismo, cadeiras em fila no palco).
Muita merda!!!
Foi tremendo que “encarei” aquela sala lotada.
Sabia que qualquer erro poderia me comprometer, estava nervosa, nunca tinha feito
isso antes. Tinha de ter segurança, de estar “por dentro da matéria”!
92
Caminhadas de universitários de origem popular
Não podia acreditar que estava dando aula de português numa turma de cursinho.
Assim como ainda não consigo acreditar em muita coisa que me aconteceu depois daquele
dia, daquele telefonema. Naquele momento, com todas aquelas pessoas me olhando, e eu
tremendo por dentro, lembrei de tudo o que tinha me trazido até ali, de todas as noites de
estudo, de trabalho, de insegurança.
Tinha, mais uma vez, deixado meus pais, minha família, para continuar lutando por
sonhos, sonhos que sonhei no camarim: entrar na universidade foi um deles e permanecer
nela é subir no ringue e travar uma luta comigo e com a vida. Uma batalha que, apesar dos
pesares, tem me feito aprender muito. Lembrei dessa batalha de hoje e de tantos dias que
perdi as contas, naquela tarde aos pés do Cristo Redentor, quando vi que a menina do sertão
tinha crescido no palco e que ele era bem maior do que eu pensava. Lembrei de todas as
pessoas que passaram por ele, e vi a importância de cada ato. Aprendi muito em Assu. Foi lá
que chorei em cena pela primeira vez, foi lá que aprendi a dormir no escuro, a subir no palco
com pessoas que não queria, a querer fechar as cortinas antes do fim do espetáculo, a
perceber que nem todas as noites são noites de casa cheia. Que nem sempre seremos aplaudidos...
Aprendi que, realmente, aquele telefonema não poderia ocasionar algumas exclamações,
alguns sorrisos, ele tinha de ter (e teve) uma razão maior, um efeito maior. Um efeito que a
cada dia me coloca em xeque, me faz esquecer o texto, dormir em cena. Mas acima de tudo,
me mostra que eu posso escrever meu roteiro. Que me faz ter fé, uma fé que me renova e que
me faz entrar em cena a cada novo dia. E quando as cortinas se abrem, quando eu sinto
aquele frio na barriga por não saber quem virá, ou quais serão as falas, eu agradeço.
Agradeço as pessoas que ocuparam e ocupam espaços na minha vida. Obrigada mamãe
e papai por me ensinarem a enxergar a grandeza das coisas simples; trago-os na lembrança,
no coração. Agradeço a você, Nilda, que sempre foi mais que minha irmã, foi minha amiga,
minha cúmplice, por me dar forças quando as luzes se apagavam, quando eu esquecia as
falas, quando nem mesmo sabia se realmente haveria o que lembrar...
Mas acima de tudo, de todos, agradeço ao grande idealizador desse espetáculo. A
alguém que nunca me deixou vê-lo, alguém que sinto ao fechar os olhos. Sim. Ele está ao
meu lado todos os dias. Sei que pega na minha mão antes de cada cena, me diz a fala quando
me perco, e quando as luzes se apagam, quando desesperada, recito meus monólogos, Ele os
escuta pacientemente. Sei que posso contar com Ele, que o verei na primeira fila, me
mostrando que os dramas de hoje, podem ser as comédias de amanhã. Ele me trouxe aqui e
me deu a oportunidade de saber que nossa vida pode ser o que nós quisermos: um drama,
uma notícia, uma comédia, um relato, uma peça ou até mesmo um conto de fadas... mas, o
sucesso da bilheteria depende única e exclusivamente de cada um de nós, da nossa coragem
de passar para o primeiro plano. Obrigada, Senhor Diretor!!!
(As luzes iluminam a platéia. Personagem desce, caminha entre as pessoas e escolhe
entre elas algumas a quem dá a mão para sair. Cortinas fecham-se no palco. Personagem e
público interagem. Fim).
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Minha vida, minha poesia...
Jânio Cesar da Silva*
O FIM DOS NOVE MESES
Chão a tremer após temerosos abalos a castigar a cidade,
Terra de gente honesta, a Baixa-verde de outrora,
É onde, mui felizmente, provo da natalidade,
E em meio a não pouco amor, sou recebido na aurora,
Sem medo algum da realidade, estive vivendo com vontade,
Contudo, mesmo sendo forte, jamais acreditaria que homem não chora,
Eis que assim começou a história de um vencedor
Que jamais em sua vida se deixaria vencer pela dor.
ASSIM SE VENCE NA VIDA
Nome de presidente, tinha objetivos a conseguir,
Uma vida nem sempre contente, mas estive olhando pra frente,
Sabendo aonde queria ir.
Resolvendo todo problema pendente,
É que passava, não facilmente, por todos os obstáculos por vir.
Contando, constantemente, com toda a humildade e hospitalidade de nossa gente.
Quanto às pessoas orgulhosas, passemos adiante,
Pois melhor é ser pequeno e feliz do que ser triste e gigante.
COISAS DA INFÂNCIA
Carrinho de plástico? “Prefiro” de sapato,
Bola de borracha? Façamos de meias,
Para ser feliz de fato, nada mais é exato
Do que ter amor no peito e barriguinhas bem cheias.
Branquinho brincando, brinquedo barato,
Felicidade, todavia, como água em fonte, jorrando em incansáveis veias.
Da fase aqui falada, ficarão futuramente focados os fatos,
Inseparáveis eu e minha infância, como os pés e os sapatos.
* Graduando em Engenharia de Materiais pela UFRN
94
Caminhadas de universitários de origem popular
Alegro-me ao primeiro sinal de lembrança
Das brincadeiras nas claras ruas da cidade minha,
Em mim povoa ainda a criança
Que a tristeza e amargura jamais vez tinham,
E que ao surgir o primeiro fio de esperança,
Dava sempre um jeito em tudo e alegria obtinha.
Para a escura realidade, propunha a inocente persistência,
Sorria, brincava, pulava; cada vez com mais freqüência.
Daqui dá para ver criança rica,
Todavia não dar para sentir o que sente,
“Mas não se preocupe, seu “Cuíca”,
Você é muito inteligente
E um dia ainda muito mais terás
Do que se passa em sua pequena mente.”
Minha mãe e suas implacáveis sentenças,
Mulher digna, justa e também de muitas crenças.
Jamais poderia esquecer agora
Das duras e árduas caminhadas.
Tinha sempre de sair na hora
Pelas ruas e calçadas
Chamando “meu irmão, vamos embora”
As brincadeiras estão encerradas
Minha rotina de todo-dia
que por necessidade, quase tudo vendia.
Das traves das nossas brincadeiras
Nenhum entrave posso dizer que ficou
O sol que batia na janela e nas prateleiras
Anunciara mais um dia que Deus me apresentou
Para, de fato, ser criança e fazer muitas besteiras
Viver da forma pela qual a “escola-mãe” vida me ensinou
Mesmo sendo, pelos problemas de família, pressionado
Tudo fazia para ser chamado Filho honrado
Nas cacimbas em que outrora água ia buscar
Afogo-me agora em boa lembrança
Dos bois que muitas vezes vi a pastar
Hoje somente os tenho em comilança
Nos açudes onde ia pescar
Hoje sou fisgado pela rotina que me cansa
E, ainda assim, muitas vezes cansado e enfadado
Revivo em muitas memórias esse tempo encantado...
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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RECORTE DO CORTE DO CORDÃO DO UMBIGO
Separação, choro, aula primeira, irmã vem comigo, mas logo vai embora...
Perante tamanha tristeza,
Coisa nenhuma me resta agora,
Senão olhar pro rosto da “tia”, que beleza!
Assim, logo o sinal toca, vou pra casa sem demora.
Ó, Deus meu, que malvadeza!
O costume e o prazer não demoraram, porém, a virem,
E em lugar nenhum mais queria estar se não fosse ali.
Anos para trás, responsabilidade à vista,
Escolinha, até mais,
Foram tempos de conquista...
Sendo a realidade voraz,
Era, portanto, realista
Preservando os bons amigos e pregando sempre a paz
Amigos meus de corpo e mente,
Agradeço-lhes por não pouca coisa, humildemente.
DO DERRADEIRO AO APOGEU
Dificuldade? Conjunto de fonemas,
Era assim, pois que pensava,
Ao surgirem os grandes problemas
A cada ano a aula piorava.
Cidade pequena e seus dilemas,
Minha saída não mais tardava.
Oportunidade! Escola agrícola, muita gente a dizer!
“Passei no exame!” Mudança de vida vai haver.
Família orgulhosa, obrigado ó, Deus meu!
Pois coisa boa em minha vida
Tenho certeza que nesta hora ocorreu.
Saí da minha terra querida
Saudades ficaram e não pouco doeu
Mas vamos logo, pessoal, que o carro está de saída!
Segundo grau tão esperado!
Aqui começo um caminho muitas vezes nem traçado.
Subestimar, ato demasiadamente errado,
Por este mal muitas vezes passei,
Por ter cara de menino recalcado,
Muito olhar de cima levei,
Mas me fez um bem danado
Quando, a volta por cima, dei.
A humildade comigo estava,
E bastante feliz me tornava.
96
Caminhadas de universitários de origem popular
Motivado pela vontade de estudar,
Até num quarto, dentro de um lava-carros
Cheguei, feliz ou infelizmente, a morar
Dez, vinte, trinta ou quarenta centavos,
Muitas vezes vieram a faltar
Tinha, contudo, três amigos esforçados
Que alegria e sofrimento com eles dividia,
Rafael(Miau), Renan e Antogoni, meu amigos de todo dia.
Nos primeiros dias a muitos ventos de meu lar,
Sei que possível não seria
De minha memória apagar,
As noites que mal dormia
Resquícios de um limitado lugar,
Dividia com três amigos e os roedores a moradia
E quase fome -”Deus que me livre!”- passei,
Mas tive pessoas com as quais sempre contei.
Primeira aula lá vem, estou num grau mais avançado,
E aquele menino do interior, pode acreditar,
No futuro parece ter pensado,
E não se vai deixar abalar
Por um obstáculo que não seja pesado,
Na sua vida um ideal: Estudar, estudar e estudar.
E se o cansaço os olhos não fosse capaz de escurecer,
As letras e os números tratavam de assim o fazer.
Dizem que depois da tristeza vem a alegria,
De fato, tinha de nisso acreditar.
Pensar o contrário nada bastaria,
Queria estar num melhor lugar
E consegui com muito esforço e euforia
Na própria escola morar.
Deste dia jamais esqueço
Dizia para mim mesmo: “lutei muito e mereço”.
Se passando por tanta tribulação
Ninguém me via da vida reclamar,
Agora que estava em melhor situação,
Seria difícil minha cabeça baixar.
Entretanto, sempre comigo estava a sensação
De que muita coisa ainda precisava melhorar
Até porque, realmente, não estava perfeito
E a perfeição não é facilmente atingível desse jeito.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
97
Primeiro ano vencido, muito esforço, muita correria
Das ciências agrárias, muita noite estive a estudar
Contudo em meu rosto não se via alegria
Pois o que queria de fato semear
Era a tecnologia
Fiz novamente o exame e passei. Modéstia à parte, em primeiro lugar.
Da tecnologia que plantei, muitos frutos cheguei a obter
Conhecimento, amigos, viagens e respeito: estava com isso agora a conviver.
Segundo ano, não tive do que reclamar
Estudava, morava e comia feliz da vida.
Sempre, é claro, de casa a lembrar
E em meu coração minha família querida
Que torceu para ali eu estar,
Todo início de crise ou mágoa era vencida.
Mas sabia que, dos desafios, o maior estava por chegar
E que fôra batizado de vestibular.
DAVI VENCE GOLIAS
Três, dois, um... Eis que Dois mil e cinco está à porta a bater
Nos mais sensíveis dos sonos, estava eu a dormir
Esperando “o abrir dos olhos” para “o abrir dos livros” também ocorrer,
Se meu livro de Física pudesse falar, não me deixaria mentir.
Foi bom ter dormido em muito anoitecer
Da minha cama agora deveria fugir
E cochilar significaria fraquejar, tinha que disso esquecer,
Apesar dos conselhos contrários que vieram me dizer.
Seria covardia das madrugadas, a esse ponto,
Dizerem que nunca notaram meu sono a ignorar
Foram-se noites de chuva, manhãs ensolaradas
E eu páginas e mais páginas a folhear
Com uma voracidade de onças pintadas
E a ajuda do Mestre divino que nunca veio a falhar
Consumado estava o meu difícil destino
Imponente como homem, temeroso feito menino
Conhecimentos: ferramentas de paz ou de lutas.
Para vencer esse desafio, muito teria de soar
E então colher a mais doce das frutas
Nesse desafio que ia enfrentar
Em mãos fortes, firmes e enxutas
Estava meu lápis valsa a dançar
Resolvendo umas e outras questões
E em expectativa a esperança de muitos corações.
98
Caminhadas de universitários de origem popular
Duas vezes vim o vestibular a prestar
Fui aprovado no primeiro
No entanto, resolvi depois mudar
Pelo sonho de ser engenheiro
E do que eu mais gosto poder estudar
E dar uma vida de lugar primeiro
A minha querida família, que muito tenho a considerar
E sei que um dia, com fé em Deus, vou poder ajudar.
CONTRARIANDO O FILHO PRÓDIGO
Limitações grandes, proporcionais às criações,
E não me canso de assim falar,
Falo-lhes de alguns corações
Que nunca deixavam se amargar,
Sempre inventando novas emoções
Para do sofrimento jamais provar.
Irmãos meus, guerreiros! Não de romance, mas da vida real
Pode ter historia parecida, mas nunca haverá outra igual.
Mães heroína querem todos ter,
Quanto a isso não tenho do que reclamar,
Ao nascer já pude perceber
O amor da pessoa que não deixaria minha vida amargar,
Dona Maria Salete... Muito tenho a lhe agradecer
Pelas vezes em que não me deixou chorar
A criança que do seu ventre veio à escola da vida
Lembrou-se de você quando pequena e jamais te esquecerá hoje crescida.
As cores do arco-íris
Tão belo no céu
Estão também nas faces
Das pessoas que passam
Vejo os amigos apertando as mãos
Dizendo, “Como você vai?”
Na verdade estão dizendo:
“Eu amo você!”
Louis Armstrong
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
99
Um potiguar de sorte
José Alexandre Félix de Freitas*
Se eu criei, eu posso destruir.
Acreditando em mim nada me deterá.
Alexandre Freitas
Nasci no interior do Rio Grande do Norte, numa cidade chamada Santa Cruz, mas
sempre morei em Lajes Pintadas, também situada no RN. Sou filho primogênito de uma
família de sete pessoas. Meus pais sempre foram agricultores, embora meu pai tenha trabalhado
por um tempo na capital, sempre foi da terra que retiramos boa parte do nosso sustento.
Quando era pequeno, tinha fama, não sei por que, de menino educado, estudioso,
inteligente e um exemplo para a sociedade. Acho que isso se devia ao fato de nessa época
ser muito tímido, retraído, como meu pai dizia “beradeiro” e, talvez esse medo de me
expressar, acabasse formando a imagem de bom menino perante todo mundo.
Da minha infância, um dos fatos que não posso deixar de mencionar era o fascínio que
tinha pela TV e pelos programas que nela passavam. Como, por exemplo, as séries japonesas,
Jaspion, Flashman e Changman, elas realmente faziam minha imaginação fluir. Lembro-me
também que adorava pegar passarinhos, atirar de “baladeira” e tomar banho de açude. Pena
que os bons tempos não voltam mais!
Outro fato marcante, ainda da minha infância, era a ausência do meu pai. Como a
agricultura não era suficiente para o sustento da família, ele tinha que buscar outra fonte de
renda. Assim, não lhe restou alternativa a não ser ir para capital trabalhar como servente de
pedreiro. Dessa forma, ele só retornava para casa de 15 em 15 dias, mas mesmo assim,
sempre procurou dar o máximo de atenção a todos os seus filhos.
No ano de 2000, quando tinha 17 anos, consegui, ainda que por algumas semanas, um
emprego. Foi numa fazenda que fica cerca de 5 quilômetros da minha cidade e, como era
período das chuvas, meu trabalho seria na plantação de milho. Meu pai já havia falado com
o dono das terras e tinha dito a ele que eu só daria conta de soltar os grãos na terra, pois ainda
não sabia lidar com a enxada. Desse meu “emprego”, um momento que ficou guardado na
memória foi receber meu primeiro salário. Nossa! Mil e um planos para quase nada de
dinheiro... como a maioria dos jovens, acabei gastando tudo em roupas!
Estudei em escola pública do ensino fundamental ao médio. A minha turma de ensino
médio, por sinal, foi a pioneira do curso científico na minha cidade, extinguindo assim o
antigo magistério. Por incrível que pareça, essa turma foi a única que não realizou a tão
* Graduando em Matemática-Licenciatura pela UFRN.
100
Caminhadas de universitários de origem popular
falada colação de grau, que consiste em uma missa que é feita em homenagem aos concluintes
daquele ano, e também, em uma festa no pátio da escola onde todos se reúnem com os
familiares para fazer uma grande comemoração. Se bem me lembro, isso se deu pelo fato de
o diretor da escola não falar com o padre a tempo de programar o evento. Como ninguém se
mobilizou, acabamos não fazendo nada mesmo.
Em 2001, logo após ter concluído o ensino médio, recebi uma das propostas mais
tentadoras da minha vida. Sempre tive admiração pela profissão de professor, mas achava
que não conseguiria seguir carreira, pois, seria muito chato ter que repetir a mesma coisa,
sem falar que minha timidez não me deixaria em paz. Bem, em um domingo pela manhã,
estava todo mundo em casa assistindo, se não me engano, ao globo rural, quando recebemos
a visita de uma professora. Ela queria falar comigo a respeito de umas aulas de Matemática
e queria saber se eu poderia substituí-la naquele ano, pois a mesma estava com alguns
problemas e não poderia assumir as aulas. Em princípio disse não, que não daria conta e até
indiquei um amigo que aceitasse sem nenhum problema. Mas ela já estava destinada a me
contratar, pois já haviam lhe repassado o meu currículo de bom moço, e segundo ela, a minha
preocupação sem dar conta das aulas já era o primeiro sinal de responsabilidade. Pensei
bastante e resolvi aceitar. Sabia que se pelo menos não tentasse me arrependeria depois.
Como todo principiante, não tinha experiência alguma, e no início, foi um pouco
difícil! Tive que lidar com situações que iam desde repassar o conteúdo para os alunos a
separá-los quando estavam brigando. O fato é que com o passar do tempo, eu acabei me
identificando com a profissão, tanto que passei por todas as escolas do município e não
parei mais de lecionar até chegar à faculdade.
A minha entrada na UFRN não foi lá muito fácil. Só consegui essa façanha cinco anos
após ter concluído o ensino médio. Durante esse período, fiz, se bem que temporariamente
e com desconto mais que razoáveis nas mensalidades, alguns cursinhos pré-vestibular.
Neles, a maioria não passava da metade do ano, com isso sempre acabava desestimulado
para continuar estudando.
