Untitled - DicasOdonto

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Untitled - DicasOdonto
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Sumário
Capítulo 1........................................................................................... 7
Capítulo 2........................................................................................ 15
Capítulo 3........................................................................................ 28
Capítulo 4........................................................................................ 36
Capítulo 5........................................................................................ 49
Capítulo 6........................................................................................ 60
Capítulo 7........................................................................................ 71
Capítulo 8........................................................................................ 92
Capítulo 9......................................................................................110
Capítulo 10....................................................................................125
Capítulo 11....................................................................................149
Capítulo 12....................................................................................168
Capitulo 13....................................................................................182
Capítulo 14....................................................................................199
Capítulo 15....................................................................................218
Capítulo 16....................................................................................238
Capítulo 17....................................................................................251
Capítulo 1
Tudo era festa. As ruas estavam carregadas de alegria e
euforia, indicando que alguma coisa muito boa havia acontecido.
Não era por menos, as eleições haviam terminado e para
surpresa dos desleixados o melhor partido ganhara as eleições.
O partido da Higiene Bucal.
Havia mais de seis anos desde a formação do complexo e
da construção dos muros que a localidade não havia sido governada, mas nem por isso as ordens eram deixadas de ser cumpridas.
O comando vinha de fora, de um complexo juncional
ainda muito em crise, mas com um avanço sistemático muito
acelerado. Muitos órgãos já haviam sido colocados em ordem
e vários deles já possuíam um sistema político organizado em
andamento. Já era tempo daquela localidade estar avançada em
seu sistema, e agora que tudo estava preparado, os habitantes
da nova Incisivocity sentiam-se mais tranquilos para poder desempenhar suas funções com segurança.
Desde que as primeiras estruturas da cidade foram erguidas, os odontoblastos e apatitas, cidadãos honrosos e respeitáveis de Incisivocity, viviam trabalhando sem muitos recursos.
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Fabiano Freire
Incisivocity
Tudo que vinha era de fora ou então de outros complexos muito
distantes, o que dificultava a manutenção do novo complexo, porém tanto apatitas quanto odontoblastos trabalhavam duro para
um futuro promissor, não só para a Incisivocity, mas para todo
o sistema.
Como todo complexo que se inicia, a nova comunidade começou a se ver rodeada de algumas atitudes pouco respeitosas.
Alguns odontoblastos começaram a romper ligações com o complexo devido ao possível desleixo do sistema principal. Certas
vezes, até alguns odontoblastos preocupados com a sujeira e o
descaso com que o sistema se comportava em relação à Incisivocity, enviaram relatórios sobre as condições da cidade sem obter
muito êxito, o que gerou a dissociação entre alguns membros de
odontoblastos. Surgiram então os que se denominavam odontoclastos e começaram a agir contra o avanço da cidade. Se já era
ruim para o sistema, para Incisivocity seria devastador.
Não demorou muito aparecerem rachaduras, pichações,
roubos, pequenos assaltos, levando a desavenças perigosas por
todo o complexo. Como o controle vinha do sistema principal,
a força de policiamento demorava a aparecer e com isso muito
pouco do problema era resolvido. Outro caos enfrentado pela
população de Incisivocity era a falta de saneamento, o que comprometia e muito a limpeza e a saúde de todos no complexo.
Depois de cinco anos da formação do sistema, o primeiro dano fora causado pelas proximidades devido ao caos que se
instalava em Incisivocity. Pulmolândia, um complexo já bem organizado com importantes ligações à Incisivocity sofrera alguns
danos. Preocupado com o alastrar do problema, o sistema enviou uma emenda de urgência para os habitantes de Incisivocity
exigindo umanova eleição para a coordenação do complexo. O
sistema disponibilizaria recursos para que um pleito fosse rea-
lizado e assim, com o posto preenchido, as verbas seriam enviadas de acordo com as necessidades.
Assim dizia a emenda:
Em questão de um ano, tudo fora preparado com o mais
perfeito sucesso e as eleições puderam ocorrer sem que outros
problemas viessem atrapalhar.
Imponente e viril, Sr. Esmalte ganhou facilmente as eleições sobre sua rival política Sra. Cárie, cujos projetos não haviam agradado a todos, a exceção de alguns odontoclastos. Sr.
Esmalte era mais audacioso, sonhador e simpático; buscava em
suas ideias uma Incisivocity maior e melhor para se viver. Seus
ideais emocionaram até mesmo Madame Mielina que dera referências esplendorosas sobre ele ao Sistema Nervoso Central,
que ao saber das honradas intenções do Esmalte em relação ao
sistema, financiou mais verbas para sua vitória, o que deixou a
Cárie ainda mais indignada.
– Como o Sistema Nervoso Central pôde fazer uma coisa
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“Eu, Sistema Nervoso Central, venho por meio desta,
exigir e outorgar imediata eleição para o cargo de
Prefeito de Incisivocity, mediante verbas e recursos
enviados pelo próprio requerente. O indicado ao cargo levará consigo todo o prestígio e responsabilidade
para cuidar de Incisivocity e todos os seus cidadãos,
buscando a evolução da cidade e o bem estar de todo
o sistema. Assim sendo, desejo toda a sorte para Incisivocity e reafirmo que a saúde de todo o sistema
depende do sucesso deste complexo.
P.S.: Madame Mielina me informará sobre todos os
resultados.”
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Incisivocity
tão absurda dessas? – dizia a Cárie irritada. – Logo logo, o Esmalte vai querer fazer de Incisivocity o lugar mais importante
de todo o sistema.
– Mas não é assim que deve ser, minha cara? – questionou
um dos aliados mais forte à campanha de Sra. Cárie, o Sr. Ácido
Açucarado.
– Mas não com o Esmalte no comando de tudo – continuava ela. – Eu não gostaria que Incisivocity fosse o lugar mais
importante do sistema e sim que precisasse mais dos recursos
oferecidos por ele. Imagine! Todo o sistema preocupado com
Incisivocity. Aí, sim. Meu caro Ácido Açucarado. Eu mandaria e
desmandaria em todo o sistema.
Ácido Açucarado sempre fora aliado de todo o sistema, até
porque vinha de uma família muito nobre que sempre ofereceu
recursos ao sistema, a família dos Açúcares. Ele fazia parte do
alto escalão da família e fora treinado nas mais competentes escolas estrategistas de defesa do sistema. Já fez várias campanhas
bem sucedidas em forças-tarefas juntamente com o pelotão do
Suco Gástrico, principal fonte de defesa de Estomagolópolis e
um grupo especializado em ajudar outros complexos. Contudo,
agora estava envolta de uma situação nada gloriosa, teria de ajudar sua parceira numa campanha contra a política da higiene
bucal.
– Minha cara Cárie – indagou Ácido Açucarado já com as
caraminholas saltitantes. – Agora estamos diante de uma luta
desigual e pior para nós. Com o Sistema Nervoso Central dando
forças à higiene bucal, não teremos campo para atuação de nossos projetos nem se tivéssemos ganhado as eleições.
– Meu caro Ácido Açucarado. Muito me impressiona você
ser estrategista e não conseguir enxergar o óbvio – continuou a
Cárie. – Durante cinco anos desde a criação de todo o sistema,
Incisivocity tem sido deixada de lado em todas as resoluções
problemáticas entre os complexos. Nem mesmo Narizínia teve
os mais diversos recursos em andamento, e olha que se trata do
complexo mais próximo de nós. Isso tudo levantou ideias na população. E pode ter certeza, as ideias são contrárias ao sistema.
– Tudo bem, mas até agora eu não sei aonde você quer
chegar – Ácido Açucarado já se mostrava impaciente.
– Eu quero este lado da população comigo, Ácido Açucarado – dava para notar o brilho que envolvia os olhos da Cárie.
– Vamos fazer de Incisivocity o pior lugar para se viver em todo
o sistema. Com isso vamos colocar não só esta cidade sob nossos
pés, mas como também todo o sistema. Vamos derrubar de uma
vez por todas o Esmalte e de quebra o Sistema Nervoso Central.
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•••
Sra. Dentina abraçou seu marido, Sr. Esmalte, com toda
força. Por dentro, ela já sabia que ele levaria a melhor sobre a
Cárie, mas depois de tanto tempo vivendo naquele mar de insegurança como era Incisivocity, ela adquiriu suas próprias preocupações.
– Tinha tanto medo de o sistema desistir de nós, Esmalte –
disse Sra. Dentina abraçada ao Sr. Esmalte ainda mais eufórica.
– Não vamos nos precipitar ainda, base da minha vida –
respondeu Sr. Esmalte acariciando a Sra. Dentina. – Temos que
convencer ainda todo o sistema de que nós podemos ajudá–lo
em todas as necessidades. Se tivermos sucesso nessa empreitada, tenho certeza de que todos os complexos e órgãos estarão
bem mais seguros e fortes para qualquer problema do sistema.
Mas ainda temos muito caminho pela frente.
Sra. Dentina olhou profundamente para Sr. Esmalte como
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Incisivocity
se pudesse interpretar todos os pensamentos de seu marido. Sabia dos riscos que enfrentaria a partir daquele momento já que
uma derrota tão esmagadora não iria deixar a Cárie dormir em
paz.
– O que pretende fazer em relação ao primeiro ano? – perguntou muito interessada.
– Tudo o que eu queria era poder começar as obras de expansão da cidade. Novos bairros, saneamento e estrutura, tudo
para avançar no projeto de ajuda ao sistema – e respirou. – Entretanto, não vou poder começar por aí.
Dentina arregalou os olhos ainda encarando–o. Estava
agora esperando algo surpreendente e ficou inquieta sacudindo–o como se quisesse que ele falasse logo.
– Levando em conta que a Cárie não vai deixar esta derrota barata, vou ter que me preocupar com a segurança de Incisivocity primeiro – e olhou pela janela da sede improvisada da
nova prefeitura vendo os pequenos prédios brancos da cidade.
Dentina sentiu o arrepiar da espinha somente por ter ouvido o que acabara de dizer Sr. Esmalte. Mais do que ninguém,
ela mesma já fora vítima muitas vezes de ataques indiretos da
ambição de Cárie. Sabia muito bem que Incisivocity e a população de odontoblastos e apatitas enfrentariam um longo período
de transição.
Quando a porta se abriu, ela veio toda linda e meiga. Correu para os braços do pai e lhe deu um beijo estalado na doçura
de seus cinco anos de idade.
– Ah! Então é assim, não é senhorita Amelodentina? – disse Sra. Dentina colocando as mãos na cintura. – Você só está vendo seu pai nesta sala?
– Desculpe–me mamãe. Eu já iria beijar a senhora também, mas eu estou tão feliz com a vitória do papai que...
– Que se esqueceu da sua mãe, não é? – interrompeu Sra.
Dentina já puxando a filha para um forte abraço seguido de um
grande beijo.
Enquanto a mãe agarrava sua filha com todo o amor e ternura materna, Sr. Esmalte prestou atenção à outra presença na
sala. Madame Mielina estava sorridente de pé à porta de entrada
da sala apreciando o momento com toda admiração.
– É tão agradável ver uma família feliz como a sua, Sr. Esmalte – disse ainda olhando para a menina.
– Desculpe–me por intrometer, Madame Mielina. – começou Esmalte. – Mas por sermos amigos há tanto tempo acho que
posso questionar algumas coisas, como o porquê de você e o Sistema Nervoso Central ainda não terem filhos?
Madame Mielina se desconcertou toda, tossiu rapidamente e arriscou uma singela brincadeira.
– Sei lá – disse ela. – Talvez por ele ser bastante “sistemático”.
A descontração já era intensa dentro da sala mesmo porque a vitória nas eleições abria espaço para qualquer euforia,
mas Madame Mielina estava disposta a tratar de assuntos sérios,
já que era a porta voz oficial do sistema e não poupou tempo.
– Pretende realmente investir no programa de segurança em Incisivocity, Sr. Esmalte? – perguntou Mielina. – Acha que
isso é viável agora? Lembre–se de que a população poderia se
assustar quanto a essa mudança, sem dizer que alguns odontoclastos começarão uma campanha afirmando tirania, ou abuso
e poder.
– Desculpe–me, Madame Mielina – disse. – Mas estou menos preocupado com o que odontoblastos, apatitas e até mesmo
odontoclastos irão pensar ou dizer. O que importa é o sistema e
a expansão de Incisivocity para uma vida melhor, porém temos
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que nos proteger agora contra tudo o que quiser dar fim a isso, e
para tal temos que estruturar nossas defesas. Desculpe–me novamente, Mielina, mas as defesas do sistema têm coisas mais importantes para se preocupar, assim como no caso de falharmos.
Madame Mielina concordou com a hipótese levantada por
Sr. Esmalte e ainda afirmou que o sistema estará pronto para
qualquer reforço. Disse também que as verbas para a segurança
pública da cidade já estariam à disposição para o momento em
que o Sr. Esmalte precisasse.
– Bom, tenho de voltar para o Sistema Nervoso Central,
já que tudo parece estar resolvido por aqui. Desejo sorte em
seu mandato, Sr. Esmalte – e se despediu de Sra. Dentina e da
filha. – Até breve queridas, espero revê–las brevemente e cada
vez mais lindas – e partiu.
Naquele momento, Sr. Esmalte interfonou para alguém do
lado de fora da sala e não passando muito tempo, entrou correndo uma apatita que fora escalada para o cargo de secretária.
– Por favor, senhorita Anipatita – disse imponente. – Convoque urgentemente uma reunião com todos os cálcios que se
encontram em Incisivocity. Temos muito trabalho pela frente. E
teremos que dar início no dia de hoje.
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Capítulo 2
Todos os cálcios estavam inquietos no saguão da nova
prefeitura, ansiosos pela convocação e curiosos em saber o que
Sr. Esmalte teria para falar já como prefeito.
Era um galpão branco enorme, com cadeiras posicionadas em fileiras e um pequeno palanque improvisado para o pronunciamento do prefeito.
Enquanto o Sr. Esmalte não chegava, o Sargento Calcion
dava ordens de reagrupamento para que aquele grande pelotão
de cálcios se organizasse, já que, por causa da euforia, todos eles
estavam desorganizados.
– Atenção cálcios! – gritou Sargento Calcion. – Todos em
ordem para o primeiro pronunciamento de nosso prefeito, o Sr.
Esmalte Esmaltus.
Quando Sr. Esmalte subiu ao palanque, foi aquela vibração. Uns aplaudiam, outros gritavam, alguns assobiavam, mas
todos contentes com a ilustre presença do prefeito.
– Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a todos pelo
apoio e afirmar que essa não foi somente a minha vitória, mas
a vitória de toda Incisivocity – disse sorrindo. – Quero lembrar
a todos que as funções continuarão sendo desempenhadas sem
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maiores mudanças, porém quero total dedicação para que nunca fracassemos em nossos ideais.
Sargento Calcion balançava–se ansioso pelo principal motivo da presença do prefeito. Ele mesmo já sabia do que se tratava, mas queria ver as reações de toda a tropa.
– Em segundo, e mais importante, venho dizer que o policiamento de Incisivocity dependerá do esforço de todos vocês
– disse olhando para o sargento. – Eu tenho garantia de verbas
do próprio sistema para fazer da Força Policicálcio de Incisivocity uma das melhores forças no combate à destruição de nosso
complexo.
Foi aquela algazarra. Todos os Cálcios pulando e vibrando
novamente, como se fosse a maior de todas as notícias nos últimos tempos.
– E ele quer isso agora! – gritou o Sargento Calcion intrometendo–se no pronunciamento. – He! He! Desculpe–me, Sr.
Prefeito é que... eu não pude me conter.
Sr. Esmalte balançou a cabeça em sinal de compreensão e
voltando–se novamente ao microfone.
– Vamos, Cálcios! – continuou. – Estejam preparados e
sempre alertas a qualquer movimento suspeito. Não deixem,
em hipótese alguma, que os resquícios da Cárie tomem conta
de nossa cidade.
Quando todos deixaram o saguão, somente Sargento Calcion e Sr. Esmalte continuaram no palanque.
– Está preocupado com a retaliação que a Cárie poderá
iniciar, não é mesmo? – perguntou o sargento.
– Isso já começou há muito tempo e não é de agora, sargento. O que mais me preocupa nesta ocasião é a divisão de nossa cidade.
– Está falando dos odontoclastos?
– E não é de se preocupar, sargento?
O sargento levou as mãos à boca, como era de costume
quando matutava pelos cantos, e sentou–se em uma das cadeiras do palanque fazendo o maior barulho dentro do saguão.
– Se a sociedade está dividida, teremos uma cidade separada – continuou Esmalte. – E com isso, iremos encontrar sérias dificuldades. Sem falar que o sistema poderá ir aos poucos
à falência. Você sabe muito bem disso.
Sargento Calcion fizera parte do comando central da Força de Cálcio do sistema e sabia como ninguém que a estrutura
de todo o sistema depende dos recursos vindos de fora e que
Incisivocity era o meio principal de que o sistema possuía para
conseguir estes recursos. Sabia também que se alguma coisa
acontecesse à Incisivocity, complexos importantes cairiam junto
com ela.
– E o que você espera fazer? – perguntou ainda sentado.
– Os odontoclastos nunca se preocuparam com a manutenção
da segurança da cidade, pelo contrário, lucram e muito quanto
a isso.
– Por isso temos de fazer de Incisivocity o melhor lugar
para se viver, mesmo com a possível, e não descartável ideia
de um ataque em massa da Cárie. Se tivermos o maior número
de odontoblastos e apatitas do nosso lado, neutralizaremos as
ações de odontoclastos em todo o complexo.
– Não poderia haver ninguém melhor para o cargo de prefeito quanto você Esmalte – entusiasmou–se Calcion. – É impressionante o sistema não ter percebido isso há mais tempo.
– O importante é que agora temos total apoio dele e não
podemos perdê–lo de maneira alguma.
– Não iremos perdê–lo – garantiu o sargento. – Eu mesmo tomarei conta do sistema de segurança em todo o complexo.
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Incisivocity
Dou–lhe minha palavra.
Sr. Esmalte ficou observando por alguns instantes antes
de alertar.
– Não subestime a Cárie, sargento. Ela possui em seu comando um batalhão muito forte e agressivo. Os Streptos nunca
pegaram leve, e não podemos deixar que eles avancem até Coracity, caso contrário, o sistema todo cairá.
Naquele instante, um rapaz muito esperto adentra correndo pelo saguão se desviando em saltos de algumas cadeiras
desalinhadas. Avançava entre o corredor de cadeiras a passos
largos.
– Desculpe–me, sargento – disse ele ofegante quando
chegou ao palanque. – Desculpe–me Sr. Prefeito – e continuou.
– Sargento Calcion, tudo pronto para a primeira força–tarefa
em Caninos. O senhor pediu para avisá–lo quando estivéssemos
prontos para sair. Pois é, já estamos.
O sargento vagarosamente virava–se com um olhar acanhado para o prefeito, envergonhado pela falta de classe do rapaz.
– Sr. Prefeito, este é o Agente Calcin, meu melhor cálcio.
Apesar de destrambelhado, ele sempre me auxilia nas mais diversas tarefas. Pena ser tão... – e voltando–se para Calcin. –Mal
educado!!!
– Nota–se que é um cálcio prestativo – respondeu Esmalte.
– Muito obrigado, senhor – respondeu Calcin. – Já estou
indo e comunico às viaturas de que estamos prontos.
E partiu em disparada da mesma forma com que entrou
pelo saguão.
– Bom, é melhor eu ir. Pelo que parece temos um tumulto
de odontoclastos agindo em Caninos.
Caninos era um bairro não muito afastado do centro de
Incisivocity e pelo que parecia, algo muito sério estava ocorrendo por aqueles lados.
– Com licença, sargento – interveio rapidamente Sr. Esmalte antes que o sargento deixasse a sala. – O senhor se importaria se eu fosse desta vez com a guarnição?
O sargento ficou sem reação. Fora pego de surpresa com
o estranho pedido e não estava disposto a arriscar o Prefeito em
uma campanha justamente naquele período onde os odontoclastos estavam inquietos.
– Não seria bom se expor nestas horas, senhor Prefeito.
– Eu gostaria de estar a par dos problemas que irei enfrentar sargento, mesmo se tiver de me expor. Não quero ser um
prefeito que se esconde dentro de seu gabinete sem saber o que
realmente se passa em sua cidade.
– Muito nobre da sua parte, senhor prefeito. Entretanto,
reafirmo o risco de que o senhor possa estar se envolvendo.
– Vamos fazer assim mesmo, sargento – disse certo de si.
– Eu insisto.
Sem muita escolha o sargento Calcion fez um gesto concordante e ambos cruzaram todo o saguão percorrendo o mesmo trajeto feito pelo agente Calcin.
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Quando as viaturas lá chegaram, uma verdadeira desordem já se instalara pelas ruas do bairro Caninus. Muitos odontoclastos estavam agitados, atirando pedaços de construções contra outras obras em andamento. Viam–se muitos odontoblastos
e apatitas correndo na tentativa de se defenderem, contudo, parecia que o número de odontoclastos era muito grande, lesando
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Incisivocity
todas as mediações de Caninus.
Naquele instante, até mesmo alguns trechos da rua haviam sido interditados mediante o risco que as estruturas se
encontravam. De dentro de uma das viaturas, Sr. Esmalte estava
boquiaberto vendo o alvoroço em todo Caninus. Junto com ele
estavam o sargento Calcion e o agente Calcin que assumiu o comando do megafone avisando a chegada da força policicálcio. Já
havia cálcios avançando em direção ao tumulto provocado pelos
numerosos odontoclastos.
– O que os cálcios irão fazer? – perguntou Sr. Esmalte um
pouco assustado.
– Vamos tentar contê–los antes de um conflito direto –
disse o sargento olhando para fora. – Não queremos que este
conflito se espalhe para fora das mediações de Caninus. O senhor aguarde aqui dentro junto com o agente Calcin.
Calcin olhou indignado para o sargento não aceitando
ficar de fora daquela tarefa. Mas por consideração ao prefeito
ficou quieto se remoendo.
Quando o sargento partiu, o prefeito colocou as mãos no
ombro do rapaz, o que fez com que ele olhasse espantado pelo
retrovisor.
– Sei que queria estar lá fora com seus parceiros, Calcin –
disse apertando–lhe o ombro.
– Ora, que nada senhor prefeito! – suspirou. – Até que eu
gosto de ficar quieto dentro da viatura acatando as ordens do
sargento – e sussurrou inaudível. – Mesmo sendo elas ridículas.
– Para ser franco, até achei melhor que ficasse – disse o
prefeito.
– Como? – perguntou assombrado o agente.
– Você ainda está com o megafone em seu poder? – perguntou o prefeito olhando ao redor da viatura.
– Estou, mas por que pergunta?
– Vou precisar de sua ajuda daqui para frente – disse o
prefeito ainda olhando ao redor fazendo gelar a espinha do
agente. – Você conhece bem as mediações de Caninus?
Calcin começou a olhar também para fora da viatura ainda sem entender a intenção do prefeito.
– Olhe, senhor prefeito. Eu conheço, porém é bom me dizer o que pretende, pois as ordens do sargento foram bem claras
em ficarmos esperando dentro da viatura.
– O que poderíamos fazer para atingir aquele ponto? – e
Sr. Esmalte apontou para a extremidade mais alta do bairro ignorando o lembrete do agente.
– Lá é o ponto alto do bairro, ou melhor, o ponto mais alto
de toda Incisivocity – e voltando–se para o prefeito. – O quê exatamente o senhor pretende naquele lugar?
– Pode me levar até lá, Calcin? – ignorando mais uma vez
a inquietação do agente.
– Posso, mas...
– Então vamos! – disse o prefeito interrompendo um novo
comentário do agente. – Estou no comando agora e ordeno que
me leve até lá com o megafone.
– Sim senhor – disse o agente não acreditando no que estava acontecendo. – Estou acabado. Quando o sargento retornar
à viatura e não nos encontrar, estarei fora da força policicálcio.
– Você se esqueceu que está sob as ordens do prefeito? –
completou Sr. Esmalte. – Eu assumo a responsabilidade, Calcin.
E saindo ambos da viatura, Calcin sussurrou mais uma
vez sem ser ouvido por Esmalte.
– Agora sim, ficou melhor ainda.
A bagunça estava generalizada. Os odontoclastos estavam
avançando em direção aos cálcios com toda a força, o que irri-
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tava ainda mais o sargento Calcion. Os cálcios haviam montado
uma barreira na tentativa de isolar os odontoclastos em uma
única área, mas eles ainda sim estavam em maior número dificultando toda a estratégia.
Alguns odontoblastos se uniam à guarnição de cálcios
tentando reparar alguns danos causados pela desordem, mas
não estavam obtendo muitos resultados.
– Sargento, o que vamos fazer? – perguntou um dos cálcios. – Os odontoclastos estão avançando rápido demais e com
muita força.
– Não temos muita escolha além de atacar – respondeu o
sargento já empunhando sua pistola calcítica. – Atenção, cálcios!
Preparar para contra–atacar!
Sendo assim, alguns dos cálcios que estavam posicionados mais atrás começaram a disparar em direção ao núcleo da
confusão acertando alguns odontoclastos que caíam mediante
ao ataque.
Mesmo sofrendo com o ataque, os odontoclastos tentavam avançar para que, com a força que estavam aplicando, conseguissem se dissipar e começar a destruir outros pontos.
Alguns odontoclastos, que se localizavam no núcleo da
confusão e que ainda não tinham sido acertados pelos disparos
calcíticos, tentavam desmobilizar os odontoclastos afetados.
– O negócio está ficando difícil – retrucou o sargento
enquanto disparava. –Avise à central e peça para enviar os canhões de calcitina. Vamos acabar com esta algazarra.
Enquanto isso, numa das quadras superiores de Caninus,
Sr. Esmalte e o agente Calcin continuavam correndo em direção
ao ponto alto do bairro passando por alguns odontoblastos que
desciam na tentativa de ajudar com o que pudessem na confusão.
– Você está ouvindo estes barulhos, Calcin? – perguntou o
prefeito enquanto continuava a correr.
– Certamente, os cálcios já começaram a disparar contra
os odontoclastos – Calcin explicou. – Isso quer dizer que a situação lá não é nada boa.
Instantaneamente, meio atordoado com a resposta, Sr. Esmalte parou de correr e se voltando para o agente, questionou:
– Como assim “disparar contra os odontoclastos”? O sargento perdeu a noção? Os odontoclastos também são cidadãos
de Incisivocity. O sargento Calcion vai colocar tudo a perder. Temos é de converter esses odontoclastos em odontoblastos ao
invés de anulá–los.
– Olha, não é querendo colocar mais lenha na fogueira
não, mas esse semblante de bom moço não faz muito o gênio do
sargento não – disse o agente. – Se ele deu ordens de disparo é
porque ele está pensando em eliminar o problema pela raiz.
– Então vamos continuar sem demora – continuou Sr. Esmalte. – Não podemos perder mais tempo.
E continuaram a correr em direção ao setor mais alto driblando as ruas que iriam se estreitando cada vez mais enquanto
subiam.
Quando os canhões de calcitina chegaram, muitos odontoclastos já haviam avançado. Sargento Calcion não entendia
como tantos odontoclastos estavam se reunindo ali, parecia que
já estava armada uma rebelião para logo após o pleito eleitoral.
– Senhor, não estamos conseguindo contê–los – gritou
um dos cálcios.
Mesmo com a bravura dos cálcios, a situação estava pendendo para a atitude corrosiva em que os odontoclastos estavam envolvidos. Sargento Calcion já suspeitava que só pudesse
ser alguma intervenção da Cárie naquela bagunça.
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– Atenção, cálcios! – gritou o sargento. – Vamos dar o melhor que pudermos para que os canhões acertem o centro do
tumulto com precisão.
Todos os cálcios que ali se encontravam fecharam o cerco
envolvendo todo o conflito em isolamento. Os canhões de calcitina se aproximaram o suficiente e estavam agora prontos, somente esperando a ordem de ataque.
Quando Sr. Esmalte e o agente Calcin finalmente alcançaram o cume de todo Caninus, eles se depararam com aquela cena
toda complicada lá embaixo, o que os deixou bastante perplexos.
– O que é aquilo lá embaixo? – perguntou Sr. Esmalte.
– Opa! São canhões de calcitina.
– Canhões? – assustou–se o prefeito. – O quê isso quer dizer?
– Que irão atingir os odontoclastos de uma vez – respondeu o agente.
Com um único golpe, Sr. Esmalte arrancou o megafone das
mãos do agente Calcin e correu para uma estrutura de onde ele
pudesse ser visto por todo o bairro de Caninus.
– Atenção cidadãos de Incisivocity! – falou ao megafone o
prefeito fazendo com que sua voz ecoasse bem distante. – Aqui
quem vos fala é o seu novo prefeito, Sr. Esmalte Esmaltus.
Naquele instante o sargento Calcion se vira para o local
de onde vinha a voz do prefeito e com uma expressão indignada
leva suas mãos à cabeça.
– Ai, ai, ai... – resmungou. – Não me digam que estou vendo o que vejo!
Um dos cálcios que estava próximo a ele, também perplexo, disse:
– Realmente o senhor está vendo o que não pretendia ver.
É o prefeito e o agente lá em cima com o megafone.
– Calcin! – continuou o sargento. – Vou mandar aquele calciozinho de volta para as estruturas de base num piscar de olhos
quando ele descer.
– O que vocês pretendem com esta desorganização toda,
caros odontoclastos? –continuou o prefeito. – Esqueceram que
esta é a casa de vocês? Tudo bem, eu não sou quem vocês queriam para governar esta cidade, porém isso não quer dizer que
não terão voz ativa e nem utilidade em meu mandato.
Calcion não sabia qual parte do pronunciamento tinha
servido e se encaixado naquela bagunça, mas de certa forma os
odontoclastos começaram a ceder.
– Tenham a certeza de que vocês são indispensáveis à Incisivocity – continuou o prefeito. – Existem certas tarefas que
cabem somente a vocês e não a outros cidadãos.
– Então nos diga onde poderíamos atuar em um governo
de expansão? – gritou uma voz entre os odontoclastos.
– Para que haja expansão, meus caros, teremos de conciliar tarefas e a de vocês será indispensável para que odontoblastos e apatitas possam desempenhar seus papéis com sucesso – e
acrescentou. – Vou criar um conselho de infra–estrutura e vocês
serão de suma importância para os projetos que tenho em mente.
– Dê–nos um prazo para pensarmos! – gritou outra voz.
– O quanto precisarem – respondeu o prefeito. – Quando
estiverem prontos ou chegarem a um veredicto entre em contato comigo. Estarei pronto para recebê–los.
Um a um, os odontoclastos iam se retirando conformados
com o acordo e cientes de que chegariam em breve a um veredicto para o possível acordo. De certa forma, acreditavam que
algo a favor deles poderia brotar de um conselho.
– Excelente estratégia, senhor prefeito! – disse Calcin. –
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Incisivocity
Confesso que não teríamos ideia melhor de persuasão.
– Não estou persuadindo ninguém, meu caro Calcin – respondeu o prefeito. – Eu realmente quero os odontoclastos no
conselho.
pelas ruas de Caninus no meio de uma revolução, sem nenhum
reforço, era ato de muita coragem, mas não queria aceitar o fato
de ter sido desobedecido.
– Com certeza ele será condecorado por honra ao mérito –
e tossiu novamente. – Mas terá punição cabível ao fato.
– Com sua licença, sargento – interrompeu o Sr. Esmalte.
– Peço sua autorização para que a punição seja dada por mim, já
que eu o obriguei a desobedecer a suas ordens.
– Eu nunca ouvi uma coisa dessas, mas... – e se sentiu confortado por dar a autorização. – Tudo bem, eu autorizo, mas que
seja estabelecido o prazo mínimo de três semanas e não menos
que isso.
Calcin ficou apreensivo por esperar o que lhe aguardava.
Não acreditava que seria uma punição tão severa, já que o nobre
prefeito foi o real causador da discórdia, mas sabia também que
estaria fora das ruas por aquele período.
– O agente Calcin montará guarda em meu gabinete nas
próximas semanas. De acordo sargento?
– Vá lá – disse o sargento. – Contanto que esteja fora das
forças-tarefas por esses dias.
•••
Sargento Calcion já estava encostado à viatura esperando
seu agente chegar juntamente com o prefeito. Mesmo depois de
tudo ter terminado bem, ele não admitia que suas ordens fossem ignoradas e quando apontaram Calcin e o Sr. Esmalte na
esquina, o sargento saiu como uma locomotiva fora de controle
batendo com as mãos na cintura.
– É bom saber que o meu agente é um maluco sem nenhuma noção de perigo! – falou em voz alta.
– Calma sargento – interveio o prefeito. – Eu posso explicar. Na verdade, as ordens de sair da viatura foram minhas, o
que faz do agente Calcin inocente.
– Desculpe–me senhor prefeito, mas o senhor tem ideia
do risco que estava correndo? – avançou o sargento. – Não tínhamos a noção de quantos arruaceiros existia em Caninus, o que
faz do agente Calcin um inconsequente.
– Escute, meu caro sargento. Com todo o respeito que tenho pelo senhor, fui eu mesmo quem passou por cima de suas
ordens e com toda a consciência de risco, mas eu precisava tentar. E ainda peço desculpas ao agente por fazê–lo se arriscar
junto comigo – e colocando as mãos sobre o ombro do agente
acrescentou. – Este cálcio merece uma condecoração por sua
bravura.
O sargento ficou todo desconcertado, tossindo e olhando
para os lados inquieto. Na verdade, reconhecia que sair sozinho
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Incisivocity
Capítulo 3
A Cárie estava se sentindo toda ofendida quando Ácido Açucarado trouxera o relatório do motim em Caninus. Mais
uma vez o Sr. Esmalte, agora prefeito legítimo, levara uma considerável vantagem em relação a ela.
−Pobres odontoclastos, susceptíveis a tudo – disse ela andando de um lado para outro. – Precisamos jogar melhor com
eles.
– E o que pretende fazer agora? – perguntou Ácido Açucarado. – Parece–me que a ideia de emprego na demolição de
Caninus não foi muito bem aceita.
– Mas é óbvio que não, meu caro Ácido Açucarado – respondeu em fúria. – Como espera que eles vão partir para uma
destruição em massa em Incisivocity, sendo este o único ambiente onde podem atuar? Eles dependem daqui. O que eu realmente esperava era que alguma desordem fosse concluída para
dar margem ao meu próximo passo.
– E qual seria este próximo passo, minha cara?
Foi então que em meia volta, a Cárie foi até a mesa ao
fundo de sua sala e apertou um botão fazendo acionar uma secretária.
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– Pois não senhora Cárie? – perguntou a voz no interfone.
– Queira deixá–lo entrar – disse a Cárie sorridente.
Quando a porta de entrada se abriu, um ser todo estranho
adentrou no recinto. Ácido Açucarado levou suas mãos ao nariz
devido ao forte odor que emanava da criatura.
– Meu caro Ácido Açucarado – disse a Cárie apontando
para o desagradável ser. – Queira conhecer um legítimo Streptococos Mutants.
Ácido Açucarado estava sem jeito, pois aquilo que acabara
de entrar na sala era horrível e fedorento.
– Ele faz parte de uma legião de Streptos famintos por
destruição em massa – continuou ela. – E sabe qual é a verdadeira vontade desses indivíduos?
Ácido Açucarado balançou a cabeça em sinal de negação.
– Alcançar Coracity – e a Cárie soltou uma gargalhada histérica. – Isso não é o máximo?
– E o quê espera fazer, Cárie? – perguntou o ácido sem
entender como aquelas criaturas chegariam intactas às ruas de
Incisivocity.
– É claro que Incisivocity já deve ser prioridade. Se esses
streptos forem treinados e nutridos por você, caro Ácido Açucarado, eles não encontrarão resistência eficaz com um sistema
sanitário ainda em formação como é o de Incisivocity – ela ainda
acrescentou. – Quer ser o capitão desta tropa, caro Ácido Açucarado?
Ele ficou todo pomposo, afinal capitão seria exuberante
demais. “Capitão Ácido Açucarado”, era tudo o que precisava
para vangloriar seus tempos de quartel.
– Não será da noite para o dia que esses monstrengos
estarão prontos para um ataque, minha cara – disse com uma
expressão de concordância já se sentindo o próprio capitão. –
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Fabiano Freire
Incisivocity
Será que podemos contar com alguns odontoclastos?
A Cárie bem sabia que ainda era cedo para essa estratégia,
já que possivelmente uma convenção de odontoclastos se iniciaria em pouco tempo. Teria de esperar pelo menos a conclusão
desse fato para que então pudesse pôr novos planos em prática.
Ela deveria saber tirar proveito da situação, pois se tentasse algo
tão recente os odontoclastos poderiam suspeitar de sua real intenção e o que ela realmente precisava era de toda a confiança
a seu favor.
– Você terá o seu tempo, Capitão Ácido Açucarado – respondeu maliciosamente astuta. – Enquanto isso planejarei algo
para pôr fim a este conselho que Esmalte quer montar. Se os
odontoclastos se associarem agora, nossos planos se tornarão
mais difíceis de concretizarem.
A Cárie também sabia que poderia agir se conseguisse
inibir o sistema, mas para isso, alguma coisa terrível deveria
acontecer para provar que o sistema de defesa em Incisivocity
era falho.
O Sistema Nervoso Central tinha um primo muito próximo e que sempre tentou dar as ordens por cima, porém não
tinha tanta influência e vivia em função disso, atormentando o
Sistema Nervoso Central para que alguma de suas ordens fosse
levada em consideração. Seu nome era Sistema Nervoso Periférico. E a Cárie poderia agir nesse campo, mas ela não conseguiria enviar uma mensagem pelo sistema já que Madame Mielina
cuidava disso.
