Por uma nova ordem
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Por uma nova ordem
REDISCOVER ROME CAIRO EM SENTIDO HORÁRIO, narguilé para degustar tabacos aromáticos; nas pirâmides de Giza, pouco serviço para os camelos; edições do Alcorão na mesquita de Amr; e sítio arqueológico de Imhotep e Saqqara 72 Abril 2012 CAIRO POR UMA NOVA ORDEM Na mira (com o perdão do trocadilho) da imprensa internacional, o Egito depois da Primavera Árabe pulsa de outro jeito. Além de mudanças previsíveis, a revolucão propõe um Cairo pós-Mubarak surpreendente TEXTO JULIO CRUZ NETO | FOTOS ROBERTO SEBA Enquanto os jovens fazem a revolução, os mais velhos apenas observam e lamentam a disparada no preço dos alimentos Abril 2012 73 CAIRO 74 Abril 2012 CAIRO POR TRÁS DA DESORDEM, A CHANCE DE CONHECER O NOVO CAIRO ACIMA, barraca vende souvenires na Praça Tahrir, novo point do Cairo. À ESQUERDA, pirâmide de Quéops, a maior de todas, que ainda mantém parte da cobertura original no topo, já que o restante desgastou-se com o tempo M agdy Rachad é um homem amargurado. Fuma como uma chaminé, tosse que é uma beleza. Mora em um país onde sopram ventos de democracia e mudança, mas isso não chega a entusiasmá-lo, ainda que simpatize com a ideia. Afinal, o trabalho anda escasso e a conta do supermercado, cara como nunca. Magdy vive do turismo. Cumpre seu dever com simpatia, competência e orgulho, que justifica facilmente com respostas na ponta da língua: nasceu no berço da civilização, uma nação importante na saga bíblica com as mesmas fronteiras há 5 mil anos, que lidera os países árabes e cujos acontecimentos repercutem mundo afora. Depois do expediente, no entanto, deixa transparecer que algo está fora da ordem. O brilho some dos olhos, um tanto acanhados em meio às olheiras. Por trás dessa aparente desordem que Magdy sente, esconde-se uma ótima oportunidade de conhecer uma das cidades mais fascinantes do Oriente Médio, e de todo o planeta, de uma maneira mais econômica. Com a revolução iniciada em janeiro de 2011, os turistas sumiram e o Cairo ficou barato. Os preços das diárias dos hotéis caíram, em média, 50%. Um viajante em busca de luxo total hospeda-se no Four Seasons, por exemplo, em um quarto alto com vista para o Rio Nilo, com um café da manhã de tirar o chapéu e mimos diversos, por 120 dólares. Por 30 dólares, pode dormir no Barceló, um quatro estrelas mais do que honesto. O mesmo patamar de deflação ocorreu nos restaurantes ditos turísticos, nos quais bufês oferecem menus neutros, com sopa, salada, macarrão, arroz e mistura, mais as tradicionais pastas de berinjela e grão-de-bico, mas sem temperos que possam desarranjar o resto do dia, por 10 dólares, sobremesa incluída. Abril 2012 75 CAIRO A quantidade de turistas, que beirou os 15 milhões em 2010 no país, não chegou a 2 milhões em 2011, segundo Mohammed Mossad, dono da agência Exotic, cujo faturamento caiu 35%. “A expectativa é de a situação normalizar ainda este ano”, diz o empresário. A conta dele é a seguinte: após as eleições presidenciais, marcadas para o fim de maio, a situação política começa a se normalizar e as pessoas voltam a programar férias no país das pirâmides, o que leva alguns meses para se concretizar. “Ninguém viaja para o Egito de um dia para o outro”, lembra Mossad. Até lá, os preços devem continuar convidativos. E os pontos turísticos, menos concorridos. Os valores dos ingressos não foram reduzidos, mas nas famosas pirâmides de Giza, por exemplo, visita obrigatória mesmo para os viajantes mais alternativos, havia menos gente que de costume quando estivemos lá, no início deste ano. O que é bom por um lado, também tem aspectos negativos por outro, pois os vendedores ambulantes de souvenires e passeios de camelo, já petulantes por natureza, ficaram ainda mais inconvenientes. “Viramos boi de piranha”, constata o turista Ricardo Feres. “Tem mais vendedor que turista”, completa