No ano de 2003 estava bastante empolgado para concorrer ao vestibular, já tinha o
curso em mente: Matemática licenciatura, claro! Como atuava no ramo de professor e
gostava do que fazia, o melhor a fazer seria seguir nessa carreira profissional. Nesse período
também freqüentava um bom cursinho, com professores de primeira linha. Afinal, o que
poderia dar errado? É, mas por ironia do destino, nesse ano eu não faria o sonhado vestibular,
pois mesmo tendo conseguido a isenção da taxa de inscrição, ela não foi validada.
Isso aconteceu por pura desinformação minha e de alguns colegas que também foram
isentos. Nesse caso, deveríamos ter lido todo o edital e, principalmente, o ponto que
explicitava que as inscrições feitas via internet só seriam validadas mediante o comparecimento de cada candidato a uma sede da Comperve para fazer uma verificação de dados. Isso
me deixou bastante frustrado, pois além de não ter conseguido validar a inscrição, para
fazê-la tivemos ainda que esperar horas para usar o computador da Câmara Municipal de
vereadores, na época um dos únicos da cidade que entrava na rede mundial de computadores.
Bom, como todo e bom nordestino, não seria uma seca que me faria morrer de sede e
fome. No ano seguinte faria, sim, o sonhado vestibular. Pena que ainda não seria essa a
minha vez de passar. Trocando em miúdos, dessa minha trajetória de provas para entrar na
faculdade, foram três tentativas fracassadas, dentre as quais duas foram na Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
101
E assim, um problema acabaria se formando! Já estava começando a acreditar que não
iria mais conseguir, afinal, depois desse tempo todo e de todas essas tentativas, as esperanças já andavam quase desaparecendo. Porém, no ano de 2005, a sorte resolveu sorrir para
mim em dose dupla, pois seria aprovado em dois vestibulares, ambos em Matemática e da
UFRN! Um era a distância, e para cursá-lo teria que ir apenas uma vez por semana a Currais
Novos-RN (cerca de 50 quilômetros de onde morava) apresentar as atividades desenvolvidas a um tutor. O outro curso era convencional com aulas todos os dias, mas realizado em
Natal, a capital do estado e distante 130 quilômetros da minha cidade.
Então, vejo-me com uma tremenda duvida: E agora? Qual curso escolher? Se optasse
pelo curso a distância, poderia estudar em casa, ficar perto da minha família, dos meus
amigos e talvez continuasse o que tinha aprendido a gostar de fazer: dar aulas. Se optasse
pelo outro, e fosse para a capital, as aulas seriam diárias, assim não poderia dizer: Ah, depois
eu estudo! Além disso, experimentaria algo novo, surpreendente, quer dizer uma vida
totalmente diferente daquela que vivia no interior.
A escolha então foi feita. Embora não tenha sido nada fácil, resolvi desfrutar a
“maravilhosa” e dura realidade de um estudante de origem popular na capital. Dentre
algumas dificuldades encontradas, a moradia foi a mais problemática. Felizmente, consegui a tão disputada residência universitária onde moro atualmente. Hoje estou no terceiro
período do curso de Matemática-licenciatura, onde tenho a pretensão de ainda ingressar no
bacharelado e quem sabe sonhar com algo mais...
102
Caminhadas de universitários de origem popular
Da trajetória de um vencedor
Josenildo Eugênio da Silva*
É melhor tentar e falhar,
que preocupar-se e ver a vida passar;
é melhor tentar, ainda que em vão,
que sentar-se fazendo nada até o final.
Eu prefiro na chuva caminhar,
que em dias tristes em casa me esconder.
Prefiro ser feliz, embora louco,
que em conformidade viver...
Martin Luther King
O começo
Minha história de vida teve algumas perdas, mas não espere que eu vá me fazer de
“coitadinho”, pois depois das trevas sempre vem à luz!!! Nasci dia 27 de fevereiro, no
município de Florânia, no Rio Grande do Norte. Sempre fui muito caseiro, não gosto de
festa e por isso talvez seja um pouco tímido e não goste muito de badalações, mas às vezes
gosto de me divertir com meus amigos porque também sou filho de Deus.
Comecei a estudar na Escola Estadual Cel. Silvino Bezerra, onde passei dez anos de
minha vida. Sempre fui muito cobrado pelos meus pais e com essa cobrança comecei a
gostar de estudar. Da 1ª a 4ª série achei o ensino fácil; a partir da 5ª série, comecei a ver que
estudar é um dom que Deus nos dá e quem quer vencer na vida tem que se esforçar e abdicar
de várias coisas. Da 6ª a 8ª série, me apaixonei pela Matemática e com isso veio o sonho de
fazer um curso superior.
Em 2003, comecei o ensino médio na Escola Teônia Amaral. Fiquei muito empolgado
para terminar logo e com isso prestar vestibular para Matemática. No princípio, tudo era
novo: as disciplinas, os professores, o colégio entre outras coisas. Terminei o ensino médio
em 2005 e, conseqüentemente, a minha formatura foi um dos momentos mais bonitos da
minha vida.
Por que as mães morrem?
Aqueles que amamos nunca morrem, apenas partem antes de nós. Com essa frase vou
contar uma tragédia que ocorreu na minha vida. Dia 20 de março de 2003, minha mãe me
deixou, vítima de hepatite e nem tive tempo de dizer adeus, pois a sua morte foi muito
* Graduando em Estatística pela UFRN.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
103
precoce. No começo não quis aceitar, mas aprendi que nós seres humanos temos que nos
adaptar à vida e à morte pois nossa trajetória de vida, que tem começo, e infelizmente, um
fim. Tudo mudou depois da morte da minha mãe, pois tive que tomar conta da casa junto
com minha irmã.
Tirei forças de onde eu não tinha, sofri muito com a falta de minha mãe, mas não me
abati porque sabia que milhares de pessoas no mundo tinham problemas piores do que o
meu e quem crê em Deus nunca está sozinho.
Conheci uma pessoa que me ajudou a me conformar com aquilo: minha grande amiga
Fátima Bezerra. Também os estudos me ajudaram a esquecer aquela fatalidade nem que
fosse por alguns minutos. Essa grande amiga que me ajudou faleceu no dia 13 de março de
2006 vítima de um aneurisma. Mas o que me conforta é saber que elas estão lá no céu
rezando por mim e por toda minha família e que um dia nós vamos nos reencontrar.
Rumo à UFRN!
Em julho de 2005, comecei a estudar para fazer o vestibular, mesmo sabendo que meu
ensino foi precário tomei coragem e enfrentei os livros. Em Química eu não sabia o que
significava um mol. Na Física, Albert Eisten para mim era um “louco” que descobriu diversas
coisas no ramo da ciência. Em inglês, eu só sabia aquela frase que todo mundo sabe: “The
book is on the table”, mas confesso que sabia o básico, o que me ajudou muito na prova.
Em Biologia consegui aprender um pouco, mas não o bastante. Nas matérias de Português
e Matemática, ganhei uma bolsa e fui fazer cursos isolados dessas matérias. Das disciplinas
de História e Geografia sempre gostei e tive uma boa base na escola para aplicar nas provas.
Em setembro de 2005, soube que a Escola Agrícola de Jundiaí, situada em Macaíba, ia
abrir inscrições para o Processo Seletivo. Fiquei fascinado pela escola e pelo seu ensino de
qualidade. Fiz minha inscrição para o vestibular e o curso que escolhi foi Estatística e
também para Escola Agrícola na qual concorri a uma vaga para os cursos de Técnico em
Agropecuária e Ensino Médio. As provas do vestibular foram realizadas em novembro e as
do Colégio, em dezembro. Gostei muito das provas e fiquei bastante confiante em minha
aprovação nesses dois processos seletivos.
E agora? Escola agrícola ou UFRN?
O resultado da Escola Agrícola saiu primeiro. Acordei bem cedinho e fui à rádio onde
trabalhava esperar o jornal com o resultado. Quando o jornal chegou, comecei a tremer,
coloquei um papel no final da lista, pois achava que tinha passado entre os últimos colocados.
À medida que o papel ia subindo meu nome não aparecia, então fiquei desesperado, pois
faltavam três nomes e achava que o meu não estava entre os primeiros colocados. De repente,
a surpresa: passei em 2° lugar. Até hoje eu não consigo descrever o que senti naquele
momento, mas uma coisa eu sei: fiquei em estado de choque. Olhei meu nome umas vinte
vezes para ter certeza de que tinha passado.
Outro dia que marcou a minha vida foi o resultado do vestibular. Soube pelo rádio
quando estava reunido com vários amigos e escutei o meu nome fiquei em transe. Depois,
foi uma festa só, meus amigos queriam colocar chiclete na minha cabeça para que eu raspasse
o cabelo. Tudo foi muito rápido, as duas aprovações em poucos meses e o fato de ser o único
aluno concluinte daquele ano a passar no vestibular. Depois das comemorações veio à
indagação: para onde eu vou? Escola Agrícola ou UFRN? Pedi a ajuda de alguns professores
104
Caminhadas de universitários de origem popular
para tomar a decisão que decidiria a minha vida. Decidi ir para a UFRN pela qual lutei muito
para conseguir a tão sonhada aprovação, mas o que me incentivou a optar pela UFRN foi o
fato de ter um curso superior e poder assim construir uma vida profissional de qualidade.
Natal? Só aquele que tem no final do ano
Depois de algum tempo, veio o problema: eu ia morar na capital do estado do Rio
Grande do Norte; nunca tinha vindo a Natal, o único Natal que conhecia era aquela
comemoração que tem no final do ano que simboliza o nascimento de Jesus Cristo. Esse
não foi o único, surgiram vários outros como, por exemplo: onde vou morar? Como vou me
manter? Mas fiquei sabendo que na universidade tinha residência e o restaurante, então,
comecei a ficar mais animado.
Além disso, não tinha me dado conta de que eu ia embora e que deixaria aquela vida
calma e pacata do interior. No dia oito de fevereiro de 2006, cheguei a Natal. Enquanto não
conseguia a residência fiquei na casa da minha tia. Confesso que fiquei um pouco assustado
com a nova vida que tinha pela frente, mas decidi lutar e enfrentar as dificuldades que
viriam no futuro. Quando cheguei pela primeira vez na UFRN sofri um pouco, pois eu era
“calouro” e perguntava aos veteranos onde ficava o departamento do meu curso e eles,
rindo de mim, sempre diziam um lugar totalmente diferente. Gastei cinqüenta minutos para
achar meu departamento, quando encontrei, fiz minha matrícula nas matérias e depois
fiquei contando os dias para começarem as aulas.
Uma luz no fim do túnel
Depois de algum tempo fiz minha inscrição para a residência universitária e logo após
soube que tinha passado na seleção. Quando entrei na residência, confesso que fiquei
assustado, pois era tudo novo para mim. Mas acabei me acostumando, porque hoje a
residência é minha segunda casa. Com isso, surgiram outros problemas: como vou me
manter em Natal? Procurei diversas bolsas, mas o que recebia era só promessa. No final do
semestre, a coordenadora do meu curso foi até a sala e avisou que iriam ser abertas as
inscrições para uma bolsa da Pró-Reitoria de Extensão e logo fiquei interessado. Depois
soube de minha aprovação e fiquei muito animado. O Conexões de Saberes para mim é uma
luz no fim do túnel. Com a bolsa consegui me manter e ganhar infinitos conhecimentos.
Com o Conexões de Saberes aprendi que todos os estudantes de origem popular tem
direitos e descobri nas comunidades o saber popular que antes era ignorado por mim.
A vida continua...
Um homem não morre quando deixa de existir: só morre quando deixa de sonhar. Com
essa reflexão quero concluir minha biografia e agradecer primeiramente a Deus, a Nossa
Senhora das Graças, a toda minha família, aos meus amigos de Florânia e de Natal e a todos
que fazem parte do Conexões de Saberes da UFRN e dizer que todos já fazem parte de minha
história de vida. Aproveito o ensejo, para dizer a você, leitor, que o mundo pode até fazer
você chorar, mas Deus quer vê-lo sorrindo.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
105
A oportunidade que ajudou
a construir meu futuro
Larissa Nunes Paiva*
A palavra foi dada ao homem para explicar
seus pensamentos, e assim como os
pensamentos são os retratos das coisas, da
mesma forma nossas palavras são retratos
de nossos pensamentos.
Moliére
As melhores lembranças...
Sorrisos, gritos, pulos, abraços... e muita felicidade. É dessa forma que termina a
manhã do dia 16 de janeiro de 2006: é divulgado pela TV Universitária o resultado do
vestibular. Um conjunto de emoções toma conta de mim, pois é um momento especial de
conquista e superação. Até que esse dia chegasse, passaram-se vários anos da minha vida
que mesclam escolhas, atitudes e oportunidades.
O ano em que nasci foi marcado por grandes acontecimentos que marcaram a história
espacial. O cometa Halley, que só aparece a cada 70 anos, iluminou o céu; a nave espacial
Challenger explodiu e gerou uma expectativa mundial. Então, em 3 de outubro de 1986, eu
nasci em meio a esses eventos. Filha de uma mãe jovem e solteira, fui criada pelos meus
avós maternos, Sebastião e Marieta, que chamo de pai e de mãe, como também sob os
cuidados dos meus tios.
Quando criança, enfrentei vários problemas de saúde e, muitas vezes, fiquei internada.
Contaram-me que em um desses momentos, minha tia Euride me levou do hospital sem
terem me liberado. Ela mentiu dizendo que me levaria para comprar uma chupeta e não mais
voltou ao hospital, pois na época a saúde pública já não oferecia condições apropriadas.
Essa fase de doenças passou, pois recebi os devidos cuidados e hoje sou uma garota saudável.
Ainda nos primeiros anos de vida, fui com meus avós morar no interior, na cidade de
Currais Novos, de onde a família é oriunda. Minha mãe continuou na capital para trabalhar
e ia me visitar nas suas folgas. Durante esse período, minha tia cuidou de mim. Pouco tempo
depois, começou a namorar seu então marido, Selmo. Hoje eles riem das coisas engraçadas
que eu fazia. Uma delas é que até meus 4 anos, não sabia falar direito e ninguém conseguia
entender nada. Vocês podem imaginar como era essa situação!
Dessa época não me lembro. Pouco depois, voltamos à Natal e até hoje moro no mesmo
bairro, Felipe Camarão. Minha infância foi marcada por muitas brincadeiras. Sempre estava
* Graduanda em Ciências Sociais -Licenciatura pela UFRN.
106
Caminhadas de universitários de origem popular
acompanhada dos meus primos que moram vizinhos a mim. Gostava muito de andar de
bicicleta e de brincar de casinha. Tive uma infância feliz. Por ser filha única, ficava mais
próxima da minha prima Allyne com quem brigava muito, mesmo que depois de alguns
minutos já estivéssemos juntas.
Embora com poucas condições financeiras, na idade apropriada fui para a escola.
Estudei no Jardim Chapeuzinho Vermelho, que ficava próximo da minha casa. Lembrome das festinhas que se realizavam, especialmente nas datas comemorativas, nas quais se
organizavam brincadeiras e a gente se vestia de acordo com o tema. Lembro dos coleguinhas
de classe e dos meus primos Thiago e Riquinho que também estudavam comigo.
Fundação Bradesco: espaço de aprendizagem
O Bairro de Felipe Camarão é atualmente conhecido nas estatísticas policiais como
um dos mais violentos da cidade. Com uma população de mais de 40 mil habitantes, muitos
são discriminados em função da sua condição social e pela crescente desarticulação das
Políticas Públicas. Apesar dessa realidade, existe um espaço que contradiz todas as expectativas, a Fundação Bradesco1. Uma escola filantrópica que há 18 anos trabalha, com toda
a sua metodologia e investimentos direcionados para a educação. Essa Fundação tem mudado o destino daqueles que a freqüentam.
Essa escola grande, e de uma estrutura bastante diferenciada das convencionais da
cidade, embeleza e até gera questionamentos sobre sua existência no bairro. Para garantir a
vaga nessa escola foi bastante difícil, já que a concorrência é grande. Minha mãe, que havia
estudado nela anos antes, sabia da importância dessa escola e de forma alguma pensava na
possibilidade de não me matricular. Foram várias as vezes em que ela esteve no local em
busca de informações e até o dia exato da entrega dos documentos a minha vaga não
estava garantida.
As aulas começam. Mesmo bem pequena, a escola me impressionou: tudo era
muito diferente, a sala de aula era toda decorada, o que me conquistou. É certo que no
início chorei, mas o lugar era tão confortável e divertido, que tudo foi se tornando meu
mundo.
A inesquecível professora Carla, simpática e sempre sorridente, nos levava para o
parquinho. Essa era a melhor parte da manhã, pois me sujava toda de areia. Um momento
especial foi o dia em que toda a turma plantou uma árvore na praça verde. A hora do
intervalo era muito boa, todos ficavam na fila para lancharmos e depois íamos brincar. Eu
gostava de pular elástico e de amarelinha, como eu me divertia naquele tempo...
Os anos foram passando, e eu cresci nessa escola. Foi nela que aprendi a ler, falar
melhor, escrever e a ter boas maneiras. Aprendi, também, o mais importante: os meus sonhos
podem ser possíveis. Pois, mesmo sem saber e até mesmo querer, a Fundação investiu em
mim, e descobriram o meu potencial.
Toda essa estrutura física gerou um apego e entusiasmo pelo estudo. As salas amplas,
os laboratórios bem equipados e as áreas verdes e de esporte, tornavam o ambiente bem
mais agradável. Pode parecer desnecessário falar desses elementos, mas vejo, hoje, como
são importantes na vida escolar.
1
Instituição criada no Brasil há 50 anos, estando atualmente presente em todos os Estados brasileiros.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
107
As amizades...
As turmas eram grandes e, por isso, permitiam um maior número de relacionamentos.
Durante esses anos fiz muitas amizades que de tão verdadeiras continuam até hoje. Como
amigos que crescemos juntos temos muitas histórias pra contar: os momentos de descobertas,
os medos que dividimos, as transformações que vivenciamos...
Desejo também que tenha amigos. Que mesmo maus e
inconseqüentes, sejam corajosos e fiéis. E que pelo menos num
deles você possa confiar sem duvidar.
Victor Hugo
Os professores...
Em um país como o Brasil, ter uma educação de qualidade é algo entusiasmante, pois
as escolas públicas passam por constantes problemas, que dificultam o aprendizado e colocam seus jovens em situação de risco social. Os professores que me ensinaram tiveram um
papel muito importante, pois foram capazes de transmitir conhecimento de forma responsável e profissional. Nessa escola, não houve nenhum dia em que eu não tivesse aula, sempre
se tinham alternativas para envolver os alunos em atividades educativas.
Momentos inesquecíveis...
Como em todas as escolas, as datas festivas eram comemoradas na Fundação. Esse era
o momento de envolver todos os alunos e sempre se ensinava algo relacionado às disciplinas.
Era um espaço de diversão e também de aprendizado. O Pilotão-Verde também me marcou,
especialmente na 6ª série. Orientados pelo professor James, os alunos conheciam as técnicas para melhor cuidar das árvores e das hortas da escola. Assim, desenvolvíamos o sentimento e a responsabilidade de se preservar o meio-ambiente, o que era uma boa lição para
toda a vida.