– Acho que sei exatamente como alertar o sistema de que
alguma coisa está errada –disse a Cárie se enchendo de esperança. – Como a estrutura básica em Incisivocity ainda está em
construção, poderei agir por lá. Molares é um bairro muito distante e de difícil acesso até mesmo para o policiamento. Vamos
inibir a força policicálcio acionando toda ela para Molares Direitus em um ataque surpresa de alguns odontoclastos. Quando
isso ocorrer, em seguida, avançaremos com uma desordem em
Molares Esquerdus.
Em Incisivocity realmente haviam bairros muito afastados como era o caso dos Molares. Tratava–se de uma tática
bastante arriscada mediante a formação do conselho de odontoclastos e Capitão Ácido Açucarado sabia bem disso.
– Eu não entendo – arriscou Ácido Açucarado. – Você mesma disse que não seria viável um ataque agora? Por qual razão
os odontoclastos iriam formar aliança antes da formação do
conselho?
– Não atacaremos Incisivocity desta vez, meu caro capitão – disse ela se empolgando com a nova ideia. – Vou enviar
uma pequena tropa de Actinomyces para atacar diretamente os
próprios odontoclastos.
Os actinomyces eram bactérias de um alto escalão, perigosos e impiedosos. Já eram organismos muito bem treinados
em atacar o sistema sem alertar o sistema de defesa, ou seja,
eram verdadeiros microorganismos ninjas. Ácido Açucarado conhecia muito bem essa raça, pois há muito tivera uma participação em uma força–tarefa de rastreamento desses hospedeiros e
sabia como ninguém da astúcia desses pequenos monstros.
– Já estou começando a entender – adiantou Ácido Açucarado. – Vai colocar os odontoclastos em xeque contra o sistema
de segurança em Incisivocity. Com isso, você vai dividir a opinião
sobre o conselho de odontoclastos, não é mesmo? Mas que ideia
genial.
– Se colocarmos a população de Incisivocity em dúvida
sobre sua segurança, o quê dirá o próprio sistema? – completou
a Cárie. – Com certeza, o Sistema Nervoso Periférico pressionará
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Incisivocity
o Sistema Nervoso Central para agir em defesa de outros complexos e sendo assim reduzirá suas verbas, o que nos dará chances de ampliarmos nossas forças e atacar com muito mais eficiência. Se o sistema ficar desleixado em relação à Incisivocity, o
que provavelmente ocorrerá, o domínio de nossas forças sobre
o complexo inicial será eminente.
Não eram muitos que estavam reunidos em Molares Direitus naquela noite. Apenas um pequeno grupo de odontoclastos havia se reunido para colocar em discussão as propostas comentadas pelo prefeito em Caninus. Aquela era apenas uma das
muitas reuniões que eram realizadas naquela noite, pelos odontoclastos, em toda Incisivocity. Muitos se mostravam a favor do
conselho, porém uma parte relevante ainda se mantinha contra.
– Isso é papo furado! – dizia um.
– Tudo que o prefeito realmente quer é favorecer apatitas
e odontoblastos –completava outro.
Contudo havia também a presença de odontoclastos que
estiveram em Caninus no dia da revolta e esses comentavam sobre as vantagens de um conselho.
– Estivemos lá e ouvimos pessoalmente as palavras do Sr.
Esmalte – afirmava um deles. – Não parecia haver mentira naquelas palavras. Pelo que parece, ele está realmente querendo
um conselho de nossa parte na prefeitura.
– Este conselho, caso realmente seja formado, em nada
nos favorecerá em Incisivocity – outro odontoclasto comentou.
– Vejam bem, amigos – continuava o odontoclasto favorável ao conselho. – Hoje não temos força alguma em Incisivocity,
porém com um conselho formado, poderemos debater nossas
ideias. Não temos outro lugar para viver, isso é uma verdade, e
precisamos de Incisivocity inteira. Contudo, também temos a
consciência de que nosso valor para o complexo é tão significante quanto ao de odontoblastos e apatitas e não vamos nos deixar
desmerecer. E só teremos nossas ideias ouvidas, se tivermos um
conselho atuante na prefeitura.
Durante toda a reunião, em um local distante de Molares
Direitus, a tensão se manteve, porém todos saíram concordantes
quanto à necessidade do conselho.
Daquela reunião, dois odontoclastos saíram por um caminho diferente dos demais a fim de pegar atalho até suas respectivas casas. Era a situação ideal para que, naquele instante, quatro vultos adentrassem em um dos becos do bairro sem serem
percebidos pelos odontoclastos.
– O que você achou disso tudo? – perguntou o primeiro
dos odontoclastos.
– Não tenho muita certeza de que faremos um bom negócio nos entregando logo assim de início – argumentou o segundo. – Mas poderemos levantar algumas de nossas exigências
com maior poder de voz.
As pequenas ruas as quais tiveram acesso os dois odontoclastos, estavam completamente desertas o que tornou o silêncio daquela noite completamente incômodo para eles.
– Não gosto de andar por essas vielas à noite, meu amigo –
comentou o primeiro. – Quanto mais Incisivocity parece crescer,
mais esquecida ela fica.
– De seis anos para cá sempre foi assim – retrucou o segundo. – Não creio que vai ser diferente nos próximos anos.
– Está aí! – exclamou o primeiro. – Podemos pedir no conselho um policiamento reforçado para os bairros mais distantes.
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Incisivocity
– Deixe isso para os odontoblastos e apatitas – novamente
respondeu o relutante odontoclasto. – Com a insegurança eles
serão os prejudicados. Com a confusão que estamos aprontando, será muito difícil alguém se meter com a gente.
Foi quando um sinistro barulho vindo da escuridão daquela viela cortou todo o silêncio da noite.
– O que foi isso? – perguntou o segundo odontoclasto se
preocupando.
– Não faço a mínima ideia, mas seja lá o que for está vindo da escuridão mais à frente – respondeu também intrigado o
primeiro.
– Vamos voltar – disse o segundo se recuando. – Não estou
sentindo boas vibrações por aqui não. Talvez seja melhor seguir
pelo caminho mais comprido, ou seja, o de sempre.
E novamente o barulho rastejante recomeçou, desta vez,
vindo por trás, justamente na direção que os odontoclastos haviam tomado.
– Acho que já não é mais uma boa ideia – comentou o
primeiro percebendo de onde vinha o barulho.
Em poucos segundos, aquele som rastejante se transformou em um barulho envolvente e de repente os dois odontoclastos estavam cercados por quatro criaturas aterrorizantes que os
encarava friamente.
– Os dois virão com a gente daqui para frente – sussurrou
a voz de uma das criaturas.
Quando um dos odontoclastos ameaçou a sair em disparada por um dos lados, foi golpeado rapidamente e atirado ao
chão.
– E é melhor não correrem, pois não estamos com paciência para aturar odontoclastos rebeldes – sussurrou agora a voz
da criatura que havia golpeado o odontoclasto.
– Ei, quem disse que somos rebeldes? – gritou o odontoclasto que continuava parado. – Estamos lutando por um direito
que nos cabe e não nos rebelando. É direito de qualquer cidadão
se manifestar a favor de uma causa.
E com aquele depoimento, outra voz sussurrou maliciosamente mostrando certo grau de irritação.
– Pois daqui em diante não caberão mais manifestações
contra o sistema. E quem for contra, será eliminado de todos os
complexos.
Indignado, o odontoclasto assustado e que ainda se estava de pé, não acreditava no que estava ouvindo. Poderia o sistema interferir, assim, brutalmente nos assuntos dos complexos?
E se pudesse, onde estaria a ordem tão almejada?
Sem maiores esclarecimentos, as quatro criaturas arrastaram para dentro da escuridão da viela o odontoclasto desmaiado deixando para trás o outro muito abalado.
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Capítulo 4
Era um novo dia em Incisivocity e naquela manhã o Sr.
Esmalte havia acordado mais cedo que de costume. Estava parado em frente à janela de seu gabinete observando de longe
as novas obras que há pouco se reiniciaram. Tudo andava nos
conformes, e máquinas, todos os dias, trabalhavam a todo vapor
para o crescimento da cidade e os cidadãos pareciam satisfeitos.
Somente os odontoclastos não haviam se manifestado ainda em
relação ao conselho e essa demora atormentava o prefeito.
– Senhora Anipatita – disse ao interfone. – Entre em contato com Oncoblasto na administração. Peça a ele que, assim
que puder, venha até meu gabinete.
Oncoblasto era um odontoblasto muito popular e tomava
conta dos assuntos sociais de maior importância em Incisivocity. Desde que o Sr. Esmalte tomara posse, sempre ao fim do
expediente, passava no gabinete para recolher os assuntos pendentes para o próximo dia. O que realmente iria fazê–lo estranhar o chamado ao gabinete tão cedo.
Não demorou muito e a porta do gabinete do prefeito se
abriu com o Sr. Oncoblasto entrando todo ofegante.
– O quê houve senhor prefeito?
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– Desculpe–me por tê–lo de trazer assim tão cedo ao meu
gabinete, mas algo está me tirando o sono.
– E o quê poderia ser, Sr. Esmalte?
O prefeito sentou–se lentamente cruzando as mãos e soltando o ar preso nos pulmões.
– Algum odontoclasto já lhe procurou para dar início ao
conselho?
– Nenhum, senhor – respondeu também se sentando. –
Até o presente momento, em nenhum bairro, os odontoclastos
em nada se manifestaram.
Sr. Esmalte se encostou novamente na cadeira decepcionado. Não era a notícia que estava esperando.
– Estou preocupado com a falta de resposta, meu amigo
Oncoblasto.
O odontoblasto permaneceu em silêncio por alguns instantes olhando de um lado para outro pensativo até que, então,
resolveu falar.
– Sua preocupação realmente tem fundamento, senhor
prefeito.
Aquele argumento fizera gelar as costas de Sr. Esmalte.
Oncoblasto estava sabendo de alguma coisa e não iria contar facilmente.
– Diga-me, Oncoblasto – disse o prefeito se erguendo para
frente. – O quê está se passando que eu não estou sabendo?
Oncoblasto coçou o nariz, remexeu–se na cadeira e voltando o olhar ao prefeito disse passando a mão sobre os cabelos
brancos.
– Há rumores de que os odontoclastos estariam abandonando seus postos.
– E de onde vêm esses rumores?
Oncoblasto parou por outro instante e começou a olhar
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Fabiano Freire
Incisivocity
para a janela.
– Ora, senhor prefeito – disse olhando a cidade sentado.
– Basta o senhor sair e dar apenas uma volta por Incisivus Centralis, que é nosso centro urbano e procurar algum odontoclasto trabalhando.
Sr. Esmalte se levantou preocupado e dirigiu–se até a janela. Se os odontoclastos não estavam em seus devidos lugares,
onde então poderiam estar?
– Isso é verdade, Oncoblasto?
O odontoblasto se ajeitou na cadeira coçando a testa e fazendo um gesto afirmativo com a cabeça.
– O senhor ficaria surpreso se fosse pessoalmente averiguar.
Esmalte voltou–se rapidamente para a direção da porta
pondo–se a caminhar. Ao abrir a porta olhou para os lados como
se estivesse buscando alguma coisa até que gritou pelo agente
Calcin.
Imediatamente o agente se prostrou frente à porta em
continência tentando esconder os sinais do cansaço de quem
estava muito além dos corredores do qual deveria estar guardando.
– Eu não sabia que sua presença em meu gabinete seria
tão válida – disse o prefeito ignorando a inquestionável ausência
do agente. – Com o seu conhecimento dos bairros de Incisivocity,
preciso que faça sigilosamente uma varredura pela cidade e descubra onde estão se reunindo os odontoclastos.
– Isto é um problema – retrucou o agente murchando o
peito em sinal de desânimo. – Se os cálcios do sargento Calcion
me pegam desfilando por aí em pleno período de punição, eu
serei o próximo cuneiforme eliminado do sistema.
– Caso isto aconteça, você alegará estar sob minhas or-
dens prestando serviços de levantamento público – acrescentou
o prefeito. – Além disso, o senhor Oncoblasto estará com você. O
álibi perfeito, não acha Sr. Oncoblasto?
O odontoblasto que estava sentado somente assistindo
àquele diálogo, até então interessante, deu um salto e ficou de
pé, surpreso.
– Desculpe–me, senhor prefeito – disse o Sr. Oncoclasto
engolindo as letras. – Não é querendo me opor a essa ideia,
mas o que aconteceria se formos pegos em alguma revolta?
Um odontoblasto juntamente com um cálcio sozinhos seria um
grande motivo em um inevitável combate.
Sr. Esmalte se voltou para o agente Calcin sorrindo e colocando as mãos em seus ombros com toda a tranquilidade, ato
que deixava o agente esperando outra confusão, já que se lembrava muito bem do ocorrido em Caninus, e ponderou:
– O agente Calcin é muito astuto, Sr. Oncoblasto. Tenho
plena certeza de que sabe prevenir muito bem um incidente
como esse. Basta ficar atento a tudo que este agente fizer.
Os dois, Oncoblasto e Calcin, ficaram se entreolhando por
alguns segundos. O odontoblasto desconfiado de um cálcio novo
enquanto Calcin estava sentindo–se todo orgulhoso de si mesmo.
– Basta somente saber por onde vamos começar – iniciou
Sr. Oncoblasto cruzando os braços. – De Incisivos até Molares
nos bairros inferiores não há sinal de nenhum deles.
– Por isso nos restam os bairros superiores – interveio o
agente.
– De acordo – foi a vez do prefeito. – Porém, deverão ficar
muito atentos, pois não há sinais de muito policiamento naquela
região.
Os bairros superiores eram a grande continuação de In-
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Fabiano Freire
Incisivocity
cisivocity e realmente o sistema não se preocupava o suficiente
com sua manutenção, o que seria um dos principais obstáculos
do novo prefeito. Como era uma região não muito iluminada, até
mesmo devido a sua posição geográfica no sistema, muitos dos
problemas de vandalismos registrados viam de lá, e isso preocupava o prefeito quanto à segurança de seus novos encarregados.
Calcin realmente conhecia Incisivocity como ninguém,
mas Sr. Esmalte tinha a certeza de que, mesmo assim, o agente
não conhecia muito bem aquelas partes da cidade e novamente
se dirigiu ao interfone chamando pela senhorita Anipatita.
Quando ela entrou na sala, o agente ficou todo desconcertado, parecia que tinha lhe entrado pulgas pelo corpo, o que fez
Sr. Oncoblasto se divertir um pouco.
– Descontrolado com a beleza da moça, agente? – perguntou o odontoblasto com um sorriso malicioso no rosto. – Esses
rapazes e seus hormônios aflorados!
– Ora, não seja ridículo! –disse o agente ainda sem saber
onde punha suas mãos.
Naquele momento, a situação do agente passava despercebida pelo prefeito, que começou a dialogar com a secretária.
– Senhorita Anipatita – disse o prefeito se aproximando
da jovem apatita. – Sei que você vem dos bairros superiores,
não é mesmo?
Tanto o agente quanto o odontoblasto administrador a
olharam espantados com aquela inesperada indagação. A moça
simplesmente acenou com a cabeça afirmativamente admirada
com a memória do prefeito. Nunca havia lhe contado de onde
era e essa informação só poderia constar no currículo que há
muito tempo deixara em um gabinete eleitoral, muito antes das
eleições. Esse prefeito era realmente cuidadoso em seu mandato, era o que pensava naquele momento.
– Estaria disposta em ser útil para sua cidade, minha
inestimável secretária? –perguntou o prefeito em tom desafiador.
A apatita rapidamente olhou para o lado na direção do
agente que ficou ainda mais sem jeito e disse meio acanhada.
– O que teria eu a oferecer para a cidade, senhor prefeito?
– Você já oferece muito somente por estar trabalhando
aqui na prefeitura, senhorita –respondeu sabiamente o prefeito. – Creio eu que sua presença junto a esses senhores em uma
missão será muito valiosa.
Calcin só não foi ao chão naquele momento porque havia
se encostado à parede, o que provocou certa desconfiança em
Oncoblasto.
– Vamos iniciar uma varredura em busca dos odontoclastos nos bairros superiores – continuou o prefeito.
– Não é um pouco arriscado, Sr. Esmalte? – perguntou ela
já sabendo dos riscos do bairro em questão.
– Correção! – interrompeu o Sr. Oncoblasto. – É muito arriscado, senhorita.
– É exatamente por isso que nesta tarefa eu tenho o melhor agente da cidade, um grande doutor “honoreis relações
causa”, que é o senhor, e a mais competente apatita dos bairros
superiores – completou o Sr. Esmalte evitando daquela maneira
os possíveis comentários que poderiam se seguir.
– Tudo bem, Sr. Esmalte – concordou Anipatita. – Mas me
pergunto quem vai secretariar nosso prefeito na minha ausência.
Novamente a porta do gabinete se abre dando entrada
àquela sala mais um membro, muito ilustre por assim dizer.
– Eu mesma, senhorita – disse com toda segurança, Sra.
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Incisivocity
Dentina. – É assim que comecei minha vida, e é assim que darei
minha contribuição nesta missão.
Todos na sala ficaram ainda mais espantados. Na opinião
do agente Calcin, aquela manhã estava acontecendo tudo o que
poderia acontecer, o que prometia um dia muito longo. Já Oncoblasto, sentando–se todo abismado, já não esperava mais nada.
Sr. Esmalte se aproximou da esposa e abraçando–a,
olhou–a firmemente.
– Não esperaria nada diferente de você, minha querida.
E por falar nisso, há quanto tempo está aí fora escutando nossa
rápida reunião?
– Tempo suficiente para dar o meu maior apoio a vocês
três – disse a primeira dama olhando para eles com admiração.
Quando o carro da prefeitura se aproximou de Caninus
Direitus do bairro superior, os novos encarregados do prefeito
sentiram na pele o que, desde a prefeitura, vinha falando a secretária. Era verdade que dali para frente, os bairros superiores
não significavam muito para o sistema.
– Daqui em diante teremos de ficar atentos, pois se existe algum lugar onde os odontoclastos possam estar se reunindo
sem maiores problemas, este lugar é de Molares em diante – disse Anipatita olhando pela janela do veículo.
– Sendo assim é melhor seguirmos a pé daqui em diante –
disse o agente já freando o carro.
– As coisas já estão difíceis e você quer complicá–las ainda mais? – foi a vez de Oncoblasto. – E se precisarmos bater em
retirada?
– Calcin tem razão – afirmou Anipatita. – Não podemos
ser vistos por aqui, ainda mais dentro de um veículo público da
prefeitura.
Sr. Oncoblasto concordou, afinal não havia pensado daquela maneira. Porém, algo ainda não estava certo para ele. Se
naquela missão eles não pudessem ser vistos, o que ele estava
fazendo lá? Contudo, resolveu aguardar para ver no que daria.
– De agora em diante vocês dois me seguem – ordenou o
agente saindo do carro e seguindo em direção a um dos becos.
– Vamos seguir pelos caminhos mais impensáveis, que os odontoclastos menos gostam. O lugar que já foi devastado por eles.
E todos os três entraram em um beco escuro e totalmente
aniquilado. As paredes estavam corroídas de um branco acinzentado e alguns restos de lixo jogados aos cantos.
– Este é o primeiro grande sinal de que a Cárie pretende
dominar esta região – disse o Sr. Oncoblasto. – E muito em breve
pelo que está parecendo.
– É por isso que não encontraremos odontoclastos por
aqui – completou o agente. – Por mais que estejam agindo em
favor da Cárie, eles não gostam dela. Assim como todo odontoblasto e apatita de Incisivocity.
– É, parece que o Sr. Esmalte não estava brincando quando comentou de sua astúcia, Calcin – indagou o administrador
admirado.
– E precisa tomar alguns cuidados nesta astúcia também!
– completou Anipatita. – ele quase se denuncia ao prefeito hoje
pela manhã.
Calcin apenas tossiu tentando alertá–la quanto ao lapso
do qual acabara de dar a senhorita Anipatita na presença do Sr.
Oncoblasto. Porém, alertou também as ideias do odontoblasto.
– Espera aí, como assim? –perguntou Sr. Oncoblasto interrompendo a caminhada. – Que tipo de mancada poderia o
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Fabiano Freire
agente dar em relação ao prefeito?
E notou também os olhares atravessados da apatita com
o agente parecendo duas crianças pegas em suas travessuras.
– Opa, aí tem coisa! – exclamou levando sua mão à testa
como era de costume. – É claro! Tão óbvio quanto dois mais
dois são quatro. Vocês dois estavam juntos antes do prefeito
requisitar a presença do agente. Agora está explicado o porquê
da agitação de Calcin quando a senhorita entrou no gabinete.
Houve um silêncio momentâneo até que o agente resolveu, por fim, quebrá–lo.
– Tudo bem, você descobriu tudo – disse ele envergonhado. – Eu estava na companhia da senhorita Anipatita ao invés
de estar grudado na porta do escritório do prefeito.
Anipatita estava como um pimentão olhando paralisada
para o odontoblasto que também a observava.
– Ora, ora! – continuou Oncoblasto. – Quem diria? Não se
preocupem, pois não sou a favor de intrigas.
E continuaram a seguir pelo beco, Calcin e Anipatita desconcertados e Oncoblasto descontraído.
A cada minuto que se passavam eles observavam que as
ruas também se degradavam e aquilo gelava as extremidades de
Oncoblasto. Senhorita Anipatita dava as informações necessárias para que o agente Calcin não se perdesse, mas em certos
pontos até ela se confundia.
– Não me leve à mal, senhorita, mas como consegue morar
em um lugar tão sombrio como este? – perguntou Sr. Oncoblasto.
– Eu já não moro aqui desde que consegui trabalho no
centro do complexo. Na verdade, saí daqui desde que perdi os
meus pais.
Agente Calcin se virou rapidamente surpreso com a no-
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Incisivocity
tícia.
– Disso eu não sabia – disse o agente. – O que aconteceu
a eles?
– Como vocês bem podem notar as estruturas desses bairros não são muito boas, o que provavelmente está expulsando
seus moradores daqui – disse ela. – Mas não era sempre assim.
Tanto Molares Superiores quanto os demais bairros eram fortes
e bem estruturados e nós vivíamos aqui antes de nossa casa desabar pela falta de manutenção do sistema.
Senhorita Anipatita fora a única sobrevivente quando o
complexo residencial onde morava foi ao chão. Desde então ela
foi para o centro e começou a auxiliar nos projetos da nova câmara. Sua competência levantou os ânimos de alguns odontoblastos e apatitas que queriam uma cidade melhor e quando Sr.
Esmalte foi eleito, ele mesmo pediu seu currículo, contratando–
a em seguida para trabalhar como secretária.
– Uma estória interessante para ser contada a estes odontoclastos ingratos – opinou o agente. – Se fosse para formar uma
revolta, você é quem teria os melhores motivos.
– Porém, isso a motivou querer sempre o bem da cidade –
completou Sr. Oncoblasto.
– Mas não é hora para ficarmos nos preocupando com o
passado – interrompeu Anipatita. – Temos uma missão muito
importante para o futuro de Incisivocity.
Porém, no momento em que estavam prestes a reiniciar
a caminhada, o agente ficou em silêncio observando o escuro.
Anipatita e Oncoblasto ficaram sem entender a reação de Calcin,
mas puseram–se em silêncio também a esperar alguma reação
do agente.
– Rápido, por aqui! – sussurrou o agente Calcin entrando
num buraco entre as paredes do beco.
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Fabiano Freire
Incisivocity
Prontamente, os outros dois que o seguiam fizeram o
mesmo, se atirando em um lugar mais obscuro ainda.
– O que foi? – perguntou sussurrante o odontoblasto.
– Esperem alguns segundos e verão – disse o agente
olhando para fora.
Não demorou muito e um grupo de seis seres completamente estranhos aos encarregados da prefeitura passou pelo
beco lentamente sem fazer muito barulho. Eram tenebrosos fazendo com que Anipatita se jogasse pescoço do agente em sinal
de medo. Em seus corpos, prendia uma carapaça escura muito
desagradável à vista e fazia um som ligeiramente baixo, porém
incômodo aos ouvidos.
– Que criaturas são estas? – perguntou em um tom ainda
mais ponderado Sr. Oncoblasto.
– Não sei dizer ao certo, mas estão parecendo Actinomyces
– respondeu Calcin. – Mas se for, o quê eles estão fazendo por
aqui?
Era estranho ao agente a presença daquelas bactérias
em Incisivocity já que a força policicálcio não estava informada.
Com certeza não era de se esperar coisa muito boa vindo dessas
criaturas e a preocupação começara a tomar conta de Calcin.
– Tem algo errado por aqui! – exclamou Anipatita. – Esses
seres jamais andaram por estas bandas.
– Você tem certeza disso? – perguntou Calcin sem tirar os
olhos das criaturas.
– Bom, pelo menos eu nunca as vi, em todo o tempo que
morei aqui, nenhuma delas.
– É melhor informarmos à força policicálcio antes de seguir em frente – argumentou Sr. Oncoblasto. – As coisas começaram a ficar estranhas demais por aqui e tenho certeza de que o
risco de colocarmos tudo a perder se tornou grande.
O agente Calcin, mesmo concordando com o odontoblasto, sabia que teriam de descobrir ao menos onde estariam reunidos os odontoclastos antes de retornar e avisar ao sargento
Calcion sobre a presença dos actinomyces, pois os cálcios já deveriam estar sabendo do sumiço dos odontoclastos e com certeza começariam uma caçada sem fim.
– Vamos fazer o seguinte: – arriscou o agente – vocês dois
ficarão aqui. Já eu seguirei essas criaturas para entender o que
se passa. Se eu não retornar até o escurecer, os dois voltarão à
prefeitura e alertarão sobre tudo.
– Você está pedindo para que o deixemos seguir sozinho
enquanto esses actino... sei lá o quê estão rondando por aí? –
avançou a apatita perdendo sua calma. – Ora, o que você está
pensando que nós somos?
– Vocês são cidadãos que não têm a mínima chance contra essas criaturas – respondeu o agente acenando para que ela
falasse em baixo tom.
Sr. Oncoblasto estava apenas olhando para fora esperando que algum daqueles seres retornasse com aquela discussão
tola.
– Olha, se vamos seguir ou ficar, é melhor decidir rápido – disse Oncoblasto olhando para fora. – Acho que eles estão
retornando.
Todos ficaram paralisados por alguns instantes quando
foram surpreendidos por um barulho muito próximo de onde
estavam escondidos. O agente sacou sua pistola de calcitina já
temendo o fato de tê–los alertados com seus sussurros. Anipatita estava quieta com as mãos sobre a boca se remoendo pelo
fato de ter perdido o controle.
Eis que de repente alguma coisa cai em frente ao buraco
onde estavam, fazendo com que os três se recuassem temerosos.
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Fabiano Freire
Para a surpresa de Sr. Oncoblasto, o que acabara de ir ao chão
era um dos odontoclastos.
– Calma aí! – disse Oncoblasto. – Eu o conheço.
Ao dizer essas palavras, Sr. Oncoblasto se atirou para
fora do buraco e aproximou–se do indivíduo. Percebendo que
o odontoblasto estava correndo perigo do lado de fora, Calcin
também correu ao seu encontro seguido pela secretária.
– Que coisa, Oncoblasto! – resmungou Calcin. – O que acha
que está fazendo?
– Este odontoclasto caído é meu primo – disse ele erguendo o odontoclasto do chão.
– Como assim, seu primo? –foi a vez de Anipatita.
– Este é meu primo Oncoclastos e trabalha em Molares
Direitus no setor inferior. Mas ele está todo machucado, e o que
tenha acontecido a ele, poderá ocorrer conosco também.
– Oncoblasto tem razão – disse o agente olhando os arredores. – Vamos retornar ao buraco trazendo o primo do Sr. Oncoblasto e pensar melhor no que iremos fazer.
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Capítulo 5
– Eu só me lembro de estar caminhando com um colega
pelo beco em Molares Direitus no setor inferior, depois da reunião de odontoclastos há alguns dias, quando fomos atacados e
eu fui golpeado.
Foram as primeiras palavras do odontoclasto após algumas perguntas do agente.
– O que está acontecendo? – perguntou Sr. Oncoblasto. –
Por que vocês pararam o serviço em toda a cidade?
Oncoclastos olhou assustado para o primo como se estivesse surpreso com a pergunta.
– Como assim? – perguntou o odontoclasto. – Você disse
que o serviço dos odontoclastos está parado? Isso não pode estar acontecendo.
Calcin e Anipatita entreolharam–se sem entender o que
dizia o odontoclasto.
– Calma aí! – interrompeu Calcin. – O que você está fazendo aqui no setor superior se foi atacado nos bairros inferiores?
– Eu acordei há alguns dias atrás em um lugar estranho
por aqui perto. Muitas destas criaturas estavam reunidas, mas
o que me chamou atenção foi a chegada de alguém muito alto e
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Fabiano Freire
Incisivocity
forte dando ordens a todos. Percebi que ele comentou algo sobre os odontoclastos e o sistema, mas eu ainda estava atordoado
pela pancada. Tempos depois, ele não estava mais lá e tampouco
as criaturas que nos acertaram, mas sim outros seres bem mais
estranhos.
– Outros seres? – perguntou Calcin. – Não eram os mesmos que te acertaram?
– Não – respondeu. – Aqueles eram fortes e ágeis, estes
eram menores e muito mais feios. O que me lembro, e muito
bem, era do seu cheiro fétido.
Calcin parecia estar ligando as coisas. Estava com um sorriso estranho no rosto como alguém que descobre algo.
– São os streptos – disse atestando sua conclusão. – Aqueles maus caráter fedem à distância.
– O que isso significa? – perguntou Oncoblasto.
– Significa que não vai demorar muito e Molares inteira
virá abaixo – afirmou o agente.
– Mas alguma coisa aconteceu naquele dia – continuou o
odontoclasto voltando aos seus “flashbacks”. – Apareceu uma
turma muito bem armada e acabou com a maioria daqueles bichos. Parecia um grupo de elite muito bem estruturado. Tudo
que posso me lembrar é que, onde eu estava, acabou cedendo e
eu caí. Quando me dei conta, muitos daqueles seres estavam ao
chão e aproveitei para escapar. Andei por muito tempo até vocês
me encontrarem.
Um grupo de elite que dera fim nos streptos? Era muito estranho. Talvez alguma coisa estivesse acontecendo muito
além das fronteiras da cidade, ou então o sistema estava agindo
por conta própria; mas isso seria possível se o sistema não acreditasse que Incisivocity pudesse resolver. De uma coisa o agente
já não tinha mais dúvida, a Cárie havia começado sua onda de
destruição e estava com uma estratégia bem forte.
– Então você também não sabe onde os outros odontoclastos estão? – voltou a perguntar Calcin.
– Eu nem mesmo sei onde estou.
– Mediante isso não temos escolha – disse Calcin voltando–se a Oncoblasto e Anipatita. – Vocês terão de voltar para Incisivus Centrales levando Oncoclastos. Peçam todo o reforço possível antes de retornarem para cá, sugiro até que não retornem.
– Mas e você? – perguntou Oncoblasto.
– Eu tenho de encontrar os outros odontoclastos, agora
mais do que nunca. E não precisa se preocupar, Anipatita. Eu ficarei bem.
Anipatita não sabia o que fazer. Não queria deixá–lo em
hipótese alguma, ainda mais naquelas circunstâncias.
– Por que está pedindo isso? – perguntou ela quase se
derramando em lágrimas. – Venha conosco e poderá voltar com
o reforço.
– Temo que não haja tempo – respondeu olhando novamente para fora do buraco. – Está prestes a ocontecer uma catástrofe se eu não agir logo. Se os odontoclastos estiverem por
aqui, e é o que realmente se procede pelo que parece, tenho que
alertá–los para uma fuga iminente.
– Deixe–me ficar e ir com você então – disse Oncoclastos. – Nestes momentos difíceis, creio que nenhum odontoclasto
acreditaria em você, Calcin.
– Sei que isso é uma verdade – concluiu o agente. – Mas
você está muito debilitado e não posso me arriscar a sermos encontrados pelos actinomyces com você desse jeito. Volte com o
reforço, será mais útil assim.
Foi difícil para todos saber que o agente estava coberto de
razão e não poderiam fazer mais nada ao contrário. Mais difícil
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ainda foi para Anipatita que teve de optar, contra sua vontade, a
deixar Calcin para trás e levar os dois primos por um caminho
seguro até o veículo da prefeitura.
– Não se preocupe Calcin – disse Oncoclastos. – Vamos retornar com o reforço. Mas só por garantia, leve isto.
E o odontoclasto entregou ao agente um brasão com os
dizeres da organização dos odontoclastos, que dizia: “SOMOS A
FORÇA QUE MOVIMENTA A CIDADE”.
– Se estiver com isso, saberão que realmente esteve com
um membro deles. E poderão acreditar em você – continuou o
odontoclasto.
– Talvez, mas o importante é que saibam que Molares está
ruindo e também fiquem cientes da presença dos actinomyces –
respondeu pulando para fora do buraco e sumindo na escuridão
do beco.
Algum tempo se passou desde então e a tarde caía rápida
sobre a cidade. Sr. Esmalte, como já era de costume, punha–se
em pé à janela para observar toda Incisivocity cair ao entardecer. Entretanto, aquela tarde lhe traria algo incomum e parecia
ser previsto pelo prefeito que se punha todo inquieto.
– Assim você vai sofrer um infarto – disse Sra. Dentina entrando na sala. – Há horas está andando de um lado para outro,
sai para o corredor e retorna para a sala sem dizer nada, sem
contar que acabou com a garrafa de fluorita.
– Nenhum deles retornou ainda dos bairros superiores –
disse cruzando para trás os braços. – Estou temendo por alguma
coisa séria.
Sra. Dentina sentou–se por um momento e pôs–se a pen-
sar no que diria ao marido a fim de não fazê–lo se preocupar
ainda mais.
– Que o assunto é sério não é segredo para ninguém –
disse ela também tomando um copo do fluoreto. – Você mesmo
já sabia antes de todos o que poderia acontecer.
Esmalte se sentou à frente da esposa ficando a observá–
la atentamente por alguns instantes, matutando algo. Até que
resolveu dizer completamente o oposto do que realmente pretendia.
– Onde está Amelodentina? – perguntou indiferentemente.
– Está em casa. Já chegou da escola e está em companhia
de Madame Mielina que prontamente está nos ajudando hoje. É
engraçado como uma pessoa que é maravilhada com crianças
ainda não ter nenhuma.
Porém, este último comentário nem sequer foi absorvido
pelo prefeito que ainda continuava sentado a observá–la, pensando nos três encarregados.
Ali ainda ficaram, um sem dizer nada ao outro, até que
se iniciou uma buzinação à frente da prefeitura despertando a
atenção do prefeito e sua esposa que correram até a janela para
ver o que se passava.
Sr. Esmalte parecia gostar do que estava vendo, pois o
barulho era da viatura municipal que vinha ziguezagueando
e buzinando sem parar. Contudo, para a decepção do prefeito,
desembarcaram três passageiros sendo que um deles não era o
agente Calcin.
– Aconteceu alguma coisa a Calcin! – exclamou o prefeito
já correndo em direção à porta rumo à entrada da prefeitura
seguido pela esposa.
Quando lá chegaram, o prefeito se deparou com o Sr. On-
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Incisivocity
coblasto e Anipatita trazendo um odontoclasto ancorado.
– O que houve com ele? E onde está o agente Calcin? – Sr.
Esmalte foi disparando as perguntas.
– Calcin ficou e está seguindo em direção ao centro de
Molares Direitus no bairro superior – disse senhorita Anipatita
atônita. – Temos de fazer algo, senhor prefeito!
– Pelo que parece existem germes por todos os cantos lá,
Sr. Esmalte – foi a vez de Oncoblasto explicar. – Este é meu primo
e foi atacado por alguns deles.
– E por que o agente não voltou com vocês? – começou a
se desesperar o prefeito.
– O agente teme pela vida dos odontoclastos, já que o
bairro está cedendo e, pelo que parece, vai ruir – respondeu o
odontoclasto com certa dificuldade.
Sr. Esmalte voltou–se rapidamente para a esposa que estava à porta da prefeitura e pediu urgentemente que ela ligasse
para o sargento Calcion solicitando uma força de resgate. Prontamente, Sra. Dentina correu para dentro com muita esperteza.
– Vamos atrás de Calcin – disse imponentemente o prefeito. – Temos que tirá–lo de lá.
– Tem que me levar junto, senhor prefeito – clamou o
odontoclasto. – É necessário que eu vá para que meus amigos
não tentem nada contra o agente.
– Está em condições senhor... – Esmalte não sabia seu
nome.
– Oncoclastos – completou o odontoclasto.
– Certo, Sr. Oncoclastos, consegue retornar para o lugar
de onde veio?
– Calcin está se preocupando com meus amigos e sendo
assim também é meu amigo – respondeu Oncoclastos. – Jamais
tenha dúvida da fidelidade de um odontoclasto.
Anipatita se adiantou à frente do prefeito com uma expressão preocupada.
– Eu também vou, Sr. Esmalte.
Sr. Esmalte achou aquilo muito estranho, mas já tinha outros planos para sua secretária.
– Desculpe–me senhorita, mas prefiro que fique e auxilie
minha esposa. Já está nascendo em mim uma ponta de remorso
muito grande em tê–los enviados assim tão despreparados para
lá. Não quero cometer outro erro.
– Não foi um erro, Sr. Esmalte – continuou Anipatita. –
Nem mesmo nós sabíamos o que encontraríamos lá e mesmo
assim aceitamos a tarefa. Não vai ser agora, cientes disso, que
vamos ficar parados sem fazer nada.