Magdy. Ainda assim, a revolução trouxe à tona lugares triviais que antes não chamavam a atenção dos estrangeiros, como a praça Tahrir, palco das manifestações que derrubaram o governo de Hosni Mubarak. É uma praça central e movimentada, sem nada particularmente interessante, mas que virou point e onde se instalaram vendedores de comida e de lembranças em geral. Há barracas de grupos exigindo que os militares deixem o poder, além de cartazes com fotos de manifestantes mortos e faixas de protesto em locais próximos à praça, como a estátua do economista Talaat Harb, fundador do Banco Misr, o primeiro do Egito. Sítio de Imhotep e Saqqara, onde está a mais antiga das pirâmides (ao fundo, em manutenção). 76 Abril 2012 DEPOIS DAS ELEIÇÕES, A SITUAÇÃO POLÍTICA COMEÇA A SE NORMALIZAR À DIREITA, EM SENTIDO HORÁRIO, Mohamed Mahmoud, na mesquita de Amr, com a marca na testa que identifica os mais fiéis; fim de tarde na metrópole; garçom do Café Riche, um dos mais tradicionais do Cairo; mulher usa o véu para segurar o celular; cena corriqueira de rua; protesto dos revolucionários na estátua do economista Talaat Harb CAIRO Abril 2012 77 CAIRO 78 Abril 2012 CAIRO O prédio do partido governista, situado ao lado do Museu do Cairo e transformado em um imenso bloco chamuscado após ser incendiado durante os protestos, também virou alvo de câmeras e filmadoras. Apesar das referências, digamos, belicistas, não parece haver ameaça ao visitante. A vida segue normalmente. A polícia, desmoralizada perante a população por ter reprimido protestos – e também por atitudes corruptas, como cobrar propina de até 3 dólares para deixar motoristas estacionarem na rua –, cruzou os braços durante praticamente 2011 inteiro. Mesmo assim, nada particularmente caótico foi registrado, segundo nos informaram. Não estamos afirmando que é 100% seguro visitar o Cairo hoje, pois os ânimos ainda estão acirrados e novas insurreições podem ocorrer, especialmente se os militares hesitarem em largar o osso após a eleição. Mas, mesmo nesse caso, evitar a praça Tahrir e as multidões deve ser suficiente para fazer uma viagem sem sustos – existe mais chance de acontecer algum inconveniente na Península do Sinai, desértica, isolada e famosa pelos balneários no Mar Vermelho e pelos centros de peregrinação religiosa, como o mosteiro de Santa Catarina (neste ano, já foram registrados três sequestros-relâmpago, o último deles envolvendo duas brasileiras). No Cairo, os paradoxos saltam à vista, ao menos para quem não se intimida com o caos da metrópole barulhenta e empoeirada, predominantemente cinza, e consegue observar seus segredos e admirar seu charme. A crise política em curso só reforçou essas contradições. O povo que se articulou para derrubar a ditadura de Mubarak, com protestos bastante organizados, com hora para começar a terminar, é o mesmo que joga lixo na rua e nos rios; dirige de tal forma que faz o trânsito de São Paulo e do Rio de Janeiro parecer um aconchego; permite que o tuc-tuc, espécie de mototáxi para dois passageiros à la indiana, seja pilotado muitas vezes por garotos ainda adolescentes; aceita propina de quem deseja fotografar os sítios arqueológicos, onde isso é proibido; reforma paredes desses mesmos lugares com rejunte e faca de cozinha, como quem tapa buraco no quintal de casa – presenciamos esse inusitado trabalho de manutenção, mas ainda não tínhamos tido a ideia de molhar a mão do fiscal. Mulheres, algumas, claro, cobrem a cabeça com lenço, respeitando o pudor imposto pela religião, mas destacam as linhas do corpo com calças apertadas e roupas de grife. Muitas saem de casa comportadas, para fazer média com os pais, e se trocam no táxi para fazer bonito na balada. O lenço, aliás, adquire várias utilidades, como prender o celular para a pessoa poder conversar sem usar as mãos. Por outro lado, boa parte das casas não é pintada por fora, pois está