Os momentos cívicos eram ensinados desde os primeiros anos e se tornavam uma
rotina mensal. Os alunos aprendiam a cantar o Hino Nacional, havia ainda o hasteamento da
bandeira e apresentações culturais, todos que participavam desse momento tinham que
cumprir as regras, que rigorosamente deviam ser seguidas. O momento cívico colaborou
para despertar o sentimento de nacionalidade e de respeito por nosso país.
Os tempos de aulões...
As séries foram passando e, enfim, cheguei à 8ª série. Esse ano foi marcado pelos
aulões do Pró-CEFET, que ocorriam nos domingos e os aulões do professor Aluísio Machado2
e são conhecidos na capital, por ser um espaço gratuito que oferece aulas preparatórias para
as provas do vestibular e do CEFET. Consegue-se reunir um grande número de estudantes,
principalmente, os das escolas públicas que buscam com essas aulas uma alternativa de
aprendizado, para compensar as defasagens do ensino público.
Assim um grupinho da sala se reunia para estudar. Essa rotina se manteve até o final do
ano quando eram aplicadas as provas. Foram momentos de estudo e de muita brincadeira,
2
Aluísio Machado é professor universitário, vereador da cidade e criador dos aulões há quase duas décadas.
108
Caminhadas de universitários de origem popular
onde tive a oportunidade de conhecer novas pessoas que aumentaram o meu grupo de
amizade. Todos fizeram as provas, mas ninguém passou, para mim foi muito decepcionante
e demorou um pouco a passar o desejo de estudar no CEFET.
Mas eu não desisti tão facilmente. No ano seguinte, realizei as provas do exame de
seleção e, por vários motivos, a aprovação ficou somente no desejo. Dessa vez, eu fiquei
mais tranqüila, pois sabia que havia estudado, mas ainda não era o suficiente. Foi um
grande objetivo que ficou somente em sonho, com o tempo me conformei, mas não me
arrependo de ter tentado.
Nesse mesmo ano, fizemos um passeio escolar até o Santuário Ecológico da Praia da Pipa.
Foi um dia inteiro de trilhas e de muita diversão. No ônibus, foi aquela bagunça que ficou
registrada na minha mente e nas fotografias. Mesmo já conhecendo o local, o passeio teve
outro significado: sabíamos que alguns colegas estavam se despedindo da turma e do colégio...
Ensino Médio...
Esse foi o primeiro ano que estudei à noite. Ocorreram várias mudanças, desde o início
do curso no SENAI, que funcionava no bairro, com um programa destinado a qualificar
menores e envolvia conhecimentos sobre construção. Surgiram muitos desafios que eu tive
que enfrentar para continuar no curso: desde os freqüentes questionamentos de qual seria a
utilidade do curso. Em resumo, foi um período muito bom, marcado por novas descobertas
e amizades que se prolongaram, até o meu primeiro estágio onde passei a ganhar meu
próprio dinheiro. Era a responsabilidade chegando à minha vida.
No 2º ano, realizaram-se os jogos internos na escola. Durante esse evento, as turmas se
uniram, formando uma torcida organizada, o Império Jovem, que ficou conhecida por todos do
colégio. Essa união marcou, pois as amizades se fortaleceram e em tudo uma turma ajudava a
outra, as rivalidades foram esquecidas, proporcionando momentos que são difíceis esquecer...
Após essa etapa, começo a procurar outro estágio e este se manteve até o último ano
do ensino médio. Continuei a estagiar e foi com o dinheiro que recebia dele que paguei o
cursinho. Então no 3° ano, estagiei, estudei e fiz cursinho. Saía de uma atividade para outra,
foi um ano muito corrido e, mesmo assim, poucas vezes faltei às aulas. Para conciliar todas
as atividades, que exigiam todos os períodos do dia, recebi a ajuda de muitas pessoas. No
estágio, as dicas e apoio para continuar a fazer bem todas as atividades ou quando precisava
de uma folga que me era concedida, contava com a compreensão do Sr. Ubirajara, o então
proprietário, e da sua família que também trabalhava junto.
Como estudante sempre fui muito dedicada, responsável com as atividades e com os
prazos. A educação em minha vida sempre foi prioridade e uma questão a ser bem realizada.
Mas tinha os momentos de certa bagunça, junto com os amigos da classe faltávamos à aula,
apenas em dias especiais. Lembro-me dos comícios que aconteciam em frente ao colégio,
na época das eleições e faziam com que não assistíssemos às aulas. A gente se escondia do
inspetor Carlos, que corria atrás dos alunos para fotografar e encaminhá-los para a diretoria.
Era muito engraçado...
Os últimos dias na Fundação Bradesco foram de alegria e lágrimas. Era a nossa
despedida de vários anos estudando juntos. A aula da saudade foi simplesmente maravilhosa,
marcada por vários depoimentos de professores e alunos, um momento de falar das lembranças,
muitas emocionaram, outras despertaram risadas e abraços. A solenidade de formatura foi
muito simples, porém significativa também.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
109
Cursinho...
Freqüentei durante o 3° ano o cursinho no CDF. Logo nos primeiros dias de aula me
assustei pela quantidade de alunos presentes em uma única sala, para ser mais precisa, eu
não conseguia contar o número exato de pessoas. As aulas eram muito diferentes do padrão
de ensino a que estava habituada, desde os professores que falavam em microfones e que
pouco escreviam no quadro até o número de alunos.
Comecei a me inserir nessa nova metodologia de ensino. Eu sabia que deveria aprender
o maior número possível de informações, pois seriam essas dicas, mais conhecidas por
“macete” que me ajudariam a concorrer à tão sonhada vaga na universidade. Então, durante
toda a tarde eu assistia a cinco aulas e cada disciplina tinha até três professores diferentes,
era muita informação em poucos dias. Considero importantes todas as aulas em que estive
presente, no entanto, os méritos da minha aprovação se destinam aos professores da escola,
já que no cursinho apenas revisei, tirei dúvidas e fixei conteúdos.
Paralelamente ao cursinho, eu continuava a estudar na Fundação. Então, à noite, eu
assistia a mais cinco aulas, chegando em casa por volta das 23 horas, o que mais me atingia era
o sono. A cada dia, a rotina se tornava mais cansativa. Estava difícil conciliar o estágio com os
estudos. Trazia do cursinho uma lista diária de exercícios e da escola as atividades continuavam normalmente e eu deveria realizá-las para ter um bom aproveitamento dos conteúdos.
À noite fazia as atividades e revisava o que havia estudado, só então ia dormir. Houve
muitas vezes que pensei em desistir, mas eu precisava estagiar para pagar o cursinho, fazer
cursinho para concorrer de forma mais igualitária no vestibular e da escola para concluir o
ensino médio. Três atividades diferentes que se relacionavam perfeitamente em busca do
meu grande objetivo.
Durante os meses de cursinho, ao total nove meses, não tive a chamada “vida social”,
tudo se relacionava a estudar, sempre lembrava o compromisso que tinha comigo mesma.
Eu aprendi a me organizar e a ter persistência, a cada dia eu pensava na minha aprovação,
uma verdadeira maratona de aulas me ocupava até no fim de semana.
Caminhos em busca da vitória...
Desde o 2° ano eu já estudava para o vestibular, freqüentava alguns aulões, depois da
experiência mal sucedida no CEFET, eu estabeleci como objetivo primordial conseguir
passar no vestibular. A escolha do curso não foi uma tarefa difícil, pois sempre me identifiquei
com o curso de Direito, que se tornou um verdadeiro sonho...
Mas quando fui fazer a inscrição mudei essa opção e foram várias as razões: uma delas,
a grande concorrência e o nível de escolaridade dos candidatos. Eu sentia que não estava
devidamente preparada para passar e precisava estudar mais. A outra opção seria o curso de
Ciências Sociais, na verdade eu não o conhecia até o momento. Ouvi a indicação da gerente
do estágio, Viviane, que me falou a respeito dele, e na última hora, me inscrevi. Continuei
a estudar para as futuras provas e a pesquisar o que fazia o profissional dessa área.
No final do mês de novembro, realizei o vestibular. A noite anterior a cada prova
freqüentei, juntamente com meus amigos, os aulões de véspera. No primeiro dia, vi a dimensão
do número de pessoas que prestam vestibular. Era grande a expectativa no primeiro dia de
prova e muitas as preocupações: de não esquecer o cartão de inscrição, de não chegar
atrasada ou de na hora não saber responder nada. Os momentos que antecederam me deixaram muito ansiosa, mas ao ver a prova logo me acalmei.
110
Caminhadas de universitários de origem popular
Ao final de cada dia de prova, eu recebia a atenção das minhas amigas, já que os locais
de aplicação eram próximos, sempre era uma das últimas a sair da sala e quando me
direcionava para fora das dependências da escola encontrava as meninas me esperando.
Juntas, comentávamos sobre as questões e quais foram as maiores dificuldades. Um contato
pouco relevante para muitas pessoas, mas percebo hoje como as palavras de confiança e os
gestos de atenção, contribuíram para que a cada dia minha confiança fosse restabelecida.
Realizei todas as provas sem grandes problemas. Depois, continuei minha rotina diária.
Como já estava próximo do término das aulas, me dediquei à escola com maior intensidade.
Quando soube do resultado da 1ª fase do vestibular, fiquei mais tranqüila, pois estava em
uma boa colocação.
Separações...
O limiar desse século marcou bastante a minha vida, pela primeira vez eu me deparei
com a “viagem” muito repentina e desagradável do meu avô, que havia cuidado de mim
desde que nasci, o verdadeiro pai que conheci, mesmo não sendo o pai biológico da minha
mãe, a considerava uma filha e eu, sua neta e também filha. Aquele que me ajudou a dar os
primeiros passos, não só os de caminhar, mais os que a vida apresentam, o que freqüentava
as reuniões escolares e que me levou para o caminho do saber na sua bicicleta sempre
procurando uma maneira de me carregar e de me agradar. Sei que se ele estivesse entre nós,
estaria muito feliz com os caminhos que segui e em quem me tornei. Um dia a gente vai se
encontrar...
O ano de 2006 me reservou muitas surpresas. Uma noite que parecia ser tão tranqüila
se tornou um verdadeiro pesadelo. Meu amigo Luanilson foi levado para sempre. Eu o
conhecia desde criança, estudou comigo. Esse dia foi de grande reflexão sobre o verdadeiro
valor das pessoas. O Império Jovem foi abalado. Foram vários os dias que aguardamos
justiça que efetivamente foi feita e aos poucos nos confortamos, restabelecemos a confiança
e passamos a acreditar que o sentido da paz esteja acima de qualquer pretensão particular...
Seja o que vier, venha o que vier. Qualquer dia amigo eu volto pra
te encontrar. Qualquer dia amigo, a gente vai se encontrar.
Milton Nascimento
Agora eu já sou universitária...
Ao saber da minha aprovação no vestibular, e não era em qualquer universidade, eu
estava na Federal, sabia que o passo inicial havia sido realizado, agora tenho que caminhar...
Se você quiser alguém em quem confiar. Confie em si mesmo.
Quem acredita sempre alcança.
Renato Russo
O curso de Ciências Sociais me proporciona compreender de forma mais crítica a
sociedade em que vivo. Além de saber me posicionar devidamente como uma cidadã, que
conhece a importância de defender seus direitos, de poder participar do sistema eleitoral de
forma consciente tenho me inteirado de tantas outras questões. A antropologia tem me
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
111
ajudado a entender a origem das nossas regras sociais, que involuntariamente andam lado
a lado durante a nossa vida, a diferenciar e entender melhor outras culturas.
O Conexões de Saberes...
Ao entrar na universidade, minhas expectativas eram enormes e eu tinha o desejo de
conhecer tudo o que era tão diferente. Logo me identifiquei com a turma da qual faço parte,
atualmente mantemos uma relação bastante agradável.
Nos meses iniciais da vida acadêmica estive a procura de alguma oportunidade para
ser bolsista, mas logo percebi que seria praticamente impossível consegui-la no primeiro
período. Posteriormente, minha mãe me enviou um recorte de jornal que divulgava a
seleção de alunos para o programa, como me inseria em praticamente todos os pré-requisitos,
me inscrevi e fiquei aguardando o resultado.
Na reunião inicial, que reuniu todos os alunos selecionados, conheci o que seria o
Programa Conexões de Saberes. Assim, tive a oportunidade de poder participar da extensão
universitária, essa atividade me proporcionou intervir onde moro. Hoje, realizo, juntamente
com Luzia e Dulcineide, o subprojeto Felipe Camarão: Construindo Diálogos. A cada dia
de extensão tenho uma nova experiência e me impulsiono a desenvolver com entusiasmo
os objetivos planejados, além daqueles que inevitavelmente surgem.
O momento que merece ser lembrado, dentro de todas as vivência do Conexões foi
seguramente a participação no II Seminário Nacional, por ter tido a oportunidade de me
relacionar com estudantes de vários locais do país, de conhecer outras culturas. Além de
estar na Cidade Maravilhosa, que só via pela televisão e não imaginava visitá-la tão cedo.
O hoje e o meu futuro....
Durante todo o primeiro ano de universidade, mantive vivo o desejo de prestar
vestibular outra vez. Mesmo me identificando com o curso de Ciências Sociais, eu optei
por estudar mais e vencer esse grande obstáculo. Por meio da bolsa do Conexões consegui
pagar dois cursos isolados, me dedicando a aprender o que tinha maior dificuldade.
Prestei vestibular para Direito na UFRN e na UERN no ano de 2007, após a divulgação
do resultado da Federal fiquei um pouco abalada, pois mesmo pontuando bem mais que no
ano anterior não consegui ser aprovada. As provas da Estadual foram poucos dias depois, eu as
fiz com muita empolgação, sabia que essa era a última oportunidade do ano de entrar no curso.
Ao conferir o resultado do processo seletivo fui olhando os nomes bem devagar, e
quando vi o meu fiquei muito emocionada, pois no ano anterior havia ficado apenas
classificada fora do número de vagas. Estava na sala do Conexões e foi aquela comemoração,
me senti aliviada e realizada, essa conquista tão almejada estava em minhas mãos.
Estou aguardando o início das aulas, mas surgem grandes desafios: o de conciliar duas
universidades. Creio que se Deus me permitiu essa grande oportunidade, vou continuar me
dedicando aos estudos e aumentar minha fé, pois só por intermédio do conhecimento terei
condições de modificar o futuro.
Tenho consciência que a caminhada está apenas começando, e as dificuldades naturais
do percurso podem até me fazer fraquejar, mas não me permitirei fracassar...
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Fernando Pessoa
112
Caminhadas de universitários de origem popular
Agradecimentos...
Sou muito grata por tudo o que me foi oferecido durante a vida, principalmente, a
escola em que estudei por mais de dez anos. Especialmente agradeço a minha mãe, Eulina,
que não teve grandes oportunidades para estudar e mesmo diante de todas as dificuldades
que a vida lhe impôs, ela cumpriu o dever de me sustentar e de contribuir com tudo o que
podia investir na minha educação. Sei que os nossos caminhos se afastaram um pouco, por
não ter podido me ver todos os dias, hoje, compreendo todos os esforços e me sinto extremamente agradecida.
Ser a primeira da família a entrar na universidade resume bem tudo o que recebi. Os
avós que me criaram tinham pouquíssimos estudos, mas mesmo sem saber ler e escrever
me direcionaram para a escola, valorizaram a educação, não permitido que eu faltasse às
aulas ou deixasse de realizar as tarefas. Os méritos também vão para aqueles que me
incentivaram na família, tenho consciência que as contribuições, por menor que tenham
sido, foram importantes nas minhas decisões. Até mesmo àqueles que duvidaram do meu
potencial, eu agradeço.
Aos amigos e companheiros que tiveram a paciência de me escutar nas horas tristes,
que vibraram com as minhas conquistas e aqueles com quem diariamente convivo. Mesmo
que se prolonguem os nomes eu não poderia deixar de citá-los: Ana, Helena, Rafhaela,
Renata, Eveline, Kaliane, Kamila, Bruna, David, Gian, Josinaldo.
Agradeço, principalmente, a oportunidade de registrar aqui um pouco da minha história.
Temos lembrança de tudo o que ocorreu em nossas vidas, porém muito não pode ser
escrito em palavras ou, até mesmo, divulgado para todos. Espero que em um futuro bem
próximo eu leia o meu relato e veja que ainda tenho muitas outras conquistas a acrescentar
a essa história que agora concluo.
É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho.
De examinar com atenção a vida real, de confrontar nossa
observação com o sonho. De realizar escrupulosamente nossa fantasia.
I. V. Lênin
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
113
Flor-de-lis
Lis Mônara Araújo de Oliveira *
A vida não é um corredor reto e tranqüilo
que nós percorremos livres e sem
empecilhos, mas um labirinto de passagens,
pelas quais nós devemos procurar nosso
caminho, perdidos e confusos, de vez em
quando presos em um beco sem saída.
Porém se tivermos fé, uma porta sempre
será aberta para nós, não talvez aquela
sobre a qual nós mesmos nunca pensamos,
mas aquela que definitivamente se revelará
boa para nós.
A. J. Cronin
Segundo o livro ilustrado dos Signos e Símbolos, de Miranda Bruce-Mitford (s/d),
Luís XVII adotou a íris como seu emblema durante as Cruzadas e o nome evoluiu de
“fleur-de-louis” para “fleur-de-lis” (flor-de-lis), representando com as três pétalas, a fé, a
sabedoria e o valor. Eis a grande metáfora da minha vida...
Bom, estou aqui para contar-lhes minha caminhada... primeiro, aos leitores, peço que
não esperem um relato triste, uma vida infeliz, desejo que saibam que apesar dos empecilhos,
dos labirintos, dos espinhos, enfim, apesar dos pesares, eu sou feliz e me sinto uma
vitoriosa até aqui!
Valores...
Todos iniciam assim (eu não sou diferente), então... nasci dia 17 de dezembro de
1986, na cidade de Currais Novos, interior do Rio Grande do Norte. Minha mãe me gerou
muito jovem, meu pai não a assumiu nem a mim e foi embora para Minas Gerais. Ela,
portanto, sofreu bastante durante a gestação na casa dos meus avós, porque quando meu
avô chegava do trabalho ela não saía mais do quarto com vergonha dele. Passado esse
período, EU NASCI – não pensem que fui rejeitada – pelo contrário, fiquei cercada por
muito amor da minha mãe, avó e tios... meu avô ainda estava se acostumando com a
idéia... minha tia diz que sempre o flagrava me olhando no berço quando não tinha
ninguém por perto e assim foi “amolecendo” e amando sua primeira neta.
* Graduanda em Serviço Social pela UFRN.
114
Caminhadas de universitários de origem popular
Durante a maior parte da infância, a ausência da minha mãe é marcante, pois ela vivia
a deslocar-se para a capital do estado, Natal, em busca de emprego e quando conseguia
voltava para o interior apenas nos finais de semana ou quando dava. Por esse motivo, na
minha infância meus avós foram mais presentes. Contudo, essa ausência da minha mãe é
compreensível, pois ela precisava trabalhar para ajudá-los a me educar, algo que ela nunca
abriu mão.
Enfim, cresci sob os cuidados e carinho dessa família linda e com ela aprendi todos os
valores que trago na vida.