Esmalte ficou parado olhando para sua secretária admirado, contudo estava certo de que o primeiro obstáculo contra
seu governo estava levantado e ele não iria diminuir esforços
contra as forças opositoras à Incisivocity. Não poderia envolver
Anipatita nesta situação, por mais que ela estivesse já envolvida.
– Sua bravura honra nossa cidade, senhorita Anipatita –
disse orgulhoso por cada palavra dela. – Mas é extremamente
necessário que fique e proteja com sua bravura minha esposa.
Não sei se isto é mais uma manobra da Cárie para me afastar da
prefeitura, então preciso de alguém de confiança para ficar ao
lado de Sra. Dentina.
Mesmo com o coração apertado, a apatita aceitou ficar,
mas ainda sim não entendeu quem guiaria a nova missão de resgate.
– Não se preocupe senhorita Anipatita – confortou o
prefeito. – Sargento Calcion está preparado para este tipo de
situação.
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Incisivocity
Quando Calcin atingiu o topo da rua que vinha de encontro ao beco por aonde veio, ele pôde ouvir os primeiros sons
de vozes que vinham de algum lugar próximo. O agente sabia,
porém que estava próximo de um lugar onde muita gente se encontrava.
Como veio pelo beco em ruínas, Calcin reduziu as chances de esbarrar com alguém ou alguma coisa, mas teve de seguir
pela rua principal para atingir o centro do bairro.
Continuou seguindo em direção às vozes que aumentavam de intensidade à medida que Calcin seguia em frente.
Molares, na região dos bairros superiores era cheio de
depressões, entradas e saídas por todos os lados o que outrora
davam um contraste maravilhoso aos que os viam de longe. Não
era de se duvidar que agora, em ruínas, alguém se perdesse em
suas ruas. Poucos eram os odontoblastos e apatitas que se arriscavam a morar por aqueles lados e mesmo assim trabalhavam
longe de lá ou então já estariam construindo suas casas em outros bairros. Molares estava se tornando um verdadeiro bairro
fantasma.
Mesmo assim, cheio de labirintos, o agente conseguiu
chegar ao local onde provavelmente estavam reunidos os odontoclastos. Um antigo galpão com um espaço enorme de onde
emanava uma luz intensa.
Ao aproximar–se de uma das janelas, Calcin pôde ver uma
grande quantidade de odontoclastos em uma espécie de reunião. Sabia que seria arriscado entrar sem autorização, mas a
finalidade era maior que o risco.
Quando, por fim, o agente se aproximou de uma das en-
tradas, empunhou o megafone que trazia pendurado na cintura
e disse em alto tom para que todos pudessem ouvi–lo.
– Ouçam todos! Sou o agente Calcin e venho alertá–los
para abandonar Molares urgentemente. Todo o bairro não demorará a ruir. Vocês têm que sair daqui agora.
Naquele instante uma grande parte dos odontoclastos
reunidos, mesmo que tivessem ouvido direito, não entendeu
aquela cena.
– Olhem, os cálcios estão aqui! – dizia um – Eles vieram
atrás de nós e vão nos pegar! – acrescentou outro. Porém, todo
o conjunto estava certo de que estaria cercado e que a força policicálcio já teria chegado.
Não houve quem ficasse parado naquele instante e boa
parte se retirava em fuga, já outros partiram para cima do agente Calcin em retaliação.
Em uma última tentativa, o agente gritou novamente sobre sua intenção em ajuda os odontoclastos e mostrou o emblema de Oncoclastos, porém novamente foi ignorado.
Calcin, quando notou que grande parte dos odontoclastos
partiu em sua direção,pôs–se em retirada voltando para o lugar
de onde viera.
Em fuga, tentou dobrar alguns corredores nas ruelas de
Molares com toda astúcia que lhe era digna. Fora muito rápida
a reação negativa daqueles odontoclastos e por mais preparado
que estava quanto a este possível acontecimento, ele jamais esperava que os odontoclastos partissem para uma revolta assim
tão subitamente, já que uma das qualidades desse grupo era o de
tentar um acordo diante de qualquer problema. Mesmo quando
houve a primeira manifestação contra o prefeito em Caninus, as
partes se dividiram e protestavam inicialmente.
Outra coisa que se sucedeu durante a fuga do agente foi
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o arrombamento de uma das paredes do beco, fazendo–o frear
e ficar parado perplexo. Do buraco que se formou com a queda
da parede, muitos streptos se atiravam ao beco também, ao que
parecia, prontos a atacar Calcin.
O agente se viu numa situação nada agradável naquele
momento, atrás estavam os odontoclastos hostis e à frente aqueles seres asquerosos dos quais Calcin não teria dúvidas sobre
suas intenções. A única alternativa plausível da qual o agente
lançou mão foi a de também arrombar uma das paredes laterais
do beco, já que estavam todas desgastadas e Calcin não encontraria dificuldades para realizar a manobra.
Quando o agente caiu do outro lado do muro, se deparou
com uma enorme porta semi–serrada e imediatamente partiu
para adentrá–la.
Era outro galpão repleto de escadarias, porém menor que
aquele onde se encontravam reunidos os odontoclastos. Calcin
observou que uma das escadarias levava a um andar superior e
resolveu seguir por lá antes que o exército de streptos entrasse
pela mesma porta que ele entrou.
A escadaria pela qual o agente seguiu levava diretamente
ao terceiro andar e Calcin pôde notar que a vista era privilegiada
de lá o que poderia beneficiá–lo em vantagem aos seus perseguidores. Contudo, ninguém entrou pela grande porta do galpão
e Calcin colocou–se em alerta total, somente olhando agachado
para fora em direção aos sinistros becos de Molares.
Calcin, então, notou que uma pequena tropa se movimentava a leste dali e nitidamente o agente conseguiu identificar
uma personalidade bem conhecida da força policicálcio liderando a manobra. Era o tão conhecido Ácido Açucarado.
– O que este sujeito está fazendo aqui? – pensou Calcin
em observação.
Não houve muito tempo para que o agente averiguasse,
pois as estruturas de todo o prédio em que estava começou a
tremer fortemente. Calcin era jogado de um lado a outro sem
conseguir se segurar direito, até que uma parte do solo cedeu
fazendo com que ele ficasse pendurado. A queda seria inevitável
e Calcin nada poderia fazer do contrário já que o piso por onde
ele se apoiava também estava ruindo. Seria o fim de Calcin. Porém, naquele momento o teto também se abriu e alguém se pôs
a descer em um fio branco lustroso.
– Segure em minha mão com toda força! – ordenou o sujeito. – Vou retirá–lo daqui.
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Incisivocity
malte.
Capítulo 6
A viatura da prefeitura parou derrapando próximo
ao veículo dirigido por Calcion.Sr. Esmalte desceu rapidamente
com outros dois cálcios trazendo Oncoclastos. O sargento desceu da outra viatura com mais três cálcios consigo.
– Daqui em diante, seguiremos a pé – disse o sargento empunhando sua pistola calcítica.
– Então é melhor começarmos já! – respondeu o prefeito.
Porém, quando se direcionou para o beco de onde partiriam, foi interrompido pelo sargento.
– É melhor aguardar o reforço, senhor prefeito. Pelo que
parece, alguma coisa muito séria está prestes a ocorrer aqui.
O sargento baseou–se pelos buracos feitos ao redor de
todo o bairro para fazer o alerta. Não eram sinais das ruínas feitas pelo desgaste mineral do bairro, mas sim por algo provocado
com muita fúria.
A cada segundo o prefeito ficava mais preocupado com a
situação do agente. Era de se concordar com o sargento de que
coisas muito estranhas e sérias estavam acontecendo pela redondeza.
– Nós vamos ficar aqui esperando? – questionou Sr. Es-
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– Eu conheço um caminho rápido até o centro do bairro.
Poderíamos tentar alcançar o local onde Calcin deve estar sem
alarmar os inimigos – arriscou Oncoclastos.
– Ótimo, só me faltava essa! – retrucou o sargento impaciente. – Já não basta trazer de volta um odontoclasto rebelde
e ainda vamos segui–lo em uma provável armadilha até o seu
covil?
– Sua arrogância é conhecida pelos quatro hemiarcos da
cidade, seu sargento de titica! – revidou o odontoclasto. – A minha sorte é que conheci o agente Calcin e isso bastou para saber
que nem todos são como você. Se bem que levá–lo para uma tocaia não seria má ideia, porém, mesmo que quisesse, respeitaria
a honra do prefeito que também me parece uma pessoa muito
boa.
– Por falar em ideias, a minha seria de prendê–lo assim
que o encontrasse, seu odontoclasto ridículo!
– Basta! – gritou o prefeito já sem muita paciência. – Não
estamos aqui para trocar ofensas e sim para resgatar o agente
Calcin e os demais odontoclastos. Pelo que me parece, Molares
Superiores já não têm muitos recursos. Temos de encontrar o
agente o mais rápido possível e salvarmos quantos odontoclastos pudermos.
Calcion não teve ousadia de pronunciar mais nada contra
as palavras do prefeito, mas ainda não admitia que aquele rebelde, como pensava a respeito de Oncoclastos, pudesse estar ali,
livre, tomando as rédeas da situação.
– Sinto muito, sargento – disse o prefeito para Calcion. –
Mas tenho de ir mediatamente em busca de Calcin. Sinto–me
responsável por tudo que lhe venha acontecer por aqui. Vou à
frente com Oncoclastos e o senhor espere o reforço chegar para
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ir ao nosso encontro no centro de Molares.
– Tenho de informar–lhe que não temos tropas o suficiente para cercar Molares, Sr. Esmalte. Não poderemos entrar em
contato direto com um exército de streptos que provavelmente
está instalado por todo o bairro o que nos dá uma imensa desvantagem sobre eles.
– E que estratégia o senhor pretende tomar? – argumentou Sr. Esmalte.
– O reforço que está chegando montará um ponto de apoio
nesta entrada. Teremos um curto prazo para localizar Calcin, eliminar alguns destes germes e bater em retirada, chegando até
este ponto novamente.
O prefeito olhou ao redor um pouco indignado por não
ter muitas opções e retornou um breve olhar sobre Oncoclastos.
– Infelizmente tenho de admitir que seja um bom plano,
Sr. Esmalte – concordou o odontoclasto – se levarmos em conta
que estamos aqui por Calcin, mas em contrapartida, meus companheiros ficarão para trás ruindo junto com todo o bairro.
– Está disposto a se arriscar um pouco mais, senhor Oncoclastos? – perguntou o prefeito.
– Se for para ajudar os meus companheiros...
E se voltando para o sargento o prefeito deu uma última
ordem.
– Será feito tudo de acordo com o seu plano sargento,
porém peço que o senhor recue sua tropa até Caninus Superiores e aguarde o meu retorno até esta viatura para que comece a
disparar com os canhões de calcitina sobre Molares. Se eu não
retornar, comece a disparar assim mesmo ao avistar o primeiro
germe que sair do bairro.
•••
Eles estavam em quatro, todos bem uniformizados e portando capacetes prateados. Alguns detalhes nos uniformes eram
marcantes e podia–se nitidamente ver em alto relevo as siglas L
e A no braço.
Calcin também notou que alguma preocupação rondava
em torno de seus salva–vidas.
Quando o galpão de onde estavam começou a ruir, momentos depois de retirarem o agente lá de dentro, todos em conjunto usaram uma espécie de cinturão, também prateado, que
se desdobrou em uma extensa tira de matriz metálica e assim
conseguiram usá–la como passagem para um terraço no prédio
ao lado. Calcin se lembrava somente daquele detalhe, pois em
seguida teve alguns segundos de amnésia provocada talvez pelo
choque emocional de quase ter caído junto com o andar.
– Quem são vocês? – perguntou o agente ainda atordoado.
– Meu nome é Mercúrio – respondeu o sujeito que o retirou do galpão usando uniforme prateado com um enorme M
brilhante no peito – Meus companheiros e eu estamos aqui para
tentar impedir a demolição de Molares Decíduos Superiores.
Por mais incrível que parecesse, aquele que se intitulava
Mercúrio pronunciou o verdadeiro nome daquele bairro e Calcin se mostrou ainda mais confuso.
– Sei que está fora de seu entendimento, então vou começar pelas apresentações – continuou Mercúrio. – Aqui está o
Estanho, aquele cara esguio com o E no peito; Cobre, o de cara
amarrada, porém boa pessoa e com um C de todo o tamanho; e
nossa bela líder a Prata, com aquele lindo P no meio de seus...
– Por favor, não vamos acrescentar detalhes, Mercúrio! –
interrompeu a Prata com toda a segurança. – Nosso tempo é curto e ainda não conseguimos identificar a rota dos streptos.
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Mesmo em sua confusão, Calcin não iria deixar passar batidas aquelas palavras.
– O que isso tem a haver com vocês e como sabem da existência desses seres?
– Há tempos estamos esperando um chamado do Sistema
Nervoso Central para que pudéssemos agir por aqui. Contudo,
não contávamos que seria tão tarde assim – disse a Prata procurando alguma coisa ao longe. – Já deveríamos estar aqui há bastante tempo, creio que a força policicálcio de Incisivocity ainda
não está preparada para uma situação desta gravidade.
– É bom você não levar a sério este pensamento a nosso
respeito, está bem dona Prata – ofendeu–se o agente. – Nunca
nos subestime.
– Ah, é mesmo! – exclamou o Cobre. – E o que vocês fizeram até agora para evitar que uma coisa dessas acontecesse a
Molares?
– Acalme–se, Cobre – interveio o Estanho. – Não vamos
e nem estamos aqui para encontrar culpados e sim resolver o
problema.
Mesmo com uma cara não muito agradável, o Cobre voltou a sua posição com um binóculo procurando enxergar algo. O
agente ainda confuso não encontrava palavras para tentar continuar a defender sua guarnição e permaneceu calado tentando
entender o que se passava.
– Então foi o Sistema Nervoso Central que enviou vocês?
– perguntou o agente mais calmo.
– Na verdade não – respondeu a Prata. – Fomos alertados
de que alguma coisa estava errada justamente pelo Sistema Nervoso Periférico.
Calcin sabia que tanto o Sistema Nervoso Central como o
Sistema Nervoso Periférico trabalhavam para os mesmos fins,
contudo tomavam decisões completamente diferentes. Um nunca via o outro e boatos por todo o sistema diziam que se por
algum acaso tal fato viesse ocorrer, uma enorme disfunção se
espalharia por todos os complexos. Mas uma coisa era certa, se
o Sistema Nervoso Central ainda não tinha se manifestado em
relação à Incisivocity no que se referia aos conflitos internos, era
porque, de fato, ele confiava na nova administração que surgia,
coisa que não era de se esperar do Sistema Nervoso Periférico já
que este reagiu completamente ao contrário.
Mas quando foi tentar questionar sobre sua nova suspeita, foi instantaneamente interrompido por Cobre.
– É melhor dar uma boa olhada nisso, Prata – disse afastando o binóculo dos olhos.
A Prata rapidamente se aproximou do companheiro apanhando seu binóculo e pondo–se a observar na direção apontada por Cobre.
– Eles estavam vindo para cá, mas alguma coisa aconteceu para fazer os streptos mudarem de direção – continuou o
Cobre.
– O que eles perceberam, caro Cobre, é que pelo beco de
entrada vem mais alguém e não são streptos – disse ela sem
afastar os olhos do aparelho. – O mais interessante é que quem
quer que esteja vindo, sem perceber, encontrará pela frente um
batalhão muito grande desses germes. Não terá a mínima chance.
– Dá para identificar quem está vindo? – foi a vez de Mercúrio.
– São quatro – disse ela. – Mas somente dois deles são da
força policicálcio.
Calcin gelou dos pés à cabeça quando ouviu aquele comentário. Poderia ser Anipatita e Oncoblasto com um reforço
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miserável, o que seria uma tremenda falta de senso.
– Por favor, me dê este negócio aqui! – disse Calcin arrancando o binóculo das mãos da Prata após dar um salto do lugar
onde estava.
– Tenha pelo menos modos, seu mal educado! – retrucou
o Cobre, sendo completamente ignorado pelo cálcio.
– Que desastre! – exclamou Calcin. – Pessoal, se tivermos
de fazer alguma coisa então que seja agora mesmo!
A Prata aproximou–se assustada com o agente, pois ele
parecia estar realmente aflito pelo que havia visto.
– O que é senhor... ah...
– Calcin é o nome que ele disse Prata – interveio o Mercúrio.
– Por que a aflição oficial Calcin? – perguntou ela corrigindo–se.
– Quem está vindo lá, com dois policicálcios e um odontoclasto é o senhor prefeito Esmalte Esmaltus.
Oncoclastos vinha amparado pelos oficiais enquanto Sr.
Esmalte caminhava mais à frente sendo orientado pela voz do
odontoclasto. Deveriam ter dobrado umas duas vielas antes de
alguma coisa muito estranha começar a acontecer.
– As paredes aqui estão completamente podres! – exclamou o prefeito. – Não me parece ser obra de odontoclastos.
– E não são – completou Oncoclastos. – Estes vermes, pelo
que parece, há muito vêm agindo por estas bandas.
Sr. Esmalte continuava caminhando e observando o estado degradante no qual o bairro se encontrava, mas já estava
aflito em relação a sua segurançanaquele lugar. Se não fosse pelo
agente, que também estava lá cumprindo sua ordem, ele esperaria todo o reforço chegar para uma operação tão arriscada.
– Está sendo muito corajoso, como personalidade pública,
em se arriscar tanto Sr. Prefeito.
– Ora, Oncoclastos – respondeu. – Se formos medir nossas
coragens, lembre–se de que você é quem está machucado, além
de estar aqui comigo.
Porém Oncoclastos sabia que em outras circunstâncias,
se estivesse nas mesmas condições do prefeito, ele não teria a
mesma disponibilidade.
– Parem todos! – gritou um dos oficiais. – Tem algo acontecendo ao nosso redor.
A tensão começou a piorar quando o prefeito percebeu
que as compridas paredes que os cercavam realmente deveriam
os separar de outros corredores e que um barulho de coisas rastejantes vinha dos arredores.
Todos se entreolharam sem dizer uma única palavra, ainda que o medo começasse a alfinetar seus sentimentos e a real
vontade fosse a de gritar.
– Sintam este cheiro terrível! – sussurrou Oncoclastos. –
São eles, e devem estar por toda a parte.
– Veja só, senhor prefeito! – foi a vez do outro oficial. – As
paredes estão começando a trincar e ruir.
– O pior é que a situação se agrava pelo caminho do qual
viemos – disse o outro.
E era realmente o que estava acontecendo, por mais inacreditável que fosse, pois as paredes começavam a ceder, logo
atrás deles, lentamente.
Não demorou muito e um imenso bloco de viga e concreto
calcítico desmoronou em cima de um dos oficiais, por onde começaram a saltar vários streptos sedentos por destruição.
– Corram! – gritou o outro oficial antes de ser atacado
pelas criaturas impiedosamente.
Ao ver que o odontoclasto não iria conseguir se locomover
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Fabiano Freire
Incisivocity
com velocidade, o prefeito arrancou–lhe do chão, encaixando–o
em suas costas e pondo–se a correr em uma de suas maiores
impulsões.
O caminho era estreito, porém longo e Sr. Esmalte se movia atento a qualquer porta aberta que pudesse aparecer. Contudo, sua busca por uma entrada estava sendo em vão e suas
costas começavam a pesar pela carga que vinha trazendo.
– Deixe–me, senhor prefeito! – disse Oncoclastos engasgando–se com o cavalgar de Esmalte. – Eu já estou acabado
mesmo. Só quero que Calcin saiba que estive aqui também para
ajudá–lo.
– Ora, veja se consegue calar a boca! – irritou–se pela primeira vez o prefeito ao ouvir o que dizia o odontoclasto. – Eu
jamais ouvi tanto absurdo em tão curto espaço de tempo. Se quiser dizer algo, que seja para ajudar em nossa fuga.
Oncoclastos não poderia dizer mais nada após o sermão
do prefeito e assim sendo também começou a ficar atento ao caminho que faziam. Entretanto, olhar para trás era uma atitude
completamente impossível de se controlar.
Pareciam vir centenas daquelas criaturas esquisitas atrás
deles e se multiplicavam à medida que avançavam pelos corredores.
– E os policicálcios que ficaram para trás? São apenas dois
contra milhares destes bichos! – lembrou o odontoclasto.
– Se ainda temos alguma chance de encontrar Calcin e tentar sair daqui, esse é o único meio – respondeu o prefeito amargurado. – Os dois oficiais fizeram muito bem a parte deles, está
na hora de fazermos a nossa e honrar esta lastimável perda.
Mesmo que continuassem a correr, tudo parecia estar
sendo em vão, ou seja, uma maneira mais longa até que fossem
encurralados pelos streptos em algum canto. A aflição daquele
instante se misturava com os conhecimentos e lembranças de
Oncoclastos e assim ele mal sabia para onde estavam seguindo
naquele momento. O que ambos não contavam era que o chão
também não se mantinha firme e acabaram seguindo para um
lugar completamente inseguro.
Não demorou muito e o chão se abriu em uma enorme
fenda fazendo com que Sr. Esmalte e Oncoclastos caíssem em
uma escuridão sem tamanho, que era o subterrâneo do bairro.
– Que queda horrorosa! Tudo bem com você Oncoclastos?
– Eu não sei onde dói mais – respondeu o odontoclasto
tentando se levantar no escuro. – Até o meu cabelo está latejando!
– Onde estamos? – perguntou Sr. Esmalte procurando por
Oncoclastos naquele ambiente escuro onde a única luz que clareava vinha do buraco por onde caíram.
– Embaixo da cidade pelo que me parece, senhor prefeito – respondeu novamente e vagarosamente, enquanto tentava
identificar qual a parte de seu corpo que lhe doía menos.
Mas naquele instante, até mesmo o feixe de luz que adentrava no ambiente se tornou opaco devido ao incontável número
de streptos que começou a passar por cima deles sem ter notado
a queda de ambos pelo buraco.
– É senhor prefeito! – sussurrou. – Algo me diz que estamos aqui para ajudar mesmo. Ou estes streptos são muito idiotas e mesmo nos perseguindo não notaram nossa espetacular
queda, ou uma força muito maior ainda flui a nosso favor.
– Porém, isso não nos deixa em vantagem de nada – retrucou o prefeito. – Você tem alguma ideia do que vamos fazer
agora? Eu mesmo não sei nem como sair desse buraco.
Ficaram ali parados por um bom tempo até que o último
dos streptos passasse e então puderam ver novamente o feixe
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Fabiano Freire
de luz cortar a escuridão. Ainda assim permaneceram imóveis,
tentando reconhecer o rosto um do outro vagando no nada.
– Tanta gente envolvida nesta confusão toda, tudo por
causa dos caprichos da Cárie – disse Esmalte pouco confiante
sobre o futuro da missão com os dois naquele estado.
– Então, é realmente a Cárie que está por trás dessa confusão toda? – perguntou Oncoclastos desconfiado.
– Não tenha dúvida nenhuma disso, meu amigo Oncoclastos. Ela é capaz das atrocidades mais sinistras que possam
existir para alcançar o que quer. Inclusive colocar cidadãos uns
contra os outros – explicou o prefeito.
– E agora, muitos dos odontoclastos poderão sucumbir a
essa balburdia – respondeu indignado Oncoclastos. – Talvez, se
todos nós soubéssemos da sua dignidade para o cargo de prefeito, não estaríamos em uma situação tão inglória.
– Chorar o leite derramado nunca ajudou nada a ninguém
– completou o prefeito. – O melhor agora é continuarmos a seguir, mesmo que seja no escuro. Enquanto ainda estamos vivos,
ainda nos resta atitude. Está pronto para continuar, Oncoclastos?
– Ora, senhor prefeito. Agora mais do que nunca.
Mas quando tentavam caminhar novamente, Sr. Esmalte e
Oncoclastos foram subitamente agarrados por alguma coisa que
parecia estar ali por muito tempo.
– Pois vocês não vão a lugar algum até que nos esclareçam direito o que se passa realmente lá em cima – disse, imponente, uma voz na escuridão.
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Capítulo 7
Uma pequena luz em um capacete se acendeu e Sr. Esmalte pôde ver uma figura pequena com pernas muito curtas, mas
com braços que dariam inveja a um fisiculturista. Logo após essa
primeira luz se acender, outras foram também se acendendo trazendo à tona um número generoso de anões fortes e barbudos
que tinham olhares firmes e penetrantes. E que olhares! Sr. Esmalte se assustou ao perceber o tamanho exagerado daqueles
olhos.
– Meu nome é Cementon e sou líder desta comunidade de
cementócitos que vivem abaixo de sua cidade.
Oncoclastos olhou para Sr. Esmalte como se quisesse alguma resposta sobre o que teria acabado de dizer aquele sujeito,
mas o prefeito parecia estar tão pasmo quanto ele mesmo. Era
uma situação difícil de acreditar, pois nunca Sr. Esmalte havia
sido informado sobre nada que se assemelhasse àquilo.
– Deixe–me começar aos poucos, antes que eu me enlouqueça – iniciou o prefeito. – Vocês são seres subterrâneos?
– Nós, cementócitos, cuidamos da formação básica e estrutural da cidade onde moram. Tudo que existe lá foi iniciado e
se mantêm de pé devido aos nossos esforços.
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Fabiano Freire
Incisivocity
– Essa é boa! – resmungou Oncoclastos. – O que mais falta
acontecer à Incisivocity? Nem mesmo a cidade se conhece.
– E por que nós não sabemos nada sobre vocês? – continuou o prefeito a perguntar.
– Nós não fazemos parte e jamais vamos fazer da porção exposta da cidade. Não sobreviveríamos muito tempo lá
em cima. Por essa e outras razões temos a nossa organização
bem montada aqui embaixo. Nós vivemos do que acontece lá em
cima, mas não podemos viver lá.
– E eu que achava que os odontoclastos eram um povo
isolado! – continuou a dar seus comentários Oncoclastos.
– Como pode haver uma coisa dessas? – continuou perplexo o prefeito. – Madame Mielina nunca me falou nada a respeito
e...
– E é melhor então vocês dizerem logo o que se passa lá
em cima – interrompeu o cementócito impaciente. – Por mais
que estamos trabalhando aqui embaixo, este setor está impossível. Tudo está desabando por aqui.
Sr. Esmalte ainda não se sentia satisfeito. Para ele, as situações sobre Incisivocity eram de sua plena sabedoria e conhecimento, mas agora se deparava com problemas completamente sem controle e inusitados. Mesmo que ainda quisesse saber
mais sobre a nova comunidade, ele sabia que naquele momento
os donos da razão eram os cementócitos e assim pôs–se a colaborar.
– Realmente este bairro está condenado. Estamos sofrendo uma intensa invasão de streptos e eu tenho a mais absoluta
certeza de que eles só ver–se–ão satisfeitos quando Molares
Decíduos estiver totalmente destruída.
Os cementócitos entreolharam–se assustados com a informação, tudo indicava que aquela notícia não era esperada
por eles e assim o prefeito continuou.
– Nós temos um sério problema. Este bairro não tem mais
solução e nele encontram–se reunidos uma grande parte de
odontoclastos, se não todos eles. Se não conseguirmos retirá–
lostempo daqui, o nosso complexo ficará completamente desfalcado.
– E vocês sabem em qual setor deste bairro estes odontoclastos se encontram? –perguntou Cementon.
– Eu sei – respondeu o odontoclasto. – Mas em que isso
poderia ajudar agora que estamos presos aqui embaixo?
– Este local é conhecido como Estrutura Periodontal da
cidade – completou Cementon. – E por aqui se tem acesso a qualquer lugar da cidade com muita facilidade e rapidez.
– Isso é uma ótima notícia! – exclamou Sr. Esmalte.
– Porém há algo que precisam saber também – continuou.
– Assim como nós não sobreviveríamos muito tempo lá em cima,
vocês não aguentariam muito tempo aqui embaixo.
– E o que faremos então? – perguntou Oncoclastos.
– Se existe algum meio de escapar de Molares é pelo subterrâneo, ou seja, periodontalmente. Vamos localizar os odontoclastos, abrir caminho para que eles venham por baixo e novamente selamos nosso contato com a superfície.
Por algum motivo aquela ideia acendeu algo nos planos
do prefeito e isso poderia vir a dar resultado em tempos mais
sossegados, mas não era hora de pensar em projetos futuros e
sim de executar o novo plano o mais breve possível.
Oncoclastos se orientou por uma das luzes que vinha do
capacete de Cementon eaproximou–se dele.
O cementócito portava um cinto repleto de parafernálias
que Oncoclastos supôs ser para fins de escavações, porém não
se arriscou a fazer perguntas e simplesmente foi dizendo sem
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Fabiano Freire
retirar seus olhos dos objetos portados em sua cintura.
– Existe mais um problema do qual afirmo ser de suma
importância.
Cementon nada perguntou, somente ficou parado esperando pela conclusão do comentário feito pelo odontoclasto.
– Nós temos um agente muito prestativo perdido pelas
vielas desse bairro – foi a vez de Sr. Esmalte raciocinando junto
com Oncoclastos.
– Não podemos sair daqui sem ele. Sinto–me responsável por esse policicálcio. Não quero me sentir pior do que já me
sinto com a perda dos dois oficiais, momentos antes de cairmos
aqui.
– E eu tenho uma dívida pessoal com ele – completou Oncoclastos.
Novamente, os cementócitos se entreolharam e Cementon colocou–se a observar ao redor como se quisesse enxergar
naturalmente naquela escuridão.
– Teremos de contar com a sorte desta vez, e que este
agente esteja no mesmo local em que se encontram esses odontoclastos, caso contrário, não poderei prometer nada – e continuou. – Para começar, onde estariam esses tais odontoclastos?
– Estão reunidos mais ao centro – respondeu Oncoclastos.
– Então, é para lá que vamos!
E ao terminar sua exclamação, o cementócito lançou um
sinal com os dedos interpretado somente pelos outros cementócitos que instantaneamente subiram pelas paredes numa agilidade de dar inveja e, rapidamente, selaram o buraco por onde
Sr. Esmalte e Oncoclastos caíram. Logo em seguida todos saíram
em direção a um conduto pouco clareado, usando somente as
luzes dos capacetes dos cementócitos e assim seguiram por um
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Incisivocity
bom tempo.
•••
Quando Calcin e a Liga de Amálgama chegaram ao corredor de onde avistaram o prefeito, ainda encontraram um dos
policicálcios acordado enquanto o outro estava soterrado sobre
os escombros da parede, ambos muito feridos.
– Foi muito rápido, não deu tempo de reagir – disse o oficial gravemente ferido.
– Tente não fazer esforços, oficial – disse o agente levantando lentamente a cabeça do oficial. – Eles sentiram a presença
de vocês e formaram uma emboscada, mas onde está o prefeito?
– Eles seguiram em frente pelo corredor em direção ao
centro do bairro – continuou o oficial. – O prefeito saiu correndo
com o odontoclasto nas costas.
– Olha, eu já ouvi de tudo nesta vida, mas um prefeito carregar um funcionário nas costas... – indagou o Cobre. – Este seu
prefeito, meu amigo, está exagerando.
E Calcin se levantou completamente descontrolado partindo para cima do Cobre com, talvez, o que fosse a maior demonstração de fúria em sua vida.
– Escute aqui! – gritou o agente sendo segurado pelo Estanho e o Mercúrio. – Quem não quer ajudar, também não atrapalha.
– Por favor, Calcin. Não leve a sério o Cobre – tentou apaziguar o Estanho. – Nosso companheiro raciocina junto com a
língua, mas com o tempo você verá que é uma boa pessoa.
– Desculpe–me Estanho, mas esse aí está falando do Sr.
Esmalte que a estas horas pode estar nas mesmas condições
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Fabiano Freire
Incisivocity
destes oficiais, que também se arriscaram para nos tirar deste
lugar e veja o que aconteceu.
Foi então que a Prata desligando um aparelho parecido
com um telefone voltou–se para o agente colocando a mão sobre
seu ombro direito, fazendo–lhe lembrar novamente do prefeito.
– Esses oficiais ficarão bem, Calcin – disse a Prata. – Está
dirigindo–se para cá um grupo especializado de fibroblastos
para resgatar e cuidar desses oficiais enquanto vamos em busca de seu prefeito.
Calcin não entendeu direito o que tinha dito a Prata e nem
quem eram estes tais fibroblastos, mas havia sentido firmeza e
segurança nas palavras dela e isso bastou para que seu coração
acalmasse–se um pouco.
Contudo, naquele momento, o agente empunhou sua pistola calcítica e se voltou para o corredor na direção em que deveriam ter seguido o prefeito e o odontoclasto. Ao ver a reação
de Calcin, novamente a Prata se adiantou barrando o seu caminho impedindo o agente de continuar.
– O que pretende fazer? – perguntou ela.
– Não importa se eu vou voltar ou não, mas alguns destes
vermes vão se ver comigo – retrucou o agente mostrando sua
arma.
– E pretende fazer cócegas nestes germes? – disse ela
apontando para a pistola calcítica. – Não sei se você já combateu
algum strepto na sua vida, mas deveria saber que sua pistola
calcítica é inofensiva a este tipo de criatura.
Calcin mostrou–se em dúvida e, por alguns instantes, ficou imóvel sem saber qual decisão iria tomar, porém estava certo de que, de uma forma ou de outra, seguiria atrás do prefeito,
mesmo em vão.
– Não temos germicida suficiente para combatê–los ago-
ra, Calcin – adiantou–se Estanho. – apenas o suficiente para nos
defender de alguns. Não sei se pensam como eu, mas poderíamos atrair boa parte destes streptos para uma armadilha.
– O que você quer dizer com armadilha? – perguntou o
agente.
– Se soubermos onde estão os odontoclastos, encontraremos o prefeito, já que está em companhia de um deles – continuou Estanho. – Sendo assim, é para lá que temos de seguir.
– Sim, mas o problema é que também devem estar indo
para lá todos estes seres – interferiu Calcin.
– Mas se chegarmos lá primeiro, poderíamos construir
uma barreira de amálgama cercando todo o galpão – foi a vez de
Mercúrio, já entendendo os planos do companheiro.
– Poderíamos fazer mais – disse a Prata. – Não só os cercaríamos como também poderíamos desviar sua rota até algum
ponto onde colocaríamos vários degermantes, talvez todos os
que temos. Não acabaríamos com todos, somente com alguns
deles, mas o suficiente para esboçar uma reação do nosso lado e
mostrar que estamos de pé.
– Então, se temos de chegar rápido, o que estamos esperando? – foi a vez do Cobre demonstrar apoio à situação.
O agente Calcin ainda remoia as palavras iniciais do Cobre, mas concordou que realmente estavam perdendo tempo
para reagir em relação aos streptos.
– Teremos de alcançar algum ponto alto para termos
uma ampla visão e conseguirmos cortar caminho – opinou o
Mercúrio já empunhando uma tira de matriz.
Com alguma facilidade e com ajuda mútua eles conseguiram chegar a um ponto não muito alto em uma porção mais resistente do muro. De lá, novamente, eles usaram em união suas
tiras matrizes e construíram uma estreita ponte em amálgama
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para chegar ao topo de um sobrado próximo para, de lá, conseguir ter uma visão de onde estariam os streptos naquele momento.
– Vamos conseguir ultrapassá–los se formos pela via
principal – argumentou Mercúrio. – Não estão seguindo pela
via rápida. Parece que estes vermes já sacaram o plano inicial
de vocês.
Novamente a Liga desceu juntamente com Calcin e correram na direção proposta pelo Mercúrio.
Depois de um longo período andando por lugares completamente estranhos ao prefeito e ao odontoclasto, os cementócitos chegaram a um lugar cheio de entraves por dentro das
câmaras periodontais. Oncoclastos ainda se contorcia pelos machucados, porém, desde que assumiu a vontade de resgatar seus
colegas e o agente, suas dores se tornavam mais fracas, mesmo
que incômodas. Sr. Esmalte observava atentamente os cementócitos percorrerem sem dificuldades trechos que, nem mesmo
ele sabia como, também atravessava.
– É aqui – concluiu Cementon. – Estamos no meio de Molares Direitus, e pelos pequenos tremores, deve haver uma grande movimentação aqui em cima.
– Tomara que sejam os odontoclastos – disse o prefeito
observando também as estruturas bem fixadas das raízes daquele bairro.
– Não se preocupe – disse Cementon. – Nós passamos pelos streptos há alguns minutos atrás. Digo isso porque percebi a
vibração deles quando vocês caíram e tenho certeza que eram
eles.
– Como vamos fazer então? – perguntou Oncoclastos. – Se
isso é verdade, temos pouco tempo de vantagem.
– Tenho uma ideia – respondeu o prefeito. – Cementon,
você consegue abrir uma fenda e averiguar quem está lá em
cima?
– Obviamente – respondeu certo de si.
– Se forem os odontoclastos, você subirá primeiro – disse
o prefeito apontando para Oncoclastos. – Daí terá pouco tempo
para chamar a atenção dos odontoclastos e dizer o que realmente se passa.
– De acordo – respondeu o odontoclasto.
Em poucos segundos, Cementon com a ajuda de mais dois
cementócitos escalaram rapidamente as raízes centrais alcançando a porção superior periodontal. Cementon ainda instalou
dois ganchos com uma espécie de andaime móvel do qual desceram os outros dois cementócitos rapidamente.
– Preparem o odontoclasto para subir! – gritou lá de cima
Cementon fazendo com que os outros cementócitos guiassem
Oncoclastos até o andaime.
– Podem subi–lo! – ordenou novamente.
Oncoclastos subiu guiado pelos dois cementócitos que
haviam descido agradecendo por não poder enxergar com exatidão naquele escuro, pois sabia que a cada instante que balançava a corda, mais longe ficava do chão.
Quando chegaram, Cementon amarrou outro tipo de corda no odontoclasto e com um único solavanco empurrou–o fazendo com que balançasse de um lado a outro.