sempre em OS PARADOXOS SALTAM À VISTA, MAS É POSSÍVEL ADMIRAR OS SEGREDOS DA METRÓPOLE ACIMA, tradições marcam a cultura e a arquitetura do Cairo. À ESQUERDA, estátua não concluída de Ramsés II no sítio arqueológico de Memphis Abril 2012 79 CAIRO OS EGÍPCIOS SÃO POUCO AMBICIOSOS. NÃO FALTANDO COMIDA, TUDO BEM À ESQUERDA, EM SENTIDO HORÁRIO, detalhe nas ruas do Cairo; habitante e desenhos típicos da região; pinturas rupestres no sítio de Imhotep e Saqqara; e fiel lendo o Alcorão. À DIREITA, homem dançando no barco-restaurante no Nilo reforma, ganhando andar em cima de andar para os filhos morarem próximos dos pais. Os homens esbanjam simpatia longe das atrações turísticas, sorrindo, pedindo para ser fotografados sem reivindicar nada em troca, interagindo com os turistas em árabe mesmo, improvisando algumas palavras em inglês, outras em mímica. Mas quando veem a possibilidade de ganhar algum trocado, não hesitam em levar vantagem. Garçons alegam não ter troco e mais um arsenal de desculpas até vencer pelo cansaço e embolsar alguma gorjeta. Inclusive em barcos-restaurante de luxo no Nilo. Tradição versus ousadia, atraso versus modernidade. Um pouco de estatística talvez ajude a explicar tantos contrastes. O mesmo país que tem quatro prêmios Nobel, um deles o escritor Naguib Mahfouz, primeiro em língua árabe a obter tal distinção, em 1988, amarga uma taxa 80 Abril 2012 de analfabetismo perto dos 40%. É o dobro do Maranhão. O Brasil, que nunca levou o Nobel, tem 9% de analfabetos. A estudante de Comunicação Menna Farid diz amar a riqueza histórica do Egito e se orgulhar da revolução em curso, porém faz uma ressalva: “Tiramos o Mubarak, mas as pessoas precisam mudar internamente, ser mais limpas, felizes, sorridentes”. O guia turístico Magdy Rachad, que já é um senhor de idade, é mais complacente com o povo egípcio, mesmo com aqueles que enganam os turistas. Segundo ele, muitos garçons vivem apenas de gorjeta, pois não recebem salário. São vítimas da ganância dos empresários, que se aproveitam da taxa de desemprego de 22%, ante 6% no Brasil, para explorá-los. “Tenho pena das pessoas que têm quatro, cinco bocas para alimentar”, diz, pensativo, Magdy. A fome, no entender dele, foi a causa da revolução, mais do que qualquer ímpeto democrático. “Os egípcios são pouco ambiciosos. Não faltando comida, tudo bem.” A inflação mundial dos alimentos, iniciada em 2008, elevou os preços a um patamar que muitos deles não podem pagar. “Eu mesmo passo dificuldade hoje em dia. Uma compra que eu fazia por 600 libras egípcias (cerca de 100 dólares) hoje custa 2 mil (perto de 330 dólares)”, compara o guia, que afirma ter trabalhado apenas 10% do normal em 2011. O Egito, cuja economia é baseada em agricultura, petróleo, remessas, taxas do Canal de Suez e, acima de tudo, turismo, tem um histórico de crescimento significativo e sustentado. Mas segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), as estimativas para 2011 e 2012 são de 1,2% e 1,8%, respectivamente, com inflação de 11,1% e 11,3%. Nesse cenário, é natural apelar para a generosidade dos estrangeiros. E dos brasileiros em particular, que formam um dos grupos mais numerosos de visitantes. Não há estatísticas confiáveis sobre isso no Egito, mas é o que dizem pessoas que trabalham nesse setor. – One dollar?, pede o ambulante no sítio arqueológico de Saqqara. Ignorado pelo visitante, ele insiste. – Maybe later? Mais tarde, talvez?, resigna-se o pobre coitado, para o qual qualquer moedinha é lucro. Já os ilustrados, que não precisam pedir esmolas e podem se dedicar a estudar e imaginar um país de fato justo, exigem mais, elaboram melhor suas expectativas. É o caso do jovem Mohamed Abdel Gafar, que vai às manifestações na praça Tahrir, arrisca a vida por um país igual e democrático e resume seus anseios na seguinte frase: “Não queremos mais faraós no Egito, nunca mais”. LP CAIRO Abril 2012 81