Sabedoria...
Com muito esforço e economizando muito, com uma ajuda daqui, outra dali, realmente
um esforço conjunto – sem ajuda nenhuma do meu pai – eles pagaram uma escola particular
para mim, porque acreditavam e acreditam que a educação vem em primeiro lugar. A partir
daí, acho que todos, ou muitos que estão lendo minha história, compartilharam de um
sentimento comum, o de sentir-se um peixe fora d’ água, afinal, era uma escola para ricos e
eu de intrusa estava lá...
O esforço deles dava apenas para pagar a escola e, muitas vezes, o fazia atrasado.
Foram inúmeras as vezes que levei bilhetes para casa advindos da diretoria informando-os
do atraso das mensalidades, nossa! Tinha vezes que chegava a atrasar quatro meses! (eu sei
disso porque antes de entregar lia todos), mas para eles eu não sabia de nada e nem devia
saber, pois era apenas uma criança e não precisava me preocupar com problemas financeiros.
Eles nunca passavam preocupações para mim, dizia apenas que eu deveria me preocupar em
estudar para ser alguém na vida. Mas até a criança mais ingênua do mundo notava tudo isso!
Bastava só começar o ano para notar a diferença, pois minhas colegas estavam todas com
fardas, lancheiras, tênis e bolsas novas e, eu, muitas vezes, passava dois a três anos para ter
outra farda ou outra lancheira novas, pois elas precisavam estar muito velhas para que
minha mãe as trocasse. Mas os livros eu tinha todos porque minha mãe não deixava de
comprá-los, apesar de passar quase todo o ano pagando as prestações.
Entre tantas situações, outra que me marcou muito e até me aborrecia (apesar de hoje
achá-la cômica) era o fato de meu avô ir me deixar na escola em uma Belina branca, meio
acabadinha. Ah! Isso era motivo de chacota da galera, todos os dias, era só chegar, sair do carro
que todos começavam a cantar em tom alto: Meu calhambeque bi, bi!! Eu só me livrava disso
quando chegava atrasada... enfim, são tantas histórias que passaria muito tempo a contá-las.
Quero aqui enfatizar que minha família sempre foi muito participativa em relação aos meus
estudos, então, quando tinha apresentação de trabalhos, peças, ou algo do tipo, eles estavam
sempre marcando presença, me prestigiando em qualquer trabalho que fazia. Tenho uma
relação de muito amor com eles e o fato de não ter um pai, digo o pai que me gerou, não foi
algo que me fez sentir vazios, pois esses foram todos completados pela minha linda família.
Mas falando nele, o conheci e o vi apenas uma vez na copa de 94 e eu estava com oito anos.
Mas voltando aos estudos... estudei nesta escola Educandário Jesus Menino, em Currais
Novos, até a 5ª série. Vindo para Parnamirim, fiz a 6ª série numa escola de nome Ícaro e, em
seguida, concluí o 1° e 2° graus na Escola Estadual Santos Dumont, também em Parnamirim.
No 2° ano do 2° grau chegamos a passar um semestre inteiro sem professores de Química e
Física, o que foi péssimo, porque praticamente perdemos o ano. Quando os professores
chegaram para o 2° semestre já não podiam fazer muito por nós e “empurraram” trabalhos
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
115
apenas para cumprir as normas. O resultado de tudo isso foi que muitos assuntos nunca
chegamos a ver, contudo, passamos todos de ano.
No 3° ano do ensino médio, ano tão esperado do vestibular, ninguém se sentia preparado,
devido a tal defasagem do ano anterior, pois perdemos muitos assuntos importantes. Nesse
ano tentei correr contra o tempo. Estudei bastante, mas mesmo assim não estava pronta para
encarar tamanho desafio e passar. Por esses motivos minha mãe achava melhor que eu não
prestasse vestibular neste ano (2004), mas mesmo assim, eu teimei e fiz vestibular escondido
de todos da família. Escolhi o curso de Turismo. Saía todos os dias de casa dizendo ir para
outros lugares, pois queria dizer para eles somente se a aprovação viesse.
Passei na primeira fase e não contive a alegria e então acabei falando para eles. Ficaram
surpresos e felizes, mas ainda tinha a segunda fase na qual não passei. Fiquei um tanto triste,
mas eles me apoiaram e me deram força para continuar a caminhada...
No ano seguinte (2005), estava decidida que não iria prestar vestibular, porque achava que nunca passaria em algo tão difícil e que não tinha condições de concorrer com
alunos advindos de escolas particulares onde a educação é supostamente de melhor qualidade, mesmo assim decidi ir estudando porque queria fazer o ENEM.
Chegou o período de conseguir a isenção da taxa do vestibular e eu tentei consegui-la,
pois tinha resolvido prestar vestibular se conseguisse a isenção. Acabei conseguindo-a e
chegado o período das inscrições me decidi pelo curso de SERVIÇO SOCIAL. Simultaneamente fiz o ENEM, obtive uma boa média e tentei bolsa para o curso de Enfermagem.
Estava agora à espera dos resultados. Passei então na primeira fase, mas não fiquei tão
animada porque no outro ano tinha acontecido o mesmo. Durante o tempo da espera da
2° fase, saiu o resultado do ENEM e eu consegui a bolsa de Enfermagem para a UNP
(Universidade Potiguar), nossa!!! Estava já feliz da vida e toda família também! Mas eu
queria mesmo era passar na Federal!
O dia do resultado chegou e com ele a aprovação. Lá estava meu nome na lista dos
aprovados – LIS MÔNARA ARAÚJO DE OLIVEIRA. Ah!! Eu gritei muito! Minha família
ficou muito orgulhosa e eu muito feliz.
Fé...
Agradeci muito a DEUS. Ele é minha força e minha rocha. Aliás, não poderia deixar de
falar do dia mais importante da minha vida, 8 de fevereiro de 2004, dia em que aceitei e
reconheci Jesus como meu único e verdadeiro Salvador. Nele eu confio e busco forças para
continuar essa passagem. Com Ele jamais me sinto só. Quando penso em desanimar o meu
Jesus me toma pela mão e diz: “Não temas que eu te ajudo”, por isso...
Eu não vou parar de navegar, não vou me desesperançar com
Jesus, e se a mais forte onda deste mar me alcançar ainda vou com
Jesus. Se as forças me deixarem só e a luz do dia já não ver, maus
pensamentos me invadirem, descansarei naquEle que me fez bem
mais que vencedor, confio no Senhor!
Josué Teodoro
Obrigada meu Jesus, por minha vida ser para o Senhor uma flor preciosa – uma flor-delis - que Tu amas incondicionalmente e que com tua poderosa mão a conduz dessa maneira
116
Caminhadas de universitários de origem popular
maravilhosa, me protegendo e me ajudando nas dificuldades da vida. Por isso, meu Senhor
amado, mais que uma flor desejo ser para ti um vaso, para que o Senhor quebre a minha vida
e me faça de novo, fazendo se cumprir nela tão somente a tua vontade! Eis-me aqui Jesus!
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
117
Para sempre Cinderela
Luzia Andressa Feliciano de Lira *
Quando nada acontece, há um milagre que
não estamos vendo.
Guimarães Rosa
Geralmente, nos contos de fadas, a “mocinha” da estória sofre no início de sua vida e,
depois de um milagre, muda a sua trajetória, passando a viver “feliz para sempre”. Foi assim
com Cinderela, Branca de Neve e outras princesas. No meu “conto de fadas”, contudo,
aconteceu exatamente o inverso: eu vivia como “uma princesa” e, depois de uma mudança
drástica, passei a viver uma vida de “gata borralheira”.
É, a atual situação em que eu me encontro difere, por completo, da situação de anos
anteriores. Assim, pretendo contá-la por meio de episódios que demarcam cada fase dessa
minha vida.
Episódio 1 : A vida de “princesa”
Há muitos e muitos anos, tantos que dele já se perdeu a conta, morava em um castelo
um bom homem, com sua esposa e seus dois filhos. As flores no jardim; os pássaros cantando;
as carruagens próximas à varanda; tudo estava em seu devido lugar e todas as coisas
aconteciam numa continuidade que mais parecia uma sinfonia perfeita. Dentro dessa
perfeição, estou a compor essa família real.
Começando a relatar o meu primeiro dia de aula, quando tinha quatro anos de idade,
posso falar que a minha mãe, Francisca, foi chamada a comparecer na diretoria da escola.
Ela ficou extremamente nervosa e irritada, ao pressupor que eu já tinha dado motivo para
reclamações. O motivo, no entanto, era completamente diferente: a professora queria conversar com a minha mãe porque eu já era uma criança alfabetizada. Ou seja, o único problema
que existia era o fato de eu estar em um nível de aprendizagem mais alto do que as crianças
da minha idade.
E, por incrível que pareça, esse problema persistiu. Aos sete anos, fui para uma outra
escola no município de Ferraz de Vasconcelos, em São Paulo e novamente minha mãe foi
chamada à diretoria. A solução, proposta pela professora, seria fazer com que eu “pulasse”
um ano letivo, passando a estudar a 2ª série do ensino fundamental. A direção da escola não
permitiu essa mudança, de modo que, permaneci na 1ª série, mas estudando assuntos diferentes dos que eram lecionados para os outros alunos. Esses eram os problemas que eu enfrentava
na minha vida!
* Graduanda em Direito pela UFRN.
118
Caminhadas de universitários de origem popular
Meu pai, chamado José, como homem honesto e trabalhador, comprava tudo o que eu
queria: brinquedos, bonecas, incluindo os lançamentos da barbie, bicicletas, videogames...
ele é uma pessoa que nunca mediu esforços para comprar tudo o que eu queria e não necessariamente o que eu precisasse. O que eu admirava e ainda admiro no meu pai é que, às
vezes, ele parecia ser um “homem de ferro”. Apesar de ser o dono de uma microempresa, ele
trabalhava como qualquer outro trabalhador que ele empregava.
Sendo assim, durante esses “anos de ouro”, meu pai tinha uma microempresa, na qual
eu passava maior parte do meu tempo, após as aulas. Eu possuía a liberdade de, também,
mexer no caixa da empresa e retirar o que eu precisasse, essa é uma das coisas das quais eu
mais sinto falta. Nossa família não passava necessidades, pelo contrário, minha mãe, como
pessoa caridosa, sempre ajudou as outras pessoas.
É preciso abordar, nesse ponto, a imensa admiração que tinha e ainda tenho pela
minha mãe. Ela sempre atuou na minha vida como a minha melhor amiga e conselheira. Sua
presença, em todos os meus passos, é fundamental para orientar a minha caminhada. Ela
também é responsável por um grande presente: o meu irmão André, que nasceu em 1995. No
início eu gostava da idéia, mas após alguns dias aquele menino passou a me dar ciúmes,
porque durante todo esse tempo, 9 anos, eu era a única filha, a única neta, a única sobrinha.
Com a sua chegada, senti um pouco de ciúmes em ter que “dividir” a minha mãe, e outros
familiares com ele! (coisas de criança). A partir de agora, portanto, a “família real” estava
completa. E tudo o mais permanecia perfeito....
Episódio 2 : Milagre ao avesso
Essa “vida de princesa” permanece até o dia 29 de junho de 1999, quando eu chego na
cidade de Natal, numa condição socioeconômica completamente distinta da que tinha
anteriormente. Nesse meu conto de fadas, portanto, o milagre ocorreu ao avesso: sai a “vida
de princesa” para entrar em cena a “vida de gata borralheira”. E, assim, começa o outro lado
do meu “conto de fadas”, o mais difícil.
Observe os contrastes dessa nova situação que entra em cena: de São Paulo para Natal;
da classe média para uma classe menos favorecida; de uma pequena mansão para uma
simples casa na zona norte, uma das localidades tida como menos favorecida da cidade; do
Colégio EDIR, tradicional em São Paulo, para a Escola Estadual Padre Miguelinho, precária como boa parte das escolas da rede pública de ensino.
Nessa outra face do meu “conto de fadas”, que marca uma etapa extremamente importante para mim, a realidade começa a aparecer sob uma ótica diferente: sem microempresa,
sem mansão, sem carro, sem artigos de luxo – tudo havia desaparecido. Restaram apenas
nós quatro: minha mãe, meu pai, meu irmão e eu. Nesse momento, o mais importante a
destacar é a nossa união e, mais do que uma família, éramos uma só pessoa.
Por algum tempo eu não entendia porque estava acontecendo tudo isso, não entendia
porque a gente tinha perdido tudo. E o mais duro para mim era olhar para um lado e para o
outro e não ver mais a “minha vida de princesa”, me angustiava não saber o que estava
acontecendo. O único pensamento que eu tinha, nesse momento, era: cadê a minha casa? A
minha escola? Os meus brinquedos? O meu quarto? E, por alguns instantes eu cheguei até
mesmo a pensar: cadê a minha comida?
É difícil, assim, assumir uma posição de “gata borralheira” de uma hora para outra,
principalmente, quando você vive numa situação socioeconômica que lhe fornece um
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
119
pouco de “regalias” em relação a maior parte da população. Assim, para estar na situação
desse novo tipo de personagem é necessário um “jogo de cintura” maior para enfrentar os
problemas e todas as privações que começam a aparecer.
Apesar de tudo, esse período foi crucial para determinar o meu empenho nos estudos.
E, assim, como “gata borralheira” teria que, então, batalhar para conseguir tudo o que
precisava. Uma das únicas certezas que tinha nesse momento era de que os meus estudos
constituíam uma das poucas “saídas” dessa situação. Ou seja, a minha dedicação aos estudos aparece como uma “válvula de escape” para fugir dessa condição de “gata borralheira”
e, se possível, retomar à condição de princesa, anteriormente perdida.
Sinceramente, não sei até hoje de onde tirei, nesse momento tão difícil, essa determinação para estudar. Determinação essa que visava a algo utópico para mim nesse momento:
o curso de Direito. Esse é um dos fatos da minha vida que, embora eu queira explicar, não
encontro argumentos suficientes. É como os dogmas da igreja: todos os conhecem mas
ninguém sabe explicar a sua razão. Assim, não tenho a capacidade de explicar por que,
naquele momento, essa convicção surgiu na minha mente de forma tão pertinente. Com
certeza, essa foi uma das obras de Deus na minha vida. Às vezes, acho que foi Ele quem
colocou esse objetivo na minha vida para que eu esquecesse os demais problemas!
Um fato importante desse período é a inserção de novos personagens na minha vida.
Pessoas distantes da família e até mesmo pessoas anteriormente desconhecidas se tornaram
essenciais nesse episódio que se inicia.
O apoio de pessoas da família, portanto, foi fundamental nesse momento. Uma das
pessoas que merece destaque é a Geralda, mais conhecida como Nilda, pessoa boa e caridosa
que possuía um coração imenso para ajudar aos outros. Ela foi, para mim, uma espécie de
“fada madrinha”, ou seja, aquela pessoa que nos socorre nos “momentos de sufoco”. Apesar
de hoje ela estar ao lado de Deus, o seu feito aqui na terra será lembrado por mim e pela
minha família, durante toda a nossa vida. A sua presença, nesse período, era uma das coisas
que mais me alegrava e sua índole exemplar permanece até hoje em nossas lembranças.
Outro ponto importante a destacar é a herança que ela deixou aqui na terra, o seu filho
Reryck – hoje meu “príncipe encantado” –, que, seguindo as ações da mãe, é uma das
minhas principais fontes de alegria.
Cabe destacar, também, a minha tia Augusta e meu tio Roberto que foram duas pessoas que enormemente contribuíram para a minha capacitação profissional. Eles passaram a
“financiar” os meus gastos com livros, uniforme, material escolar e outros. Mais do que o
apoio financeiro, o apoio emocional deles foi essencial para mim. Uma das coisas que mais
me alegrava era que eles acreditavam em mim, na minha capacidade para continuar a estudar.
Por causa dessa crença, eles financiaram um curso completo de informática, além de financiarem um curso de inglês no SENAC-RN. A minha gratidão é enorme para com eles, visto
a enorme ajuda que me proporcionaram.
Eis outros personagens atuantes nesse episódio: meus avós maternos (Malvina e
Benedito) e meu tio José Antonio. Assim, como os demais personagens citados, eles
contribuíram, financeiramente, para a minha caminhada escolar.
Episódio 3 : “À espera de um milagre”
Esse terceiro episódio marca uma tentativa de tentar recomeçar e recuperar um pouco
a “vida de princesa”. Assim, mais do que uma tentativa de recomeço, essa época marca um
120
Caminhadas de universitários de origem popular
período em que, como “gata borralheira”, estou fazendo o possível e, muitas vezes, o impossível, para alcançar os meus objetivos.
O primeiro grande acontecimento desse episódio é a minha aprovação, em 2001, no
processo seletivo do CEFET-RN, Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio Grande
do Norte. Aos 15 anos de idade, portanto, a “festa de debutante” não existiu, mas Deus me
presenteou com essa aprovação – crucial para o meu engajamento nos estudos nessa nova etapa.
O CEFET-RN, como instituição, foi a força motivadora para a minha capacitação
profissional. Como um “padrinho”, esse colégio disponibilizou toda uma estrutura educacional para mim: boas instalações, bons laboratórios, bons professores, enfim, bons amigos.
Nesse período, outra “fada madrinha” entra em cena: Solange. Ela era a assistente social do
CEFET-RN e por alguns anos “facilitou” a minha vida por meio de algumas concessões:
bolsa de alimentação; ajuda financeira para os tickets; cotas de cópias das apostilas.
Concomitantemente ao 3° ano do Ensino Médio, estudei o curso de Técnico em
Turismo, na mesma instituição. De acordo com o ritual estudantil, ao terminar o Ensino
Médio, tentei meu primeiro vestibular para o curso de Direito – o sonho, até então utópico,
mas que eu lutava todos os dias para alcançar. Apesar de não ter sido aprovada nesse processo
seletivo, esperei, ansiosamente, que 5 pessoas desistissem do curso para que eu pudesse
entrar (isto porque eu fiquei no 5º lugar da suplência do curso).
Apesar de ainda pensar nessa possibilidade, seis meses depois, fiz vestibular no CEFETRN, sendo aprovada para cursar a Graduação Tecnológica em Comércio Exterior. Embora
tenha ficado alegre com a aprovação, não era exatamente o curso que eu queria. Nesse
momento, eu tinha de escolher um entre dois caminhos distintos: o primeiro (mais viável),
terminar esse curso para o qual fui aprovada; o segundo (mais sonhador), tentar novamente
cursar Direito.
Por inúmeros motivos, a opção mais viável foi a minha escolha. E, além de optar pelo
curso que estava “nas minhas mãos”, comecei a trabalhar, numa empresa privada, para
poder “financiar” as minhas despesas. Essas ações contribuíram muito para a minha formação
pessoal, uma vez que ganhei uma maior experiência para encarar as situações da vida.
E o “sonho de princesa” foi sendo deixado um pouco de lado. Por alguns momentos, a
esperança de “melhorar de vida” foi se tornando cada vez menor. A realidade, por mais difícil
que se apresentava, estava em frente aos meus olhos, mas o “sonho” não, este estava um pouco
distante. E, infelizmente, tive que aceitar essas novas condições que o cenário impunha.