– Agora tragam o prefeito! – ordenou novamente.
Enquanto Oncoclastos estava pendurado, Cementon abriu
uma pequena fenda quase que imperceptível para o odontoclasto, porém suficiente para que o cementócito tivesse a certeza de
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que os odontoclastos estavam realmente lá.
– Vou abrir uma fenda maior e você sai – disse Cementon
já abrindo o buraco sem perder tempo.
Não era uma cavidade muito grande, mas ideal para o tamanho do odontoclasto que recebeu ajuda do cementócito para
escalar.
Pondo–se de pé com toda a dificuldade, Oncoclastos se
deparou com centenas de odontoclastos, muito mais do que na
primeira reunião da qual havia participado. Na verdade, desde
a fuga de Calcin, quando eles se revoltaram contra o agente, crédulos de que o fizera escapar com toda a tropa de policicálcios,
os odontoclastos retornaram para continuar a assembléia sigilosa.
Quando, por fim, notaram a presença de Oncoclastos,
muitos deles correram ao seu encontro.
– O que houve com você e por que está todo ferido? – perguntou o primeiro odontoclasto ao lhe encontrar.
Logo atrás chegou o odontoclasto que havia sido atacado
juntamente com Oncoclastos.
– Você está vivo? – perguntou ele. – Como conseguiu se
livrar daqueles seres?
– Meu amigo, é melhor prestar bastante atenção no que
vou dizer – disse Oncoclastos, e se voltando para os outros. – Estou aqui para convencer todos vocês de que temos de abandonar Molares imediatamente.
– Você está dizendo isso por causa destes monstrengos
que estão por toda parte? – gritou um deles. – Saiba que se as
defesas de Incisivocity fossem realmente eficazes, eles não estariam aqui.
– Meu amigo – voltou a dizer o odontoclasto que fora atacado junto com Oncoclastos. – Nós vimos um cálcio entrar aqui,
ameaçar a todos e correr em disparada fugindo de nós e depois
destas criaturas.
– Ostoclastos, eu estava com você quando fomos atacados
– disse Oncoclastos ao amigo. – Você viu como agem estas criaturas. Se você sabe da presença deles, então por que continua
aqui?
– Eles não nos atacaram quando corremos atrás daquele
cálcio – disse Ostoclastos. – Por que nos atacarão agora? O problema é com a administração.
– Não – gritou Oncoclastos. – Aquele agente que saiu daqui me ajudou a escapar destes seres. Estaria eu morto se não
fosse por ele. O nome dele é Calcin e veio aqui com a mesma
intenção que a minha.
De repente, aproximou–se um odontoclasto franzino trazendo algo nas mãos.
– Este odontoclasto deve estar falando a verdade.
Oncoclastos assustou–se com o ocorrido sem entender o
que se passava.
– Onde está o seu emblema do conselho de odontoclastos? – perguntou o mesmo.
– Entreguei ao agente para que vocês lhe dessem crédito
– respondeu Oncoclastos.
E estendendo uma das mãos em direção à Oncoclastos, o
odontoclasto entregou–lhe o mesmo emblema que havia dado
à Calcin.
– Onde ele está? – perguntou Oncoclastos.
– Eu o vi arrombar uma parede e deixar cair este emblema – respondeu. – Achávamos que teria feito alguma coisa com
um dos nossos.
– E por onde ele foi?– foi a vez de Sr. Esmalte perguntar se
erguendo do buraco.
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Todos os odontoclastos se tornaram incrédulos diante da
situação. Na realidade, nada estavam entendendo.
– Vocês já me conhecem bem. Para quem ainda não me
conhece, sou o novo prefeito – disse encarando–os. – Não estou
aqui para punir ninguém e muito menos para confrontá–los.
Estou aqui para ajudá–los a escapar de um ataque impiedoso
de uma legião de bactérias. Molares está realmente condenada
e não podemos fazer mais nada a não ser fugir daqui.
Naquele mesmo instante um grande estrondo interrompe
o diálogo do prefeito, dando cena a uma das criaturas que caiu
do teto e se contorcia toda aos gritos.
– O que é isso? – disse Ostoclastos.
Quando outra criatura, também se retorcendo, arrombou
a porta, os odontoclastos começaram a se alvoroçar sem saber
para onde ir. Porém, para o espanto geral, entra pela mesma porta o agente Calcin correndo em direção aos odontoclastos.
– Não importa o que pensam em fazer comigo, o que importa agora é que devem correr se quiserem continuar vivos –
gritou Calcin ainda avançando em direção aos odontoclastos.
– Calcin! – gritou Oncoclastos correndo em direção ao
agente quase que se rastejando pelas fortes dores.
– Oncoclastos? Senhor prefeito? – assustou–se o agente. –
Como chegaram até aqui?
– Não dá para explicar agora, Calcin – disse Sr. Esmalte aliviado por ver o agente ainda são e salvo. – Vamos embora daqui
imediatamente.
– Ostoclastos, nos ajude a reunir os odontoclastos – pediu
Oncoclastos.
– Seguiremos em direção aos sítios retro Molares, pois os
streptos cercaram toda Molares Direitus – avisou Calcin.
– Desta vez, seguiremos por baixo, Calcin – corrigiu o pre-
feito. – Temos uma passagem bem embaixo de nossos pés e é
por lá que vamos sair daqui.
Calcin não se importou com os detalhes já que realmente
estava preocupado em sair daquele local.
Muitos germes caíam se retorcendo e Esmalte começou a
ficar espantado, pois sabia que a força policicálcio não entraria
em Molares.
– O que está havendo lá fora, Calcin? – perguntou o prefeito.
– Nós temos ajuda, senhor prefeito. Mas não por muito
tempo – disse Calcin percebendo que Oncoclastos e Ostoclastos
estavam conseguindo reunir os odontoclastos desesperados. – A
Liga de Amálgama está segurando os streptos para nos dar tempo de fugir em segurança.
Aquela notícia deixou Sr. Esmalte sem reação, já não bastava a surpresa com os cementócitos e agora uma tal Liga de
Amálgama estaria ajudando na fuga.
– Sei que não há tempo para maiores perguntas – admitiu Esmalte. – Por isso, vamos começar e entrar no buraco
subterrâneo.
Sr. Esmalte aproximou–se novamente da fenda aberta por
Cementom e deu o sinal para que o cementócito começasse a
abrir maior dimensão, permitindo que todos entrassem em segurança. Foi a coisa mais espetacular observada pelo prefeito,
todos os cementócitos começaram a deslocar estruturas e rapidamente construíram uma espécie de escada em espiral. Quando terminaram, Cementom retornou um sinal aoprefeito para
que ele tomasse as providências.
– Oncoclastos, por aqui! – ordenou o prefeito sendo obedecido pelo odontoclasto.
Pouco a pouco os odontoclastos se posicionavam para
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descer pela fenda, formando uma espécie de fila indiana para
que cada um passasse sem dificuldades. Alguns deles passavam
com desconfiança, outros nem mesmo aguardavam para ver o
que estava acontecendo de verdade. Calcin, posicionado ao lado
da fila com sua pistola calcítica empunhada, observava alguns
streptos serem derrubados pelos novos companheiros que, lá
fora, davam seu máximo para impedir a entrada das criaturas.
Calcin e a Liga de Amálgama conseguiram adiantar–se em
relação aos streptos quando realmente atingiram a via principal
de acesso ao centro de Molares. Não houve dificuldades já que
as abomináveis criaturas se movimentavam lentamente, contudo quando conseguiram chegar ao galpão onde os odontoclastos
haviam retornado, alguns streptos já montavam guarda levando
a Liga a não poupar seus degermantes, em um ataque fulminante.
Quando Calcin conseguiu entrar no galpão, foi alertado
pela Prata a não retornar à porta, pois iriam tentar lacrar tudo
em volta do galpão e, assim sendo, a única alternativa seria a de
retirada pelos fundos. Calcin só não contava com a presença do
prefeito já com a situação semi dominada.
– Senhor prefeito, não temos muito tempo – alertou Calcin. – A Liga de Amálgama realmente não conseguirá segurar os
streptos por muito tempo.
– Calcin, mesmo que não dê, não podemos deixar ninguém
para trás – afirmou o prefeito observando a fila que prosseguia
lentamente. – Essa é uma batalha que a Cárie não pode vencer.
Calcin então se assustou com a presença de um odontoclasto prostrado bem atrás de suas costas lhe colocando as mãos
sobre o ombro e mostrando–se afável.
– Queria me desculpar em nome da classe de odontoclastos – disse sem delongas. – Meu nome é Obariloclasto e sou o
representante oficial dos odontoclastos.
Calcin acenou positivamente com a cabeça ainda sem se
dar conta de toda a situação que o rondava.
– Não fomos muito amigáveis com você e coloco minha
pessoa a sua inteira disposição em sinal de redenção.
– O que poderia fazer neste momento é apressar seus
companheiros antes que algo realmente problemático venha a
acontecer – disse Calcin.
– Sr. Esmaltus, eu não tenho palavras para mostrar nossa
gratidão – disse Obariloclasto abaixando a cabeça. – Espero que
o senhor ainda venha nos desculpar.
– Não se preocupe Obariloclasto – atenuou o prefeito. –
Estamos enfrentando momentos de crise e sua posição quanto a
de seus colegas não poderia ser diferente. Vamos tirar esta turma daqui e seguir em direção ao bairro vizinho, creio que sargento Calcion esteja com reforços nos esperando a esta altura
de campeonato.
Do lado de fora, a Liga de Amálgama já havia conseguido
erguer a proteção de amálgama ao redor de todo o galpão, mas
o avanço dos streptos estava realmente colocando a operação
em risco. Prata, Estanho, Mercúrio e Cobre tentavam disparar
degermantes somente nos streptos que conseguiam escalar e ultrapassar a barreira de amálgama. Todos sabiam que não teriam
munição suficiente para derrotar todos os germes, o que deixava a Liga preocupada em relação ao combate.
Vindo todo imponente, Capitão Ácido Açucarado não tirava o sorriso confiante do rosto, e Cobre não conseguia engolir
tamanha demonstração de deboche.
– Escute aqui, seu desclassificado! – gritou o Cobre por
cima da barreira. – Nós nunca combatemos alguém tão covarde
quanto você.
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Incisivocity
– Ora, ora, vejam só! – respondeu Ácido Açucarado. – Pensei que o sistema não desse a mínima para Incisivocity. De uma
forma ou de outra é bom saber que temos de agir para que nos
deem nosso devido valor.
– Valor? – gritou a Prata inconformada. – Que tipo de valor
podem ter, se o que querem é a destruição do próprio lugar onde
moram?
– Correção, seja você lá quem for – retrucou o ácido. –
Moraríamos, caso nosso partido tivesse ganhado as eleições.
Imagine, Incisivocity seria um complexo completamente seguro
com estas criaturas nas ruas – e completou. – Queria ver qual o
engraçadinho que bancaria o idiota com os streptos espalhados
por todos os cantos.
– Aqui não é o habitat natural destas criaturas – foi a vez
de Mercúrio intervir. – De onde você tirou uma ideia tão absurda
como essa?
– Olhem ao seu redor, seus injusticeiros – disse Ácido Açucarado apontando em várias direções. – Nem a força policicálcio
poderia deter tantos germes. O que vocês acham que acabaria
acontecendo mais cedo ou mais tarde?
Estanho se afastou do muro de proteção e olhou para a
porta que Calcin havia adentrado depois que o Cobre descarregou degermante em um dos streptos que montava guarda no
local. Voltando–se novamente para sua situação, ele segurou nos
braços da Prata e olhou–a bem no fundo dos olhos.
– O pior é que esse aí tem certa razão, Prata – disse ainda
encarando–a. – Não há a mínima chance de a força policicálcio
conter o avanço bacteriano em Incisivocity.
– Chance existe, meu caro Estanho – argumentou a Prata
sem também desviar seu olhar. – Porém, não neste momento,
Molares está completamente devastada e nem mesmo a força
policicálcio poderia deter o controle da situação com ruas e ruelas neste estado – e olhando também para a porta aberta disse.
– Vá lá dentro Estanho, e veja o que se passa por lá. Se Calcin
não tiver saído daqui ainda, a situação vai se voltar totalmente a
favor dos streptos.
No mesmo instante, Estanho deu um salto até o chão próximo à porta e começou a correr em direção ao galpão. Lá chegando, não teve nenhuma boa impressão do que estava acontecendo. Muitos odontoclastos ainda estavam por lá e para completar, Calcin e o prefeito ainda permaneciam parados.
– O que está havendo com vocês? – perguntou Estanho
chegando rapidamente. – Assim não adianta nada o que estamos fazendo lá fora.
Sr. Esmalte não pôde deixar de notar o traje prateado
daquele sujeito e também não conseguia controlar seus pensamentos em relação às surpresas daquele dia. Entretanto, aproximou–se de Estanho e pôs–se a dizer:
– Sou o prefeito de Incisivocity e sei da gravidade da situação, contudo nossos amigos subterrâneos estão nos ajudando
a sair por baixo, na linha periodontal da cidade.
Aquela informação soou como música nos ouvidos de Estanho que olhando de um lado a outro começou a imaginar a
situação mudando a seu favor.
– Mas é claro! – exclamou com uma expressão de felicidade em seu rosto. – A via periodontal – e voltando–se para o
prefeito, Estanho não hesitou. – Ainda falta muito para que todos entrem no subsolo?
Esmalte virou–se novamente para a fenda e olhou o caminho construído pelos cementócitos abarrotado de odontoclastos descendo.
– Cementon! Tem como adiantar essa turma? – pergun-
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tou o prefeito procurando pelo cementócito.
Cementon sinalizou mais uma vez para seus cementócitos
e novamente eles se reuniram em outro lado da fenda das raízes construindo mais uma escadaria. Quando finalmente assim
a concluíram, outra fenda foi aberta no chão do galpão e Odontoclastos juntamente com Obariloclasto, quando perceberam a
nova movimentação, puseram–se a dividir os odontoclastos e
direcioná–los para o outro buraco.
– Agora não vai demorar muito, senhor... – Esmalte ainda
não sabia o nome de Estanho.
– Estanho – completou o mesmo. – Então faremos o seguinte, assim que todos os odontoclastos atravessarem as fendas, Calcin irá até a porta e nos sinalizará. Eu tenho um plano.
Novamente o Estanho retornou correndo para o lado de
fora e, escalando a mureta de amálgama, aproximou–se da Prata
com toda ansiedade.
– Os cementócitos estão ajudando os odontoclastos a escaparem – disse ainda engolindo o fôlego da corrida. – Isso me
deu uma excelente ideia.
– Acho que sei exatamente o que você está pensando, Estanho – respondeu a Prata. – Vai querer demolir o galpão com
todos os streptos dentro?
– Você é o máximo, Prata. Realmente nos surpreende com
seu raciocínio automático – empolgou–se Estanho. – Quando
Calcin aparecer, correremos para dentro e entraremos também
no subterrâneo. Os streptos não sabem que existem cementócitos trabalhando por aqui e, daí entrarão atrás de nós com toda
fúria.
– O resto é fácil – foi a vez de Mercúrio participar da conversa. – Vamos pedir para os cementócitos demolir a raiz de sustentação do galpão enquanto fugimos.
– Não haverá strepto sobre strepto para contar história
depois do desabamento – Cobre também opinou percebendo o
plano.
Aquele novo rumo para a situação deu mais ânsia de vitória à Liga de Amálgama que começou a disparar degermante
ferozmente contra os streptos que se aproximavam. Um disparo
quase acabou acertando Ácido Açucarado que, no mesmo instante, tirou o sorriso intimidante do rosto.
Muitos streptos ainda avançavam e Estanho começava a
ficar impaciente, quando Calcin finalmente apareceu na porta
balançando os braços como se fosse uma libélula.
– Vamos, é o Calcin! – gritou Estanho já abandonando seu
posto de combate.
Quando Capitão Ácido Açucarado avistou a Liga de amálgama bater em retirada, colocou novamente seu sorriso no rosto
e ordenou a seus streptos que avançassem com toda a força.
– Agora! Derrubem aquela parede! Eles estão fugindo...
– e não aguentou segurar aquela risada que estava travada
em seu peito. – Eu já sabia! Não há como parar um avanço de
Streptococos Mutants. Eu vou querer uma condecoração por
isso.
Quando a Liga chegou ao buraco, o prefeito já havia descido com Oncoclastos e Obariloclasto, só restavam Calcin e eles do
lado de fora. A outra fenda aberta para facilitar a fuga já estava
selada naquele momento e, sendo assim, todos os restantes puseram–se a descer também.
Chegando lá embaixo, a Prata não estava orientando–se
direito devido à escuridão, então gritou pelo líder dos cementócitos.
– Quem está no comando dos cementócitos?
– O que deseja? – perguntou Cementom aproximando–se
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com seu capacete aceso.
– Derrubem as vigas de sustentação. Talvez ainda exista
recurso para Molares – disse a Prata olhando desta vez para o
prefeito.
Enquanto os cementócitos descolavam as vigas de sustentação do galpão, a Prata se aproximou do Sr. Esmalte. O prefeito
estava sem reação e mesmo que tivesse um discurso nas mãos
não saberia o que dizer.
– Então, o senhor é Esmalte Esmaltus? – perguntou ela esperando alguma resposta, no entanto, o prefeito simplesmente
começou a se contorcer em sinal de agradecimento. – Por favor,
senhor prefeito. Não precisa fazer isso.
– Eu não sei como lhes agradecer pelo que estão fazendo.
– Não há o que agradecer. Nunca me deparei com um cidadão tão honroso quanto o senhor – disse a Prata. – Alguém que
se arrisca em função de outras pessoas, sem levar em consideração que esta pessoa não é nada mais nada menos que o prefeito
da cidade, não tem o que agradecer.
De repente tudo começou a balançar e todos começaram
a olhar para cima percebendo que pequenos pedaços caíam.
Cementom descia rapidamente por uma corda e junto com ele
outros cementócitos.
– Agora, todos vocês corram para as raízes mesiais de
Molares! – ordenou Cementom já acenando para os outros
cementócitos. – Sigam os cementócitos, pois o galpão não vai
demorar a cair.
cessar. A vitória seria eminente e com certeza a Cárie ficaria orgulhosa da ação liderada pelo capitão.
Cada strepto que entrava, aumentava mais o ego de Ácido Açucarado e mais ele tinha certeza de que todos lá dentro
eram presas fáceis daqueles impiedosos seres. No entanto, alguma coisa fez o ácido mudar instantaneamente sua concepção de
vitória. Quando o último strepto entrou por uma das janelas, as
estruturas do galpão começaram a tremer feito como uma paineira contra um furacão e Ácido Açucarado começou a perceber
que o chão começava a ceder também.
– Voltem seus idiotas! – gritou Ácido Açucarado, mas nenhum dos streptos poderia escutar devido ao grande barulho
que começara a fazer.
Tudo desabou quase que imediatamente bem à frente de
Capitão Ácido Açucarado, que não acreditava no que realmente
estava vendo. Seus streptos, todos eles sucumbindo a cada bloco
do galpão que caía. Ele estava tão incrédulo diante daquelasituação que acabou sentado ao chão sem saber o que iria dizer à
Cárie. Havia perdido a primeira grande batalha contra a administração da saúde bucal.
A invasão era geral, não havia uma única entrada sem
strepto entrando. Ácido Açucarado somente observava glorioso de si pelo lado de fora enquanto seus streptos entravam sem
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Capítulo 8
Sargento Calcion aguardava juntamente com uma
tropa de policicálcios. Os canhões de calcitina estavam prontos
para o primeiro sinal de movimento que saísse de Molares, mas
nenhuma sombra se movia e tudo parecia perfeitamente calmo.
Os policicálcios se entreolhavam ansiosos pelo retorno do prefeito, até que um tremor começou a balançar o chão onde estavam.
Uma erupção iniciou–se logo atrás dos canhões de calcitina e prontamente todos os policicálcios rumaram–se para o
local apontando suas armas e esperando que alguma coisa semelhante aos streptos começasse a pular dali.
Para surpresa geral de todos, um ser completamente desconhecido apareceu, baixo e forte, com os olhos esbugalhados.
Cementom foi o primeiro a sair do buraco aberto e sem se preocupar em apresentações, começou a abrir ainda mais a fenda.
Os policicálcios aproximaram–se, ainda, apontado suas
armas para o cementócito.
– Ei você, o que está fazendo? – perguntou Calcion.
Porém o cementócito novamente pulou para dentro, ignorando os policicálcios, e quase que no mesmo instante Sr. Esmal-
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te apareceu pelo mesmo buraco.
– Não se preocupe sargento – disse enquanto terminava
de sair. – Somos nós.
Calcion colocou as mãos sobre a cabeça e deu um pulo
para trás como se o susto tivesse se misturado à euforia de ver o
prefeito são e salvo.
– Sr. Esmalte? – perguntou o sargento. – Como que... mas
o que está acontecendo?
– Espere até que todos nós saiamos daqui para que assim
possamos esclarecer – desabafou o prefeito.
O segundo a sair foi Oncoclastos, para a decepção do sargento que, olhando de um lado a outro, ainda não acreditava
que aquele odontoclasto estivesse por perto. Calcin veio logo
em seguida ajudando Oncoclastos e ao ver que seu agente estava a salvo, Calcion, num gesto meio desconcertante, correu para
ajudá–lo a erguer o odontoclasto ferido. Obariloclasto subiu à
frente dos demais odontoclastos, que não paravam de sair, eram
tantos que a força policicálcio não sabia o que fazer caso algum
deles começassem a se rebelar novamente, contudo a reação era
de tranquilidade.
Quando o último odontoclasto atravessou a fenda, para
maior surpresa do sargento, Prata, Mercúrio, Estanho e Cobre
apareceram juntamente com Cementom.
– Senhor prefeito, é melhor nós sabermos o que houve e
quem são estes aí, antes que eu enlouqueça.– foi direto ao ponto
Calcion.
– Claro, sargento – começou Esmalte. – Antes de tudo quero lhe adiantar que o que sei é muito pouco ou quase nada sobre
a Liga de Amálgama e os cementócitos – disse apontando com a
mão. – Contudo, se não fosse por eles, numa hora dessas já não
estaríamos vivos.
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– Então é melhor começarmos a disparar os canhões –
lembrou o sargento, sendo imediatamente interrompido por
Calcin.
– Não, sargento! – gritou o cálcio. – Creio que não há mais
necessidade.
– Calcin tem razão, sargento – foi a vez da Prata. – Todos
os streptos caíram com o galpão onde estávamos. Não restou um
único strepto vivo com o desmoronamento.
– Exatamente, nós os vimos cair com as bases estruturais
do galpão – continuou o prefeito. – Não houve nenhuma reação
após a queda.
– Talvez nem mesmo Ácido Açucarado deva ter conseguido escapar – deduziu Calcin.
– Já isso eu não posso afirmar, Calcin – disse pela primeira
vez Cementom. – Nenhum dos meus cementócitos de varredura conseguiu encontrar alguma coisa que não fosse destroço e
strepto morto.
Logo após a queda do galpão, Cementom deu a ordem de
varredura a alguns cementócitos da retaguarda, para avaliar os
danos. Foi a partir desta varredura que constataram a morte dos
streptos.
– Desculpe–me, senhor prefeito – sussurrou Calcion com
uma das mãos sobre a boca. – Mas quem é este ser tão esquisito?
– Ah! Perdoe–me por não tê–lo apresentado. Sargento
Calcion, este é Cementom, líder da comunidade subterrânea de
Incisivocity – e virando–se para o cementócito. – Senhor Cementom, lhe apresento o sargento Calcion, responsável pela força de
policiamento em nossa cidade.
Ambos se cumprimentaram num aperto de mão duradouro. Calcion tinha plena certeza que jamais recebera um aperto
de mão tão forte em sua vida, já com a claridade, apesar de estar
quase anoitecendo, Cementom não conseguiu prestar a devida
atenção no sargento.
– Tenho que ir, Senhor prefeito – disse Cementom. – Vou
retornar às raízes de Molares para trabalhar no reforço de sustentação periodontal do bairro.
– E nós vamos limpar a sujeira das ruas que danificamos
– aproximou–se Obariloclasto em sinal de apoio. – Vamos concertar nosso erro e colocar Molares em seu devido lugar de sustentação.
– Não irão conseguir sem nossa ajuda, Obariloclasto – foi
a vez de Oncoblasto que viera em uma das viaturas de reforço e
ainda não havia se manifestado. – Vou recrutar os odontoblastos
para reerguer Molares Decíduos nesta empreitada.
Parecia que tudo estava voltando ao seu normal e Sr. Esmalte respirava aliviadamente, como se uma enorme pedra tivesse lhe escapado das costas.
– Infelizmente, sargento, tivemos duas baixas – relembrou
o prefeito abaixando a cabeça. – Perdemos dois oficiais durante
a missão.
– Não se preocupe, senhor prefeito – interrompeu Estanho. – Eles foram encaminhados vivos ao Centro de Recuperação Medular pelos fibroblastos e ficarão bem.
Sr. Esmalte ergueu–se novamente e só não deu um pulo de
emoção porque suas pernas não respondiam mais às suas atitudes. O cansaço daquele dia era evidente aos olhos de todos e
nunca o conforto de suas casas foi tão desejado.
– Vou organizar uma cerimônia para comemorar este dia
em Incisivo Centrales – disse orgulhoso o prefeito. – E conto
com todos, a Liga de Amálgama, cementócitos, odontoclastos,
odontoblastos, apatitas e cálcios. Um dia como esse, no qual a
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força de Incisivocity juntamente com a ação imediata da Liga
de Amálgama salvou Molares de sua perda, não pode ser esquecido.
Anipatita estava sentada em frente a Sra. Dentina, observando a primeira dama baixar alguns relatórios rapidamente e
na mesma velocidade organizar documentos importantes. O que
mais impressionava a apatita era o fato de Dentina, com todos os
afazeres, estar também completamente apreensiva em relação a
seu marido, do qual ainda não tivera notícias.
Quando a porta do gabinete se abriu, todas as duas direcionaram–se para ela, na espera de alguma informação, porém
eram Madame Mielina e Amelodentina entrando também ansiosas por alguma informação.
– Isso me mata! – falou depois de horas de silêncio a primeira dama. – Já não consigo me concentrar direito e as horas
vão passando, sem falar que a noite já chegou.
–Acalme–se Dentina – falou pausadamente Mielina. – Notícias ruins chegam rápido.
O coração de Anipatita latejava e ela mesma não se continha, por mais que pudesse agüentar uma notícia ruim. Levantando–se, a apatita olhou meigamente para Amelodentina que
trazia uma pequena boneca nas mãos, uma antiga bonequinha
que teria ganhado de seu pai há muito tempo, e passou quase
que despercebida por Madame Mielina rumo à porta.
– Aonde vai, Anipatita? – perguntou Sra. Dentina.
– Desculpe–me senhora, mas eu não consigo ficar um só
minuto a mais dentro desta sala. Estou a ponto de explodir.
Madame Mielina, sem alertar a primeira dama aproximou–se vagarosamente da apatita e cochichou rapidamente.
– Não se preocupe quanto a Calcin.
As pernas da apatita tremeram e o susto pelo comentário
foi tanto que Anipatita derrubou todas as pastas que estavam
numa mesinha próxima à porta.
– Algum problema, Anipatita? – perguntou a primeira
dama.
– Não senhora – respondeu confusa. – É que sou ansiosa
assim mesmo e fico toda desconcertada quando espero por informações e elas não chegam.
– Entendo – disse Dentina não engolindo a resposta, porém sem prolongar a conversa.
Antes mesmo que a apatita deixasse a sala, sentiu sua saia
remexer com alguns puxões a fazendo olhar para baixo e enxergar Amelodentina estendendo a bonequinha em sua direção.
– Pegue! – disse. – Fique com Diamanta até todo mundo
chegar. Ela é uma boa amiga e não deixa a gente triste.
Aquele gesto acabou de derreter o coração da apatita que
se derramou em lágrimas pela primeira vez. Segurando Diamanta em suas mãos ela notou que se tratava de uma apatitazinha
com cabelinhos trançados e um sorriso largo no rosto.
– Ela é linda! – disse enxugando as lágrimas. – E que bonito nome você deu a ela.
– O nome foi a mamãe quem deu quando ganhei do meu
pai. Diamanta acabou com meu medo de escuro, sabia?
Anipatita deu um sorriso animador e olhando para a primeira dama, notou que ela também estava com os olhos umedecidos.
– Papai me contou que Diamanta não tem medo das
coisas e por isso as coisas ruins correm dela. E ela me lembra
muito você, Anipatita – disse com um grande sorriso. – Sabe, é
claro que você não tem tranças, mas se as fizesse, ficaria igual à
Diamanta.
Por algum motivo, Anipatita já não queria deixar mais o
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gabinete, e voltando–se para a poltrona onde estava sentada,
empinou o nariz, deu um grande suspiro e disse.
– Sabe de uma coisa? Essa Diamanta é realmente poderosa – e olhou para Amelodentina erguendo a boneca. – Não estou
com medo mais, e quer saber, acho que preciso fazer umas tranças em mim também. Você me ajuda, Amelodentina?
Amelodentina deu um salto largando a mão de Madame
Mielina e correu em direção à secretária, bastante satisfeita.
– Oba! Vou fazer suas tranças parecerem com as de Diamanta e você vai ficar tão linda quanto ela.
Madame Mielina também se sentou em uma poltrona observando toda a situação e imaginando o quanto o fato de um
indivíduo ser adulto interfere nas condições positivas da vida.
Uma simples criança, ingênua e indefesa, concretiza uma fé tão
grande que nem toda uma experiência de vida poderia criar.
Sra. Dentina então se pôs de pé e caminhou para o lado
de Madame Mielina bem calmamente, olhando para as duas se
divertindo com as tranças. Aproximando–se, colocou as mãos
sobre o encosto da poltrona e cochichou para Mielina.
– Tenho medo que Esmalte se envolva em alguma confusão. Desde jovem ele sempre assumia frente nas situações mais
inusitadas – e abaixando a cabeça. – Certas vezes, penso que Esmalte não tem muita noção de perigo das coisas.
– Desculpe–me Dentina, mas ao mesmo tempo em que reconheço sua coragem, também temo pela segurança do prefeito. Convenhamos que o ocorrido em Caninus tivesse um quê de
sorte misturado. Se Esmalte fosse pego por algum odontoclasto
naquelas circunstâncias...
– Eu sei Mielina – interrompeu Dentina. – Já estou preocupada o bastante, não quero me lembrar disso.
Mas naquele momento, houve um alvoroço nos corredo-
res da prefeitura e, alertas a tudo, não puderam deixar de notar
que alguns odontoblastos passavam correndo pelo corredor do
gabinete. Antes mesmo de Madame Mielina abrir a porta para
analisar direito, ela se abriu e uma apatita que trabalhava na
limpeza entrou aos berros.
– A praça está cheia de odontoclastos!
Novamente, Sra. Dentina correu em direção à mesa principal para ter acesso à imensa janela do gabinete. Lá chegando,
com Madame Mielina logo atrás, pôde ver a praça principal, em
frente à prefeitura, tomada por odontoclastos que chegavam aos
montes. Porém, seu coração pulsou ainda mais rápido quando
viu que no meio deles a viatura da prefeitura vinha escoltada
por mais dezenas de viaturas da força policicálcio.
– Esmalte! – sussurrou Dentina consigo mesma. – Ele conseguiu!
Anipatita colocou–se de pé quase que instantaneamente com a boneca Diamanta nas mãos. Amelodentina também
correu para a janela junto à mãe, onde pôde enxergar também.
Enquanto isso, Madame Mielina voltava–se para a apatita lentamente.
– Pode descansar agora, moça – disse em voz bem baixa. –
Calcin está no mesmo veículo do prefeito são e salvo.
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No saguão principal da prefeitura, Sr. Esmalte entrou entre palmas e assobios de exaltação. Junto dele vinham Calcin e
Oncoblasto seguidos de sargento Calcion, Obariloclasto, Oncoclastos e a Liga de Amálgama.
Sra. Dentina colocou–se em frente dos funcionários trazendo Amelodentina nos braços, logo atrás dela estavam Mada-
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me Mielina e Anipatita com o cabelo todo trançado. Calcin pôde
notá–la de longe e abriu um sorriso tão agradável que obteve
de apatita no mesmo instante um lindo sorriso como resposta,
o que também não pôde passar despercebido aos olhos de Madame Mielina.
– O que houve por lá e por que demoraram tanto? – perguntou a primeira dama abraçando o marido com a filha no
colo. – Por favor, Esmalte não faça mais isso.
O prefeito, abraçado à esposa, olhava para a filha com alívio ao vê–las bem. Em todo o tempo em que estava em Molares,
nunca lhe fugira da mente a sensação de que estava sendo desviado de Incisivos Centrales, o que tornaria a prefeitura um alvo
fácil.
– Não vão acabar com nossa cidade enquanto eu for o
prefeito, querida – respondeu pausadamente. – Não fui eleito
para decepcionar os cidadãos de Incisivocity.
Apenas alguns odontoclastos entraram no prédio da
prefeitura acompanhando Obariloclasto, o que ainda deixava o
sargento bastante inquieto, porém o suficiente para poder ser
testemunhas das novas declarações de Sr. Esmalte que, voltando–se novamente aos cidadãos, proclamou em voz alta:
– De hoje em diante, declaro oficialmente criada em
nosso mandato, a Associação dos Odontoclastos que, com o Sr.
Obariloclasto à frente, farão parte de nosso conselho municipal
e terão a mesma voz ativa de qualquer conselho já existente em
nossa cidade.
Oncoclastos olhou para seu primo Oncoblasto e ambos
sorriram um para o outro em sinal de afeto, coisa que não acontecia há muito tempo, desde que amadureceram e cada um buscou seu lugar.
Madame Mielina sentia–se orgulhosa por estar represen-
tando o Sistema Nervoso Central e muito mais por participar de
uma data tão importante quanto aquela, mas sentia–se também
incomodada pelo fato de Anipatita estar se remexendo na ponta
dos pés como se quisesse decolar.
– Minha filha – disse Mielina segurando a apatita pelo
braço. – Quer um conselho de amiga?
A apatita fitou–a com os olhos brilhando como se o que
Mielina fosse falar salvasse Incisivocity de uma turbulência terrível.
– Saia de fininho e vá para longe daqui, este seu agente
não vai demorar a correr atrás de você por estes corredores.
– Mas, o prefeito, a primeira dama, todo mundo. Eu não
posso sair assim no meio de tudo, ainda mais que...
– Vá logo menina! – interrompeu Madame Mielina. – Com
eles eu me ajeito. Além do mais, tenho certeza de que Calcin quer
sair daqui o mais rápido possível. E pelo visto, com você.
– Como tem tanta certeza? – perguntou a apatita olhando de novo para o agente que por sua vez não tirava seus olhos
dela.
– Entendo mais de sentimentos do que qualquer um por
aqui – respondeu também olhando para o agente. – Ande logo,
não o deixe esperando! Daqui a pouco ele virá aqui e quero ver
como é que você agirá.
Assim, Anipatita deu as costas e foi se misturando aos
funcionários em meio daquele alvoroço. Calcin começou a ficar
impaciente e a olhar para todos os lados como se quisesse ver
aonde iria Anipatita.
– Com licença, sargento, prefeito e todo mundo – disse o
agente já dando seus primeiros passos atrás da apatita. – Voltarei rapidamente, preciso usar o banheiro.
Sr. Esmalte confirmou com a cabeça, mas sargento Calcion
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não gostou muito da ideia, porém o aval do prefeito já havia sido
dado só lhe conformando aceitar a saída do agente naquele momento tão ilustre.
– Vê se não demora, aliás, você também será homenageado aqui, seu...
– Deixe o garoto, sargento – disse o prefeito. – Dê folga
para ele hoje. Calcin merece.
O agente nem mesmo escutou as últimas palavras do prefeito e saiu costurando todo mundo em busca de Anipatita.
O corredor era comprido, mas Calcin tinha certeza de que
vira Anipatita cruzar uma das saídas do saguão. Quando conseguiu se afastar da multidão, o agente pôs–se a correr e entrou no
corredor almejado sem perder a atenção no caminho.
Quando Anipatita percebeu que Calcin se aproximava, ela
encostou–se numa das portas mais profundas na parede para
que o agente não a visse mais, e quando ele passou por ela sem
vê–la, a apatita agarrou–o pelas costas puxando–o para dentro
de uma das salas perdidas no corredor.
– Da próxima vez que você me mandar retornar e deixar
você, juro que eu mesma acabo com você! – disse ela soltando as
costas do agente.
Calcin não se continha mais dentro de si e abraçando com
força a apatita deu–lhe um beijo demorado.
– Eu nunca mais me desculparia se algo acontecesse a
você, Anipatita – disse olhando profundamente nos olhos dela.
– Imagine! Não vou negar que passei por riscos totalmente imprevisíveis, mas era somente eu. Minha única preocupação era
comigo mesmo, o que me dava mais tempo para pensar.
– Ah, sim! – exclamou ela. – E como se chama isso? Deixe–
me lembrar... Egoísmo, certo?
– Bom, se você acha que zelar pela vida de quem se gosta é
egoísmo – e apertou os braços de Anipatita olhando–a com mais
vigor. – Então, eu sou egoísta, e muito. Prefiro ser completamente egoísta a ter de perdê–la.
Novamente eles se abraçaram e trocaram beijos como
verdadeiros adolescentes, realmente ela reconhecia que Calcin
tinha razão, mas jamais iria aceitar passar por aquilo novamente e isso ela tinha toda a certeza.
– O que houve lá, Calcin?
– É uma longa história, levaria a tarde toda para te contar.
– Melhor assim – disse Anipatita sacudindo os ombros. –
Passo mais tempo ao seu lado. Não estou a fim de saber pela
boca do prefeito mesmo.
– Não fale assim, Anipatita. Talvez não estivesse aqui se
ele não fosse até Molares.
– Sei disso! Mas eu prefiro ouvir tudo de você – disse ela
sorrindo. – Aliás, é muito mais interessante ouvir a história pela
boca do próprio herói.
Calcin ficou tão vermelho que Anipatita pensou que ele
fosse explodir. Porém, estava satisfeita por estar com ele e de ter
como cúmplice Madame Mielina.
Furiosa, a Cárie andava de um lado para o outro, batia
contra a parede e pela quinta vez arremessava objetos contra
a parede. Já havia feito inúmeras ligações, sentado e levantado
várias vezes e agora estava amassando copinhos. Num canto escuro da sala, Ácido Açucarado estava sentado sem olhar para a
Cárie de tanta vergonha, fora o maior fiasco sua primeira missão
como capitão e não tinha dito uma só palavra desde que voltou
e contou o ocorrido para ela.
Ácido Açucarado ainda não estava entendendo como tudo
tinha chegado àquele ponto e com as mãos na testa ficava ima-
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ginando como teria sido se ele também tivesse entrado naquele
galpão, além de pensar também no que havia feito de errado em
sua estratégia.
– Nenhum deles? – voltou ela a perguntar indignada.
Ácido Açucarado fez somente o sinal de negação sem
olhar permanecendo de rosto abaixado.
– Estes golpes de sorte do Sr. Esmalte já estão me deixando enfurecida. Primeiro, a derrota nas eleições, depois a movimentação em Caninus e agora nossa derrota em Molares – e
voltando–se para Açucarado. – Será que você não percebeu que
as estruturas do prédio, ou melhor, de toda Molares, estavam detonadas?
– Eles estavam encurralados – justificou o capitão. – Eu
mesmo não contava com túneis embaixo da cidade, nem mesmo
com o aparecimento da Liga de Amálgama.
– Escute uma coisa, Ácido Açucarado. Sua sorte, e única
sorte, foi que esta liga esquisita apareceu para atrapalhar tudo.
Caso contrário, eu mesma lhe entregaria para o sistema de defesa.
De certa forma, aquelas palavras incomodaram muito
Ácido Açucarado que não disse mais uma só palavra.
Cárie voltou novamente à sua mesa e ficou parada olhando para alguns papéis espalhados como se estivesse procurando
alguma coisa no meio daquela bagunça. Revirou alguns folhetos,
abriu agendas, rasgou lembretes e finalmente ergueu uma folha
alaranjada com um pequeno sorriso no rosto.
– Está bem, então é assim que vai ser não é senhor prefeito? – perguntou a Cárie para si mesma. – Eu queria manter a
boa linha e somente atacar de forma mais politizada, porém eu
não vejo outra escolha.
Ácido Açucarado esticou o pescoço para poder ver melhor
o que a Cárie tinha em mãos, mas não obteve muito sucesso.
Quando ela percebeu que o capitão estava curioso, rapidamente
abaixou a folha e escondeu aquele sorriso que havia aberto por
alguns segundos.
– Não se apavore meu caro Ácido Açucarado – disse ela
voltando a manter a calma. – Esta foi somente a primeira batalha, porém a guerra está apenas começando.
– Não gostei de ser derrotado, Cárie! – e irritou–se pela
primeira vez o capitão. – Isso não era para ter acontecido.
– Mas aconteceu – respondeu a Cárie olhando novamente
para a folha alaranjada. – Contudo, não se preocupe você terá
sua virada de jogo, Capitão Ácido Açucarado – e balançando a
folha. – E se terá!
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105
•••
Já em sua casa, uma cobertura em um dos prédios principais de Incisivos Centrales, Sr. Esmalte e Sra. Dentina, sentados
em um sofá azul claro, observavam carinhosamente a filha brincar com sua boneca Diamanta no carpete branco.
A casa era bem aconchegante e na opinião de Sra. Dentina,
era a casa mais bonita que poderia existir em toda Incisivocity.
Grande e espaçosa era realmente esplendorosa em seu conjunto, com vigas brancas colossais no meio da sala, porém o lugar
que mais agradava ao prefeito era a sacada que dava vista para
toda Incisivocity. Não demorando muito Sr. Esmalte dirigir–se
para lá.
– Alguma coisa ainda o preocupa, não é mesmo Esmalte?
– perguntou a primeira dama vindo ao seu encontro.
– Conheço minha oponente, querida – respondeu ele desabafando. – Sei que numa hora dessas ela deve estar mirabo-
Fabiano Freire
lando sua retaliação.
– Tente não se preocupar com isso, aliás, temos a Liga de
Amálgama que, de agora em diante, também estará alerta para
nos ajudar em relação à Cárie.
Sr. Esmalte voltou–se para a esposa e lhe abraçou soltando todo o ar que estava preso em seus pulmões.
– Tem outra coisa que me preocupa – disse e prefeito encostando a cabeça no ombro da esposa.
Sra. Dentina começou a passar as mãos pelos cabelos
brancos do marido esperando com que ele continuasse a dizer
do que se tratava sem ter de perguntar o que era.
– Foi o Sistema Nervoso Periférico quem acionou a Liga de
Amálgama – disse ele continuando.
– Sim, mas o que isso tem demais? – perguntou Sra. Dentina.
– Com certeza foi a própria Cárie quem o alertou sobre os
problemas de Molares.
– Ainda continuo sem entender – respondeu a primeira
dama. – O que ela ganharia com isso?
– Este é o xis da questão, querida – respondeu ele erguendo a cabeça. – Nós é que perderíamos. Com a intervenção
do sistema em nossas defesas, todos os complexos saberiam da
deficiência de governo em Incisivocity e com isso, dúvidas começariam a ser levantadas sobre nós.
– Mas ela mesma perderia com isso. Não foi a própria Liga
de Amálgama que ajudou a força policicálcio contra os streptos?
– questionou Dentina.
– Sim, mas tudo para a Cárie acontece como num jogo de
xadrez.
– Olha Esmalte, é melhor começar a explicar logo aonde
quer chegar, porque você sabe que de xadrez eu não entendo
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Incisivocity
nada.
Esmalte voltou–se novamente em direção à cidade e colocou as mãos sobre a sacada olhando longe e respirando vagarosamente.
– Em um jogo de xadrez, mexem–se os piões primeiro
para abrir caminho para as peças mais importantes – começou
a dizer. – Sendo assim, é necessária a perda de várias peças antes de se chegar à peça principal, ou seja, o rei.
Sra. Dentina continuava observando–o sem dizer nada,
mas começando a entender onde o prefeito queria realmente
chegar.
– A Cárie faz um jogo muito estratégico, porém sujo
demais – continuou. – Ela vai começar a incomodar as peças
grandes, perdendo suas próprias peças pequenas. E pode ter
certeza que até mesmo Ácido Açucarado é café pequeno na lista
de aliados dela.
Sra. Dentina aproximou–se novamente de Sr. Esmalte e
lhe abraçou por trás encostando agora sua cabeça no ombro
dele.
– Tenho medo por você, Esmalte. Há horas que você quer
assumir riscos que não lhe cabem.
– Eu sei dos riscos que assumo Dentina. Não me peça para
não assumi–los. Desde o início sabíamos o que viria.
– Sabíamos o que viria com você na cadeira de prefeito de
Incisivocity, não numa viatura da força policicálcio.
Esmalte não disse nada em resposta, no fundo sabia também que a esposa estava certa e que era dono de grandes atos
precipitados.
– Penso na população que acreditou em mim, amor. Não
posso desapontá–los em nenhuma circunstância.
– Então pense em nós também, Esmalte. Sua filha é ape-
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Fabiano Freire
Incisivocity
nas uma criança e precisa de nossa força, para crescer sadia.
Sem você, estamos completamente desprotegidas.
Esmalte respirou fundo, segurou os braços da esposa e
voltou seu olhar para dentro, em direção à Amelodentina.
– Procurarei ser mais cauteloso, principalmente agora
que tenho certeza de que incomodamos radicalmente a Cárie.
– Você promete?
– Prometo. Não irei mais atuar como o super Esmalte por
aí.
Dentina sentiu–se mais aliviada quando ouviu estas palavras diretamente vindas da boca de Esmalte, cujas promessas
eram honradas a qualquer custo desde quando o conheceu.
– Vou deixar isso para os verdadeiros heróis de Incisivocity. Vou promover uma festa no fim de semana para todos os
habitantes de Incisivocity, incluindo seus moradores subterrâneos.
– Mas, como? Se vocês mesmos disseram hoje que eles
não podem conviver conosco aqui em cima por muito tempo.
Como eles participariam de uma festa em Incisivo Centrales?
– Pode deixar que já tenho algo em mente. Muitas coisas
afloraram quando estava lá embaixo, mas ainda não é hora para
pensar em futuros projetos subterrâneos sem antes resolver os
problemas estruturais aqui em cima.
Sra. Dentina balançou a cabeça em concordância e começou a olhar para longe também imaginando o que teriam passado todos naquela angustiante missão de resgate em Molares.
– Por falar em heróis, você viu Calcin depois dos discursos
no salão hoje? – perguntou Esmalte.
– Não o vi e em a senhorita Anipatita.
Sr. Esmalte abriu um leve sorriso no rosto deixando escapar uma pequena risada, como se já entendesse o que estava se
passando. Sra. Dentina também já havia percebido alguma manifestação emocional da apatita em relação ao cálcio, mas sem
dar a devida importância ao caso.
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Incisivocity
Capítulo 9
As barracas estavam montadas naquela tarde do primeiro final de semana onde, passavam juntos, desde as eleições,
apatitas, odontoblastos, odontoclastos e cálcios. Todos se entretendo pela festividade, inclusive o prefeito, a primeira dama e
Amelodentina que não queria sair de perto da tenda de bonecas.
Sargento Calcion desfilava vagaroso entre a multidão juntamente com outros dois cálcios fardados, mantendo a ordem
daquele ilustre acontecimento. Oncoblasto estava sentado em
uma barraca de fluorita tomando seu líquido com toda satisfação, conversando sério, talvez sobre assuntos administrativos,
com Obariloclasto. Ao fundo, via–se Oncoclastos tentando acertar alguns alvos de streptos numa barraca de tiro ao alvo sem
muito sucesso.
A Liga de Amálgama estava logo mais à frente, bem próximo à praça de Incisivos Centrales, todos sentados apreciando a
festa e, mesmo que tentassem se manter um pouco afastados da
multidão devido aos assédios dos novos fãs, os pequenos odontoblastos infantis não deixavam de se aproximar deles. Prata estava se divertindo ao ver algumas apatitazinhas imitarem–na,
brincando de Liga de Amálgama, porém já não agradava muito
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ao Cobre que, mesmo recebendo críticas dos companheiros, ainda mantinha aquela velha cara amarrada.
Madame Mielina ainda não estava presente, mas havia
avisado que chegaria tarde, pois estava abarrotada de serviços a
mando de seu marido, mesmo sendo final de semana.
Agente Calcin estava de folga naquele dia, afinal de contas, ser conhecido do prefeito era uma qualidade até boa, sem
falar nos serviços prestados. Sargento Calcion não o incomodava mais, Calcin tinha a impressão que muita coisa em relação ao
sargento havia mudado desde então. Mal sabia o agente, porém,
que Calcion enxergava em seu agente um possível substituto
para os anos futuros, mas nunca citou nada em relação a estes
pensamentos.
Calcin andava lentamente virando seu pescoço em todas
as direções procurando pela secretária, mas até aquele momento não a havia visto. Entretanto, naquele instante fora interrompido por dois cálcios que vinham em sua direção e que o agente
não tinha percebido.
– Bom dia, agente Calcin? – cumprimentou um dos cálcios.
– Você? – respondeu Calcin reconhecendo o cálcio. – Como
é bom ver você tão bem.
– Meu amigo aqui ainda está com uma perna engessada,
mas é coisa boba, logo estaremos à ativa novamente.
Tratava–se de Calcine e Calcitis, os dois oficiais feridos
em Molares pelos streptos, que, à paisana, andavam apreciando
a festa.
– O negócio foi tão feio que o Dr. Fibron pensou que Calcitis não iria agüentar – disse Calcine.
– É, e veja eu aqui – sorriu Calcitis mostrando sua perna
engessada. – Até que não estou tão mal assim. O que me depri-
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Fabiano Freire
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me um pouco é o fato do Doutor não poder vir à festa. Queria eu
mesmo agradecer pelo que fez, mas o importante é que a Liga de
Amálgama e você estão aqui e poderei agradecer pessoalmente
a vocês.
– Ora, não se incomode Calcitis – aliviou Calcin. – Tenho
certeza que de modo contrário vocês teriam feito a mesma coisa,
ou melhor, fizeram. Foram muito corajosos de entrar em Molares guiando o prefeito.
Ficaram ali se gabando por alguns instantes até que, de
relance, Calcin enxergou Anipatita tomando um sorvete de fluorita bem próximo onde estava o prefeito e a primeira dama. Isso
o inibiu de sair correndo em direção à moça.
Calcine e Calcitis continuavam a falar, mas o agente já não
conseguia prestar atenção em suas palavras. Tudo era Anipatita
daquela hora em diante.
– É verdade – respondeu o agente olhando para a apatita.
– É verdade o quê, Calcin? – perguntou Calcine não entendendo a resposta do agente.
– Ora, me desculpem – disse Calcin tossindo. – Eu tenho
que fazer uma coisa e depois a gente se fala de novo.
Calcin começou a andar em direção a uma barraca montada ao lado da que estava Anipatita, e os dois cálcios tagarelas
ficaram sozinhos e vendidos.
Foi Sra. Dentina quem percebeu o agente se esfregando
entre alguns odontoblastos para poder chegar até a barraca.
– Olhe quem está aqui! – exclamou a primeira dama alertando.
Calcin tentou se esconder, mas já era tarde demais. Deu
uma jogada de corpo meio que sem jeito como se tivesse percebido eles também naquele instante, mas foi Sr. Esmalte quem foi
ao seu encontro puxando conversa.
– Grande garoto! – exclamou o prefeito jogando sua mão
no ombro de Calcin novamente. – Estava sentindo sua falta
aqui.
– Acabei de encontrar os oficiais que estavam com o senhor em Molares – jogou muito bem Calcin a ponto de afastar o
prefeito dali.
– Verdade? Onde eles estão? – perguntou curioso o prefeito olhando a sua volta. – Queria muito encontrá–los.
– Eles estavam indo encontrar a Liga de Amálgama perto
da praça – disse Calcin já apontando o local. – Deve ser para lá
que foram.
Sra. Dentina, que não era boba, sacou imediatamente que
Anipatita estava completamente desajustada. Quando havia dito
que Calcin estava por perto, ela quase engoliu o resto de sorvete.
– Vamos querido? – disse Dentina segurando a mão de
Amelodentina. – Acho melhor irmos ao encontro da Liga e dos
oficiais – e cumprimentou o agente, disse. – É bom vê–lo, Calcin.
– Muito bom vê–la também, Sra. Dentina – respondeu
meio sem graça. – Amelodentina está crescendo e ficando muito
bonita.
– Está puxando a mãe – interveio Sr. Esmalte tocando no
rosto da esposa – Bom, então já vamos. Veremos-nos de novo,
Calcin.
Calcin acenou com a cabeça e acompanhou com os olhos
a saída da família, voltando novamente o olhar para a secretária.
– Você não emenda, não é mesmo? – respondeu Anipatita
deixando escapar um sorriso singelo. – Manda um sinal, alguém
avisar. Sei lá, mas não vacile perto do prefeito.
– E eu consigo? – disse Calcin já se aproximando.
– Eu também não. O pior é que já estão começando a des-
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Fabiano Freire
Incisivocity
confiar.
– Quem está desconfiando?
– Desconfiando não seria a melhor palavra agora. Eu diria
sabendo de tudo mesmo – corrigiu–se Anipatita. – Madame Mielina já sabe e tenho certeza que Sra. Dentina também.
Muitas coisas deveriam ser levadas em conta na união da
apatita com o cálcio, principalmente o fato de se tratar da secretária do prefeito. Calcin temia pelo emprego de Anipatita que,
por sua vez, não queria expor um agente de alta confiança de
Esmalte.
– Sabe, linda, existe um lugar que gostaria de levá–la –
lembrou–se Calcin. – Mas acho que você não vai querer sair daqui agora.
– Você está brincando!– adiantou–se Anipatita. – E onde
seria?
– Bom, é além das fronteiras urbanas de Incisivocity, depois dos bairros inferiores. É justamente onde segue o caminho
para Estomagolópolis e Pulmolândia.
– É longe um pouco – disse ela. – O que tem lá?
– Bom, aí seria a parte cabível da surpresa.
Anipatita e Calcin ainda ficaram algum tempo dando as
caras na festa, pois seria percebível demais a saída de ambos
logo após terem se encontrado.
Sr. Esmalte aproximou–se de onde estavam a Liga de
Amálgama e os dois cálcios, naquele momento também estava
chegando o veículo presidencial trazendo Madame Mielina à
frente de uma caravana de automóveis azuis.
– Ótimo, parece que Madame Mielina conseguiu trazer
o que encomendei sem maiores problemas – disse Sr. Esmalte
percebendo a chegada da comitiva.
– Desculpe–me senhor prefeito, mas o que poderia ser
tão importante para que a comitiva do Sistema Nervoso Central
trouxesse? – perguntou a Prata.
– Pedi para que Madame Mielina comunicasse todo o
ocorrido em Molares para o Sistema Nervoso Central e assim
conseguisse a liberação para máscaras de desoxigenação para
nossos mais novos convidados ilustres – respondeu Esmalte.
– Os cementócitos – respondeu antecipadamente Sra.
Dentina. – Esmalte não parou de falar nessas máscaras um só
dia desta semana.
– Tão óbvio quanto às chuvas periódicas de flúor que
acontecem duas vezes ao ano – complementou o prefeito. – Eles
vivem pouco tempo em presença de oxigênio, não é mesmo? Então, com as máscaras desoxigenadoras eles poderão participar
da festa sem se preocuparem com o tempo.
– A ideia é excelente, mas por que o aval do Sistema Nervoso Central para a liberação das máscaras? – perguntou o Estanho.
– Na verdade, o caso não seria as máscaras e sim a presença desses cementócitos por muito tempo na superfície – respondeu Esmalte. – Naquela comitiva estão os agentes especiais
do pelotão do Sistema Imunológico, os Linfócitos, assim eles reconhecerão os cementócitos e evitarão que o próprio sistema os
ataque.
Quando Madame Mielina finalmente se aproximou de Sr.
Esmalte e companhia, todos já estavam ansiosos por esperar
como sucederia a manobra. Os agentes linfóides que desceram
dos demais veículos eram fortes e traziam uma expressão séria,
até mesmo o sargento Calcion deduziu que se tratavam de pessoal altamente treinado. Não se aproximaram, ficaram somente
olhando ao redor como se estivessem procurando por alguma
coisa e não faziam muitos movimentos bruscos.
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Incisivocity
Sr. Esmalte olhou para o relógio e depois para o centro da
praça, se encaminhando naquela direção, seguido pelos que estavam próximos. Madame Mielina se aproximou de Sra. Dentina
e Amelodentina acariciando a menina levemente. Sargento Calcion, Calcine e Calcitis também acompanharam o prefeito junto
à Liga de Amálgama.
– É melhor ficarmos aqui, Sra. Dentina – alertou Mielina. –
Não queremos que haja contratempos nesta operação.
– É arriscado, Madame Mielina? – perguntou Sra. Dentina
começando a ficar preocupada.
– Não, pelo contrário. É bastante simples, mas o procedimento é para evitar que alguma coisa aconteça mesmo. Pelo
que parece, Sr. Esmalte combinou com Cementom de aparecer
em algum lugar na praça e esses cementócitos vão abrir alguma
fenda no chão. Como não sabemos onde, é melhor ficarmos aqui
e aguardar.
Dos agentes especiais que estavam no local, somente um
seguiu em direção ao prefeito. O mais baixo dos linfócitos, porém com ar mais sagaz, saiu em passos rápidos. Sra. Dentina
percebeu que em seu uniforme havia uma letra B na parte das
costas, mas resolveu ficar calada somente observando.
Sr. Esmalte se aproximou de um dos três coretos que a
praça possuía e olhou ao relógio novamente.
– Está na hora – disse para que todos que o acompanhavam ouvissem. – Afastem-se um pouco.
Houve um pequeno tremor, mas nada aconteceu. Calcitis
e Calcine se entreolharam enquanto Calcion, todo curioso, dava
pequenos passinhos aproximando-se mais do prefeito e esticando o pescoço em direção a uma pequena porta embaixo do coreto, de onde vinha algum barulho.
Quando a maçaneta girou, Cementom apareceu procuran-
do pelo prefeito. Sr. Esmalte foi até ele e disse algo o fazendo
retornar.
– Por favor, senhores, tragam as máscaras – ordenou o
prefeito.
Mesmo com a perna engessada, Calcitis começou a caminhar rapidamente em direção aos veículos presidenciais junto
com os demais.
– Quem são eles, mamãe? – perguntou Amelodentina segurando com toda força sua boneca Diamanta, demonstrando
certo receio aos cementócitos que iam saindo do coreto e colocando as máscaras desoxigenadoras.
– Não se preocupe, filhinha. Estes são os amigos que ajudaram o papai em Molares Superiores.
– E por que eles têm olhos tão grandes? – perguntou a
menina novamente.
– No subsolo é muito escuro, Amelodentina. – foi a vez de
Madame Mielina responder. – Assim, eles enxergam com maior
facilidade lá dentro, sem se machucarem.
Entretanto, Amelodentina também ficou muito curiosa
quando um pequeno menino saiu segurando as mãos de uma
cementócita muito bonita. Os olhos do menino, apesar de serem
muito grande como dos demais, tinha uma coloração azul quase que fosforescente, o que deixou a menina bastante intrigada,
pois eram iguais aos da mãe.
– Sra. Dentina, Madame Mielina; esta é minha esposa Célica e meu filho Célion – disse Cementom.
– Puxa como seu filho se parece com a senhora, Dona Célica? – argumentou Sra. Dentina.
– Ah, sim. Cementom vive dizendo isso o tempo todo – comentou Célica observando também Amelodentina. – É sua filha?
Que linda!
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Incisivocity
– Obrigada – e se dirigiu à filha. – Amelodentina, esta cementócita é casada com o cementócito que ajudou seu pai.
Amelodentina deu uma rápida olhada em Célica e voltou
sua atenção ao garoto, que, por sua vez, também estava olhando
para ela.
– Oi, sou Célion – disse o menino.
– Oi, Célion. Você também tem de usar máscara? – a menina deixou escapar logo uma das perguntas que estava entalando
em sua mente.
– Acho que sim. Meu pai falou que se não a usarmos, não
poderemos ficar por muito tempo. E parece que aqui está muito
legal.
– Você já andou de carrossel, Célion? – perguntou novamente Amelodentina.
– Carrossel? – devolveu outra pergunta o garoto fazendo
uma cara de quem nunca havia nem ouvido falar sobre o brinquedo. – Vocês andam de carrossel? E o quê é isso?
– Ora, Célion. – interveio Madame Mielina. – É uma coisa
muito boa, tenho certeza que você vai gostar muito de dar voltas
e voltas no carrossel – e voltou-se para as mães. – Podem ficar
tranquilas que eu tomo conta deles enquanto vocês duas passeiam pelas barracas.
Não seria incômodo algum para Madame Mielina, já que
bancar a babá era seu hobby preferido. E assim passou muitas
horas se divertindo com as crianças, tanto no carrossel como na
roda gigante e outros brinquedos da festa.
– Vocês fizeram um ótimo serviço em Molares – disse o
prefeito para a Liga de Amálgama e Cementom. – Molares Superiores está completamente restaurado.
– Claro que não usamos de estruturas originais, mas os
prédios estão completamente seguros revestidos de amálgama
– complementou o Cobre.
– E garanto que as raízes também estão seguras – disse
Cementom. – Nós, cementócitos, não ficaríamos tranquilos sabendo que em cima de nós existem prédios sem estruturas fixas.
– Foi um verdadeiro trabalho de equipe – concluiu o prefeito. – A ação dos cálcios, bravos e corajosos, a reestruturação
das paredes adjacentes na combinação de tarefas dos odontoblastos, odontoclastos e apatitas. Sem contar a Liga de Amálgama que foi de suma importância nestas restaurações e também
dos cementócitos que honraram suas características sigilosas.
É assim que Incisivocity deverá ser formada, seremos um complexo forte, que dará ao sistema toda a segurança para uma vida
tranquila.
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•••
O veículo de Calcin já estava concluindo sua travessia pelos bairros Molares Decíduos Inferiores e os primeiros limites
físicos da cidade já eram claramente notados. O solo era bem
mais farto e Calcin lembrava Anipatita de que aquele solo faria
parte do futuro de Incisivocity, e a apatita, por sua vez, adiantava
que já havia visto projetos de construções futuras muito bem
arquitetadas.
Outra coisa que chamava a atenção de Anipatita era o fato
de que, a cada minuto que eles se distanciavam da cidade, ficava
também mais escuro. Contudo, não se tratava de uma escuridão
sombria e aterrorizante, mas uma escuridão lustrosa e avermelhada como um pôr de sol de aurora boreal. Era realmente bonito de se ver.
– Onde estamos indo, Calcin? – perguntou Anipatita com
Fabiano Freire
Incisivocity
uma convicta curiosidade.
– Vou lhe mostrar um lugar chamado de Trígono Retro Molar – disse ele seguro. – É uma região ainda em formação, onde
o rio Salivar escorre em cataratas seguindo rente à estrada que
leva à Estomagolópolis, bem no limite final de nossa cidade.
Passaram por uma vasta região deserta, mas bastante irrigada pelo rio que vinha das porções centrais de Incisivocity.
Anipatita estava maravilhada, pois nunca havia estado ali antes
e tinha quase toda a certeza de que, entre as apatitas da cidade,
estava sendo a pioneira a ver tal região.
Calcin ficava observando-a temporariamente enquanto
dirigia e realmente havia gostado daquele novo visual trançado
de seus cabelos.
– Está realmente gostando deste novo penteado, não é
mesmo? – disse ele olhando para frente.
– É interessante, mas desde que estou usando–o, me sinto
muito mais segura. Me trás alguma coisa de minha infância, misturada à maturidade dos tempos atuais.
Calcin não havia entendido direito, mas estava decidido a
ouvi-la sobre tudo o que ela quisesse falar. Continuava dirigindo,
olhando para frente e dando algumas olhadelas quando o caminho seguia reto.
– Sabia que Amelodentina foi quem fez este penteado pela
primeira vez? – disse ela abrindo um grande sorriso. – Disse que
me pareço com Diamanta.
– Quem? – perguntou pela primeira vez o agente.
– Diamanta é a sua boneca mais querida – continuou ela.
– A estória dessa boneca é uma estória de superação, e ingenuidade – e Anipatita repetiu toda estória que Amelodentina havia
lhe dito sobre a boneca.
– Puxa então o Sr. Esmalte foi muito sábio em tratar das
fobias de Amelodentina – concluiu Calcin. – Creio que não teria
pensado em nada parecido.
– Nem eu – acrescentou a apatita. – De alguma forma,
aquela boneca fez-me lembrar da época em que perdi meus pais
em Molares. Era muito pequena e tive de superar meus próprios
medos – e abaixou seu rosto com um semblante entristecido. –
Queria eu ter uma boneca assim para desviar minhas tensões.
– Ora, por que ter uma boneca dessas, se você é a própria
Diamanta em pessoa? – descontraiu Calcin quebrando o clima
que estava se iniciando e fazendo a secretária dar as primeiras
gargalhadas da tarde.
– Então você é o meu “soldadinho de chumbo” – completou Anipatita esfregando os olhos e sorrindo graciosamente.
Os trechos que se seguiram não se modificaram por um
longo tempo, até que eles chegaram a uma região na qual teriam de subir uma serra bastante íngreme. Dentre derrapadas
e risadas, ambos seguiram ansiosos pelo momento de chegar ao
ponto almejado por Calcin.
Quando lá finalmente chegaram, Anipatita soltou um
grande suspiro de emoção e pavor ao mesmo tempo. Jamais havia visto nada semelhante em sua vida.
O caminho descrito por Calcin que levava até Estomagolópolis e Pulmolândia se dividia em dois e descia por uma estrada
escura e avermelhada muito brilhante, numa descida quase que
eterna. Entre as duas estradas descia também o rio Salivar que
deslizava em uma queda maravilhosa.
– Que coisa mais emocionante! – dizia ela abraçada firmemente ao agente, com medo de sair escorregando caminho
abaixo. – Como descobriu um lugar tão diferente quanto este?
– Na verdade quem me indicou o caminho foi Cementom,
quando estávamos em direção à saída dos túneis de Molares Su-
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periores. Estive aqui esta semana para estudar o lugar a fim de
trazê–la para ver de verdade. Talvez não tivesse acreditado se
apenas lhe tivesse contado.
– Não mesmo! – concordou ela. – Todos nós sabemos das
divisas da cidade, mas nunca nenhum habitante de Incisivocity
saiu de nossas proximidades.
– Talvez você seja a primeira cidadã de Incisivocity a conhecer um lugar como este, Anipatita.
Anipatita sentia-se orgulhosa por aquele comentário, já
que estava mesmo deduzindo isso. Nem mesmo Sra. Dentina conhecia uma região tão empolgante quanto aquela.
– Na verdade, trouxe-lhe aqui para te perguntar uma coisa, Anipatita.
O coração da apatita pulsava tão forte que ela tinha quase
certeza de que Calcin poderia escutá-lo, já era muito para uma
simples apatita estar vivendo tanta emoção e agora Calcin vinha
com outra surpresa da qual ela mesma não tinha certeza do que
seria.
Calcin então se ajoelhou em frente da secretária, fazendo com que ela começasse a suar frio e ficar com as pernas tão
bambas que já não saberia que pudesse ficar de pé.
O agente então colocou uma das mãos para trás trazendo
uma caixinha azul metálica com um laço branco envolvendo-a.
Anipatita sentiu as vistas escurecerem por alguns instantes, mas
não podia desmaiar, pois estava sendo divino demais aquele momento.
Talvez todas as situações mais inusitadas de sua vida teriam lhe passado pela cabeça e mesmo assim não seria nada
comparado com aquilo que parecia estar mesmo acontecendo.
Calcin então ergueu a mão onde trazia a caixinha, já aberta, com uma aliança em pérola, mais brilhante do que qualquer
parede de cada casa existente em Incisivocity e começou a dizer
ofegante e trêmulo.
– Quer se casar comigo, Anipatita?
Nunca em sua vida, Anipatita sentiu seu organismo agir
daquela forma. Tudo em seu corpo estava descompensado e até
mesmo seu raciocínio estava travado, coisa rara de lhe acontecer. Calcin permanecia no chão com aquela cara de criança que
pedia uma bicicleta de natal, nem piscava os olhos.
– Tem certeza do que está fazendo, Calcin? – perguntou
ela trêmula, mas mantendo um sorriso agradável e os olhos
úmidos.
– De todas as coisas que já fiz em minha vida, é a primeira que não pensei duas vezes – respondeu ele também umedecendo a vista. – Por quê? Você não quer?
Anipatita segurou com as duas mãos os braços do agente
e o puxou para cima com toda sua força, fazendo o agente dar
um salto. Já de pé, a apatita pôs a olhá-lo profundamente, não
se segurando mais e deixando as primeiras lágrimas caírem.
– Eu nunca me apaixonei por ninguém até conhecer
você, Calcin. O problema é que não tenho nada a lhe oferecer
como esposa, nem mesmo moro em uma casa que seja minha.
Sempre tive problemas em minha vida e acho que você, como
agente da força policicálcio, iria querer uma mulher de maior
destaque em nossa sociedade.
Foi a vez de Calcin segurá-la com força e deixar também
ser entregue às lágrimas.
– E o que você acha que eu tenho? Bom, para ser sincero
acho que as roupas de cama, pois até as fardas que uso são fornecidas pela força policicálcio.
Anipatita ficou olhando-o por alguns segundos e imaginando coisas que nunca Calcin, mesmo com sua experiência
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Fabiano Freire
como agente, poderia imaginar.
– Se você acha que isso é um problema então, estamos
realmente encrencados – continuou o agente. – Tenho certeza
de que tenho muito menos a lhe oferecer.
– Não, você não tem – respondeu ela. – Gostaria que
minha mãe estivesse aqui para me ver agora. Nunca fiquei tão
feliz em toda minha vida e tenho certeza também que nada em
minha vida se compara a isso – e completou. – A resposta é sim,
agente Calcin. Eu quero ser sua esposa.
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Incisivocity
Capítulo 10
Já era a quinta vez que Célion dava voltas no carrossel
acompanhado de Amelodentina que se divertia tanto quanto o
cementócitozinho. Madame Mielina acompanhada de dois linfócitos seguranças acompanhava a diversão toda sorridente como
se aquelas crianças fossem realmente suas.
Amelodentina dava tanta gargalhada de ver as trapalhadas de Célion no carrossel, que todos que passavam em volta do
brinquedo paravam para apreciá-la sorrir. Célion, por sua vez,
ficava um pouco envergonhado um pouco conformado, aliás, era
uma experiência completamente nova para ele.
O cementócito chegou a cair inúmeras vezes de cima de
um cavalinho cinza pelo fato de não saber se apoiar direito, o
que divertia ainda mais a todos que também o olhavam. Contudo, Amelodentina, ao ver que o garoto não iria conseguir segurar
direito, talvez pelo seu tamanho disforme, pulou para a garupa
de Célion que tomou um susto ao ver sua nova amiga atrás dele.
– Você não vai conseguir ficar aqui em cima por muito
tempo com estas pernas tão curtas – alertou Amelodentina. –
Preste bem atenção.
E a menina passou suas mãos por baixo dos ombros de
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Célion, abraçando o pescoço do cavalo e levando as mãos do cementócito junto.
– Seus braços são mais cumpridos do que suas pernas, então vai sentir-se mais seguro assim – disse ela olhando para ele
por cima de seu ombro direto.
Ambos continuaram ali por muito tempo, o que provavelmente daria à Madame Mielina horas ainda de vigília.
Sra. Dentina e Dona Célica estavam tomando Fluorita,
apreciando o movimento de apatitas, odontoblastos e odontoclastos por todos os cantos até que a Prata se aproximou.
– Dá gosto ver suas crianças brincando, sabia?
– Amelodentina é uma menina muito sozinha – disse Sra.
Dentina olhando em direção ao carrossel. – Raramente ela costuma brincar com outras crianças onde moramos.
– Engraçado você dizer isso, pois Célion é um garoto muito sistemático – foi a vez de Célica. – Difícil é vê–lo se entrosar
com outra criança como está acontecendo agora.
– Amelodentina parece ser muito extrovertida – acrescentou a Prata. – Ela capta a atenção das pessoas para ela.
– Madame Mielina se apaixonou por ela no primeiro dia
que a viu – Sra. Dentinalembrou-se quando Madame Mielina esteve pela primeira vez no gabinete do prefeito.
– Não é tão difícil de apaixonar por ela – disse Dona Célica.
– Fiquei encantada quando Amelodentina convidou Célion para
brincar no carrossel com ela. Se não fosse por isso, meu filho
estaria aqui conosco sem aproveitar um pouquinho que fosse
da festa.
– Madame Mielina também é uma grande pessoa, não é
mesmo? – disse a Prata observando as redondezas do brinquedo.
– Com certeza. Por falar nisso, Prata, você já esteve com o
Sistema Nervoso Central? – perguntou a primeira dama curiosa.
– Pelo que Esmalte me disse, vocês foram alertados pelo sistema
do ocorrido em Molares, não é mesmo?
– Na verdade, foi o Sistema Nervoso Periférico quem nos
alertou. Nunca tivemos contato direto com o sistema, apesar de
nossas ligações, mas acredito que para chegar ao sistema nervoso central o único caminho é por Mielina mesmo.
– Engraçado Cementom nunca falar nada sobre o Sistema
Nervoso Central – disse Dona Célica tomando mais um gole de
fluorita.
– Vocês são fortemente protegidos pelo sistema linfático,
Dona Célica – apontou a Prata. – Antes de alguma coisa afetá-los
embaixo de Incisivocity, teria de passar pelo sistema de defesa
principal ou então pela própria cidade na superfície.
– Talvez, se não fosse pelo incidente em Molares, nós nunca teríamos conhecimento de que havia uma sociedade embaixo
de nossos pés – concluiu Dentina.
Quando Madame Mielina retornou com as crianças, a Prata já estava pronta para se retirar se não fosse por uma indagação bastante curiosa feita por Amelodentina.
– Vocês podem restaurar qualquer parte da cidade?
A Prata se voltou bastante abismada com a precisão da
pergunta. Ninguém até aquele momento, nem mesmo Sr. Esmalte, havia feita tão oportuna indagação. Tanto Madame Mielina
como as demais mães ficaram petrificadas esperando a resposta do principal membro da Liga de Amálgama. A Prata então se
abaixou para poder ficar à altura das duas crianças e, colocando
a mão sobre a cabeça de Amelodentina, explicou.
– Podemos restaurar qualquer região de Incisivocity contanto que não haja condenação de suas raízes, porém se o centro da cidade, por algum motivo, for afetado, nós não teríamos
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uma força de ação tão precisa.
Amelodentina abaixou a cabeça como se estivesse pensando sobre alguma coisa. Célion arregalou ainda mais seus
grandes olhos azulados seguido por Sra. Dentina e Dona Célica.
Madame Mielina fechou uma das sobrancelhas se auto perguntando o porquê de não conseguirem uma ação dessas no centro
da cidade.