Mas sempre existe o lado bom da história, por menor que ele seja. Assim, esses anos
que eu passei no CEFET-RN (desde o Ensino Médio até a Graduação Tecnológica) me
direcionaram para um caminho que, sinceramente, não previra quando cheguei aqui. Foram
anos extremamente difíceis, com muitas privações, principalmente, financeiras.
E assim era o meu “conto de fadas”, até o momento em que, por teimosia, decidi fazer
outro vestibular para o curso de Direito. E, dessa vez, a “gata borralheira” teve um pouco
mais de sorte. No dia 16 de janeiro de 2006, inacreditavelmente, meu nome estava entre os
aprovados para o curso de Direito, 1º semestre, da UFRN, Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Digo “inacreditavelmente” porque o sonho de cursar uma das graduações
mais concorridas, em uma universidade pública, parecia um tanto distante para mim.
E, como não poderia deixar de ser, o meu “conto de fadas” passou por mais momentos
de altos e baixos, que se sucederam com uma velocidade um pouco maior. Um dos momentos
a ser destacado: o meu noivado, ou seja, “a gata borralheira” e o “príncipe encantado”
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
121
celebrando uma aliança de compromisso. Esse meu “príncipe encantado”, Reryck, é mais
um presente que Deus me enviou. A sua colaboração foi fundamental para alguns grandes
momentos como a aprovação no vestibular para Direito.
Acho que, nesse momento, os leitores devem estar esperando a seguinte frase: “e
viveram felizes para sempre”. Mas como o meu “conto de fadas” é um tanto diferente dos
demais, a história não acaba quando o “príncipe” beija a “mocinha”. Existem ainda alguns
acontecimentos a serem relatados.
Dias após o meu noivado, fui despedida do meu emprego (na empresa privada citada
anteriormente). Foi mais um golpe inesperado! Isso porque até então as coisas pareciam
estar caminhando bem. Apesar de ter alcançado o meu “sonho” principal, começavam a
faltar condições financeiras para prosseguir com ele. Ou seja, apesar da aprovação no curso
de Direito, não havia recursos para dar continuidade ao mesmo.
E aí entra em cena um novo personagem: o Programa Conexões de Saberes. Programa
esse que se preocupa exatamente com esse meu problema, que também é de tantos alunos
oriundos do ensino público: o acesso e a permanência do estudante de origem popular na
universidade. No Conexões, surgem também, algumas “fadas madrinhas”, contribuindo
para que eu continue estudando no meu tão almejado curso.
Agora sim, termino de relatar o meu “conto de fadas”, mas sem aquela frase típica do
final de conto de fadas: “e viveram felizes para sempre”. Pelo contrário, termino com uma
expressão que representa um pouco a minha esperança de um dia terminar o meu curso e ser
bem sucedida na carreira jurídica: “à espera de um milagre”.
122
Caminhadas de universitários de origem popular
Significativas vitórias merecem
ser registradas
Maria Rosângela Gomes*
De início achava que falar sobre minha história de vida seria muito simples, bastava
sentar e ir colocando no papel em branco as recordações mais importantes. E agora estou eu
aqui. Depois de alguns dias, como a iniciativa de escrever, ou pelo menos tentar, porque só
percebo que na verdade eu estava com medo, e porque não dizer, até um pouco perdida em
minha própria história. É, realmente, acreditava que seria mais fácil...
Por onde devo começar? O que enfatizar? E como enfatizar? Qual a melhor maneira de
transmitir e compartilhar minha história com pessoas as quais não conheço? E, principalmente, levar minhas experiências de forma construtiva, para que elas se identifiquem e
compartilhem o máximo possível da riqueza dessa biografia. É, acho que agora já me sinto
mais à vontade... Mas será que o que eu irei considerar importante, também será visto com a
mesma intensidade pelos olhos dos leitores? Talvez alguns até gostem, e quanto aos outros?
Bem... me chamo Maria Rosângela Gomes, tenho 20 anos de idade, atualmente moro
na residência universitária na cidade de Natal. Estou cursando o 3º período do curso de
Bacharelado em Geografia pela UFRN e faço parte do Programa Conexões de Saberes.
Tudo que conquistei até hoje agradeço ao grande apoio que recebi de minha família,
e principalmente, dos meus pais, Seu João e Dona Francisca, mais conhecida como Dona
Nega. Tenho muito respeito e admiração pela coragem que tiveram de crescer dentro das
oportunidades que lhes eram oferecidas, e que, infelizmente, foram poucas. E é nessa vontade de crescimento que eu me espelho nesses dois grandes vencedores.
Não diferentemente de vários brasileiros, venho de origem popular. E assim como
tantos outros, meus pais faziam parte de uma grande massa dos menos favorecidos. Filhos
de agricultores, e sem muitas oportunidades, viam na agricultura baseada na relação patrão
e morador, a única alternativa para se manterem.
Assim, recordo as várias vezes nas quais minha mãe falava das dificuldades que ela,
juntamente com o meu pai, enfrentavam na época em que nasceu minha irmã mais velha,
Risolene: uma pessoa maravilhosa e com uma história de grandes conquistas, da qual terei
a oportunidade de falar mais adiante, pois se torna inevitável falar sobre mim e não mencionála. O que minha mãe sempre costuma falar é que quando eu nasci “os tempos eram outros”,
as dificuldades eram menores em relação há oito ou dez anos atrás.
Uma das poucas vezes em que soube que meus pais ficaram desencorajados foi diante
da perda da minha irmã Rosilene, ocasionada por uma parada cardíaca. Todos falam que ela
* Graduanda em Geografia – Bacharelado pela UFRN.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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era uma criança encantadora, infelizmente, não tenho nenhuma recordação sobre ela, pois
eu não tinha nem três anos completos quando ela nos deixou. Agora éramos apenas três
filhos, eu e meus dois irmãos: Marcos e Risolene, ou melhor, Ninha, porque é dessa forma
que eu e meu irmão sempre a chamamos.
Três anos se passaram e muitas coisas haviam mudado na vida da minha família e das
pessoas do Santo Amaro, bairro em que morávamos, pertencente à cidade de Alexandria,
onde nasci e morei durante dezessete anos. Dentre as mudanças ocorridas, a que considero
de muita importância foi o investimento em infra-estrutura no bairro. Era um bairro pobre,
e a partir dos investimentos, ocorreram grandes transformações em sua estrutura. E foi
justamente nessa época em que meu pai conseguiu aumentar a casa onde morávamos que
tinha apenas dois cômodos construídos pelos meus próprios pais quando vieram morar na
zona urbana de Alexandria. Como meu pai costuma dizer “ele era o pedreiro e minha mãe,
a servente na construção”.
Era março de 1991, começo das aulas nas escolas do município e, como muitas outras
crianças, eu também estava ansiosa, pois era o meu primeiro dia de aula. Foi inesquecível.
Lembro que uma das primeiras atividades educativas que aprendi com minha tia de sala era
que o nome elefante se escrevia com a letra e, e que o animal era verde. A professora sempre
relacionava as vogais a alguns animais ou frutas. Isso era encantador!
Uma das minhas grandes tristezas foi quando concluí o ensino básico. Sei que deveria
ser um momento de alegria, mas infelizmente teria que sair do colégio onde estudava e que
ficava próximo a minha casa. Teria que deixar todas as minhas professoras que, por sinal,
me mimavam bastante. Sempre que tinha festinha no colégio ou comemorações da cidade,
eu era convidada para representar o meu bom e inesquecível colégio, o Manuel Emídio. São
lembranças como essas que marcaram minha infância e que recordo até o atual momento.
Agora já estava cursando o 1º ano do ensino fundamental, em uma escola municipal
localizada no centro da cidade e um pouco distante da minha casa. A partir daí, eu passei a me
relacionar com pessoas que moravam no centro da cidade e com melhores recursos financeiros.
Às vezes sentia que alguns tinham certo preconceito por eu morar em um bairro pobre da
cidade. Estava acontecendo comigo o mesmo que tinha ocorrido com meus dois irmãos.
Alguns me perguntavam onde eu morava, e quando respondia, eles não acreditavam.
Falavam que não parecia, pois tinham uma imagem de que as pessoas do bairro Santo
Amaro eram extremamente ignorantes e não conseguiam me associar a elas. Muitas vezes
me chateava com esse tipo de comportamento, mas, acabei me acostumando. Enfim, apesar
dos pesares, me dava bem com meus novos colegas e professores. E o melhor era que na
quinta série iria poder estudar inglês. Mal sabia do que se tratava, mas achava isso maravilhoso, era como se entre todas as outras disciplinas, o inglês fizesse a diferença.
Nesse mesmo ano em que eu iniciara o ensino fundamental, a minha irmã tinha
passado no seu primeiro vestibular. Iria cursar Letras pela UERN, em Pau-dos-Ferros.
Era motivo de muita alegria para toda família e, principalmente, para meus pais, pois
Ninha era a primeira pessoa da nossa família, assim também como do Bairro Santo
Amaro, a ingressar no ensino superior. Ela sempre foi um grande exemplo de vida a ser
seguido por mim e meu irmão.
Iniciava-se mais um ano e juntamente com ele as dificuldades financeiras. Eu estava
indo cursar a sexta série, meu irmão já estava na oitava série. E quanto à Ninha, ela estava
desistindo da UERN e ingressando no curso de Ciências Socias na UFRN. E aí é que estava
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Caminhadas de universitários de origem popular
o problema. Como meus pais iriam conseguir mantê-la em Natal? Apesar de eu e meu irmão
estudarmos em escola pública, todo gasto, por mínimo que fosse, pesava muito no orçamento.
No ano seguinte, resolvi mudar de escola. Deixava a Escola Municipal Doutor Gregório
de Paiva, e me matriculava na Escola Estadual Valdemar de Sousa Veras, onde concluí o
ensino fundamental. Durante esses dois anos, só eu estava morando com meus pais. Graças
a Deus e com muito esforço, eles conseguiram que meu irmão fosse cursar o ensino médio na
escola agrotécnica na Paraíba. E minha irmã estava conseguindo se manter em Natal com
uma bolsa que conseguiu no PETI e morando na residência universitária.
No início do ensino médio, comecei a perceber o que me distanciava da maioria dos
colegas de sala, e era justamente agora que as condições financeiras iriam fazer a diferença.
No ano de dois mil e um, um grupo de professores se reuniu e resolveu abrir uma escola
particular. Grande parte das pessoas que estudaram comigo durante todo o ensino fundamental, se matricularam no novo colégio, já que a equipe de professores iria preparar melhor
seus alunos para enfrentar o vestibular.
Aqueles que podiam arcar com maiores despesas. Tinham outras opções, como morar
na cidade de Natal ou em Mossoró; ou, ainda, se deslocar todos os dias a Pau-dos-Ferros, em
busca de ensino de qualidade. Mas como meus pais não tinham condições de pagar as
mensalidades numa escola particular, dentre as opções citadas acima, a minha única opção
era me matricular na Escola Estadual 7 de Novembro. Era a única escola da cidade que
oferecia o ensino médio, entretanto, era precário.
Não tenho falado muito da minha relação com os meus vizinhos que tinham a mesma
idade que eu, até porque tinha poucos amigos onde morava, e entre os poucos que chegavam
a ter certa aproximação, a maioria desistia no ensino básico ou fundamental. E esse fato nos
distanciava. Alguns tinham que trabalhar, outros desistiam por não terem nem um incentivo ou apoio familiar: achavam que pobre estaria perdendo tempo estudando.
Meus pais sempre pensaram de modo diferente de alguns moradores do nosso bairro,
em relação a nossa educação. Sempre lutaram para nos dar, na medida do possível, melhores
oportunidades de crescimento profissional e pessoal, a fim de conhecermos e vivenciarmos
uma realidade bem diferente da que eles viveram.
Estava ingressando no primeiro ano do ensino médio e minha irmã falava que era
hora de começar a pensar no vestibular. No início do ano, estava estudando direitinho
em casa, como forma de compensar a precariedade do ensino que a escola pública
oferecia, mas depois me dispersei um pouco. Passei a achar que estava cedo para me
preocupar com o vestibular. Hoje reconheço que essa minha irresponsabilidade me causou
muitos prejuízos...
Durante os três anos que estudei no ensino médio, o ensino só conseguia piorar a cada
ano. No final de dois mil e três, concluí o ensino médio e, infelizmente, com a mínima
chance de ser aprovada no vestibular. Então, chegava a hora de decidir o que fazer para que
dois mil e quatro fosse um ano mais produtivo e, com um pouco de sorte e esforço, conseguir
a sonhada aprovação no vestibular.
Meus pais não teriam como me manter em outra cidade que oferecesse um cursinho
preparatório para o vestibular e tão pouco pagar por ele. E não existia cursinho popular na
minha cidade. Mas eu também não podia ficar na situação em que estava. Estudar em casa
não seria o bastante, pois o ensino que tive foi muito precário, o que tornava praticamente
impossível passar no vestibular sem um reforço.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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No mês de fevereiro desse mesmo ano, Ninha e meu cunhado Josmário decidiram que
eu iria morar com eles para que pudesse fazer cursinho. Por essa época, minha irmã já tinha
mudado de curso mais uma vez, agora estava cursando o 4º período de Direito pela Universidade Federal de Campina Grande, na cidade de Sousa-PB. Até então não tinha falado
sobre meu cunhado, pelo qual tenho muita admiração e respeito. Desde o início do namoro
com minha irmã, quando eu ainda tinha sete anos de idade, ele sempre se preocupou comigo, e principalmente, com meus estudos. Fazendo parte das pessoas que contribuíram de
forma direta em muitas de minhas decisões e na minha formação de valores. Atualmente, os
dois são advogados e casados há cincos anos.
O ano de dois mil e quatro não foi muito fácil. Já tinha onde ir morar, mas e o dinheiro
para pagar o cursinho? Por mais que minha família quisesse me ajudar, não teria como arcar
com mais gastos. Próximo onde eu estava morando, havia uma distribuidora de revistas:
passei a pegar os catálogos e repassar para algumas pessoas que revenderiam para mim.
Dessa forma, eu obtinha lucros de acordo com o que elas vendiam, com direito a certa porcentagem. E era dessa maneira que eu estava conseguindo pagar as mensalidades do cursinho.
Estudava umas oito horas durante o dia. O cursinho era às dezoito horas e trinta minutos, com
duração de quatro horas. Depois que chegava em casa procurava sempre estudar até às
duas da madrugada. Era a forma que encontrava para recuperar o tempo “perdido”.
Depois de dois meses, já tinha decidido que iria prestar vestibular para o curso de
Direito. Sabia que não iria ser fácil, pois é um curso muito concorrido, e na sua maioria, os
alunos das escolas públicas saem em desvantagem. Eu fazia parte dessa maioria. Como
minha irmã e meu cunhado na época eram professores de Física e Química, respectivamente,
eles me ajudavam o máximo possível para que pudesse acompanhar os conteúdos que eram
passados nas aulas.
Oito meses se passaram. Era novembro, chegava a hora de fazer a prova do vestibular
da Universidade Federal de Campina Grande-UFCG. Fiquei muito nervosa na hora da prova,
mas agora era esperar para saber o resultado da primeira etapa. Consegui ser classificada para
fazer a segunda etapa, tinha tempo para estudar mais um pouco, afinal o sonho de entrar na
universidade parecia estar cada vez mais próximo. E cada minuto que me dediquei estudando, principalmente naquele ano, mostrava-se ter sido muito válido e proveitoso.
O resultado final saiu um mês depois, infelizmente não consegui ficar entre os cinqüenta
aprovados, tinha ficado na suplência. Ainda tinha grandes possibilidades de ser chamada!
Apesar de não ter conseguido a aprovação, aquela colocação era uma grande vitória, uma
prova que com mais um pouco de esforço e confiança, da próxima vez alcançaria a aprovação.
Ninha e Josmário tinham terminado o curso e pretendiam voltar para Alexandria logo
após a aprovação no exame da OAB. Não demorou muito até que voltássemos. Eles abriram
um escritório em sociedade, e eu voltei a morar com meus pais, apesar de passar a maior
parte do tempo com eles. Naquele ano, não teria como permanecer morando em outro local
para continuar estudando, o jeito era estudar em casa, sozinha mesmo.
Assim, foi durante todo o ano de 2005. Chegou certa época que já estava me sentido
pouco produtiva, não confiava que iria conseguir passar no vestibular com o pouco que
estava estudando. Cada dia era como se eu estivesse me afastando dos meus objetivos.
Pareciam estar muito distante. Chegou a época das inscrições para o vestibular, e apesar de
estar muito insegura, fiz minha inscrição na UFCG novamente para o curso de Direito, e
Geografia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Não tinha onde ficar em Natal para fazer as provas. Não conhecia a cidade e nenhum
lugar onde pudesse ficar. Essa situação me assustava. Uma amiga falou que tinha uma
cunhada que morava na Casa da Estudante e poderia falar com ela para que eu pudesse ficar
lá, como visita. E essa foi a solução. Viajei para fazer as provas, que foram boas, e agora
restava esperar.
Em janeiro de dois mil e seis, saiu o resultado, graças a Deus consegui passar na
UFRN, e continuei aguardando o resultado final da UFCG. Mas, não fui aprovada,
novamente fiquei na suplência. Agora as preocupações eram outras... não mais ingressar no
ensino superior, mas como iria morar em Natal. A única solução que encontramos seria
concorrer a uma vaga na residência universitária.
As aulas iniciaram em fevereiro, e eu ainda continuava em Alexandria, já fazia duas
semanas que estava faltando às aulas. Durante a última semana, recebemos a visita da
assistente social em minha casa, pois teria realmente que comprovar que não teria condições
financeiras para permanecer no curso se não tivesse ajuda da Secretaria de Assuntos
Estudantis-SAE. Conversando com a assistente social que realizou a visita, pude contar
para ela que se o resultado demorasse muito, correria o risco de ser reprovada por faltas ou,
pior ainda, se não conseguisse a vaga, não teria como iniciar o curso. Ela falou que mesmo
que eu conseguisse a vaga, o resultado iria demorar um pouco a sair. Então, sugeriu que eu
ficasse na Casa da Estudante novamente, enquanto divulgassem a lista das pessoas
selecionadas para a bolsa residência.
No início foi tudo muito difícil, nunca tinha saído para morar longe da minha família
e, pior ainda, em uma cidade que não conhecia, e nem ao menos sabia para que lado ficava
o Campus universitário. Não estava acostumada a morar em ambiente coletivo, com pessoas que não conhecia, e cada um com seus próprios problemas. Entre as setenta meninas
que moravam na casa mais ou menos, conheci Dhynefa, minha atual parceira, no Conexões
de Saberes. Ela é de um interior próximo à Alexandria e na época se encontrava na mesma
situação que eu: ambas à espera de uma vaga na residência universitária.
Quando saiu a lista da seleção das pessoas que conseguiram a vaga, lá estava meu
nome e o de Dhynefa. Entre as dez meninas que iriam morar na casa 24, nós fomos as duas
primeiras a fazer a mudança. O nosso tempo na Casa da Estudante já estava extrapolando.