– Então, se Incisivo Centrales for atacada por estes bichos
vocês não poderão fazer nada? – perguntou novamente a menina tirando da boca de todos a mesma indagação.
– Na verdade poderíamos agir contra os bichos, Amelodentina – respondeu com uma expressão de desapontamento. –
Mas nada mais do que isso – e voltando-se para as senhoras. – Se
Incisivo Centrales for danificada, não poderíamos fazer nada.
Ao ver a expressão frustrante de Amelodentina, Prata
pôs-se a se redimir quase que imediatamente para não deixá-la
tão confusa.
– Contudo pode ficar tranquila, minha cara amiguinha –
disse ela esfregando a cabeça de Amelodentina. – Incisivocity
tem uma força de proteção que dá inveja até mesmo em nós da
Liga de Amálgama.
Seguido de Cementom, Calcion e os demais membros da
Liga de Amálgama, Sr. Esmalte chegou lentamente com os braços para trás curtindo aquele momento de alegria vindo de todos os cantos do centro da cidade. De outro lado também chegaram Oncoblasto e Obariloclasto, que vinham discutindo futuros
projetos na área de construção e administração da cidade.
– Por favor, Madame Mielina – disse o prefeito cumprimentando com um simples gesto de cabeça as demais madames
daquela roda. – Quando se encontrar com o Sistema Nervoso
Central novamente peça para que entre em contato com os oste-
ócitos para mim. Quero que um representante deles venha visitar Incisivocity para que eu lhe repasse alguns planos para uma
linha de trânsito subterrânea em nossa cidade.
– Assim que retornar, Sr. Esmalte. – respondeu ela.
– Parece que temos grandes planos para Incisivocity, não
é mesmo, querido? – disse Sra. Dentina querendo uma resposta
que lhe atenuasse a curiosidade pelo que seria.
– Desculpe-me, querida Dentina. – respondeu o prefeito
já sabendo o que queria a esposa. – Não falei nada com você antes, pois queria conversar com Cementom primeiro. Não sabia
se minhas ideias poderiam ser realizadas e, se pudessem, qual
o caminho deveria eu seguir para conseguir realizá-las. Os osteócitos juntamente com os cementócitos poderão nos ajudar a
construir uma linha de metrô subterrânea por toda a cidade, assim os cidadãos de Incisivocity poderiam ter acesso a qualquer
lugar em menos tempo com maior praticidade.
– Mas que excelente ideia, Sr. Esmalte – afobou-se Oncoblasto.
– O que é isso, mamãe? – perguntou Amelodentina.
– Metrô é uma espécie de trem, mas que viaja bem embaixo da terra – respondeu Sra. Dentina.
– E nós também podemos andar de metrô? – perguntou
Célion já perdendo sua timidez.
– Mas é claro, meu amiguinho – respondeu o prefeito. –
Todos em Incisivocity serão beneficiados com nossas linhas de
metrô.
Naquela mesma tarde, a Cárie estava sentada batendo os
dedos sobre a mesa de seu escritório ansiosa por alguma coisa
da qual nem mesmo Ácido Açucarado tinha noção do que era.
Depois de ter ficado horas parado na sala da companheira sem
nem mesmo ter sido esclarecido de nada, o capitão das forças
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negativas da Cárie retirou-seaborrecido.
Os minutos pareciam ser horas na cabeça da Cárie que,
por várias vezes, olhou o relógio da parede reclamando dos ponteiros que pareciam não se mover, até que um actinomyce entrou lentamente na sala sem ser percebido pelo chefe principal.
−Estamos conseguindo reunir mais streptos, Dona Cárie.
Cárie rapidamente levanta-se de sua cadeira assustada ao
ver que o actinomyce tinha adentrado na sua sala sem que ela
percebesse.
−Melhor mesmo – disse ela suspirando e voltando a se
sentar. – De acordo com meus novos planos, os streptos serão
uma peça chave para que tudo dê certo desta vez.
−E o que pretende agora, já que Incisivocity está reforçando suas defesas? – perguntou com um ar meio debochado,
irritando um pouco a Cárie.
−Cansei de tentar atacar pelas beiradas – disse ela se levantando novamente e dirigindo-se ao actinomyce. – O conjunto
de ataque que promoveram em Molares foi uma piada de mau
gosto tremenda.
−Se tivesse deixado a estratégia de ataque por conta de
nós, com certeza a situação teria tomado um rumo diferente – o
actinomyce respondeu levemente ao perceber o tom enfurecido
da Cárie.
−E que rumo teria dado à história se estivessem lá, seu
actinomyce medíocre! – interrompeu Ácido Açucarado que retornou imediatamente à sala quando percebeu que a porta estava aberta. – Na certa estariam soterrados com o resto dos streptos.
– Pena você não ter caído com seu apático exército – retrucou o actinomyce.
– O que vai cair será sua cabeça se continuar dizendo bes-
teiras, seu... – Ácido Açucarado começou a partir para cima da
bactéria quando foi interrompido pela Cárie.
– Deixem de tolices! – interveio ela. – Afinal de contas,
para minha próxima manobra, terei de contar com a participação de todos novamente.
Antes mesmo de continuar a falar sobre o novo plano, o
telefone da sala tocou fazendo com que todos nela presente se
assustassem. Cárie atendeu logo e soltou um sorriso de contentamento quando percebeu quem falava do outro lado.
– Tentei entrar em contato com você a semana inteira,
mas sua secretária disse que estava ocupado – dizia a Cárie ao
telefone. – Então quando poderemos nos encontrar?
Ácido Açucarado só não partia para cima do actinomyce
porque estava mais interessado em saber quem estava falando
com seu chefe naquele momento.
– Então o aguardo em minha sala, nobre amigo – completou ela antes de desligar o aparelho. – Pronto, está feito. Em
pouco tempo vocês conhecerão um dos mais temíveis adversários de todo o sistema, e não falo de uma pessoa só, é uma
legião inteira.
E novamente a Cárie libera suas gargalhadas maléficas
deixando o actinomyce e o ácido boquiaberto a olharem um
para o outro sem entender nada.
Naquela mesma noite, Calcin havia deixado Anipatita em
seu apartamento em Incisivo Centrales e devolvido o veículo
público à força policicálcio, deixando o quartel de policiamento bem mais tarde, pois perdera o maior tempo reencontrando
Calcitis, que começou aquela conversa de agradecimentos que o
agente menos queria ouvir naquele momento.
Tinha tido uma tarde surpreendente em companhia de
Anipatita e por nada queria quebrar aquele clima de romance
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do qual fazia o possível para continuar sentindo pelo caminho
de volta para sua casa em Incisivo Laterales.
Fora caminhando devagar apreciando a noite agradável
que se formava antes das estações chuvosas de flúor que ocorriam no meio do ano. De vez em quando fazia umas dançinhas
pela calçada quando notava que não havia ninguém andando
por perto, pois, poderiam imaginar que se tratava de um maluco
bêbado pela noite, porém mesmo que alguém o flagrasse dançando, nem ele mesmo daria créditos.
Anipatita seria dele e por mais que estivesse ansioso naquela tarde, naquele momento estava tão em paz consigo mesmo que poderia encontrar o sargento que até beijaria sua testa
se fosse preciso.
Assim Calcin fora caminhando e aos poucos cantarolando
também, olhava os pequenos monumentos erguidos próximo à
praça central, poucas barracas que ainda estavam montadas, porém vazias, e até mesmo alguns casais dispersos pela praça. Um
momento de paz para Incisivocity que passara ultimamente por
momentos difíceis.
Na porção central da praça, o coreto principal abrigava
ainda alguns odontoclastos boêmios que ao avistar o agente ainda cantaram alguma coisa para ele, inaudível, mas agradável.
Há muito tempo não se sentia tão dono de si, desde que
ingressou na força policicálcio. Com o noivado aceito, eles não
teriam mais que encontrar-se às escondidas como vinham fazendo e o melhor, seria visto como um homem de família por
toda sociedade de Incisivocity. Ele mesmo tinha suas dúvidas de
que era tratado, por alguns, como moleque ou garoto, o que o
deixava muito aborrecido.
Quando estava terminando de atravessar a praça central
da cidade, o agente não pôde deixar de notar uma bolsa escu-
ra jogada em um canto quase imperceptível, talvez nem mesmo
Calcin tivesse a notado se não estivesse disperso e envolvido
nos acontecimentos recentes. Outra coisa que também chamou
a atenção de Calcin era o fato de a pequena bolsa ser de cor escura, o que não era comum entre os habitantes de Incisivocity. Ao
se aproximar, notou outra coisa esquisita, o feixe estava aberto e
Calcin pôde averiguar que uma manga de jaqueta estava quase
saindo pela abertura. Resolveu não tocar na bolsa antes de observar direito do que se tratava e, no meio de suas observações,
notou que a jaqueta branca que estava lá dentro era da força
policicálcio de Incisivocity.
– Um uniforme de oficial dentro de uma bolsa destas? –
sussurrou consigo mesmo. – Tem alguma coisa errada nisso.
Não havia dúvidas de que coisa boa não era. Calcin temia
o fato de algum oficial ter sido sequestrado, já que estaria enfrentando um momento bastante crítico contra os opositores
do governo de Sr. Esmalte. Sendo assim, resolveu ligar para o
sargento temendo o fato de haver bactérias presentes na região
central da cidade.
Quando Calcion chegou ao local com mais uma dúzia de
oficiais, ele foi logo observando a bolsa citada por Calcin. Calçou
um par de luvas e começou uma análise, primeiro pela parte de
fora, depois passou a remexer por dentro onde estava a roupa.
– Quando foi que você percebeu esta bolsa, Calcin? – perguntou o sargento ainda analisando a peça.
– Um pouco antes de ligar para o senhor, sargento – respondeu. – É uma jaqueta da unidade central da força policicálcio, não é mesmo?
– Exatamente – concluiu o sargento levantando a jaqueta
e apontando o emblema no braço direito onde se viam as iniciais
FPI, Força Policicálcio de Incisivocity.
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– Não é melhor alertar o prefeito? – perguntou novamente
o agente.
– Vamos levar primeiramente a jaqueta para análise antes
de avisá-lo – discordou Calcion. – Vou avisar o departamento sobre o ocorrido e pedir a presença de dois oficiais em vigília no
prédio do prefeito. Quando tivermos os resultados das análises
aí sim vamos expor os fatos ao Sr. Esmalte com toda a segurança
e com informações exatas.
Porém, havia outra coisa esquisita naquela bolsa que
Calcin não havia notado uma repartição lateral com um cartão
alaranjado. Calcion apanhou-o e notou imediatamente que emanava certo odor incômodo. Além disso, havia algumas coordenadas escritas nele, das quais o sargento não pôde compreender
logo de primeira vista.
– Este cartão esteve nas mãos de uma bactéria – disse o
sargento cheirando novamente o cartão. – O cheiro está muito
característico.
– Será que esses vermes estão em Incisivo Centrales? –
questionou agente Calcin apalpando sua pistola calcítica.
– Muito pouco provável Calcin – respondeu com segurança Calcion. – Nenhuma bactéria que se preze atacaria uma
região na presença de linfócitos. Aqui elas não estiveram. Este
bilhete esteve nas mãos de uma bactéria, com certeza, mas não
nas mediações de Incisivo Centrales.
Na manhã seguinte, uma viatura do sistema de defesa já
estava estacionada em frente ao departamento de policicálcio
e dois agentes linfóides montavam guarda. Calcin entrou correndo pela porta principal encontrando-se com Oncoblasto que
estava saindo.
– Você aqui tão cedo? – perguntou o agente parando-o no
corredor.
– Dr. Fibron me telefonou logo de manhã para que eu viesse para cá o mais rápido possível. – respondeu o odontoblasto.
– Dr. Fibron está aí? E aquela viatura do Sistema Imunológico parada do lado de fora?
– Está aí também Linfon T – respondeu Oncoblasto já se
preparando para seguir em frente quando Calcin o agarrou pelo
braço.
– Não está me dizendo que...
– Sim – interrompeu Oncoblasto – O próprio delegado federal de investigação.
– Então o negócio é muito sério – concluiu o agente percebendo a gravidade da presença de um delegado do sistema de
defesa. – O que está acontecendo, Oncoblasto?
– É melhor você ir averiguar por conta própria, Calcin –
disse o odontoblasto já se retirando. – Calcion está lhe aguardando na sala central.
O restante dos corredores foi atravessado por Calcin em
velocidade máxima para poder alcançar a sala do sargento o
quanto antes, nem mesmo notou Calcitis o acenando em uma
das portas. Quando lá chegou, encontrou o sargento sentado em
sua mesa, Dr. Fibron de pé próximo à janela com algumas folhas
em suas mãos, o que certamente seria o resultado das análises, e
o delegado Linfon T com a jaqueta que fora encontrada na bolsa,
em uma das mãos.
– O que está acontecendo, sargento? – perguntou logo antes de fazer os cumprimentos.
– Calcin, estamos diante de uma situação delicada demais
– começou o sargento. – Você disse que não havia tocado em
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nada naquela bolsa antes de chegarmos, não é mesmo?
– Com certeza, sargento – respondeu Calcin olhando para
Linfon T que se demonstrava fixo ao olhá-lo também. – Logo que
percebi a bolsa, me aproximei para averiguá-la de perto, mas
não toquei em nada.
– Nem mesmo no conteúdo da bolsa? – foi a vez do próprio Linfon T perguntar.
– Em nada – reafirmou o agente. – O que está acontecendo, sargento? E por que está me esperando?
– Calcin, o resultado das análises está pronto – iniciou
Calcion com uma expressão nada agradável, com um toque de
desapontamento. – O cartão encontrado na bolsa veio definitivamente de um strepto.
– Por favor, sargento – interveio Calcin. – Eu não estou entendendo nada do que está acontecendo aqui, sei que tem alguma coisa errada e que não é segredo pra ninguém que o cartão
pertencia a uma bactéria, até mesmo pelo cheiro se deduzia isso,
mas vamos direto ao assunto. O que de tão grave está acontecendo?
– Calcin, onde você esteve na tarde de ontem? – perguntou Linfon T.
– Estava com Anipatita na região do Trígono Retro Molar,
por quê?
– Estamos ligando há horas para o apartamento dela e
ninguém atende – completou o sargento. – E nem ao serviço ela
apareceu hoje.
– Como é que é? – assombrou-se Calcin dando passos à
frente em direção à mesa de Calcion. – Ontem mesmo a deixei
em casa quando retornamos. Já foram ao apartamento dela?
– Foi a primeira coisa que fizemos quando as análises foram concluídas, Calcin – novamente Linfon T continuou. – Al-
guns oficiais viram vocês dois saindo de Incisivo Centrales num
automóvel público na tarde de ontem. Ela não esteve em casa
ontem.
– O que está acontecendo? – irritou-se Calcin batendo na
mesa do sargento. – Como não esteve em casa se eu mesmo a
deixei lá.
– Realmente o automóvel público esteve lá, isso alguns vizinhos nos confirmaram. O automóvel parou e saiu, mas Anipatita não entrou no prédio – disse Calcion. – Calcin, entregue seu
distintivo até segunda ordem.
– O quê? – Calcin não acreditava no que estava acontecendo. – Estão insinuando que fiz alguma coisa à Anipatita?
–Não estamos afirmando nada, agente Calcin – disse Dr.
Fibron. – Está vendo aquela jaqueta que está nas mãos de Linfon
T?
Calcin olhou novamente para o linfócito que ergueu a jaqueta exibindo-a para o agente já descontrolado.
– Dr. Fibron analisou a jaqueta que encontramos – concluiu Calcion. – Suas impressões digitais batem com as encontradas naquela jaqueta que pertence ao oficial Calcine e que
também se encontra desaparecido até o momento.
– Agente Calcin, o senhor está proibido de abandonar as
mediações de Incisivocity até segunda ordem – disse firmemente Linfon T.
– Infelizmente Calcin, exijo que entregue seu distintivo e
pistola calcítica – completou o sargento. – Vá para casa e espere
até que possamos concluir o ocorrido.
Aquele pesadelo não poderia estar sendo verdade. Calcin
sentia-se como se uma navalha tivesse riscado todo o seu corpo.
Suas pernas tremiam como se o chão também estivesse tremendo e o pior de tudo era não saber o paradeiro de Anipatita.
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– Por favor, sargento – implorou Calcin. – Tem de acreditar
em mim. Isso é um absurdo, não há como eu estar envolvido em
tamanha monstruosidade.
– Não estamos te acusando de nada ainda, Calcin – disse
Linfon T. – Só estamos pedindo para que se afaste por uns tempos.
– Como se afastar? E Anipatita, como fica? Ninguém sabe
seu paradeiro?
– Acalme-se, Calcin – disse o sargento. – Ainda temos de
esperar por vinte e quatro horas antes de confirmar o desaparecimento.
– Então me deixe encontrá-la, sargento – Calcin debruçouse sobre a mesa. – Ainda há tempo para encontrá-la se estiver
nas redondezas da cidade.
– E como vai encontrá-la, Calcin? – gritou o sargento. – Por
um acaso sabe onde ela está? Porque se souber, a situação se
complica mais ainda para você.
Calcin engoliu seco sem dizer mais uma só palavra, somente sentindo a força das acusações pesarem sobre sua cabeça. Calcin retirou da carteira seu distintivo e colocou-o sobre a
mesa, ao lado dele, também pôs sua pistola calcítica.
O agente se retirou da sala sentindo todos os olhares do
departamento dirigir-se para sua pessoa e, então, Calcin sentiuse tão humilhado que mal pôde conter suas primeiras lágrimas.
Não conseguia pensar em nada naquele momento tão
horrível, e dentre as inúmeras coisas que se passava em sua
cabeça, a imagem de Anipatita se destacava sobre todas. Havia
alguma coisa muito esquisita naquela situação toda. Sabia que
tinha deixado Anipatita no prédio onde morava de aluguel, mas
não tinha certeza de vê-la entrar. Outra coisa que não batia era
o fato de sua impressão digital estar na jaqueta de Calcine, e por
falar nisso, onde estaria ele?
Teria que falar com o prefeito a qualquer custo, mesmo
que a estas horas a notícia de que Calcin teria se tornado suspeito já deveria ter chegado à prefeitura com Oncoblasto.
Quando chegou à prefeitura, o agente foi imediatamente
barrado na entrada com a afirmação de que ele não poderia entrar sem uma ordem judicial.
– Deixem-me entrar – dizia ele completamente transtornado. – Tenho que falar com o Sr. Esmalte, tenho certeza de que
ele irá acreditar em mim.
– Por favor, Calcin – disse um dos guardas que já o conhecia. – Não complique ainda mais as coisas. Você conhece os procedimentos, é melhor voltar para casa.
– Eu não posso voltar para casa se eu não tenho nada a ver
com o que estão me acusando.
– Mas ninguém está te acusando de nada, Calcin – disse o
outro guarda. – Você ainda está sob suspeita.
Mas naquele momento, Calcin rapidamente consegue
sacar o megafone da cintura de um dos guardas e retira-se andando de costas para trás gritando no megafone fazendo todos
olharem em sua direção.
– Sr. Esmalte, sou eu, Calcin. Por favor, escute o que tenho
para dizer. Não sei o que está acontecendo, mas o sargento encontrou minhas digitais na jaqueta de Calcine e todas as suspeitas estão girando sob minha pessoa. Contudo, não sei como isto
aconteceu. Anipatita pode estar precisando de ajuda, por favor,
deixe-me vê-lo.
Sr. Esmalte estava de frente para a janela olhando a movimentação que se fazia ao redor do agente lá embaixo. Sra. Dentina estava encostada próxima ao telefone e Madame Mielina, que
já havia chegado, junto com os linfócitos.
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– Por que não o deixe entrar para ver o que tem a dizer? –
perguntou Sra. Dentina percebendo a expressão de sofrimento
no rosto do marido.
– Ele não pode, Sra. Dentina – respondeu Oncoblasto que
estava sentado num dos cantos da mesa do prefeito. – Há uma
investigação séria acontecendo por aqui e se o prefeito deixar
que o suspeito entre, também ficará sob suspeita.
– Eu também não acredito que Calcin seja culpado de
nada, mas as evidências levam justamente ao coitado – respondeu Madame Mielina. – E não podemos ceder às nossas emoções
em momentos como este. A Cárie vai jogar pesado e sabemos
muito bem disso.
– Se Calcin tivesse alguma coisa com a Cárie, Madame
Mielina, a senhora não concorda que eu seria um prato cheio
quando estive com ele sozinho em Caninos? – acrescentou o prefeito ainda olhando para baixo e vendo que, naquele momento,
os oficiais já o haviam detido. – Estive com Calcin e pude perceber suas determinações. Com certeza é um garoto ambicioso,
mas não a ponto de ceder ao mal para conseguir o que quer.
– Não estamos acusando Calcin, senhor prefeito – continuou Madame Mielina. – Estamos afirmando que é o primeiro
suspeito em questão e isso o senhor há de concordar.
Sr. Esmalte ficou olhando os oficiais colocarem Calcin na
viatura e o levar embora com o coração na mão. Realmente nada
podia fazer a favor do agente a não ser esperar pelas investigações. O problema era justamente o sumiço de dois cidadãos de
Incisivocity, sendo que se tratavam justamente de sua secretária
e de um oficial da força policicálcio.
– Convenhamos também que se trata de uma estória sem
pé nem cabeça, não é mesmo? – afirmou Sra. Dentina aborrecida pelo fato de ver o desapontamento fixar-se no semblante do
marido.
– Quero acreditar que Calcin não tenha nada a ver com
isso, eu juro, mas vou ter que ver isso pessoalmente – e o prefeito começou a se dirigir para a porta do gabinete. – Vou até ao
departamento da força policicálcio e ver o que está se passando
por lá.
Naquele instante outro personagem ilustre entra no gabinete trazendo a esposa e seu filho. Cementon entrou com uma
expressão esquisita, como se tivesse recebido uma notícia aterrorizante.
– Fiquei sabendo do ocorrido, Sr. Esmalte – disse ele um
pouco aflito. – Mas por que o senhor mandou que viesse com
minha esposa e meu filho para a prefeitura?
– Quero que Dona Célica e Célion fiquem aqui mesmo na
prefeitura, Amelodentina está na sala ao lado vigiada por um oficial da força policicálcio e aconselho levar Célion para lá – começou a esclarecer o prefeito. – Quanto a Dentina, Célica e Madame
Mielina, digo para não saírem das mediações da prefeitura. Alguma movimentação já está acontecendo do lado oposto e não
tenho bons pressentimentos. O senhor, Cementon, irá alertar
seus cementócitos acompanhado de um agente linfóide, já Oncoblasto e eu partiremos imediatamente para nos encontrarmos
com o delegado Linfon T, Dr. Fibron e sargento Calcion.
No mesmo instante em que Sr. Esmalte pegou o telefone
para ligar requerendo uma viatura de suporte para o veículo da
prefeitura, Sra. Dentina se levantou e aproximou-se do marido.
– Queria ter certeza de que nada vai acontecer a você, Esmalte.
– Mas nada vai me acontecer, minha flor – respondeu ele
tentando acalmá-la. – Estou requisitando escolta policicálcica.
Dentina não se convenceu, mas a única maneira de escla-
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recer o que estava acontecendo a Calcin era realmente indo ao
departamento para averiguação, o que por enquanto estava nas
suspeitas.
– Quero ir com você, Esmalte – disse ela decidida.
– Não pode estar falando sério, Dentina – respondeu o
prefeito largando o telefone. – Perdeu o juízo?
– Não – respondeu confiante. – Não perdi o juízo. Você
quer saber o que aconteceu a Calcin, não é mesmo? Pois eu também sou testemunho de que Calcin gosta de Anipatita, e não há
muita lógica nestas suspeitas.
– Não há lógica racional, mesmo – respondeu Mielina. –
Estes entraves não batem com a personalidade do agente. Digo
isso por conhecer muito bem o caráter dos malfeitores de todo
o sistema.
Sr. Esmalte ficou olhando para Oncoblasto que também
parecia matutar sobre a personalidade do agente. Levou novamente as mãos ao telefone e pediu um reforço para a escolta já
que Sra. Dentina o acompanharia.
– Madame Mielina – disse o prefeito. – Por favor, gostaria
que ficasse com as crianças e Dona Célica.
– Pois não, Esmalte – respondeu sem cogitar.
– Querida, então vamos – se dirigindo à esposa. – Quanto
mais rápido formos, mais rápido poderemos ter alguma solução
para o caso.
– E mais rápido a senhorita Anipatita pode ser encontrada a salvo – completou Sra. Dentina.
Já se passava da metade do dia quando o veículo que levava Sr. Esmalte e Sra. Dentina chegou ao departamento da força
policicálcio acompanhados de mais duas viaturas com cálcios e
linfócitos fortemente armados. Qualquer um que estivesse andando pela rua naquele momento deduziria que coisas estra-
nhas estavam se passando sem o conhecimento da população.
Calcion já aguardava a chegada do prefeito e da primeira dama em sua sala, acompanhado de Dr. Fibron e Linfon T, e
quando finalmente chegaram, o sargento se levantou apressado
com alguns documentos em mãos.
– Gostaria de saber, sem rodeios, o que se passa em relação ao agente Calcin – perguntou asperamente o prefeito olhando também para os demais. – Quais são as suspeitas que levam
a ele?
– Desculpe-me, prefeito, mas seu administrador já lhe
deve ter contado algo, não? – respondeu o delegado Linfon T.
– Senhor delegado – adiantou-se novamente o prefeito. –
O agente em questão é de minha total confiança, e tenho motivos para acreditar que ele não tenha participação em um ato tão
covarde.
– Senhor prefeito, estas são as provas que temos contra o
agente – disse Calcion erguendo os documentos e exames laboratoriais. – O próprio Dr. Fibron comandou as análises e são as
impressões de Calcin na jaqueta de Calcine.
– Essa análise foi muito rápida – interrompeu a primeira
dama. – Desculpe-me doutor, mas o senhor não concorda que já
deveria tê-lo como suspeito para chegar a uma decisão tão rápida? Como chegaram a Calcin da noite para o dia?
– As impressões são de Calcin, e ele mesmo disse não ter
tocado em nada dentro da bolsa onde estava a jaqueta – respondeu Dr. Fibron. – Chegamos a Calcin justamente pelo desaparecimento de Anipatita.
– Com quem o agente esteve momentos antes de seu desaparecimento – completou Linfon T.
– Ela sumiu logo após o agente deixá-la em casa – foi a vez
de Calcion falar.
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– Ora, não precisa ser perito para chegar à conclusão de
que se o agente quisesse desaparecer com ela, não teria nem
levado-a de volta à sua casa – novamente o prefeito disse completando as defesas da esposa.
– Então por que Calcin mentiu sobre a jaqueta? – perguntou Linfon T. – Poderia ter dito que vasculhou a bolsa e encontrou a jaqueta.
– Seria mais uma prova da ingenuidade do agente, senhor
delegado – continuou Sra. Dentina.
Linfon T se aproximou pela primeira vez de ambos, Esmalte e Dentina, e olhando fixamente para eles foi respondendo
ponderadamente como se quisesse desviar as tensões daquele
momento:
– Sabemos de suas ligações com o agente – começou a dizer Linfon T. – E por isso não o acusamos ainda. Temos certeza
de que Calcin, pelo menos, tocou na jaqueta. Já com relação à
secretária, não temos nada que comprove estes envolvimentos,
mas que Calcin foi o último a vê-la, isso é um fato.
– Ainda sim tenho minhas razões para acreditar na inocência de Calcin – respondeu confiante o prefeito. – Por mais que
tenham provas de que o agente tenha tocado nesta tal jaqueta.
– Eu ainda estou perplexa pela velocidade das investigações – retrucou Dentina olhando para o doutor.
– Exato! – exclamou Sr. Esmalte olhando para a esposa e
em seguida para Dr. Fibron. – Está aí uma coisa muito esquisita.
Como chegaram às impressões de Calcin?
Sargento Calcion se distanciou por alguns segundos seguindo em direção a um armário no canto esquerdo da sala. De
lá, ele abriu uma gaveta que estava organizada em ordem alfabética e retirou ma pasta cinza. Voltando-se em direção ao prefeito
estendeu-lhe a pasta.
– Esta pasta, senhor prefeito, contém todos os exames
admissionais de Calcin antes mesmo dele se ingressar na força
policicálcio – começou a esclarecer o sargento. – Todos os aspirantes à força policicálcio tem uma pasta igual a esta, onde
estão até mesmo as impressões digitais.
Esmalte começou a percorrer os olhos pelas linhas contidas nas folhas dentro da pasta e averiguou que de fato o sargento tinha condições específicas para examinar se as impressões
eram mesmo de Calcin.
– Estes são os exames laboratoriais – aproximou–se Dr.
Fibron. – Podem-se constatar exatamente as duas impressões.
– Não precisa me mostrar, doutor – respondeu duramente
e impaciente o prefeito. – Mesmo que entendesse alguma coisa,
não teria razões para duvidar de um laudo de perícia.
Sra. Dentina estava desnorteada, ainda não acreditava e
suspeitava bastante de como tudo chegou tão rápido ao agente.
– Escutem! – disse a primeira dama. – O que interessa
agora é descobrir o paradeiro de Anipatita. Não quero que nada
aconteça a esta moça.
– Nem nós, Sra. Dentina – respondeu Linfon T. – Mas ainda
estamos com as mãos atadas.
– E o que estão esperando para promover uma busca? –
Sr. Esmalte já havia perdido a paciência.
Linfon T olhou para Calcion como se esperasse que o sargento mesmo falasse alguma coisa, porém não obtendo a resposta desejada, decidiu dizer por si mesmo.
– Estamos esperando sua liberação para prender Calcin e
iniciar as interrogações – concluiu o delegado observando o ar
de horror que brotou no rosto do prefeito.
Sr. Esmalte sentou-se quase que imediatamente. Durante
todos os anos de vida pública que lhe eram dignos, aquela seria
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a maior prova de fogo de toda a sua carreira. Nem mesmo Dentina estava acreditando que apenas bastaria uma única palavra do
marido para que todo pesadelo, do qual Calcin seria submetido,
começasse a ocorrer.
Até mesmo a primeira dama começou a evitar olhar para
o prefeito, imaginando o quanto deveria estar sendo difícil para
ele autorizar um mandato de prisão para seu próprio agente de
confiança.
Sr. Esmalte lembrou-se de certa vez em que era apenas
um funcionário público, logo no início das formações gérmicas
de Incisivocity, quando teve de denunciar um colega que estava
desviando material de uso público para benefício próprio. Naquela época, tanto Esmalte quanto seu colega estava em busca
de uma excelência para a futura cidade, o que tornou a decisão
bem difícil. Contudo, nada se equiparava àquele momento.
– Onde se encontra o agente neste momento? – Sr. Esmalte perguntou ao sargento buscando os olhos lacrimejantes de
sua esposa. – Eu o vi ser contido por alguns oficiais.
– Parece que ele foi levado até onde mora e seria vigiado
até segunda ordem – respondeu Calcion.
Sr. Esmalte olhou para a janela, engoliu o gosto amargo
que estava na boca e suspirou lentamente, congelando a espinha
de qualquer um que estivesse naquela sala, naquele momento.
– Interroguem o agente – ordenou o prefeito se retirando
da sala quase que imediatamente sem voltar o rosto para trás,
seguido se sua esposa.
A porta da sala número quinze em uma ala posterior da
delegacia fora aberta provocando um eco quase interminável
pelo imenso corredor acinzentado. Primeiro, um agente linfócito entrou trazendo um aparelho muito semelhante a um gravador, depois Calcin chegou com mais dois cálciosagarrando-o
pelos braços.
O agente foi colocado sentado em frente do linfócito que
manejava o estranho aparelho. Não houve resistência da parte
de Calcin, que também notou que o linfócito naquele momento
havia posto um par de fones nos ouvidos.
Calcin foi algemado à cadeira onde estava sentado, sentindo-se incomodado e humilhado novamente, mas estava disposto
a ver no que aquilo tudo levaria.
Calcion entrou rapidamente pela porta e se colocou também em frente de Calcin que, por sua vez, não hesitou em ficar
olhando profundamente para o seu sargento.
– O prefeito autorizou a minha prisão, não é mesmo? –
perguntou decepcionado o agente.
– Ele não tinha opção, Calcin – respondeu o sargento vendo que Calcin estava à beira de derramar as lágrimas.
– Acho que nada mais importa agora, não é mesmo sargento? – disse desconsolado Calcin. – Nem mesmo o prefeito
acredita em minha inocência.
– Se isto for lhe ajudar em alguma coisa, Calcin, o prefeito
ainda acredita que você nada tem a haver com isso tudo – disse
Calcion aproximando-se da mesa. – Porém, infelizmente, não há
outro recurso.
Quando o sargento terminou de falar, a porta novamente
se abriu dando lugar ao delegado Linfon T, um sujeito robusto
e com uma expressão de fúria nos olhos. Calcin sentiu sua pele
arrepiar só com a entrada daquele linfócito dentro da sala.
– Por favor, retire-se, sargento Calcion – ordenou gravemente Linfon T. – O assunto agora é de responsabilidade do
sistema.
Naquele momento, até mesmo Calcion começara a sentir
pena do agente, que olhava com os olhos vidrados numa mistura
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de decepção e terror. O sargento vagarosamente começou a se
aproximar do delegado não engolindo aquele tom de desprezo
com o qual havia falado Linfon T.
– Escute aqui – começou o sargento sussurrando para que
agente Calcin não o ouvisse. – Encoste suas mãos em um só fio
de cabelo de meu agente e prometo que eu mesmo subo até o
Sistema Nervoso Central para exigir a sua expulsão de todo o
sistema.
– Escute aqui você, senhor sargento – retrucou Linfon T.
– Se voltar a fazer ameaças ridículas como esta, considere-se expulso da força policicálcio de Incisivocity.
Calcion saiu soprando fogo pela porta afora enquanto o
delegado se aproximava da mesa e outro linfócito fechava a porta.
– Vou ser breve e espero que você também assim o seja –
disse o delegado ao dirigir-se para o agente. – O que fez a senhorita Anipatita e ao senhor Calcine?
– Não fiz nada – respondeu Calcin já começando airritarse.
Lentamente Linfon T sentou-se ao lado do agente, arrumou o paletó e aproximou seu rosto bem próximo ao de Calcin.
– Preste bastante atenção ao que vou lhe dizer, pois não
vou repetir nunca mais – começou a ameaçar o delegado. – Só
irei sair desta sala de duas formas: com o paradeiro da secretária e do policicálcio dito por você, ou com a sua cabeça em minhas mãos para entregar ao próprio Sistema Nervoso Central.
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Capítulo 11
Já era noite quando um veículo cruzou apressadamente a esquina da avenida central de Incisivo Centrales rumando
em sentido ao bloco residencial principal. Alguns odontoblastos
e apatitas que ainda circulavam pela rua pararam para observar
as manobras esquisitas que o veículo vinha fazendo em desvios
de outros veículos e obstáculos que iam aparecendo pela frente.
Numa frenagem espetacular, o veículo parou em frente ao
prédio onde residia o prefeito chamando a atenção de alguns
policicálcios que montavam guarda na frente da porta principal
de acesso.
De dentro do veículo saltou um fibroblasto de aparência
jovem, usando um jaleco branco e um estetoscópio pendurado
na gola. Aparentando estar ansioso, o fibroblasto seguiu correndo em direção ao hall de entrada do prédio sendo seguido por
dois policicálcios que tentaram detê-lo sem sucesso na porta
principal.
Chegando à recepção, ele derrapou próximo à grande
mesa branca onde já se punha de pé o recepcionista, todo alarmado, percebendo a pequena confusão.
– Larguem-me! – gritou o fibroblasto retirando o braço
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direito das mãos de um dos policicálcios que o havia seguido e o
agarraram quando atingiu a recepção do prédio – Preciso urgentemente falar com o prefeito de Incisivocity.
Num golpe duro, o policicálcio, que deixara escapar o braço do fibroblasto novamente, o agarrou com a maior impaciência.
– Desculpe-me, mas o prefeito já está em repouso – disse
o recepcionista com os olhos arregalados.
– Vocês não entendem a gravidade da situação? – perguntou tentando se soltar o fibroblasto. – Trata-se de uma situação
em extrema emergência.
– O que poderia ser tão urgente para se tratar com o prefeito a estas horas? – perguntou um linfócito que estava por perto e ao ver o alvoroço aproximou-se.
– Desculpe-me senhor linfócito, mas é um assunto muito
delicado para que, até mesmo, você tome conhecimento – respondeu o fibroblasto encarando o agente linfóide.
Aquela insolência realmente parecia ter incomodado o
linfócito que, por um instante, ameaçou partir para cima do fibroblasto, mas se conteve ao perceber que o jaleco portado por
ele pertencia ao Fibrospital Regional Palatino, lugar onde trabalhava o respeitado doutor Fibron.
–Larguem o rapaz! – ordenou o linfócito mordendo os
lábios.
Imediatamente o fibroblasto foi solto e, arrumando seu
jaleco amassado nas mangas, se debruçou sobre a bancada perguntando sobre o apartamento do prefeito.
– Espere só um instante que as coisas não funcionam assim, garoto – retrucou o recepcionista já se incomodando com o
rapaz também. – Tenho que avisar sobre sua chegada. E por falar
nisso, quem devo anunciar?
– Dr. Fibrone Jr. do Fibrospital Regional Palatino – respondeu seguro de si o fibroblasto.
Após um curto período de espera, o recepcionista começou a dialogar no interfone demonstrando que alguém do outro
lado havia respondido ao chamado. Segundos de apreensão contagiaram o hall do prédio, inclusive o linfócito que não desgrudava os olhos sedentos de ira de Fibrone.
– Desculpe-me meu rapaz, mas o Sr. Esmalte não quer
receber ninguém agora – concluiu o recepcionista se voltando
para o fibroblasto.