Demorou um pouco para me acostumar com a nova vida, mas tudo ia bem na medida do
possível. Com a residência, as despesas iriam ser bem menores, pois além da moradia, a SAE
oferece outras ajudas para que os alunos do interior do estado possam permanecer na capital
até a conclusão do curso.
Antes de iniciar as aulas na universidade, estava ensinando numa turma do EJA
(Educação para Jovens e Adultos) e depois que vim para Natal continuei recebendo pelo
tempo que tinha ensinado. E era com esse dinheiro, juntamente com o que minha família
podia mandar, que pude me manter durante um semestre. No final do primeiro semestre, a
situação financeira se complicou um pouco mais, já tinha recebido todo o dinheiro referente às aulas, então teria que economizar o máximo. Se é que ainda fosse possível!
Era essencial que ganhasse uma bolsa de apoio acadêmico para continuar me mantendo
no curso. Passei a colocar meu nome em algumas listas nos departamentos da universidade
para concorrer a uma bolsa. Talvez com um pouco de sorte seria chamada para alguma
delas. Estava um pouco em desvantagem, pois não tinha curso de computação e muito
menos falava outra língua, além do português. Quesitos esses que contavam bastante. Uma
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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bolsa na base de pesquisa também seria ótima, mas sempre passaram para mim que aqueles
que conseguiam eram os alunos mais próximos dos professores. E eu tinha pouco tempo
que estava na universidade! Era uma caloura...
Antes do final do semestre, fiquei sabendo por meio do Departamento de Assistência
ao Estudante, que estavam abertas as inscrições para concorrer a vinte e cinco vagas no
Programa Conexões de Saberes. Para ser sincera, não sabia do que se tratava, apenas que
aquela poderia ser a oportunidade de arcar com as despesas básicas e da vida acadêmica.
Durante as inscrições, a Pró-Reitoria de Extensão apresentou o programa aos candidatos.
Dentre os pré-requisitos exigidos eu me encaixava em todos, dentre eles ser aluno de escola
pública. Eram bolsas destinadas a alunos oriundos de espaços populares que tinham ingressado na Universidade naquele mesmo ano.
Fui selecionada no Programa Conexões de Saberes e esta estava sendo mais uma
conquista desde que tinha entrado na universidade. Logo após o resultado da seleção dos
bolsistas, também surgiu uma oportunidade de participar de uma base de pesquisa. Confesso
que fiquei um pouco em dúvida: qual seria a melhor escolha a se fazer no momento? E ao
mesmo tempo supresa, pois estava apenas no primeiro semestre e com o direito de escolher
entre duas grandiosas oportunidades.
Optei pelo Conexões de Saberes, pois além de realizar ações de extensão, ensino e
pesquisa, que contribuiriam de forma direta na minha formação acadêmica, iria poder
ajudar jovens de origem popular, assim como eu, a lutarem em prol de oportunidades por
acesso e permanência na universidade pública. Oportunidades essas que nós, bolsistas do
Conexões, estávamos tendo.
O segundo semestre seria mais tranqüilo. Além de ter conseguido a bolsa de apoio
acadêmico não iria mais me sentir tão sozinha. Agora poderia contar com o apoio de Ronnie,
meu namorado. Na época do vestibular, eu havia passado para o primeiro semestre e ele para
o segundo e, infelizmente, por esse motivo tivemos que nos distanciar por algum tempo.
Fato esse que complicava mais ainda minha situação, por não ter familiares nessa cidade
que ainda não conhecia. Dentre as grandiosas pessoas que acreditaram e me ajudaram, ele é
uma delas. Das muitas vezes em que me sentia desencorajada, ele me incentivou e continua
incentivando a continuar lutando sem nunca desistir.
Diante de todas as dificuldades que enfrentei e por todas as conquistas que consegui
até hoje, atualmente me sinto uma pessoa vitoriosa. Tenho muitos sonhos e planos, tanto
profissionais como pessoais que ainda pretendo realizar. Sei que essa realização irá depender
muito do meu esforço, assim como também sei que a caminhada até lá não será fácil, mas
não será dessa vez que irei desistir. Juntamente com essa vontade de vencer, sei que poderei
sempre contar com o apoio de todos aqueles que me amam, precisam de mim e continuam
acreditando em meus propósitos.
O futuro te espera, cheio de inúmeras oportunidades
maravilhosas. Ainda não tens tudo, mesmo que tenham sido
grandes tuas conquistas. O melhor está por vir.
Norman V. Peale
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Caminhadas de universitários de origem popular
Antônia sou eu e pode ser você
Marinalva Gomes de Oliveira*
Hoje desaprendo o que tinha aprendido
até ontem e que amanhã recomeçarei
a aprender.
Cecília Meireles
Da infância ao desabrochar de um sonho...
Recordo-me que era uma boa aluna, porém, muito recatada, de tal maneira que, na
aula, minhas colegas respondiam a chamada por mim. Sempre fui reconhecida por uma
extrema timidez. Não me lembro ao certo quando começou, mas sei que de alguma forma a
separação dos meus pais agravou esse quadro, tornando-me uma pessoa cada vez mais
retraída e com uma certa fobia social.
Quando meus pais se separaram (de uma maneira conflituosa) sofri um choque. Com
apenas seis anos, não foi fácil optar com quem ficar e, após sofrer algum tempo morando
com minha mãe, decidi que o melhor mesmo seria morar com o meu pai. E sabem? Não foi
fácil enxergar com os olhos da infância que nossa mãe não nos amava, e, pior ainda,
ouvi-la dizer isso.
Na escola não era mais a mesma aluna, continuei freqüentando, mas não me concentrava
nas aulas, nem dava a menor importância ao que a professora dizia, apenas chorava! Fiquei
abalada psicologicamente. Por muito tempo foi assim, até que certo dia, não sendo o meu
aniversário, a professora e meus colegas cantaram parabéns para mim, então pude perceber
que foi porque não havia chorado naquele dia! Mas como não há dor que o tempo não cure,
os anos foram passando e eu fui me acostumando com a ausência da minha mãe.
Retomei a vontade de estudar e adorava ler. Quando ingressei na 5ª série já possuía
um ideal. Lembro-me, como se fosse hoje, que eu parei diante da escola que ia estudar,
Escola Estadual Professor Raimundo Silvino da Costa e prometi para mim mesma que eu
iria chegar à Universidade.
Dentre cinco irmãos, fui a única que deu importância aos estudos e seguiu os sábios
conselhos de meu pai que, mesmo analfabeto, dizia: “estudem para ser gente na vida!”
Acho interessante lembrar esse fato hoje, porque naquela época, morando em um interior
tão longe, não tinha noção do que era universidade, não sabia como era, onde era, o que
precisava fazer para entrar nela e, mesmo assim, tinha dentro de mim o desejo de estar aqui.
E quando esse dia chegou foi exatamente como eu idealizei.
* Graduanda em Pedagogia pela UFRN.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Mas retomando o contexto anterior, quando me encontrava na sexta série, fiz uma
péssima troca: os estudos pela brincadeira e como tínhamos como professor de Matemática
“Julhão” (assim todos o chamavam e todos o temiam por sinal, mas era um excelente
professor) o resultado não foi outro: isso mesmo, o “velho Julho” (assim eu o chamava) me
reprovou e repeti o ano.
Foi um susto para mim, fiquei pasma. Contudo, no ano seguinte, repetia a mesma
“proeza”. Todavia, nesse ano foi diferente, pois meu pai me chamou para conversar e pude
perceber em seus olhos e em suas palavras o quanto se decepcionara comigo, pois realmente
acreditava em mim e se orgulhava por eu gostar de estudar. A partir disso, caiu a ficha e
nunca mais repeti o ano.
Ainda na infância, me recordo de um fato, que não é triste, muito pelo contrário, que
reflete um dos poucos momentos de astúcia e felicidade vividas na minha infância.
No final da 5ª série, como é de praxe nas escolas, foi organizado uma confraternização/festinha de fim de ano. Como combinado, cada aluno levaria seu refrigerante. Ângela
(minha prima) e eu não tínhamos dinheiro no dia. Então apelamos para nossos pais,
tentamos comprar fiado no mercadinho, nada deu certo! Daí me ocorreu a idéia de fazer
um caldeirão de “Kisuque” de laranja.
Ângela se encarregou de conseguir as garrafas. Para mim, ela conseguiu uma de CocaCola, e para ela de Fanta Laranja, mas tudo bem! Foi um momento de muita aflição até o
início da festinha, pois era necessário guardarmos na geladeira da cozinha da escola, e
tínhamos muito medo que se misturassem aos demais.
No momento do bolo, foi bastante a expectativa para nós, pois temíamos descobertas.
Os professores ao abrirem os refrigerantes, todos fizeram o barulho de líquido com gás,
enquanto que o nosso fez “ploc” e não deu trabalho algum para abrir. Tomamos o refrigerante
forçosamente porque, quando não queríamos mais, nossas colegas pediam e não podíamos
correr o risco de sermos descobertas. Até que, no final da festinha, sobrou muito refrigerante, todos beberam bastante e ainda levaram para casa. Esse foi um acontecimento que
lembro com graça e saudade da infância.
Aos 14 anos, iniciou-se uma nova etapa que considero importante em minha trajetória:
eu sentia que ali onde nasci, São José do Seridó-RN, não era o meu lugar. Meu pai exercendo
a profissão de agricultor tinha pouco a nos oferecer financeiramente. Decidi, então, trabalhar
em uma casa de família. Acho importante citar essa passagem, porque essa casa era a de
madrinha Margarida (madrinha de crisma) que foi a primeira pessoa, depois de meu pai, que
ouvia minhas confidências e acreditava existir um potencial em mim. Essa pessoa incrível
foi meu primeiro estímulo e primeiro empurrão na luta por meus objetivos.
No ano seguinte, precisei trabalhar em outra residência (pessoa aparentada de madrinha
Margarida). Daí surgiu a oportunidade de vir morar em Natal e não pensei duas vezes.
Naquela época, foi triste deixar meus familiares e minhas amigas do coração: Ângela,
Miranete, Clébia e Iara, mas era necessário seguir o meu destino.
No caminho para cá (Natal) fiz uma espécie de segunda promessa: jurei para mim
mesma que faria até o impossível para não ser necessário voltar ao meu interior e o que
estava escrito foi se cumprindo.
Na casa dessa pessoa, com quem vim do interior para trabalhar de doméstica, fui muito
humilhada, foram quatro sofridos anos. Primeiramente, eu não conhecia meus direitos
trabalhistas ao chegar aqui. Como salário, permaneci recebendo R$ 40,00 mensais por meu
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Caminhadas de universitários de origem popular
trabalho (realizava todas as tarefas domésticas de uma casa), e ela, ainda, não me permitia
férias, décimo terceiro... ou qualquer outro direito que me assistisse.
E em segundo lugar, sofria com as atitudes preconceituosas as quais era exposta. Essa
patroa sempre me comparava a sua filha, afirmando ser esta uma pessoa muito inteligente e
privilegiada por estudar na ETFRN (CEFET-RN) e que, mesmo assim, alegava achar difícil
ela ingressar em uma universidade pública, imagine você! Dizia ela, “uma pessoa pobre,
negra e estudando em escolas públicas sem qualidade, jamais chegará lá!”. Afirmava isso
com convicção e humilhação. Agora imaginem vocês que, por ironia do destino, eu quis, eu
lutei e consegui entrar na UFRN; já sua filha, jamais obteve êxito chegando até a estudar,
posteriormente, na mesma escola na qual cursei o magistério.
Era o primeiro ano de minha estadia aqui em Natal quando cursava a oitava série.
Estudei, então, com o Edivones, futuro namorado, pessoa que iria abrir meus olhos para a
situação vivida. Contudo, isso só iria acontecer dois anos depois, quando cursava o segundo
ano do ensino médio, e fui apresentada a ele por uma amiga nossa, a Josenilda (que estudou
conosco também a oitava série), daí liguei o nome à pessoa. Não era mesmo o destino?
E um anjo caiu do céu...
Naquela época, eu era muito ingênua, observava que havia algo de errado naquele
“sistema empregatício”, mas não sabia que providência tomar, acreditem! Nem documentação
eu possuía e foi Edivones que me ajudou a sair daquela exploração doméstica. Ele passou
a me esclarecer sobre meus direitos trabalhistas e conversar comigo sobre a forma desumana
a qual eu era submetida e até a minha documentação ele providenciou.
Quando decidir deixar aquele “emprego”, me prenderam dentro de casa, a noite toda
e, no dia seguinte, me levaram para o meu interior (não se conformavam em perder a “escrava
doméstica”). Mas retornei no mesmo dia à Natal com apenas a passagem e roupa do corpo e
o mais importante: a confiança que eu depositava no Ed. (Edivones).
Hoje, me pergunto: e se o Ed. não estivesse lá? Se ele não tivesse uma boa índole,
afinal, namorávamos há pouquíssimo tempo. O que teria acontecido comigo? Com apenas 18
anos, em um lugar que pouco conhecia. Mas o enredo dessa história foi outro; ele estava lá
para me receber, às 14h, cuidou de mim e ficou comigo até que eu conseguisse outro emprego.
Namoramos por 7 meses e em 10 de janeiro de 2000 casamos, mas não pensem que
acabou como nos contos de fada, pois muitos acontecimentos negativos ainda estavam por vir...
No ano seguinte eu iniciaria o 1º ano do ensino médio. Esse período, eu admito, se
pudesse voltar no tempo e consertar um erro, esse seria o ano. Porque entre o curso de
Magistério e Científico, optei pelo segundo, simplesmente por não querer abdicar de minhas poucas amizades que construí por lá.
E, assim, permaneci na Escola Estadual Governador Walfredo Gurgel, renunciando a
três anos de minha vida. Esse foi meu erro! Ao concluir o ensino médio, nessa escola, fiquei
sem chão e me indagava: se este é um curso preparatório para o vestibular, como não me
sinto preparada para realizar tal exame? Percebi que, do mesmo modo que entrei, com minha
bagagem de conhecimentos, saí, ou seja, com ela vazia. Então, imaginava o que fazer agora?
Assim, tomei uma decisão que deveria ter tomado há três anos atrás: fui estudar na
Escola Estadual Professor Luis Antonio, fazendo o curso normal (magistério). O colégio era
qualificado, de fato, porém, quando estava próximo de concluir o curso ainda não me sentia
preparada para prestar vestibular, devido às disciplinas exatas que não eram oferecidas no
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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magistério e que na escola anterior foram ministradas de maneira muito deficitária pelos
professores.
É bem verdade que, para chegar aqui, enfrentei vários obstáculos. Teve períodos de
auto-estima baixa, pois minhas colegas não possuíam a mesma força de vontade e me
incentivavam negativamente por sempre ter estudado em escolas públicas achavam que eu
não fosse capaz. Algumas delas, com quem cursei o magistério, nem mesmo tentaram ingressar em uma universidade pública e optaram por investir em universidades particulares.
Senti necessidade de provar que poderia ser difícil, mas eu acreditava não ser impossível,
pois imaginava que dentro da universidade “existiam pessoas como eu”, só que, com
embasamento educacional melhor, então, procurei aperfeiçoar o meu. Dentre os obstáculos
enfrentados na luta pela conquista do meu ideal, esses não foram os maiores e sim o que será
relatado mais adiante.
Como comentei anteriormente, em 2000, iniciava uma nova etapa em minha vida
afetiva. Aquele foi um ano difícil para continuar meus estudos, pois com menos de dois
meses de casada já esperava um bebê (minha preciosa Guertiane que me deixou muito
feliz); na escola, foi um ano de muitas greves o que me estimulou a desistir, retomando os
estudos somente no ano seguinte, mesmo amamentando.
Era o ano de 2002 quando iniciei o curso normal (magistério)! E dois anos depois,
quando concluía esse curso, surgiu uma iniciativa da escola oferecendo aos alunos um
cursinho pré-vestibular que tinha como critérios: de início, receber apenas os alunos da
escola; posteriormente, outros alunos oriundos de escolas públicas (atualmente tem preenchido cada vez mais vagas na universidade federal) e a mensalidade era R$ 10,00 mensais.
Era minha chance porque financeiramente era acessível para mim.
Conversei com meu marido que mesmo com problemas financeiros, e um pouco
desacreditado em minha ousadia de ansiar chegar tão longe, ele me manteve por um ano
no cursinho; todavia, no final desse ano, com o acúmulo de responsabilidade: casa,
filha, início do estágio do curso e todos os conteúdos do cursinho, não acreditei muito
que iria passar naquele ano, mesmo assim quis fazer as provas, para saber o nível de
aprendizagem exigido.
Foi muito importante essa decisão, porque no ano seguinte o cursinho estava mais
estabelecido, me dediquei mais, e com a experiência das provas, percebi que não bastava
saber um assunto ou outro, mas era preciso mesmo ampliar de forma geral meus conhecimentos.
No mesmo ano (2004) quando concluía o magistério, prestei pela primeira vez o
vestibular. Iniciava um novo conflito em minha vida. A idéia de mudar a minha sorte havia
se tornado persistente em mim e passou, então, a incomodar algumas pessoas da família do
meu marido, inclusive uma irmã dele, que ele me alertou antes, que era racista. Havia muitos
estímulos negativos para que eu não cursasse o magistério e, como esses “estímulos” não
fluíram, estabeleceu-se, então, um clima de muita inveja e inconformismo.
Não era aceitável para eles, especialmente para ela, que uma negra exercesse uma
profissão que julgava “melhor” que a dela (ela é costureira) e também não aceitava a idéia
de que alguém buscasse uma vida melhor, “principalmente se fosse uma negra”, assim ela
dizia! (frustrada, porque em sua juventude prestou vestibular e não foi capaz de passar,
desistindo definitivamente).
À medida que buscava conquistar meus objetivos, ela corroía-se de inveja, até revelar
de fato quem era e expelir seu veneno sobre mim. Tentei evitar os conflitos, porém, a
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situação saiu do controle quando ela (e também sua mãe) passou a tratar minha filha, que na
época tinha apenas 4 anos de idade, preconceituosamente, chamando-a de negrinha e desprezando-a. Não foi possível conter-me!
Após ser vendida a parte do terreno em que morávamos (o terreno era cedido e pertencia
aos pais do meu marido), precisei morar com a sogra e os problemas se duplicaram, pois meu
marido, na tentativa de agradar sua mãe, construiu uma casa para ela. Assim, ficaríamos com
a sua, mas cresceu em demasia a inveja de minha cunhada, pois ela “cuidava” de sua mãe.
Quando a situação tornou-se insustentável, para defender-me, a processei por racismo,
injúria e difamação, com o apoio do meu marido. Busquei meus direitos e não os encontrei.
Procurei em todos os órgãos: OAB, UNP... E inclusive na UFRN, entretanto, todos alegaram
não ser possível ceder advogados para causas criminais. Em alguns deles, percebia até um
certo desinteresse em ouvir o caso em questão.
Conclusão: sem dinheiro para pagar um advogado para acompanhar-me nas audiências,
perdi a causa. Ela cumpriu uma pequena pena, apenas referente à injúria e difamação. Fiquei
desacreditada com a justiça brasileira que é, na verdade, uma injustiça.