– Disse de onde eu venho? Não é possível!
– Disse e isso não adiantou em nada, pelo contrário – respondeu o recepcionista não deixando escapar um ar de deboche. – O prefeito não quer ver ninguém relacionado ao Dr. Fibron
nem agora e muito menos depois.
Fibrone golpeou a bancada indignado com a sua recepção
naquele lugar. Não acreditava que sua vinda até Incisivo Centrales havia sido em vão e muito menos que sua presença estava
sendo dispensada pelo tão falado prefeito de Incisivocity, cujos
comentários sempre foram os melhores possíveis.
Sem muitas honras, Fibrone deu as costas aos demais e
começou a se dirigir para seu veículo, lá chegando arriscou uma
rápida olhadela para cima e notou uma sombra se distanciar de
uma das poucas janelas que ainda se mantinham acesas no prédio naquela noite.
Quando a luz da janela se apagou, o fibroblasto entrou em
seu veículo e ficou alguns instantes parado refletindo sobre o
que lhe restava fazer naquele momento. Foi quando se lembrou
do departamento policicálcio da cidade e resolveu uma última
investida antes de desanimar-se por completo.
Sargento Calcion estava se preparando para voltar até
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a sala de interrogatórios, não suportando mais a demora que
se passava todo o processo entre Calcin e o delegado Linfon T,
quando um oficial se aproximou de sua sala entrando sem bater:
– Sargento, tem alguém querendo falar com o senhor.
– Ora... – respondeu o sargento sem olhar para a porta. –
Será necessário um remanejamento interno para que as minhas
ordens sejam seguidas? Quantas vezes eu tenho que repetir minha decisão de não receber ninguém sem que este alguém seja
de extrema importância?
– Na verdade não o conheço – respondeu o oficial dando
uma singela tosse. – Mas parece que é um médico do Fibrospital
Regional.
Calcion levantou seu olhar por cima dos óculos abaixando
uma sequência de papeletas que estavam em suas mãos.
– Então não demore. Traga-o já aqui! – ordenou rapidamente o sargento, o que fez com que o oficial resmungasse “eu
ainda viro sargento pra compensar tudo o que...”, antes de fechar
a porta.
Quando Fibrone entrou na sala do sargento, Calcion já o
esperava de pé, e ficou absurdamente pasmo quando percebeu a
juventude do médico fibroblasto que havia chegado.
– Ora, ora – resmungou o sargento. – Eu esperava por alguém mais velho, “doutor”.
– Desculpe-me sargento, mas eu também esperava por
alguém mais novo. – retrucou o fibroblasto fazendo o sargento
engasgar com a fluorita que estava tomando.
– É melhor começar a dizer o que veio fazer aqui antes
que eu me arrependa de tê-lo deixado entrar – contra-atacou o
sargento já todo impaciente.
– Preciso falar com seu agente Calcin imediatamente.
Calcion parecia hipnotizado depois de ter ouvido aque-
las palavras. Por alguns instantes ficou com os olhos fitados em
cima do fibroblasto, que já estava se sentindo incomodado por
aquela atitude, até que subitamente soltou uma audível gargalhada sem escrúpulos fazendo com que todos os cálcios que ainda estavam por perto mirassem a sala do sargento.
– Mas o que está acontecendo com esta cidade! – começou o sargento a dizer ainda soltando risos esdrúxulos – Que
legal! Agora todo o mundo vai querer ter acesso livre ao departamento policicálcio da cidade e de quebra aos detentos com
toda a facilidade que o sargento aqui vai dispor à vontade!
Fibrone não pôde deixar de notar toda a ironia do sargento que naquele momento mais estava se divertindo com suas
próprias palavras do que com a própria situação.
– Bom, deixe-me pensar um pouquinho – continuou o
sargento. – Bem vejamos. Mas é claro... que de jeito nenhum
senhor “doutor”.
Aquelas palavras irritaram ainda mais o fibroblasto do
que o seu impedimento no hall de entrada do prédio do prefeito.
– Não é à toa que sua fama de “chato” tenha se espalhado
pelos quatro cantos do complexo bucal, sargento – respondeu
Fibrone todo indigesto. – Tenho motivos para suspeitar das
ações que levaram à prisão do seu agente Calcin.
Calcion interrompeu naquele mesmo instante as gargalhadas ofensivas que disparava contra seu jovem visitante, mudando completamente sua postura em relação à Fibron.
– Sente-se, por favor, doutor... – e se lembrou de que nem
mesmo o nome havia perguntado ainda.
– Dr. Fibrone Júnior, médico residente do Fibrospital Regional Palatino – completou o fibroblasto. – Sou membro honorário do departamento de pesquisas e presidente da liga de estudos genéticos do sistema, além de ser aluno em potencial de
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Dr. Fibron Fibrostes na residência.
Fibrone não estava mesmo a fim de economizar títulos e
com certeza aquela era a melhor hora para dispensar humildade, já que o sargento se mostrava receptivo desde quando mencionou o que realmente havia vindo fazer naquele lugar.
– Bom doutro, agora é a hora para dizer o porquê de suas
suspeitas – começou o sargento sentando-se, esperando que o
fibroblasto fizesse o mesmo.
– Estou no meu último semestre de residência e há muitos
anos sou aluno do Dr. Fibron – começou a dizer sentando-se em
frente à mesa de Calcion. – Em todos os complexos, Fibron é um
dos mais respeitáveis médicos do sistema, porém há algum tempo atrás uma série de coisas começaram a mudar no Fibrospital
Regional.
Sargento Calcion havia se inclinado para frente com as
mãos à boca somente ouvindo as palavras do jovem médico com
bastante atenção.
– Uma das coisas que me chamaram mais atenção, foi logo
no início da formação do complexo de Incisivocity quando Fibron recebeu de portas fechadas a visita de Ácido Açucarado.
Na época, nem mesmo as eleições para a prefeitura da cidade
haviam sido cogitadas, o que não levantou muita suspeita, contudo logo após a vitória do Partido da Higiene Bucal, Dr. Fibron
começou com suas esquisitices.
– Que tipo de esquisitices? – perguntou o sargento interessado.
– Para início de conversa os atendimentos no fibrospital
começaram a ser selecionados por uma espécie de questionário
muito estranho, do qual havia perguntas muito pessoais do tipo
como o paciente se sentia em relação ao novo governo de Incisivocity.
– Teria como conseguir estes questionários diretamente
do fibrospital? – perguntou o sargento.
– Creio que não, sargento. Fazem parte da nova política
hospitalar feita por Fibron e nada relacionado aos pacientes
pode sair de lá sem sua autorização.
– Depois pensamos nisso então – o sargento encostou-se
novamente em sua cadeira. – Mas de onde surgiram suas suspeitas de que Calcin não tenha nada a haver com o que está acontecendo?
– Há algumas semanas atrás, Fibron recebeu outra visita
fechada. Pelo que parecia era um de seus oficiais, sargento. Por
um acaso, qual o nome do oficial desaparecido? – perguntou o
fibroblasto curioso.
– Calcine – respondeu já aguardando certo entusiasmo de
Fibrone.
– Então é ele mesmo – concluiu o médico soltando um
soco na mesa se desculpando logo em seguida. – Não pude me
conter, sargento. Naquele dia fui até a secretária de Fibron para
perguntar o que um oficial estaria fazendo por ali. A secretária
me disse que havia outro oficial internado já para ganhar alta
e que aquele mesmo oficial, o Calcine, já havia sido internado
junto com o outro, porém com ferimentos mais leves. Parece-me
por algum tipo de conflito ocorrido em Incisivocity.
Sargento Calcion abaixou a cabeça batendo com os dedos
na mesa como se estivesse pensando em alguma coisa, contudo
Fibrone continuou com o relato.
– O que mais me chamou atenção foi o fato de Calcine
entrar vestindo uma jaqueta do departamento de policicálcio e
sair sem ela, e ainda por cima, carregando uma bolsa.
– Nossa! – exclamou o sargento voltando seus olhos para
o jovem doutor.
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– O pior ainda está por vir – continuou Fibrone. – Naquele
mesmo dia, não demorou muito uma escolta da força dos linfócitos também chegou ao fibrospital, e sabe quem foi de encontro
à Fibron em sua sala?
– O delegado Linfon T – respondeu sem demoras o sargento.
– Parece que estamos entrando na mesma linha de raciocínio, não é mesmo sargento?
Calcion somente acenou com a cabeça lentamente ainda
digerindo toda aquela informação, chocado com a ideia de uma
suposta trama muito perigosa envolvendo duas pessoas muito
importantes.
– Onde está Calcin? – perguntou Fibrone já se levantando.
– Temos que libertá-lo antes que alguma coisa aconteça a ele.
– Acalme-se, Dr. Fibrone – pediu o sargento, tentando atenuar a euforia do médico. – Calcin ainda está, neste momento,
sendo interrogado por Linfon T.
– Minha nossa! – exclamou Fibrone sentando-se. – E agora?
Calcion levantou-se e, coçando o rosto, começou a dar
voltas pela sala pensando em algumas saídas, contudo o melhor
que conseguiu deduzir era a de que Calcin poderia ter um tempo
livre se algum advogado se apresentasse para sua defesa durante o interrogatório.
– Escute Fibrone – voltou-se novamente ao lugar. – Há
uma saída, porém as suspeitas são muito graves e Calcin deve
ser alertado quanto a isso. Temos que chamar um advogado para
ele e tentar dar um tempo com o interrogatório, para repassar
esta informação ao agente.
– Como acharemos um advogado de confiança a estas horas? – questionou Fibrone.
– O prefeito poderia ajudar – respondeu o sargento.
– Bom, talvez você tenha mais sucesso em falar com ele
neste momento, porque eu... – desanimou-se o médico.
– Não me diga que você tentou falar com o prefeito antes
de vir aqui? – assustou-se Calcion.
Fibrone somente afirmou com um gesto rápido fazendo
com que Calcion balançasse em sinal de reprovação o ato do rapaz.
– Não foi uma boa jogada, garoto. O prefeito saiu daqui
cuspindo marimbondos pela boca. Óbvio ele não querer nada
com ninguém por hoje.
– E como eu iria saber? Pelo que eu saiba, sou médico e
não adivinho!
– O que importa agora é conseguir falar com o prefeito –
concluiu Calcion pegando o telefone. – Vou pedir para que ele
nos consiga um advogado neste momento. O difícil será tentar
convencê-lo a não vir junto, já que, nestas horas, não seria bom
estarmos todos juntos reunidos, levantando interesse de partes
supostamente envolvidas.
Em pouco tempo, Calcion já estava falando com o prefeito pelo telefone e Fibrone somente tentava escutar, ou mesmo
pescar alguma coisa. Mas o que realmente o fibroblasto estava
esperando veio logo em seguida, quando o sargento olhou para
ele e disse ao telefone. – “Sim, ele está aqui comigo. Tudo bem,
eu falo para ele.”
Fibrone já imaginava o que o prefeito havia dito ao telefone, mas preferiu escutar da boca do sargento para aliviar a sua
alma decepcionada.
– O prefeito mandou suas desculpas por não tê-lo deixado
subir e vem pessoalmente conversar com você.
Aquelas palavras soaram como música para o médico que
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se se encostou à cadeira como se aquela “coisa” fosse uma verdadeira cadeira de balanço.
– Parece-me que o prefeito já tem alguém em mente e já
está vindo para cá – continuou o sargento.
Em pouco tempo, um veículo da prefeitura estacionou em
frente ao departamento da força policicálcio e dele saíram o prefeito e um odontoclasto já conhecido de Calcion. O sargento já
aguardava sua chegada juntamente com Dr. Fibrone Jr. do lado
de fora do departamento.
Rapidamente o prefeito adentrou pela porta principal
seguido pelos demais até a sala de Calcion, onde começaram a
por em andamento um plano bastante esquisito, porém muito
astucioso.
– Creio que o senhor já conheça Obariloclasto, representante do conselho de odontoclastos de Incisivocity – disse sem
demora o prefeito apontando para sua companhia.
– Claro, estávamos juntos na solenidade – respondeu o
sargento acenando para o odontoclasto.
– Antes de tudo, queria me desculpar por não tê-lo recebido, doutor – desculpou-se o prefeito se voltando para Fibrone.
– Estava tão chateado com a situação que preferia não receber
ninguém, muito menos daquele fibrospital.
– Entendo senhor prefeito – respondeu o médico. – Porém, o que realmente importa agora é salvarmos a pele deste
agente Calcin.
– Concordo plenamente – acrescentou Sr. Esmalte – É por
isso que trouxe comigo Obariloclasto, que além de ser representante oficial dos odontoclastos, ainda é um advogado de renome
em Incisivocity.
– Não existe pessoa mais interessada em ajudar Calcin do
que eu mesmo, senhor sargento – iniciou o odontoclasto. – Nós
odontoclastos temos uma dívida muito grande com este cálcio.
Ficaram por ali o mínimo de tempo necessário para que
Calcin fosse beneficiado o mais rápido possível. Formularam um
pequeno plano inicial do qual Calcion e Obariloclasto iriam até
a sala quinze para apresentar a defesa do agente, assim sendo,
o delegado teria que se retirar. Com isso, ganhariam tempo para
expor os novos fatos ao agente.
Sr. Esmalte e Dr. Fibrone ficariam na sala do sargento
esperando sem levantar suspeitas, pois com Linfon T andando
pelo departamento, seria mais fácil de encontrarem pelos corredores.
Quando chegaram à porta, dois linfócitos, que montavam
guarda, se aproximaram do sargento e do odontoclasto tentando impedir a passagem, contudo o sargento se mostrou bastante
incisivo nas suas palavras.
– É melhor deixarem-nos passar. Este é o Sr. Obariloclasto, advogado do agente Calcin.
Ambos os linfócitos se entreolharam e abriram passagem
para que o sargento e o advogado seguissem rumo à porta.
Calcion bateu por três vezes antes de a porta ser aberta
por outro linfócito que parecia estar montando guarda pelo lado
de dentro. Linfon T estava de pé ao lado de Calcin, que demonstrava uma aparência horrível. Deveria estar mesmo desgastado
de tanto ouvir perguntas do delegado, e ainda mais pelo fato de
estar sendo julgado por um crime que não havia cometido.
Quando Calcin percebeu a chegada dos novos visitantes,
mesmo sabendo das circunstâncias que lhe rondavam, ficou satisfeito de poder olhar para um rosto familiar, no entanto parecia não ter forças nem para dizer alguma coisa.
– Durão este seu agente, sargento – foi logo dizendo Lin-
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fon T aproximando-se de Calcion. – Mas do que devo a honra das
“ilustres” visitas?
O sarcasmo do delegado, de certa forma, agrediu a personalidade irônica do sargento que preferiu manter-se menos
ofensivo naquele momento para não atrapalhar os novos planos.
– Delegado, este é o Sr. Obariloclasto, advogado de Calcin
e veio para uma consulta com seu cliente.
– Bom, eu não sabia que o agente tinha entrado em contato com advogado antes de chegarmos até ele – respondeu Linfon
T olhando para Calcin que se manteve imóvel sem se manifestar.
– Por acaso, o senhor delegado não sabe que todos têm direito a um defensor nestas horas? – adiantou-se Obariloclasto.
– Preferi agir sem a interferência de um – respondeu arrogantemente antes de se dirigir à porta. – Sei que precisa de um
tempo com seu cliente, senhor advogado, por isso vou me retirar
por um tempo. Afinal de contas entendo de lei muito mais do
que imaginam.
Linfon T ainda se aproximou de Calcion e olhando-o profundamente, colocou suas mãos nos ombros do sargento apertando como se desejasse esmagá-lo.
– E o senhor vem comigo, não é mesmo? – disse ainda
apertando o ombro de Calcion. – Afinal de contas é um momento
entre advogado e cliente.
– Então vamos delegado – disse Calcion retirando seu ombro das mãos de Linfon T. – Não há nada para nós aqui dentro.
Calcin observou o delegado sair juntamente com o sargento, o linfócito redator e o outro linfócito vigia antes de começar a se reconfortar em seu assento, como se aquele ato fosse lhe
descansar todos aqueles minutos angustiantes que tivera com
Linfon T dentro da sala.
– Antes de tudo Calcin, estou aqui para ajudar a fazer justiça – começou Obariloclasto sem notar nenhuma alteração no
humor do agente. – Segundo porque, em nome de toda a sociedade de odontoclastos, o consideramos muito e estamos cientes
de que nossa dívida com você é impagável.
– Por favor, Sr. Obariloclasto – Calcin demonstrava os sinais do cansaço claramente com o sussurrar de suas palavras.
– Nada disso vai me ajudar e creio que, como advogado, neste
momento, também não vai ser muito útil.
Obariloclasto sentando-se em frente de Calcin arriscou
uma rápida olhada para trás para certificar-se de que realmente
o caminho estava livre para dizer o que realmente queria.
– Não é tão tarde assim – recomeçou o advogado. – Tem
algo que você precisa saber urgentemente.
Obariloclasto começou a dizer sobre a existência do médico residente que levantara suspeitas sobre Dr. Fibron e das
supostas intenções maliciosas que estavam por trás de uma trama muito bem armada. Cogitou a possibilidade de Calcin ter se
tornado o bode expiatório perfeito, no que talvez fosse uma das
movimentações mais audaciosas contra o governo de Esmalte
Esmaltus.
Calcin, no decorrer de cada palavra dita por Obariloclasto,
se contorcia na cadeira como um peixe fora d´água. As primeiras
chamas de esperança começaram a brotar nos olhos do agente
e também os primeiros sinais de fúria, principalmente quando
o advogado repassou a informação de que Calcine havia deixado
sua jaqueta em poder do médico.
– Então, o que estamos esperando? – levantou-se o agente começando a falar num tom mais alto. – A vida de Anipatita
depende disso. Vamos atrás de Fibron e colocá-lo contra a parede.
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Vendo que Calcin havia se empolgado, Obariloclasto dependurou-se sobre a mesa segurando o agente pelas mãos, evitando talvez que o agente saísse de lá correndo.
– O que você está fazendo, Calcin? Quer pôr tudo a perder? Isso inclui até mesmo a vida da senhorita Anipatita.
– O que você quer? – perguntou o agente meio que sem
rumo. – Que eu fique aqui parado esperando as coisas acontecerem?
– Não. Temos um plano para tirá-lo daqui – disse o odontoclasto observando que o agente aos poucos se acalmava. – O
que Linfon T está exigindo de você?
– Aquele linfócito quer que eu confesse o envolvimento no
sumiço do Calcine e Anipatita.
– Então confesse.
– Como é que você disse? – assombrou-se o agente. – Está
louco? Como posso confessar algo que não fiz?
– Se isso não acontecer agora, irá acontecer mais tarde
– continuou Obariloclasto. – Linfon T é temido por sua persistência e irá te cansar a tal ponto que, mais cedo ou mais tarde,
assumirá a culpa mesmo sendo inocente.
– E do que se trata o plano?
– Primeiro você assume, depois aponte um lugar qualquer
para onde supostamente tenha levado os dois. Imagine um lugar
muito distante, Molares Superiores por exemplo.
– Daí, ele sai daqui com este relatório, me encarcera e
amanhã me leva junto com uma legião de linfócitos para este
suposto local – Calcin se mostrava totalmente incômodo. – Não
encontrando os dois lá, sabe-se lá o que poderá me ocorrer!
– Tiraremos você daqui antes que amanheça – confirmou
o advogado.
– Ah, é mesmo? – ironizou Calcin. – E como? Matando to-
dos os linfócitos?
– Não, o próprio sargento facilitará sua fuga e pode ficar
tranquilo que o prefeito também está por trás disso.
Aquela informação soou como música aos ouvidos de Calcin, que havia perdido totalmente a esperança de que Sr. Esmalte acreditasse em sua inocência.
– O que mais me preocupa nisso tudo é o tempo – cogitou Obariloclasto. – Se Calcine está também ligado a esta trama,
ele também saberia onde Anipatita deve estar. O maior problema é saber onde se encontra Calcine.
– Quanto a isso, pode deixar que eu sei como chegar até
Calcine – disse Calcin engolindo sua raiva.
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•••
Já era de madrugada quando a viatura do comando especial que levava Linfon T deixou o departamento de força policicálcio. Sr. Esmalte já havia se retirado de lá há horas juntamente
com o médico residente, muito antes de o delegado sair da sala
de interrogatórios onde Calcin estava levando em mãos os documentos de confissão do agente.
Calcion manteve-se o tempo todo em sua sala conversando com Obaliloclasto, arquitetando novos rumos para o plano
que já estaria em movimento.
Calcin havia sido levado para uma ala especial e trancafiado por outros cálcios que foram orientados a não deixar ninguém se aproximar de sua cela. Contudo, Calcion sabia que os
linfócitos não ficariam para assumir este posto e assim ficaria
fácil ele mesmo assumir o comando. Linfon T tinha a certeza de
que Calcion não interferiria nas ordens de trancafiamento do
agente, porém ele não contava que o próprio sargento estava
Fabiano Freire
Incisivocity
disposto a perder o próprio cargo em prol de uma ação que beneficiaria alguém inocente.
Obariloclasto sabia da fama de turrão do sargento, mas
estava conhecendo um lado humano que poucos tinham conhecimento e sentia-se um verdadeiro sortudo por isso.
Por outro lado, Calcion sabia que o prefeito estaria se arriscando também em participar de uma ação contra as ordens
de agentes enviados pelo próprio sistema, o que lhe deixava
mais aliviado.
O mais difícil de tudo seria localizar Calcine antes que Linfon T descobrisse que o sargento e o prefeito estavam por trás
da fuga de Calcin, mas era um risco que teriam de correr.
Quando por fim o sargento deixou sua sala rumo à cela
onde estaria Calcin, Obariloclasto se retirou seguindo o caminho
contrário, levando consigo a chave de uma das viaturas de policiamento cuja finalidade seria na ajuda da fuga de Calcin.
Rapidamente, o advogado chegou até o pátio de estacionamento e averiguou o que de fato tinha dito o sargento. Não
havia guardas por perto.
Obariloclasto seguiu até a viatura do próprio sargento
e testou a chave na porta com sucesso. O próximo passo seria
aguardar a chegada de Calcin e Calcion para arrancarem juntos
dali.
Já no outro canto do departamento, Calcion atingira a ala
onde estavam dois cálcios fazendo a vigia do agente. Calcion lentamente se aproximou sem levantar suspeitas.
– Como está o agente? – perguntou autoritário o sargento.
– Parece que está descansando – disse um dos oficiais.
– Tenho ordens para levar o agente daqui – disse seguro
de si. – Abram a cela onde ele se encontra.
– Desculpe-me senhor sargento, mas o delegado disse seriamente que...
– O delegado Linfon T não tem jurisdição dentro de Incisivocity, soldado – arriscou o sargento sem se desvincular do
propósito. – Foi o próprio Sistema Nervoso Central que lançou
ordens de desviar o agente para outro local. A estas horas todos
os nossos inimigos já sabem que o agente espião está aqui e tenho certeza que não hesitarão em atacar o departamento para
evitar que Calcin diga mais alguma coisa que prejudique estes
bandidos.
Ambos os guardas se entreolharam e acenaram um para o
outro em sinal de aprovação ao sargento, temendo que o pior realmente acontecesse. Assim, eles abriram um portão e levaram
Calcion até a cela de Calcin.
Calcin estava realmente deitado e no primeiro instante
ignorou o chamado de um dos cálcios.
– Ei, traidor! – disse um dos guardas batendo com o cassetete na grade. – Levante-se, eu já disse! O sargento está aqui.
Calcin lentamente sentou-se na cama e ficou observando
contra a luz para averiguar se de fato o sargento estava junto
com eles.
– Desculpe-me sargento, mas já disse tudo o que sabia ao
delegado Linfon T – Calcin começou o jogo de alusão.
– Não vim aqui para interrogatórios, Calcin. – disse acrescentando à trama. – Vou levá-lo até um local seguro. Sua estadia
aqui está pondo em risco a segurança de todos nós.
– Ah! Então melhor – respondeu o agente. – Prefiro ficar
aqui mesmo. Assim todo mundo se arrisca junto comigo.
– Ora, não seja palhaço! – irritou-se o outro cálcio batendo
também contra a grade da cela. – Saia daí agora! Ou nós mesmos
entraremos aí para acabar com você, seu traidor!
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Calcin começou a caminhar pelos corredores algemado e
cabisbaixo, sendo guiado por Calcion e seguido pelos dois policicálcios que faziam a guarda até a porta que dava acesso ao estacionamento. De lá o sargento assumiu a responsabilidade pelo
detento e assim entraram em uma espécie de corredor mais
estreito até uma segunda porta mais escura, de onde levariam
ambos até o pátio.
Quando a porta por trás deles se fechou, sargento Calcion
arriscou um sorriso bem curto para o agente que, em seu grau
máximo de exaustão, mal conseguiu retribuir.
– Essa foi mais fácil que eu mesmo poderia acreditar – disse o sargento se vangloriando da situação.
– Sargento, eu mal posso agradecer pelo que está fazendo
– disse Calcin antes de Calcion levantar seus braços e retirar as
algemas.
– Não estou fazendo nada demais – respondeu o sargento, já com as algemas retiradas de Calcin. – Veja bem o que vai
fazer. Seguirá reto daqui por diante até encontrar uma viatura
que estará com os faróis acesos, lá o Sr. Obariloclasto estará à
sua espera e lhe entregará o veículo. Deste momento em diante
é com você, Calcin.
– E vocês dois? – perguntou o agente preocupado com o
que aconteceria se fossem achados andando juntos sem a sua
guarda.
– Não se preocupe – disse o sargento olhando novamente
para trás. – Tenho outro veículo aqui perto. Obariloclasto e eu
seguiremos para ele e vamos sumir por um tempo até que sua
fuga seja detectada. Veja bem, Calcin. Seja lá o que for fazer, em
relação à procura de Calcine, ande rápido, pois o tempo é curto demais. Temos que encontrá-lo antes que o Sistema Nervoso
Central lance mão de reforços imunológicos para este complexo.
Se isto acontecer, estaremos seriamente encrencados. De agora
em diante é com você.
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Capítulo 12
Não havia mais ninguém circulando pelas ruas de Caninus
Inferiores Esquerdus quando uma viatura rasgou o cruzamento
de duas das principais avenidas, a que vinha do centro e a que
ligava o bairro.
Calcin acelerava o veículo ao máximo que podia, tentando
vencer um tempo que já não parecia ser possível, enquanto observava também os números residenciais que passavam como
estrelas cadentes nas duas laterais do automóvel. Talvez, se Calcin não tivesse participado daqueles cursos de leitura dinâmica,
patrocinados pela força policial, jamais daria conta de perceber
quais eram estes números.
O agente ainda passou por uma viatura de patrulhamento
próximo ao centro do bairro, o que o deixou bastante apreensivo, porém, ao ver que nada fora do normal sucedera-se, voltou à
sua intensa procura pelo número residencial desejado.
– Duzentos e três... Duzentos e três... – Calcin seguia repetindo a numeração enquanto reduzia a velocidade à medida que
se aproximava dela. – Duzentos e três, ótimo, é aqui!
Apagando as luzes do veículo Calcin abriu lentamente a
porta e saiu sem desviar a atenção do pequeno prédio de núme-
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ro 203.
Ficou observando o pequeno imóvel que, pelo número de
janelas, condenava seus únicos dois apartamentos. Calcin sabia
que Calcitis morava em um deles, porém não tinha certeza de
qual dos dois seria. Não poderia simplesmente arriscar um deles, teria que acertar o alvo certo, se não quisesse levantar suspeitas de sua presença por aquela região.
Calcin só não contava com a sorte daquela mesma madrugada, quando reparando as janelas do prédio, notou que em uma
delas, na porção superior, via-se uma pequena placa de aluguel.
Rapidamente o agente concluiu que Calcitis deveria morar no
apartamento de baixo, caso contrário saberia facilmente se o
oficial tivesse se mudado.
Calcin correu para debaixo de uma marquise, próximo ao
portão, de onde não poderia ser visto quando tocasse o interfone e assim o fez.
Nada poderia ter deixado o agente tão satisfeito quanto
ouvir a voz de Calcitis perguntando por quem seria àquela hora.
– Agente Calcitis? – perguntou Calcin tentando mudar a
própria voz. – Sou o oficial Calciley do departamento policicálcio. Venho trazer informações sobre seu parceiro Calcine.
Calcin ainda escutou uma das janelas serem abertas e notou a sobra do oficial bater contra a rua buscando pele imagem
do oficial visitante. Como a única coisa diferente naquele quarteirão era a presença da viatura de policiamento, Calcin deduziu
que Calcitis dera-se por convencido.
– Estou descendo, só um minuto! – disse a voz desconfiada de Calcitis pelo interfone.
Quando o portão se abriu e Calcin notou a imagem fosca do agente pelo vidro, sem muito esperar empurrou o portão
contra Calcitis o fazendo cair sobre as escadas que se seguiam
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Incisivocity
em uma subida quase que interminável.
– Calcin! – exclamou assustado Calcitis tentando apalpar
o que seria sua pistola calcítica dentro do bolso.
Vendo que Calcitis provavelmente partiria para uma
agressão armada, Calcin jogou-se para cima dele, fazendo-o arremessar a pistola escada acima.
– De jeito nenhum, seu verme! – sussurrou Calcin agarrando Calcitis pelo colarinho, ambos jogados pela escada. – Com
quem você acha que está se metendo?
– Você deveria estar preso, traidor! – retrucou Calcitis
com dificuldades de mover-se.
– Mas não estou – respondeu Calcin encarando-o firmemente. – Pelo contrário, estou aqui para descobrir para onde
Calcine levou Anipatita.
– Ora, e por que eu deveria saber? Até então, pelo que eu
sei, você é quem deu sumiço nos dois.
Calcin se mostrou irado e, em um único solavanco, arrancou Calcitis do chão erguendo-o contra a parede.
– Como é que você sabe disso, agente Calcitis? Até então,
pelo que eu sei esta informação ainda não vazou do departamento interno de policiamento.
– Departamento interno de policiamento? – assombrouse Calcitis com os olhos trêmulos.
– Exatamente, seu abobalhado! – disse demonstrando um
pequeno sorriso de fúria. – O mesmo departamento que me encarcerou em uma ala isolada para detentos interrogativos. Não
teria a mínima condição de você saber deste tipo de informação,
que ainda está em andamento.
Calcitis sentiu uma pontada de gelo subir pela garganta
como se fosse uma presa escolhida por um faminto predador.
– Sabia que eu ainda não fui acusado de nada, agente
Calcitis? Você é tão ingênuo que não consegue nem mesmo segurar as próprias palavras, não é mesmo?
Calcitis ainda tentou livrar-se, soltando socos por debaixo
dos braços de Calcin, que tentou se livrar enquanto pôde até,
num ímpeto de raiva, arremessar novamente o agente contra as
escadas, fazendo Calcitis sentir o novo golpe com maior força.
– Não vai arrancar nada de mim, Calcin – ameaçou Calcitis
olhando com desprezo pelo companheiro de profissão. – O que
vai poder fazer? Assassinar-me acabaria de vez com a sua reputação, Calcin.
– E quem falou em te matar, seu nojento? Sr. Esmalte e o
sargento Calcion já estão por dentro dos fatos, e foram eles mesmo quem me libertaram. Acho melhor ir contando logo o que
sabe antes que as coisas fiquem piores para você, Calcitis.
Calcitis estava realmente se sentindo ameaçado depois de
ouvir aquelas palavras. Seus olhos buscaram as paredes vazias
da escadaria e suas pernas tremiam como se estivesse no epicentro de um terremoto.
– Por mais que eu lhe fale Calcin, a situação é muito mais
delicada do que você possa imaginar.
– Se for me dizer que o delegado Linfon T e o Dr. Fibron
estão por trás disso, sinto em decepcioná-lo, mas já estamos
cientes.
– Só não estão cientes de que uma nova onda de bactérias degradativas está pronta para atacar Incisivocity a qualquer
momento, agente Calcin – disse Calcitis demonstrando alegria. –
Creio que nem mesmo os agentes linfóides estão prontos para o
tamanho da demanda bacteriológica que está se aproximando.
– Se isso é verdade, então por que envolver Anipatita nesta sujeira toda? – perguntou o agente ameaçando agarrar Calcitis mais uma vez.
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– Sabíamos que você é um dos agentes mais audaciosos
de Incisivocity, com experiência de campo. Esteve em Caninus
Superiores e Molares, também presenciando a movimentação
dos streptos e a ação de Ácido Açucarado. Antes mesmo que as
coisas se sucedessem, você notaria as modificações estruturais
nas paredes dos bairros em todo o canto e alertaria com maior
facilidade a Liga de Amálgama – Calcitis estava se esbaldando
quando percebeu que Calcin se apavorava com suas palavras. –
Teríamos que tirar você do caminho e nada melhor do que usar
Anipatita para isso.
Calcin encostou-se na parede da escadaria sentindo um
pavor arrepiante aflorar dentro do seu peito. Por alguns instantes pensou que iria desmaiar, mas a fúria misturada à preocupação com a segurança de Anipatita mantinha-no acordado para
escutar aquela trama horripilante.
– Quando ocorreu aquele episódio em Molares, fomos escalados propositalmente para guiar Sr. Esmalte até uma tocaia,
onde ele seria facilmente destruído pelas bactérias. O que não
contávamos era com as bactérias, idiotas como eram, nos atacassem sem distinção, e levamos a pior naquele dia, pois além
de quase terem me aniquilado, deixaram escapar o prefeito e
aquele odontoclasto miserável. Contudo, ainda nos restou uma
pequena sorte que mudariam as estratégias.
Calcin ainda se mantinha de pé observando e escutando
apavorado as palavras de Calcitis enquanto, sem saída, descrevia tudo o que previamente fora tramado.
– Você apareceu e nos socorreu, Calcin. Suas impressões
ficaram cravadas na jaqueta de Calcine e o resto era somente
apresentar a jaqueta como prova do crime. Naquela noite, em
que você deixou Anipatita no apartamento dela, alguns actinomyces estavam já à espreita e outros esperando que você
passasse por algum lugar ermo para aplicar o golpe da “bolsa
esquecida” – e acrescentou. – Estávamos de olho em você muito
antes que você percebesse.
Calcin sentia-se anestesiado, mas procurou manter-se
firme em seu propósito final, tentando de alguma forma buscar
forças para salvar Anipatita.
– Onde está Anipatita? – começou a dizer pausadamente.
– Ou melhor, onde estão Calcine e Anipatita?
– Anipatita está escondida na região das tonsilas palatinas, bem além das fronteiras de Incisivocity. Existe uma cabana
isolada naquela região onde vai encontrá-la amordaçada, mas
terá que se adiantar, pois a Cárie sabe que a primeira pessoa que
você iria procurar, caso escapasse, seria eu mesmo. Creio que
não irão me libertar depois destas informações cedidas, e mandarão um grupo de actinomyces ao meu encontro de manhã em
um local aonde não mais irei. Não me encontrando, atacariam a
cabana sem piedade.
– Como é que é? – assustou-se Calcin.
– Você está num beco sem saída, agente Calcin – vangloriou-se ao dizer o malicioso agente. – Ou você volta para o centro
e avisa sobre o ataque, ou a vida de Anipatita vai se extinguir nas
mãos daquelas perversas criaturas.
Calcin afastou-se tremendo em uma mistura de ódio e pavor da qual nunca havia experimentado em sua vida. No peito
brotava-lhe uma enorme vontade de acabar com Calcitis num
único golpe, ao mesmo tempo em que suas pernas já se dirigiam
para a porta num ímpeto, quase que instintivo, de sair correndo
em busca de sua noiva.
Teria que ir ao encontro de Anipatita ao mesmo tempo em
que um possível ataque de criaturas ocorresse no centro de Incisivocity. Sabia que nem mesmo os linfócitos estariam montando
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Incisivocity
guarda em Incisivo Centrales já que sua fuga, naquele momento,
teria alarmado toda a força de defesa.
Calcin tinha de admitir que o plano fora perfeitamente
arquitetado e que não havia tempo de voltar para avisar às autoridades e mesmo que escolhesse este caminho, seria detido no
momento de sua volta.
–Escute bem o que vou lhe dizer, Calcitis – Calcin despejava fúria nos olhos e nas palavras. – Voltarei para te buscar,
não importa o que acontecer. E mesmo que isso não aconteça, o
seu fim foi justamente ter se aliado ao esquadrão da Cárie. Você
não vai muito longe.
E Calcin se atirou para fora seguindo em direção à viatura e entrando num único pulo dentro do veículo. Em poucos
segundos, o agente já havia cruzado as esquinas daquela rua,
deixando para trás os olhos temerosos de Calcitis que se sentiu
como se uma praga perigosa houvesse sido lhe despejado com
toda a fúria.
Sr. Esmalte, como de costume, estava de pé olhando para
o centro da cidade próximo à janela sendo observado pela Sra.
Dentina, Obariloclasto, Dr. Fibrone Jr., Cementon e Oncoclastos.
Porém fora Oncoblasto quem quebrou o silêncio daquele ambiente tão intenso.
– Se isso tudo for verdade, qual o interesse de Fibron e
Linfon T nessa trama toda? – perguntou cruzando os braços e
coçando o queixo.
– Não sabemos e isso torna as coisas um pouco difíceis,
senhor Oncoblasto – respondeu Madame Mielina entrando também no gabinete do prefeito. – Não temos como acusá-lo sem
provas – e se voltou para o jovem médico. – Desculpe-me Dr. Fibrone, mas suas palavras serão somente levantadas como acusação verbal. O que fizemos hoje foi simplesmente dar uma carta
de crédito à Calcin e esperar que ele realmente encontre Calcine
para poder levantar acusações legalmente ativas.