Esse processo se estendeu por dois anos e, apesar de tantos conflitos e torturas psicológicas, eu estudava e estudava! Quando me senti triste e injustiçada por não ter advogado
para continuar a causa em questão, Deus havia reservado algo muito maior: minha aprovação no vestibular, que aceitei como a melhor das recompensas.
Nesse dia compreendi que “a força de sua inveja foi a velocidade do meu sucesso!”
(frase que li no pára-choque de um carro antes de receber a notícia de minha aprovação ).
Todas as situações humilhantes que ela me fez passar não me causaram nenhum
recalque, não foram esses empecilhos que me desanimaram, muito pelo contrário, me deram
forças para persistir e alcançar meus objetivos.
Quando isso aconteceu, há três meses não morávamos mais na casa da minha sogra,
pois essa cunhada manipulou sua mãe e a fez mentir. Ambas foram à delegacia do idoso
prestar queixa contra meu marido, para vingar-se de mim, alegando que ele batia na mãe.
Acreditem! Certamente ganharam a causa e até advogado foi possível conseguirem, afinal
vivemos no Brasil!! Como conseqüência, fomos despejados de lá.
O curioso é que para causas criminais não dispunham de advogados, mas para vara de
família, sim. Daí, me vieram dois questionamentos: não seria a questão criminal de tanta
importância ou até maior, quanto as questões concernentes à vara de família? Ou será que a
negligência observada em meu processo tinha uma estreita relação com o fato de que se dá
pouca importância à questão racial no nosso país? Afinal, nossas leis só existem no papel,
na prática não funcionam, em sua maioria!
Brasil! Mostra a sua cara, quero ver quem paga, pra a gente ficar
assim. Brasil! Qual é o teu negócio? Nome do teu sócio?
Confia em mim!
Cazuza
Evidentemente que, em meio a esses conflitos, meu marido viveu um dilema permanecendo
algumas vezes neutro. Não foi fácil para ele e, para aumentar ainda mais seu desapontamento,
sua mãe propôs-lhe que me mandasse embora levando minha filha (após a audiência) em
troca de sua permanência no terreno. Como resposta, ele renunciou à sua família e ficou
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
133
comigo e com minha filha. Como já citei, atualmente moramos bem distante deles e fomos
abençoados com mais uma vida, pois estou no 6º mês de gestação.
Reinando novamente a paz em nosso lar, eis que surge uma nova etapa em minha
vida: meu ingresso na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). No primeiro
período, lembro-me que uma das minhas professoras (Érika) nos conscientizou sobre a
importância de nossa inclusão em projetos de extensão na universidade. Dias depois, foinos avisado sobre a seleção de bolsistas para um programa novo que, posteriormente, viemos saber se chamar “Conexões de Saberes”.
Quando já ingressos no programa, respondemos a um questionário, o qual tinha uma
pergunta que me chamou muito a atenção: qual a palavra que definiria meu ingresso na
universidade? Certamente, a palavra que exprimia toda minha emoção era REALIZAÇÃO.
O Conexões foi e tem sido de fundamental importância para minha permanência aqui
na universidade. Considero-me privilegiada por participar desse programa. O que me permite
assimilar as teorias ministradas em sala de aula (ensino), buscar outras fontes para enriquecimento desses conteúdos (pesquisa) e colocar em prática os conhecimentos adquiridos na
realidade social em que, posteriormente, iremos atuar (extensão) nos permitindo, ao término
do curso, sairmos como profissionais completos. Possibilita, ainda, que nossas dúvidas
entre a teoria e prática sejam dissipadas aqui, no período em que estamos estudando.
O Conexões, como atividade de extensão, é essencial, também, no sentido de auxiliar
na descoberta da profissão escolhida, se ela é de fato a que queremos nos dedicar por toda
vida, uma vez que permite a atuação na prática enquanto ainda estudantes na profissão.
Enfatizo isso, porque é importante lembrar que alguns profissionais se chocam e se
perdem como profissionais (principalmente no meu curso) no exercício da profissão, no
momento em que se vêem “obrigados” (e não sabem) a colocar tanta teoria recebida, aqui
dentro, na prática, ao retornar à sociedade. Isso faz com que ocorra, por vezes, a renúncia da
profissão, por não se achar competente o bastante para exercê-la.
Enfim, o Conexões nos permite um leque de atuações. Tanto dentro da própria universidade, como para fora dela por meio da extensão.
Com relação a minha escolha, acredito ter sido a correta. Certamente não me trará
status, mas é a profissão que permite o compromisso social e me dará a oportunidade de
retribuir às pessoas, com condições financeiras semelhantes a minha, com algo que possibilite a realização de seus sonhos. Pois, como dizia o grande educador Paulo Freire: “ensinar
para transformar” ou como acreditava Antonio Gramsci:
Organicidade de pensamento e a solidez cultural só poderiam
ocorrer se entre os intelectuais e os simples se verificasse a mesma
unidade que deve existir entre a teoria e a prática, isto é, se aos
intelectuais tivessem sido organicamente os intelectuais daquelas
massas, ou seja, se tivessem elaborado e tornado coerente os
princípios e os problemas que aquelas massas colocavam com a
sua atividade prática, constituindo assim um bloco cultural e
social. ( 2004:100).
Dedico este espaço que foi destinado ao registro de minha história de vida e educação,
em especial ao meu marido Edivones, que muito contribuiu para que eu esteja aqui hoje; à
134
Caminhadas de universitários de origem popular
minha filha Guertiane e ao meu bebê que chega em julho deste ano. Dedico, também, ao
meu pai, João Gomes que, com preocupações e ensinamentos, muito contribuiu para que eu
fosse a pioneira nessa conquista em nossa família. Ao tio Orlando e tia Maria que, em uma
fase muito difícil em minha vida, me acolheram. Madrinha Margarida e muitas outras
pessoas que passaram em minha vida contribuindo na formação do ser humano que sou
hoje. A todos, meu muito obrigada!
Muda! Que quando a gente muda o mundo muda com a gente.
A gente muda o mundo na mudança da mente e quando a mente
muda a gente anda pra frente. E quando a gente manda ninguém
manda na gente.
Gabriel O Pensador
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
135
O mundo de Pâmela
Pâmela Rafaelly de Melo Reinaldo*
Pois em algum lugar dentro de nós,
alguma coisa nos diz que a vida é um
grande enigma.
Jostein Gaarder
Não é fácil ser pobre e conseguir entrar em uma universidade, nem tão pouco permanecer nela. “Curso superior é coisa rara gente rica”, disse-me uma vez uma amiga e ela tinha
razão. Hoje estudo em uma universidade federal e isso é o fruto do esforço e do trabalho de
muita gente, dentre as quais eu e minha mãe somos as pessoas mais importantes.
Em 2000, quando o meu pai faleceu, a situação na minha casa ficou muito difícil, pois
ele era a única pessoa assalariada da casa. Morávamos em Fortaleza, mas como minha mãe
não tinha como sustentar três filhos em uma cidade grande, fomos morar em Baraúna,
cidadezinha do interior do Rio Grande do Norte de onde minha mãe é natural e, também,
onde moram meu avô e minhas tias.
Não possuíamos mais dinheiro, nem casa, acho que não possuíamos nem mesmo
dignidade. Fomos morar na casa de uma tia minha, irmã da minha mãe, que nos acolheu de
braços abertos, mas nem de longe era como na nossa casa. Minha mãe chorava muito porque
não sabia o que seria de nossas vidas.
Minha irmã caçula, que na época tinha pouco mais de um ano, vivia doente pois não
conseguia se adaptar ao clima quente, seco e empoeirado da nova cidade, motivo pelo qual
passamos muitas noites em claro. Meu outro irmão, mais velho que eu dois anos, e minha
mãe passaram a brigar constantemente fazendo com que ele saísse de casa e fosse morar com
outra tia várias vezes.
Eu assistia a tudo isso sofrendo sozinha no meu mundo particular. Tentava ajudá-los
como podia, mas não podia muito. Acho que nem mesmo conseguia entender tudo o que
estava acontecendo. Tinha então treze anos. Hoje penso que não é fácil para ninguém perder
tudo: uma pessoa que você ama, sua casa, seus amigos, sua escola. Sair de uma situação
financeira absolutamente estável para aquela de simplesmente não possuir mais nada.
Passei a estudar em uma escola municipal da cidade e como vinha de uma escola
particular não demorou para que me destacasse na turma pelas boas notas. Foi um ano muito
difícil. Na escola era vista como uma aluna estudiosa como sempre fui, mas em casa chorava
sozinha por não poder estudar, pois tinha que ajudar minha mãe e minha tia, principalmen-
* Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela UFRN
136
Caminhadas de universitários de origem popular
te, com a minha irmã que era bebê. Minhas boas notas não eram porque eu estudava muito,
mas porque já trazia certa bagagem de conhecimentos que se sobressaiam diante do pouco
que era cobrado pela nova escola.
Em 2000, quando fazia a oitava série, decidi estudar para entrar no CEFET. Tinha que
estudar de madrugada, já que durante o dia não tinha tempo. O CEFET fica em Mossoró,
cidade a 30 km de Baraúna, e minha mãe fazia um grande esforço para pagar minha passagem para eu ir a um aulão todos os sábados. Nem sempre dava para eu ir, pois o dinheiro era
realmente curto, mas eu compensava nas madrugadas que passava em claro estudando.
Não sabia exatamente o que significava fazer o ensino médio em uma escola federal,
mas estava certa de que não poderia ser pior do que o ensino municipal onde estava. Mesmo
jovem, entendia que aquele ensino era muito precário e como minha mãe não podia pagar
uma escola particular, entrar no CEFET tornou-se uma questão de sobrevivência.
Fui aprovada, mas “como alegria de pobre dura pouco”, minha mãe alertou-me para o
fato de que não tínhamos condições financeiras para eu ir estudar em outra cidade. Ora, se
não podíamos pagar para eu ir todos os sábados, como poderia dar para eu ir todos os dias?
Eu sabia que minha mãe tinha razão. Mas não desisti e tudo foi acontecendo de modo que
pude ir estudar em Mossoró: minha mãe havia conseguido uma carona para eu ir e voltar
todos os dias.
E foi assim, de carona, com o material escolar e o uniforme todos os anos dados por
alguém diferente que consegui cursar os três anos do ensino médio no CEFET. Acordava às
cinco horas para estar lá às sete e estava de volta em casa por volta das quartoze horas. Dava
aula de reforço escolar às crianças durante a tarde toda e, às vezes, quando a primeira criança
chegava, eu não tinha sequer almoçado.
Mais uma vez sobrou apenas a madrugada para estudar. Não foi fácil, mas sei que fiz
o melhor ensino médio que poderia ter feito. Nessa época, minha mãe conseguiu uma
aposentadoria e, com a ajuda da família, conseguimos comprar uma casinha, modesta,
porém, nossa.
No terceiro ano do ensino médio, optei por fazer um curso técnico de Construção
Predial, também no CEFET, e como tinha que passar o dia inteiro na escola tive que ir morar
em Mossoró, na casa de minha madrinha, indo para casa apenas nos fins de semana. Nessa
época, decidi que faria vestibular para Arquitetura e Urbanismo e não para Direito como
havia passado a vida inteira dizendo que faria.
Minha mãe não gostou da idéia, pois eu teria de ir para Natal, a capital do estado, a 400
km da minha cidade. Mas como não era a primeira vez que eu via esta cena acontecer na minha
vida, não me abalei e continuei firme nesse propósito. Fiz um cursinho pré - vestibular como
bolsista em uma escola onde o filho da minha madrinha é professor e no fim do ano fiz
vestibular para a História na UERN em Mossoró. Passei em terceiro lugar. No meio do ano,
tentei agronomia na UFERSA, também em Mossoró, e passei na sexta colocação.
Finalmente, no fim do ano de 2005, tentei Arquitetura na UFRN. Tive vários problemas como pagar as passagens para ir buscar o cartão de inscrição, pagar para ir fazer a prova,
não ter onde ficar quando fosse fazer a prova que tinha duração de quatro dias. Foram muito
importantes para mim, nesse período, ter conseguido a isenção total da taxa de inscrição do
vestibular e a lei que garante aos estudantes pagar meia passagem em viagens intermunicipais.
Durante a prova, fiquei na casa de uma amiga de uma tia minha. Não nos conhecíamos, mas
ficamos amigas como se nos conhecêssemos de longa data.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
137
Na primeira fase, não fiquei em uma colocação muito boa: posição sessenta em um
curso que só tem quarenta vagas e, por isso, desanimei um pouco. Nessa mesma época,
saiu o resultado do Pró-Uni e eu havia ganhado uma bolsa integral para cursar Direito em
uma faculdade particular. Fiquei feliz e resolvi que ficaria cursando Direito em Mossoró,
quando saiu o resultado da segunda fase da UFRN e, para a minha surpresa, eu havia
passado na décima quarta colocação. Fiquei imensamente feliz e deixei a vaga do PróUni para outra pessoa.
Mas, por ironia do destino, minhas aprovações estão sempre atreladas a uma série de
dificuldades de inviabilidade financeira. Eu havia passado para o primeiro semestre, estava
em cima da data do início das aulas e eu não tinha nem dinheiro nem onde morar. Tentei a
Residência Universitária e, enquanto o resultado não saía, fiquei morando na casa daquela
amiga da minha tia que agora já era minha amiga também.
Vim embora para Natal com a ajuda financeira de amigos. Guardo na memória o fato
marcante de os irmãos da igreja terem juntado algumas economias para me dar, dentre
outras pessoas que sempre contribuíram para que eu pudesse custear minhas despesas
aqui. Alguns meses depois do início das aulas, eu recebi a bolsa residência e é onde moro
atualmente. No fim do primeiro período, fui selecionada para entrar no Conexões de
Saberes e hoje não só pago minhas próprias despesas como também ajudo a minha mãe
que ficou no interior.
Amo o meu curso e me sinto extremamente realizada por poder continuar cursando-o.
Não é fácil morar longe de casa, trabalhar e estudar ao mesmo tempo, mas já foi pior. Sou
feliz porque colho hoje o que plantei no passado e colherei no futuro as flores que planto
hoje. Pode parecer piegas, mas esse é o meu lema.
Escrever a própria história é uma experiência bastante significativa e importante.
Acho que todo mundo deveria fazer isso em algum momento da vida. É importante fazer
uma reflexão sobre a própria vida e se ver capaz de superar tantas coisas que outras pessoas
não seriam capazes. Ver que vale a pena continuar depois de ter superado tantas barreiras. É
importante, também, porque outras pessoas, que levam uma vida difícil, poderão ver que
não são as únicas e que também podem conseguir muitas coisas. E, por fim, é importante
para aqueles que acham que os pobres não têm coragem de estudar ou de trabalhar, para que
saibam que tem muita gente lutando por uma vida melhor neste país.
138
Caminhadas de universitários de origem popular
Natal, verão de 2007
Renato Galdino de Sousa*
É melhor tentar e falhar,
Que preocupar-se e ver a vida passar.
É melhor tentar ainda em vão,
que sentar-se fazendo nada até o final.
Eu prefiro na chuva caminhar,
que em dias tristes em casa me esconder.
Prefiro ser feliz, embora louca,
que em conformidade, viver.
Martin Luther King
Ah! Queridos pais, como gostaria que essa carta não fosse endereçada apenas a vocês.
Sei que não se incomodariam nem um pouco se outro nome estivesse junto ao de vocês, por
isso faço a minha homenagem a “Rosinha” que durante toda minha vida esteve ao meu lado
e junto com vocês fez tudo o que foi possível para me fazer feliz.
Vou começar falando de fatos que nem mesmo presenciei. Lembro quando minha vó
contava “que eu era gordinho feito uma bolinha” ou que “eu só dormia quando ela balançava
a minha rede”. Tempo bons aqueles! E assim entre mimos e travessuras se foi toda minha
infância. Ah, pai, sei que passamos muitas dificuldades juntos e ainda teremos que enfrentar
muitas outras pela frente, mas aí vai um recado: erga a cabeça e bola pra frente com muita
determinação. Por meio dessa carta quero que saibam um pouco da minha história, quero
que leiam com bastante atenção, pois, apesar de serem meus pais, há muitas peculiaridades
e dificuldades que enfrentei e que vocês nem imaginam, mas que gostaria agora de compartilhar com aqueles que enchem de alegria a minha vida.
Para quem não sabe, sou o sexto filho de uma família de nove irmãos. Meu pai agricultor, carpinteiro, pedreiro, músico e homem bastante festivo, um dia se casou com minha
mãe, agricultora doméstica, um amor de pessoa. Ambos nasceram no interior do Rio Grande
do Norte. Para ser mais preciso, na divisa entre os municípios Sitio Novo e Lagoa de Velhos,
local onde minha família vive de geração em geração. Vocês sabem que são poucos os que
têm coragem e enfrentam, como eu estou fazendo, com a cara e a coragem, a dificuldade de
sair desse círculo vicioso do qual os que não conseguem sair se tornam agricultores e
fincam de vez suas raízes na terra. E que belas terras, não é pai, mãe? No inverno nem se
fala... aquele mar verdejante de belas paisagens, de grandes açudes de águas límpidas onde
* Graduando em Física-Bacharelado pela UFRN.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
139
tomávamos banho e nos divertíamos e, às vezes, deixaram vocês preocupados. Açudes os
quais foram muitas vezes a nossa salvação nos tempos em que a seca castigava. Bem sei que
hoje está tudo mais fácil, pois agora temos água em nossas casas, nem parece o tempo de
vocês, não é mesmo?
Foi nessas terras de contrastes onde comecei a minha vida acadêmica. Tenho que
confessar: contra a minha vontade, pois o melhor para mim era ficar brincando com meus
amigos (não quero nem começar a citar nomes, quero só agradecer e reverenciá-los). Cursei a
primeira, segunda e terceira série do ensino fundamental no sítio vizinho chamado Bom
Descanso. Perto de terminar a terceira série, recebi uma notícia, a que mudaria toda a minha
vida daquele dia em diante: soube, por meio dos meus irmãos Tiago e Fabiano, do falecimento
do meu avô Severino Galdino. Dos meus avós, era o mais querido, era o meu verdadeiro avô, o
único que me tratava como um verdadeiro neto, como uma verdadeira criança e, talvez por
isso, demorou um tempo para me acostumar com essa nova realidade. Apesar do trauma, tive
que continuar, pois minha vida não podia parar ali e para isso contei com vocês, meus amados pais.
Depois disso, terminei a terceira série ainda em Bom Descanso e para a minha felicidade
teria de cursar a quarta série em Lagoa de Velhos, pois daquele dia em diante eu teria que ficar
cuidando da minha vó. Até hoje fico me perguntando por que eu fui o escolhido entre dezenas
de netos... bom, assim veio a nova escola, os novos colegas e novas dificuldades apareceram.
Essas superei e consegui concluir, sempre com a ajuda e o carinho da minha tia Rita, a quarta,
quinta, sexta e sétima série na Escola Municipal São Sebastião. Ao término da sétima série,
tive de abandonar o meu tão querido colégio, pois lá não oferecia, na época, a oitava série,
então passei a estudar na escola Estadual João Evangelista Ribeiro onde novamente tive que
me adaptar aos novos colegas, dentre eles, o meu primo Dunga o qual foi a pedra fundamental
para eu estar aqui hoje. Naquele momento, Dunga, mais velho que eu, veio com a idéia de
fazermos o exame de seleção para a Escola Agrícola de Jundiaí, e a partir daquele dia, era só
o que eu pensava, então, passei a estudar incansavelmente dia e noite.
Felizmente, todo o meu estudo não foi em vão: fui aprovado em quinto lugar, juntamente com Dunga, em sexto. A partir daí, começou uma correria para conseguir todo o
enxoval para levar para a escola. Apesar das muitas dificuldades, consegui o que precisava
graças à ajuda do meu primo Nildo. Finalmente, deixaria o berço de casa e partiria para uma
longa jornada junto com o meu primo e um amigo, o qual passamos a conhecer após termos
ido para a escola. Enquanto meus amigos continuavam suas vidas junto aos seus pais, eu
passava a encarar a realidade sozinho.
Assim, queridos pais, lembro que no primeiro ano veio o primeiro grande problema:
só teríamos direito a internato após o segundo ano do ensino médio, tornando o que antes
era um mar de rosas em um problema e tanto. Como iríamos conseguir estudar longe da
nossa cidade e sem internato? A solução, mais uma vez, veio do meu primo Dunga. Por
conta própria, ele alugou uma casa e fomos nós três morar em Macaíba, distante três
quilômetros da escola. Passamos um mês e meio nessa residência, e foi esse o tempo
necessário para entrarmos com um requerimento que foi deferido: conseguimos a tão
sonhada residência. Lá dentro vieram os problemas, próprios de lugares coletivos, como a
superioridade dos moradores mais velhos, as normas rígidas que deviam ser seguidas, mas
tudo aquilo para mim era novidade e, assim, consegui terminar o primeiro ano, no qual
conheci novos colegas, novos professores, novas amizades. Essas são, meus pais, algumas
experiências longe de casa das quais, provavelmente, vocês não tinham conhecimento...
140
Caminhadas de universitários de origem popular
Após matar a saudade da minha terra natal, retornei para o meu segundo ano de
residência. Como já estava adaptado à minha nova vida, tudo ficou mais fácil: passei a
desfrutar de tudo que podia e, assim, com muita fé, consegui terminar o segundo ano.
Chega, enfim, o terceiro ano, que foi decisivo para a minha vida. Nesse mesmo ano comecei
a namorar uma pessoa muito especial e que prezo tanto: Oleida Pereira. Confesso que, no
início, esse namoro me custou muitas notas vermelhas, mas não me arrependo nem um
pouco de tudo o que fiz. Para minha infelicidade foi nesse mesmo ano que faleceu a minha
tão querida Vó. Foi muito difícil para mim, e com muito sofrimento consegui superar a
perda, graças à ajuda da minha família e amigos.
No ano de dois mil e cinco chegou o vestibular e com ele a cobrança psicológica da
aprovação. Juntando o mau desempenho no terceiro ano e toda a cobrança sobre mim,
decido prestar vestibular para Física, pois era um dos cursos de menor concorrência. Inscrito,
continuei o meu terceiro ano e, com muita dificuldade, venci uma grande etapa da minha
vida: a conclusão do ensino médio juntamente com o curso de Técnico Agrícola. Inesquecível
foi a nossa festa de formatura! Acredito que vocês ainda lembram, pois faz tão pouco tempo!!!
Passaram-se os quatro dias de prova e chegou a ansiedade. Teria eu conseguido chegar
à tão sonhada universidade para encher vocês de orgulho? Ou teria de tentar mais uma vez,
já que todos os colegas que conheço só conseguiram entrar após o segundo vestibular?
Chega o ano de dois mil e seis e com ele uma das mais importantes notícias da minha vida:
ter conseguido o meu lugar na tão sonhada universidade, tão desejada por muitas pessoas.
Assim, começa novamente a correria: pré-inscrição, inscrição, inscrição para a bolsa residência e alimentação, enfim, todos esses impasses consegui superar graças à grande ajuda de
meus amigos e familiares. Sei que sempre vou ter o apoio de vocês, meus pais. Já adaptado
ao novo ambiente, soube, por intermédio do meu amigo Jânio, da abertura de inscrição para
uma nova bolsa de um programa denominado Conexões de Saberes. Fui aprovado, mas
como suplente e isso me deixou muito abatido e ao mesmo tempo preocupado por saber que
existem muitas pessoas com as mesmas características que eu. Felizmente, não demorou
muito para conseguir a vaga, e assim, estou aqui me dirigindo, por meio dessa carta, a vocês,
pais e leitores, para contar um pouco da minha história.
Sei que nessas linhas ficaram muitos detalhes sem serem citados. Talvez pelo esquecimento ou pela inocência. Detalhes e histórias que só vocês sabem e que talvez com pena de
me fazerem sofrer deixaram de me contar. Para vocês, meus pais, deixo esse relato que vai
ficar para toda a história, assim como vocês irão ficar gravados aqui no meu coração.
Abraços de seu querido filho.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
141
Páginas da minha vida
Wellington da Silva*
Os planos que foram embora o sonho que
se perdeu o que era festa e agora é luto do
que já morreu não podes pensar que este é
o teu fim, não é o que Deus planejou,
levante-se do chão erga um clamor.
Ministério Trazendo a Arca
Minha infância
Meu nome é Wellington da Silva, nasci em Mogi das Cruzes-SP, em 23/12//1986.
Após algum tempo, um ano e quatro meses para ser mais exato, nasceu meu primeiro irmão,
Weverton. Lembro-me de algo que aprontei junto com ele. Meu pai tinha um Chevette.
Certa vez saímos eu, ele e meu irmão. Por um instante meu pai nos deixou a sós no carro e,
como crianças levadas que éramos resolvemos aproveitar a ausência de um adulto por perto
e aprontar. Pegamos uma caixa de fósforos no porta-luvas do carro e colocamos fogo no
banco traseiro. Não tínhamos idéia da proporção que nossa brincadeira iria alcançar: o fogo
começou a aumentar até o ponto de chamar a atenção de um homem que passava na rua. Ele
falou para meu pai o que estava acontecendo, e então nosso genitor nos tirou de dentro do
carro. O pior é que não tínhamos idéia do perigo que estávamos correndo fazendo isso, pois
logo abaixo do banco, que estava ardendo em chamas, estava o tanque de combustível do
carro. Nem me lembro quem foi esse homem que nos ajudou, mas tenho certeza de que ele
foi enviado por Deus para nos socorrer.
Gosto muito de Mogi, pois foi lá que nasci, fiz meus primeiros amigos, as primeiras
brincadeiras: estava totalmente ligado àquela cidade. Porém, quando tinha cerca de 5 anos,
meu pai foi trabalhar em uma transportadora o que ocasionou nossa mudança para outra
cidade, Curitiba. Agora, já éramos cinco, pois havia nascido minha irmã, Lilia Catienne.
Curitiba, apesar das dificuldades que enfrentamos ao chegarmos lá, me traz boas lembranças.
Morávamos em princípio em um galpão da transportadora, imenso. Nossos móveis ficavam
todos espalhados e o nosso quarto era um escritório que existia ali. O lugar era tão grande
que nem precisei sair de lá para aprender a andar de bicicleta. Depois de algum tempo,
fomos morar em uma casa de verdade. Conhecemos vizinhos maravilhosos que foram muito
bons conosco. Eles nos mostraram boa parte da cidade e eram, realmente, bons amigos. Mas
infelizmente, meu pai perdeu o emprego e resolveu voltar para São Paulo.
* Graduando em Engenharia Civil pela UFRN
142
Caminhadas de universitários de origem popular
Oi, Mogi! Tchau, Mogi!
Não me recordo bem quanto tempo ficamos em Mogi depois que chegamos do
Paraná, sei que foi um período bastante curto. Meu pai desempregado resolveu mudar de
novo, desta vez para um lugar bem distante dali: o Rio Grande do Norte. Fiquei muito
triste com isso, pois sabia que estaria deixando para trás pessoas das quais gostava muito:
tias, tios, primos e primas. Sem falar em um grande amigo de meu pai e bastante querido
por mim e meus irmãos: Elecir, carinhosamente conhecido por Ted. Ele estava sempre
pronto para nos ajudar e nessa hora de partida, apesar da tristeza, não foi diferente.
Outro do qual não posso ficar sem falar é o marido da minha tia Nalva, irmã de minha
mãe, tio Luís, pessoa de quem não esquecerei nunca, pois me tratava com muito amor e
carinho, como um verdadeiro tio. Ele sempre me elogiava, dizendo que eu era inteligente.
Lembro-me também de sua filha, minha prima Graziele, com a qual brincava. Fico imaginando o quanto ela deve estar bonita... esse meu tio é uma das pessoas das quais mais sinto
falta e tenho muita vontade de rever.
Enfim, foram muitos os que deixamos para trás quando, em 21 de abril de 1993,
partimos para nos aventurar no Nordeste.
Chegando no RN
Depois de três cansativos dias de viagem chegamos ao nosso destino inicial no
RN, a cidade de Martins, um dos pontos mais altos do RN, onde meus avós paternos
moravam. A nossa permanência ali seria temporária, pois estávamos esperando por uma
casa que meus avós possuíam em Natal e que ela fosse desocupada. Enquanto isso não
acontecia, meu pai alugou uma casa ao lado da dos meus avós, lá ele cultivou uma horta
e vendia legumes.
Enfim, três meses se passaram e chegou o dia de virmos para a capital. Arrumamos as
coisas e descemos a serra. Ao chegarmos em Natal fomos recepcionados pela minha tia
Selene e seu esposo, meu tio Orlando que nos esperavam e nos trouxeram para casa onde
iríamos morar: na rua Padre Raimundo Brasil 887, Nova Descoberta, endereço onde vivo
até hoje. Essa casa já foi motivo de dor de cabeça, pois como pertence a meus avós, já houve
confusões entre os meus tios e meu pai, pelo direito de morar nela. Porém, a grande mudança
ocorreu em 1997, quando um tio meu que, também veio de São Paulo e não estava com
condições de pagar aluguel, veio morar nessa mesma casa.
A partilha
Como já disse, a casa na qual moramos em Natal pertence a meus avós, o que suscitou
várias discussões pelo direito de morar nela. Hoje “está tudo bem”, mas devido à vinda
desse meu tio a casa passou por uma grande transformação. Inicialmente quando cheguei de
Martins, a casa possuía os seguintes cômodos: sala, cozinha, dois quartos, banheiro e uma
grande área.
Para que meu tio pudesse ter um lugar para morar, pegamos um dos quartos, o meu e do
meus irmãos, e uma parte da área: juntamos e construímos outro banheiro para que meu tio
pudesse morar. Até hoje minha casa se encontra nessa disposição, o que me incomoda
muito. Uma das coisas da qual mais tenho vontade nessa vida é poder comprar uma boa casa
para meus pais e isso espero alcançar por intermédio dos meus estudos.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
143
Até que fim! Vou estudar...
Em 1994 já ia fazer 8 anos quando entrei pela primeira vez em uma escola. Lembro-me
da ansiedade pelo primeiro dia de aula. Comecei pela 1ª série, na escola Municipal Professor
Ulisses de Góis. O que marcou esse primeiro ano de estudo foi uma confusão durante o
recreio, quando joguei uma pedra na cabeça de um menino, fazendo com que ele pegasse 9
pontos no corte. “Levei” uma surra daquelas quando minha mãe ficou sabendo.
A 3ª série foi, para mim, a mais importante do ensino fundamental, pois é dela que eu
tenho as melhores recordações. Tinha uma professora maravilhosa, Arlete Vale, que era uma
verdadeira mãe para os alunos. As amizades eram verdadeiras, todos eram unidos. Conheci
meu primeiro “amor” Ah... enfim, foi um ano ótimo. Na sexta série conheci uma outra
professora, Inês, bastante importante para mim. Ela me ensinou matemática e, sem dúvida,
foi uma das grandes responsáveis por eu estar hoje na universidade.
CEFET
Quando ia cursar a 8ª série do ensino fundamental, resolvi fazer algo de que me
arrependo até hoje: saí do Ulisses de Góis para estudar em uma outra escola pela manhã, já
que o Ulisses não dispunha desse horário para a 8ª série. Tudo isso por que consegui um
emprego em uma banca de revistas à tarde. Tentei voltar para o Ulisses, no segundo semestre,
porém não consegui. Inscrevi-me, então, para fazer a prova do CEFET. Tinha certeza de que
iria passar, pois sempre fui bom aluno. Quando saiu o resultado me decepcionei muito, pois
não consegui a aprovação.
Saí da banca e fui estudar o 1º ano do ensino médio na Escola Estadual Padre
Miguelinho, um pouco distante de minha casa, e toda manhã quando estava indo para
escola me entristecia muito, pois via meus amigos que permaneceram estudando no Ulisses
descendo para estudar no CEFET. Mas recebi o incentivo de muitas pessoas para não desistir
e tentar fazer a prova do CEFET novamente.
Então me inscrevi novamente e fui aprovado, o que me deixou muito feliz, pois além
de mostrar que eu era capaz de conseguir alcançar meus objetivos, eu iria estudar em uma
escola de qualidade, e, melhor, pública!
O vestibular
Chegou 2005, o ano de prestar vestibular. Há muito tempo que já tinha em minha
cabeça qual curso queria fazer: Engenharia Civil. Isso pelo fato de gostar das disciplinas da
área tecnológica e também por meu pai trabalhar como pedreiro, profissão que resolveu
exercer quando chegou aqui em Natal, o que me fez ter um carinho especial pela construção civil.
Infelizmente, o CEFET, por ser uma escola pública, enfrenta, quase que anualmente,
problemas e quando concluímos o 1ª semestre de aulas nesse ano a escola entrou em greve,
retornando após o vestibular. Isso prejudicou muitos alunos, porém eu, com muito sacrifício
de minha mãe, que nessa época trabalhava como empregada doméstica, pude fazer um
cursinho particular.
Enfim, chegou o dia do resultado. Eu estava em Nova Cruz, cidade que amo, no
interior do estado, onde acompanhei o resultado pelo rádio. Já estava bastante alegre, antes
de anunciarem os aprovados em Engenharia Civil, pelo fato de ouvir o nome de alguns
amigos também aprovados em outros cursos. Quando ouvi meu nome como aprovado,
fiquei muito alegre e agradeci a Deus por me recompensar pelo meu esforço.
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Caminhadas de universitários de origem popular
A Igreja
No ano de 1997, quando tinha 11 anos, fui convidado para ir a um culto na igreja
Evangélica Assembléia de Deus e desde esse dia não deixei mais de frequentá-la. Gosto
muito da igreja, lá é o lugar onde encontro forças para continuar lutando por meus sonhos.
Nela participo de muitas atividades tais como: peças, jograis além de cantar em um
conjunto formado por jovens, chamado Divina Semente. Boa parte de minha família é
evangélica, mas na minha casa só eu, meu pai e minha irmã. Sempre peço a Deus que nunca
me deixe sair desse caminho e continue colocando em meu coração o propósito de serví-lo.
Nova Cruz
Um dos primeiros lugares que minha mãe me levou para conhecer no Rio Grande do
Norte foi a cidade onde ela viveu durante sua infância, a cidade de Nova Cruz, no agreste
potiguar, onde meus avós maternos, Dona Dedé e Batista Vieira, moram. Acabei me acostumando a sempre estar lá e hoje não consigo ficar muito longe dessa cidade. Sempre que há
um feriado prolongado ou eu estou de férias é lá que irão me encontrar.
Nessa cidade também moram minha tia Daguia e seu esposo, Anselmo, com minhas
primas, Larissa e Loorrana. Gosto muito dessa família, pois eles, juntamente com meus
avós, sempre me ajudaram quando eu precisei. E é em um assentamento próximo à cidade
Nova Cruz que exerço minha atividade de Bolsista do Conexões de Saberes.
Conexões de Saberes
Logo após entrar na universidade, surgiu a oportunidade de concorrer a uma bolsa de
um programa novo na UFRN chamado Conexões de Saberes. Inscrevi-me, mas para falar a
verdade achava que não seria selecionado, porém, fui um dos bolsistas escolhidos. Hoje,
atuo como bolsista na cidade de Nova Cruz, lugar do qual gosto muito como já falei anteriormente. Espero que minha atuação e dos demais bolsistas da UFRN nesse Programa repercuta
de forma positiva nas comunidades em que atuamos.
Um dos grandes acontecimentos em 2006 foi a viagem ao Rio de Janeiro para o
Seminário Nacional do Programa, além de mostrar aos bolsistas o quanto esse programa é
importante em nível nacional, pode me proporcionar algo que me alegrou muito, que foi
ver pessoas da minha família que eu não via há muitos anos e conhecer outras.
Vovô Emidio
No início do ano de 2006, foi diagnosticado que meu avô paterno estava com câncer
em estado bastante avançado. Como onde morava, Martins, não existiam recursos para o
tratamento, ele veio morar conosco em Natal, e minha mãe o acompanhou durante 8 meses de
tratamento. Foi visível o desgaste que a doença impôs a ele. Depois de algum tempo ele se
mudou para uma casa próxima a nossa, alugada por uma tia minha que veio de Martins para
ajudar no tratamento dele. Infelizmente, ele já estava muito fraco, tanto que familiares de São
Paulo e outras cidades vieram vê-lo e no dia 18 de fevereiro de 2007, domingo de carnaval, ele
encerrou o sofrimento, vindo a falecer. Tenho certeza que ele está em um lugar reservado por Deus.
Pai e Mãe
Não tenho nem palavras para expressar o quanto meus pais são importantes para mim.
Apesar de toda a humildade, sempre estiveram juntos na luta para dar uma vida melhor para
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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seus filhos. Meu pai, como pedreiro desde que chegou de São Paulo, e minha mãe como
empregada doméstica. Fico muito feliz em ver a felicidade deles quando me vêm alcançando
meu objetivo, como a universidade por exemplo. Quem diria um filho de pedreiro vir a ser
Engenheiro Civil!
Lembro-me de uma ocasião em que logo após eu ser aprovado no vestibular, meu pai
estava com o carro quebrado, sem andar e tinha um dinheiro guardado que daria para ajeitálo, porém, ele utilizou esse dinheiro para comprar um computador para mim.
A minha maior vontade é tentar recompensá-los por tudo que fizeram por mim. Sei que
tudo não será possível recompensar, mas o que estiver ao meu alcance farei, pois amo muito
meu pai, Mardoqueu, e minha mãe, Fátima, conhecida por Fatinha.
Eis o final da história...
Hoje sou um “Paulista Natalense”, estudante de Engenharia Civil da UFRN, bolsista
do Programa Conexões de Saberes, muito feliz e grato a Deus e a todos que me ajudaram a
chegar até aqui. Tenho certeza que irei chegar muito além de onde já cheguei, pois nunca
esquecerei do que diz a palavra de Deus: “Posso todas as coisas naquele me fortalece”
(Filipenses 4: 13). Um abraço a todos, que direta ou indiretamente contribuíram para que
eu chegasse até aqui, tenham certeza que a recompensa, por tudo que fizeram por mim,
virá de Deus!!!
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Caminhadas de universitários de origem popular

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