– Contudo já amanheceu e até agora nada do agente aparecer – disse Obariloclasto também olhando para a janela. – As
autoridades não vão demorar a aparecer por aqui.
– Calcion está em minha casa, esperando o momento certo de voltar para o departamento de policicálcio – disse o prefeito sem olhar para trás. – Neste momento, os oficiais já devem
ter notado a ausência do sargento e também do agente e, com
certeza, já devem estar alertando o sistema imunológico. Lá em
casa ninguém vai suspeitar de nada e só poderão lá entrar com
uma ordem assinada por mim.
– A não ser que o Sistema Nervoso Central assine uma ordem de mandato – disse Mielina completando as afirmações do
prefeito. – Contudo, não creio que isso irá ocorrer se ele mesmo
não expuser os fatos a mim primeiro. Lembrem-se, sou o único
elo do Sistema Nervoso para com os demais complexos.
– Neste momento Calcion está seguro na casa do prefeito
junto com Célica, Amelodentina e Célion – foi a vez de Cementon.
– O que mais me preocupa é a demora de Calcin – disse
o prefeito voltando-se para todos. – Daqui a pouco será muito
difícil para ele conseguir retornar.
– Não entendo o porquê de Calcin ter ido sozinho em busca de Calcine – disse Obariloclasto.
– Como Calcion mesmo disse, Calcin sabe de alguma coisa
que não temos acesso – respondeu o prefeito. – Se o sargento o
acompanhasse, as coisas iriam se complicar, caso os dois fossem
pegos juntos.
Mas naquele momento o barulho de sirenes cortou a conversa naquele recinto fazendo com que todos ali se aproximas-
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sem da janela e presenciassem um grande número de viaturas
do sistema imunológico atravessar a praça central de Incisivocity.
– Linfon T está vindo – disse Madame Mielina.
– E pelo visto trazendo uma boa tropa – Fibrone Jr. Comentou. – Bom prefeito, acho que existem dois suspeitos em potencial aqui.
– Sei que você, Fibrone e Obariloclasto poderão ser levados para algum tipo de interrogatório, mas este eu não vou assinar – disse firme Sr. Esmalte trazendo um brilho distante dos
olhos da esposa.
– Tenho tanto orgulho de você, Esmalte – disse ela se aproximando do marido. – Tinha certeza de que você defenderia as
pessoas corretas mesmo pondo em jogo seu próprio mandato.
Sr. Esmalte se aproximou de Dentina, abraçou-a bem forte
e soltou todo o ar preso em seu peito nos ombros da esposa.
– Já não tenho medo de perder meu lugar no comando de
Incisivocity, se isto me custar salvar pessoas as quais considero
como verdadeiros amigos. E Calcin é um deles.
Quando Linfon T apareceu pela porta do gabinete do prefeito, Sr. Esmalte já esperava pelas metralhadas de palavras que
começariam a ser despejadas naquele recinto. Madame Mielina
se posicionou próximo ao prefeito e a primeira dama. Dr. Fibron
apareceu logo atrás e ao perceber que seu residente estava na
sala, começou a encará-lo em sinal de desafio.
– Bom, eu não poderia deixar de passar por aqui sem
avisá-lo de que seu agente será caçado entre os quatro hemiarcos da cidade, senhor prefeito – disse Linfon T sem se intimidar
com o administrador chefe da casa pública de Incisivocity. – E
assim que o encontrarmos vamos encaminhá-lo à Intestinópolis para sua degradação e expulsão do sistema.
Obariloclasto levantou-se rapidamente da cadeira onde
estava sentado e se colocou em frente do delegado olhando-o
profundamente.
– O senhor está infligindo todas as normas legais do sistema – disse Obaliloclasto. – Calcin ainda nem participou de um
tribunal para que esta decisão seja tomada.
– Seu cliente fugiu, senhor Obariloclasto – reforçou Linfon
T. – A partir deste momento ele passa a ser réu confesso e responsável por todas as acusações.
Dr. Fibron também se adiantou e seguindo em direção ao
seu aluno residente balançava a cabeça em sinal de reprovação.
Vinha passando os dedos pelos móveis brancos e rústicos sem
desviar os olhos de Fibrone.
– Estou muito curioso para saber o que você faz aqui na
prefeitura, Fibrone – perguntou com ares de sarcasmo.
– Desculpe-me professor, mas acho que posso estar onde
eu bem entender, não é mesmo?
Sra. Dentina só não disparou gargalhada por respeito ao
marido, mas sentia que daquele momento em diante, Fibrone
era um dos seus e orgulhava-se do rapaz não sentir-se intimidado na presença de seu tutor.
– Madame Mielina – disse Linfon T também se sentindo
ofendido pela resposta do jovem médico. – Creio que este não é
mais o ambiente propício para uma senhora de sua categoria. Lá
fora tem uma comitiva que a levará de volta ao Sistema Nervoso
Central e espero que a senhora repasse exatamente o que está
ocorrendo neste complexo.
– Escute, caro delegado – disse ela sentindo-se atingida
com o tom ordeiro de Linfon T. – Tenho meus próprios meios de
retornar para o sistema, e creio que pode ficar sossegado que a
verdade será exposta pelo meu marido da melhor forma possí-
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Sr. Esmalte não prolongou por muito tempo aquele desagradável encontro e observou tanto o delegado quanto o médico
diretor de o Fibrospital saírem sem dizer mais nada.
Quando o interfone do gabinete municipal tocou, foi Dentina quem o atendeu. Era o recepcionista dizendo que havia
um cementócito desesperado para falar com Cementon urgentemente. Esmalte disse em voz alta para a esposa que poderia
deixá-lo entrar e que viesse imediatamente para sua sala.
Não levou muito tempo até que um cementócito bem magro e pequeno entrasse pela porta olhando para todos os lados
procurando por seu líder Cementon.
– O que está se passando Cerment? – perguntou Cementon levantando-se da cadeira e pondo-se à mostra já que a visão
destes cementócitos, à luz do dia, não era tão eficiente assim.
– Senhor, o complexo gengival está se inflamando por toda
a porção posterior de Incisivocity – disse ele engolindo fôlegos.
– Como assim inflamando? – Sr. Esmalte saiu de perto da
janela se aproximando de Cerment.
– Estamos trabalhando na construção das vias subterrâneas do metrô, como combinado, porém próximo à Molares
Inferiores as estruturas gengivais estão cedendo e derramando
exsudato purulento – continuou Cerment recuperando todo o ar
perdido numa corrida investida até a prefeitura. – Os cementócitos não estão conseguindo fazer nada por aquela região.
– Isso é uma péssima notícia senhor prefeito. – completou
Cementon.
– Sei disso, Cementon – respondeu ainda olhando para o
cementócito que realmente parecia assustado.
– E o pior ainda não é isso – continuou Cerment. – As estruturas básicas de sustentação de molares estão começando a
se abalar.
Sr. Esmalte se afastou, abraçou a mulher e sentou-se na
beirada da poltrona onde ela estava com uma expressão completamente desfalcada.
– Eles voltaram! – disse em tom desanimador.
– Quem? – perguntou Oncoblasto se pondo de pé desesperado.
– Os streptos estão novamente atacando Molares.
Mas naquele momento algo também chamou a atenção
de Madame Mielina que se aproximava vagarosamente da janela
seguida por Dentina, que trazia uma das mãos à boca como se
não acreditasse no que realmente estava se passando do lado
de fora.
Quando Oncoclasto e Obariloclasto também se aproximaram delas ficaram horrorizados com os olhares fixos em alguma
coisa que ocorria.
Dr. Fibrone olhando para o prefeito ficou sem entender,
mas esperou alguma reação de Esmalte para poder se levantar
e seguir em direção aos demais. Esmalte assim o fez, se dirigiu
para a segunda janela de sua sala seguido pelo jovem médico e
se assombrou com uma visão muito esquisita.
Milhares de odontoblastos, apatitas e odontoclastos vindo em direção ao centro da cidade, alguns com seus veículos,
outros a pé. Muitas apatitas traziam crianças no colo, seguidas
por odontoblastos carregando malas e objetos pessoais de importância.
Em outras vias também chegavam várias viaturas de patrulhamento da força policicálcio, parcialmente destruídas e
também algumas unidades de atendimento do Fibrospital descarregando policicálcios feridos.
– Que visão de fim do mundo! – disse Oncoclastos sem
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vel.
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tirar os olhos da janela.
Sr. Esmalte sem dizer nada saiu correndo em direção
à porta descendo as escadarias, sendo seguido por Fibrone Jr.
que imaginava poder ajudar com algum ferido. Sra. Dentina foi
a próxima a correr em direção ao marido seguida por Mielina e
os demais.
Quando atingiram o hall de entrada da prefeitura, se depararam com outra situação bastante desagradável. Alguns policicálcios mantinham-se afixados à porta central impedindo a
entrada forçada de uma população histérica.
– O que está acontecendo aqui? – perguntou o prefeito
para um cálcio que estava de pé gritando ordens para os demais
policicálcios.
– Senhor, estas pessoas estão querendo entrar e não cabem aqui dentro – respondeu o cálcio sem desviar sua atenção
da porta.
– E o que está havendo para que estas pessoas estejam
neste estado? – perguntou novamente Sr. Esmalte.
– Parece-me que está acontecendo um ataque em massa
de Streptococos Mutants nos bairros posteriores e não estamos
tendo policiamento suficiente para detê-los.
– Como assim não há policiamento suficiente? – perguntou novamente o prefeito.
– Desculpe-me prefeito, mas é só o que sei por enquanto.
Sra. Dentina, ao ouvir, afastou-se lentamente com as mãos
à boca balançando a cabeça e deixando as primeiras lágrimas
escaparem dos olhos.
– Amelodentina! – sussurrou ela entre prantos.
– Acalme-se, Dentina – disse Madame Mielina abraçando-a. – Sua filha não está sozinha, além de Célion e Dona Célica,
o sargento Calcion também está lá.
– Quero ir para casa, Esmalte! – gritou a primeira dama
perdendo o pouco controle que lhe restava. – Quero ver minha
filha.
Sr. Esmalte correu para os braços da esposa, agarrando-a
com força e olhando para ela profundamente, não deixando escapar as lágrimas que também estava com vontade de derramar.
– Escute o que vou lhe dizer – disse ele imponente. –
Nada acontecerá a nossa filha, eu prometo. E vamos daqui direto pra lá.
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Incisivocity
Capitulo 13
Era uma espécie de cabana muito esquisita e suja, com
paredes incrustadas de tártaro e, pelo que se notava já de longe,
afundava numa gengiva já atacada por uma inflamação bem intensa. Quanto mais se aproximava do local, mais a viatura guiada
por Calcin deslizava sem controle, até que o agente conseguisse
brecar totalmente o veículo.
Quando Calcin pisou no chão, sentiu seus pés afundarem
e o odor que vinha de baixo era muito desagradável.
A região das Tonsilas Palatinas não era daquele jeito. Por
algumas vezes, quando ainda era um oficial em treinamento,
Calcin participou de várias campanhas por aquela região e seu
solo era de uma tonalidade rosada sadia, sem aquele odor completamente nauseante.
Quando, porém, se aproximou da barraca, notou que, além
de alguns sussurros vindos de dentro, alguém ou alguma coisa
rastejava do lado oposto em que se encontrava. Calcin sabia que
sua pistola calcítica não eliminaria totalmente um strepto, por
isso trouxe consigo uma granada degermante.
Calcin ficou agachado esperando o momento certo de agir,
antes de provocar um alarme, e quando aquela criatura acinzen-
182
tada dobrou a beirada da cabana, o agente atirou o degermante
certeiramente no peito da criatura, fazendo-a se contorcer como
lagarta.
Não restou muito tempo à Calcin que, saltando por cima
da criatura, correu em direção à porta de entrada da cabana se
deparando com outro strepto que vinha urrando para cima do
agente como se o quisesse engolir. Rapidamente, Calcin sacou
sua pistola calcítica e disparou nos olhos da criatura que, sem
poder enxergar nada, começou a urrar mais forte ainda. Calcin
com um único solavanco empurrou a criatura para dentro novamente e entrou pela cabana já podendo ver Anipatita amarrada
próxima de uma mesa pequena repleta de coisas esquisitas as
quais o agente supôs ser de uso daqueles vermes estranhos.
– Anipatita! – gritou Calcin correndo na direção da secretária.
Anipatita ainda estava com uma fenda amarrada nos
olhos, mas pôde identificar a voz de Calcin gritando por ela, o
que fez com que ela respondesse vibrando de tanto alívio.
– Calcin! Por favor, me tire daqui!
Calcin não hesitou em arrancar as cordas que enrolavam
as mãos de Anipatita com toda a raiva que sentia daquelas criaturas que, pelo visto, não pouparam grosserias.
– Fique tranquila, Anipatita – disse tranqüilizando-a. –
Vou tirá-la daqui agora mesmo.
Quando se viu livre, a secretária pulou nos ombros do
agente beijando-o impetuosamente. Calcin sentiu seu coração
bater tão forte que quase esqueceu onde realmente estavam naquele momento.
– Não temos muito tempo, minha querida “Diamanta”
– aquelas palavras fizeram Anipatita soltar todo o resto de
lágrimas que ainda lhe restavam. – Um dos vermes ainda está
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Fabiano Freire
Incisivocity
atordoado e temos pouco tempo para sair correndo daqui em
direção ao centro da cidade.
Ambos saíram correndo em direção à viatura que trouxe Calcin. Anipatita reparou numa criatura caída já sem vida do
lado de fora e notou a outra se levantar dentro da cabana.
– O outro está se levantando e vindo pra cá – disse ela
segurando firmemente as mãos do agente.
Calcin rapidamente abriu uma das portas e, segurando a
cabeça da secretária, empurrou-a para dentro sem hesitar. Deu
a volta na viatura e, percebendo que Anipatita havia destravado
seu lado, também pulou para dentro do veículo.
– Não temos muito tempo, Anipatita – disse Calcin já
arrancando o veículo em meio a derrapadas naquele terreno
completamente instável. – Incisivocity já deve estar sendo atacada com toda força por estas criaturas miseráveis.
O veículo seguiu derrapante por algum tempo, com Calcin tenso tentando manter o controle do automóvel e Anipatita
olhando para trás observando se não estavam sendo seguidos
pela criatura que havia ficado para trás, até que de repente outro
veículo da força policicálcio aparece lateralmente a eles fazendo
o agente se assustar e dar um solavanco ríspido na direção.
Calcin tentava manter o controle da viatura ao mesmo
tempo em que buscava reconhecer quem estava na direção do
outro veículo, que insistia em colidir.
– Não acredito! – disse Calcin olhando de rabo de olho. – É
Calcine.
– Nós vamos bater! – gritou Anipatita percebendo a intenção maliciosa de Calcine.
A viatura guiada por Calcine se afastou por alguns segundos e voltou com uma velocidade maior contra a porta esquerda
do veículo de Calcin fazendo com que o agente perdesse comple-
tamente o controle e rodopiasse parando fora da estrada.
– Abaixe-se, Anipatita! – gritou Calcin ao perceber que
Calcine havia saído da viatura e começado a disparar calcitina
contra eles.
Mesmo abaixado, Calcin conseguiu abrir sua porta e saiu
rastejando pela lateral da viatura. Anipatita continuou deitada
sobre a poltrona do veículo obedecendo ao comando dado pelo
agente, para que ela continuasse onde estava.
Naquele instante ricocheteava calcitina por todos os lados, impedindo Calcin de observar em que direção Calcine estava, para que também pudesse disparar em defesa.
Calcin estava encurralado na lateral oposta do veículo enquanto Calcine se aproximava disparando contra eles. Anipatita ainda deitada percebeu que alguém estava se aproximando
daquele lado do veículo e notou quando Calcine se encostou do
lado de fora de sua porta. Rapidamente, uma ideia bastante arriscada tomou conta da mente aterrorizada da secretária que,
num súbito gesto, destravou sua porta e a golpeou com os dois
pés. Calcine não havia percebido que Anipatita se encontrava
dentro do veículo e muito menos percebeu quando a porta se
abriu violentamente acertando-o bruscamente na cabeça.
Calcin somente ouviu o barulho de a porta arremessar
seu agressor, já desarmado, de volta para a estrada e Anipatita
sair gritando em sua direção.
Num gesto sem raciocínio, o agente saltou sobre o capô do
veículo, correndo na direção de Calcine, que se contorcia em dores com as mãos sobre o nariz arrebentado pela força da batida.
Naquele momento, Anipatita já havia agarrado a pistola calcítica
que fora arremessada junto com o agressor e, tudo que Calcin
fez foi cair de socos em cima de Calcine, fazendo com que o agente gritasse ainda mais.
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Incisivocity
Amelodentina olhava assustada pela janela do apartamento enquanto Dona Célica e Célion ajudavam o sargento Calcion a colocar travas nas portas. As pessoas corriam de um lado
para outro, algumas até se trombavam, no desespero em que se
encontravam lá embaixo.
– Onde estão meus pais? – gritava Amelodentina batendo
com os pés em cima do sofá enquanto olhava pela janela.
– Seus pais estão bem, mocinha – disse Calcion enquanto
colocava uma cadeira debaixo da maçaneta da porta principal.
– Seja lá o que está acontecendo, o lugar mais seguro de Incisivocity é a prefeitura e seus pais estão lá.
– Meu pai também, senhor sargento? – perguntou Célion
com seus grandes olhos cheios de lágrimas.
– Sim, meu filho – respondeu Dona Célica trazendo mais
cadeiras para a sala principal. – Papai está com o prefeito – e
olhando para o sargento concluiu esperando alguma resposta
do oficial. – Não é mesmo sargento?
Calcion abaixou os olhos acenando positivamente, mas
não confortando a mãe do garoto.
– Ajude-me aqui, Dona Célica! – pediu Calcion empurrando o sofá em direção à porta do corredor que dava para os
quartos. – Tomara que sim, senhora. No momento tudo o que
parece é que está havendo algum tipo de invasão em massa –
dizia o sargento longe do alcance das crianças. – Realmente o
lugar mais seguro para este tipo de situação é a prefeitura, mas
não sabemos direito o que está acontecendo. A única coisa que
nos resta é tentar nos proteger caso isso esteja realmente acontecendo.
Amelodentina se agarrava a sua boneca Diamanta tremendo e desejando que Anipatita estivesse perto de sua mãe. A
menina sabia do desaparecimento da secretária, mas reconhe-
cia que aquela apatita era a companhia perfeita para sua mãe
numa situação de perigo. Célion também estava assustado, mas
ao ver que sua amiga não parecia estar tranquila, se aconchegou
a ela dizendo palavras confortantes.
– Nunca vi ninguém como seu pai, Amelodentina. E sei
que meu pai também é muito forte – disse o garoto pegando na
mão da amiguinha. – Tenho certeza de que os dois juntos vão
defender sua mãe de qualquer coisa.
Calcion observava aquela cena de longe juntamente com
Dona Célica, que podia notar a expressão desapontada do sargento.
– O que está acontecendo? – disse ele sussurrando. – Está
tudo fora de controle!
– Sargento, você tem certeza de que Calcin não está envolvido nisso? – perguntou Célica desacreditada. – Este seu agente
até agora não apareceu e tudo está pesando para culpá-lo.
– Escute uma coisa, Dona Célica – respondeu Calcion alterando um pouco a voz. – Eu mesmo treinei Calcin e quando
estive com aquele médico residente, tive a certeza absoluta que
uma trama muito bem armada foi arquitetada para jogar a força policicálcio numa situação de incredibilidade – e concluiu.
– Aconteça o que acontecer, não deixarei nada atravessar estas
portas, ou não me chamo Calcion Cálcico.
Quando um dos oficiais policicálcios entrou correndo no
gabinete do prefeito, Sr. Esmalte já imaginava qual seria o veredicto.
– Senhor prefeito, todos os bairros molares estão tomados! – disse o oficial ofegante.
Sr. Esmalte, quando percebeu que a população se deslocava dos bairros vizinhos para o centro da cidade, logo deduziu
que a Cárie poderia estar por trás de uma movimentação gigan-
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Incisivocity
tesca de bactérias. Como a maioria dos oficiais de Incisivocity
estava concentrada na procura e captura de Calcin e Calcion, o
prefeito somente pôde lançar mão de alguns oficiais que ficaram
de monitoria na prefeitura. Sem o sargento por perto, Sr. Esmalte não tinha como formular uma estratégia militar eficiente, entãoordenou para que alguns dos oficiais que restaram, fizessem
uma varredura pelos bairros vizinhos a fim de averiguar o que
realmente ocorria.
– Conseguiu encontrar os demais oficiais da tropa de Incisivocity? – perguntou o prefeito questionando por outra ordem
anteriormente dada.
– Nenhum dos oficiais escalados detectou policicálcios
pela redondeza, senhor. Parece-me que já estão além das fronteiras de todos os bairros molares da cidade, junto com os linfócitos à procura por Calcin.
O mundo parecia estar desabando sobre a cabeça de Esmalte que, ao mesmo tempo em que percebia não ter soldados à
sua disposição, admitia que um plano estrategicamente perfeito,
para afastar os oficiais do centro da cidade, havia dado certo.
– Senhores, devo ser sincero – disse o prefeito a todos na
sala, batendo com uma das mãos em sua mesa. – Não faço a mínima ideia do que está por vir. Desta vez a Cárie foi longe demais
e nossas defesas são escassas.
– Temos que avisar o Sistema Nervoso Central e pedir reforços imediatamente – argumentou Oncoblasto andando de um
lado para outro.
Sr. Esmalte voltou-se novamente para o oficial, que ainda
se mantinha de pé esperando por alguma ordem, demonstrando
uma expressão de pavor completamente perceptível.
– Como está a situação, oficial?
– Temo em admitir que não há como sair de Incisivocity
– respondeu o policicálcio olhando para Oncoblasto. – Creio que
nem pelo subsolo, pois de acordo com alguns oficiais, até mesmo os cementócitos estão vindo para cá em retirada.
– Sendo assim, também não há como alertar o Sistema
Nervoso Central – concluiu Sr. Esmalte. – Já que Madame Mielina não conseguiria sair daqui e é a única mensageira capaz de
entrar em contato com o sistema.
– Tem coisa muito estranha nisso tudo, prefeito – alertou
Cementon. – Os cementócitos não abandonariam seus postos
por causa de um ataque de streptococos. Todos nós sabemos
que estas bactérias não sobreviveriam no subsolo da cidade.
– Você tem toda a razão, Cementon – concordou o prefeito. – Provavelmente, a Cárie aumentou seus laços bacteriológicos e vem coisa pesada por aí. O pior de tudo é não alertarmos o
sistema, desta forma não poderemos contar nem mesmo com a
Liga de Amálgama.
– Por favor, Esmalte – disse a Sra. Dentina em prantos. –
Diga-me que existe alguma saída.
– Desculpe-me, querida – respondeu Sr. Esmalte abraçando fortemente a esposa. – Mas creio que a única opção neste caso
é lutarmos nós mesmos por nosso complexo sem ter de contar
com possíveis reforços.
Fibrone Jr. Levantou-se seguindo em direção à janela com
uma das mãos coçando sua nuca, não disse uma só palavra até
se aproximar da vidraça e observar ao longe. Apesar da correria
que se estendia pelas ruas de Incisivo Centrales, tudo parecia
estar calmo além dos bairros Molares. Parecia estar realmente
pensando em alguma coisa importante, o que fez com que todos
esperassem por alguma reação do médico residente.
– Acho que sei quem está ajudando a Cárie neste ataque,
Sr. Esmalte – disse Fibrone ainda olhando para fora. – Reparem
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Incisivocity
como está ficando o solo em Incisivocity.
Naquele instante todos se aproximaram da janela e começaram a reparar em toda mediação em volta da prefeitura.
O terreno estava mais vermelho que de costume e aparentava
muito mais viscoso. Sr. Esmalte notou também que alguns cidadãos cobriam seus narizes evitando inalar o que parecia ser um
odor bastante forte.
– Pelo que parece, até mesmo o subsolo da cidade está
sendo atacado – continuou Fibrone. – Só existe um tipo de bactéria que poderia exercer este tipo de ação em toda a região gengival do complexo. São os Clostridiuns e se não temos como avisar
o sistema é porque o alvo é exatamente Madame Mielina.
– Clostridium Botulinium! – exclamou Madame Mielina
temerosa. – Não pode ser!
Todos notaram a reação de Madame Mielina em relação
às palavras de Fibrone e aquele acontecimento deixou até mesmo Sr. Esmalte preocupado.
– Quem é Clostridium Botulinium? – perguntou Sra. Dentina também se apavorando.
– É um dos principais inimigos de todo o Sistema – respondeu vagarosamente Mielina. – Sua intenção sempre foi bloquear-me impedindo assim que o Sistema Nervoso Central comandasse todos os complexos. Jamais imaginei que Clostridium
Botulinium fosse conseguir isso justamente em Incisivocity.
Sr. Esmalte sentiu-se péssimo ao ouvir aquelas palavras.
Pela primeira vez sentiu um gosto amargo de derrota e completamente incapacitado, como se não conseguisse mover nem
mesmo os braços. Pela primeira vez também abaixou a cabeça e
sentiu-se humilhado por sua adversária. Agora sim Incisivocity
estava à mercê da Cárie.
Poucas vezes em sua vida Sra. Dentina tinha visto seu ma-
rido com uma expressão tão abatida, porém desta vez ela pôde
notar não só a sua expressão, mas também o apagar do brilho
nos olhos de Sr. Esmalte. Pela primeira vez também Dentina sentiu Esmalte se deprimir perante um obstáculo.
– Esmalte, o que está acontecendo? – perguntou Dentina
enxugando suas lágrimas, tentando se mostrar firme perante o
desespero do marido.
– Não sei, Dentina. Há alguma coisa de ruim acontecendo
e pela primeira vez não sei o que fazer.
– Não estou falando disso, e sim o que aconteceu com
você? – continuou ela ainda insistindo. – Conheço-o muito bem,
Esmalte e sinto cada coisa que você pensa, desde o começo. Por
favor, não me diga que está pensando em desistir.
– Pelo que conheço da Cárie, ela irá pressionar para que
entreguemos o complexo. E da pior maneira possível – Esmalte
estava transtornado. – Diga-me o que poderei fazer para ajudar
minha população? Será o fim de Incisivocity se a Cárie assumir a
administração da cidade.
– Não sei o que você irá fazer para ajudar os cidadãos de
Incisivocity – intimidou-se Sra. Dentina. – Mas tenho certeza de
que o “Sr. Esmalte” vai encontrar uma solução para derrubar novamente os planos da Cárie de uma vez por todas.
Anipatita olhava temerosa pelo retrovisor, observando
Calcin no banco de trás da viatura segurando firmemente Calcine que ainda se remexia com as dores das bofetadas do agente.
Ela guiava o veículo com toda atenção possível, pois ela mesma
havia notado que, enquanto se aproximava dos limites da cidade, o solo encontrava-se inadequado e escorregadio.
Calcin, mesmo cuidando para que seu detento não tentasse escapar, reparava espantoso aquele terreno completamente
modificado de uma maneira tão rápida. Ficou espantado tam-
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bém na habilidade de Anipatita na direção do veículo, ele mesmo
não tinha certeza se conseguiria controlá-lo naquela situação.
– O que está havendo, Calcin? – perguntou a secretária
dando golpes no volante. – O terreno está instável demais.
Calcin não quis citar o fato de escolher Anipatita à Incisivocity e por alguns momentos ficou pensando em uma resposta
menos conflitante do que “Incisivocity estava sendo atacada enquanto eu a buscava”. Sabia que Anipatita o criticaria duramente
e naquele momento o que ele deveria fazer realmente, era chegar até o prefeito levando Calcine.
– Incisivocity está correndo um grande perigo – disse ele
olhando ao redor e imaginando o pior. – As bactérias estão voltando para Incisivocity.
– Neste momento, elas já devem estar por toda a parte –
completou Calcine em meio a tosses e risos.
Calcin apertou ainda mais o braço de Calcine fazendo o
oficial traidor agonizar mais uma vez, contudo não conseguiu
tirar de seu rosto o sorriso de deboche. Calcine sabia que Calcin
veio ao encontro da secretária ao invés de seguir para a cidade
alertar as autoridades sobre o motim que se levantava contra o
prefeito.
Quando, mesmo entre derrapadas, o veículo se aproximou de Molares Decíduos Inferiores, Anipatita freou ao perceber que a entrada da cidade estava tomada por agentes linfóides
que começaram a disparar contra a viatura procurada.
– Calcin! – gritou Anipatita afundando com os pés no freio.
– Estão atirando contra nós!
– Passe-me o megafone, Anipatita! – ordenou Calcin.
O veículo ainda derrapava na tentativa de frenagem enquanto os linfócitos disparavam contra eles. Até mesmo o sorriso sarcástico havia desaparecido da face de Calcine naquele
momento crucial e Calcin começou a gritar pelo rádio, ecoando
do lado de fora da viatura.
– Parem de atirar! – orientava numa tentativa isolada.
– Sou o agente Calcin e estou com Anipatita e Calcine. Suspendam fogo!
Antes de o automóvel parar por completo, alguns tiros de
degermante ainda ricochetearam em sua lataria. Parecia que os
agentes linfóides entenderam as palavras de Calcin, pois, além
do cessar fogo, começaram a caminhar ao encontro da viatura.
– Estão vindo, Calcin – disse a secretária olhando apreensiva para os oficiais. – E são muitos.
– Estão à minha procura, Anipatita. – disse Calcin também
olhando para fora, um pouco agachado. – Não precisa temê-los.
Assim que eu der o sinal, abra a porta e saia correndo na direção
deles.
– E você? – perguntou Anipatita assustada.
– Pode ficar tranquila, vou sair mantendo Calcine como
refém até que você tente explicar o que de fato está acontecendo.
Calcin notou também, que além do grande número de oficiais linfóides, Linfon T não estava presente e que, assim sendo,
poderia ter maior tempo de persuasão, já que um dos principais
responsáveis pela trama contra Incisivocity não tentaria acabar
com tudo de uma vez, ao ver que Calcine fora capturado, e pudesse colocar tudo a perder.
Quando Calcin então piscou os olhos, Anipatita saiu correndo na direção dos agentes que pararam onde estavam para
esperar a secretária chegar em segurança.
Um dos linfócitos se aproximou da secretária numa movimentação de cobertura, passando por trás dela e voltando com
a arma apontada na direção da viatura de Calcin.
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Incisivocity
– A senhorita está bem? – perguntou o linfócito ainda
mantendo-se na posição de fogo.
Anipatita acenou positivamente com a cabeça olhando
para a viatura, tentando enxergar Calcin naquela distância.
– Meu nome é Linfon B, subtenente das forças imunológicas do sistema – disse o linfócito já olhando para a secretária
ao perceber que outro agente havia tomado a sua posição de cobertura. – Estou encarregado do patrulhamento neste setor. A
senhorita está em segurança agora.
Anipatita estava tomada pelo medo, imaginando o que
aconteceria se Calcine conseguisse se soltar e corresse na mesma direção. Talvez os oficiais começassem a disparar impetuosamente contra Calcin sem esperar um só segundo. Em consequência deste pensamento, a secretária começou a dizer sem
pensar duas vezes.
– Desculpe-me, tenente...
– Subtenente, senhorita – interrompeu Linfon B.
– Desculpe-me novamente, subtenente, mas eu já estava
salva antes de sair daquela viatura.
– Como assim, senhorita?
– Era eu quem estava dirigindo aquele veículo antes de
vocês começarem a disparar contra nós.
– Não estou entendendo – respondeu Linfon B atordoado
com as palavras de Anipatita.
– Escute, Sr. Linfon B, é uma longa estória – continuou ela
ainda temerosa. – É expressamente importante que o senhor ordene aos seus soldados para não atirar contra Calcin quando ele
sair do veículo segurando Calcine.
– Continuo sem entender a base de sua exigência, senhorita.
– Calcin é inocente – disse ela rapidamente ao perceber
que a porta de trás da viatura de Calcin começava a se abrir. – Eu
estava em poder do agente Calcine e, ao contrário do que todos
vão pensar, Calcin está mantendo detido o verdadeiro culpado
pelo meu seqüestro.
– Não há lógica nisto, senhorita – disse ele também percebendo que Calcin estava saindo do veículo.
– Não importa qual é a lógica agora, senhor subtenente –
disse ela agarrando-o com toda força. – O que importa é deixar
Calcin se aproximar trazendo Calcine preso.
Linfon B ainda não tinha entendido qual a razão para
aquela situação, mas resolveu apostar no desespero da secretária, acenando para os demais aguardarem até que ele autorizasse um ataque contra Calcin que, naquele momento, vinha
se aproximando em passos curtos, empurrando Calcine com os
braços voltados para trás.
Momentos de apreensão tomaram conta daquela cena estressante, entre Calcin e Linfon B. Ambos se olhavam tensos e
cuidadosos como se a qualquer instante um fosse partir para
cima do outro como duas feras.
Calcine não perdeu tempo nem oportunidade, enquanto
Calcin o empurrava, Calcine gritava por socorro pedindo aos oficiais que disparassem contra Calcin.
– Você só pode estar louco, seu imbecil – respondeu Calcin. – Se dispararem contra mim, vão acertá-lo também.
– Esqueçam! – começou a gritar Calcine. – Não atirem
agora, ele vai me matar.
Calcin já não estava suportando aquele gesto covarde e
ao mesmo tempo atrapalhado de Calcine e a vontade de apertar
seu braço aumentava a cada palavra que ele gritava.
– Por favor, senhor subtenente – dizia Anipatita. – Não
acredite em uma só palavra deste sujeito.
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Incisivocity
Todos os linfócitos estavam preparados para qualquer
movimento brusco de Calcin e Linfon B ainda temia que a secretária estivesse sob ameaças, motivo pelo qual estava defendendo o cálcio procurado.
Quando finalmente Calcin se aproximou o suficiente dos
linfócitos, soltou Calcine que numa habilidade quase que inesperada correu em direção à Anipatita, se posicionando à sua frente
e sendo barrado imediatamente por outros dois linfócitos.
Calcin levantou seus braços à altura da cabeça e se ajoelhou, enquanto mais dois oficiais se aproximavam dele. Anipatita encarava com ódio Calcine, que mesmo seguro pelos linfócitos deixava escapar um sorriso asqueroso.
Linfon B se aproximou também de Calcin cuidadosamente
e, recolhendo sua pistola calcítica, começou a dizer em bom tom.
– Você tem seus direitos resguardados, agente Calcin.
Não diga mais que o necessário, caso contrário poderá ser usado contra você em julgamento.
Calcin sabia que nada que dissesse aliviaria sua barra, já
que sua busca era ordenada pelo oficial supremo dos linfócitos e
que provavelmente ninguém lhe daria crédito naquele instante.
Calcine também estava detido devido à denúncia feita
pela secretária, até que ambos fossem levados para averiguação
do caso. Linfon B se mostrava firme, mesmo quando todos tinham a certeza de que o oficial também estivesse confuso como
eles.
O tempo estava passando e até então, todos estavam parados no mesmo lugar, na entrada de Molares, sem dar prosseguimento à ação de levar Calcin até a delegacia, como seria de
costume. Anipatita se mostrava impaciente, pois sabia que Linfon B não lhe havia depositado total confiança e também não
ordenava para que os outros linfócitos avançassem dentro de
molares, já que o agente procurado havia sido encontrado.
– Por que não saímos daqui ainda, subtenente? – perguntou Anipatita percebendo que grande parte dos linfócitos montava guarda do lado oposto, bem na entrada do bairro.
Linfon B não respondia uma só palavra, ficando parado,
olhando também na direção dos outros oficiais, que se mantinham firmes em seus postos.
Calcin já imaginava o que estava se passando, mas aquela
demora também lhe afetava os nervos. Incisivocity poderia estar
precisando de reforços e aquele batalhão do sistema imunológico não movia um só músculo em prol disso.
– São os streptos, não é mesmo Sr. Subtenente? – perguntou Calcin chamando a atenção do oficial.
– Como sabe que os streptos tomaram todo o bairro? –
perguntou espantado Linfon B.
– Pergunte a este traidor – respondeu Calcin apontando
para Calcine, demonstrando raiva nas palavras. – Este monstro
estava mantendo Anipatita encarcerada enquanto uma leva destas bactérias se movia em direção à cidade.
Linfon B aproximou-se novamente de Calcin e o encarou
firmemente. Nunca em sua vida, Calcin esteve tão perto de um
Linfócito. Seu rosto dava o dobro do tamanho do rosto de Calcin,
aqueles olhos negros penetrantes intimidariam até mesmo a
bactéria mais temível e seu porte físico bruto e ao mesmo tempo
hábil, não deixaria escapar nem mesmo um atleta.
– Se você estava de porte de uma informação tão delicada como esta, por que não avisou as autoridades imediatamente? – perguntou Linfon B demonstrando se irritar fácil.
– Vocês me dariam o crédito necessário, sendo eu caçado
pelos quatro hemiarcos de Incisivocity? – respondeu Calcin devolvendo o olhar incisivo.
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Linfon B se mostrou sem resposta e voltando-se para Calcine, fez um gesto aos demais oficiais para que continuassem
segurando-o com toda a força.
– As entradas e saídas da cidade estão tomadas por estes
vermes malditos – disse ele sem tirar os olhos de Calcine. – Seja
lá o que tenha acontecido, nós fomos induzidos a sair da cidade
e agora não temos como regressar. O que me deixa mais preocupado é que a força policicálcio não está totalmente preparada para um ataque em massa destas bactérias e toda a força
imunológica destinada à Incisivocity está fora dos domínios da
cidade em busca de Calcin.
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Capítulo 14
Pela primeira vez, Esmalte estava diante de sua arquirival, frente a frente. Quando o prefeito percebeu o grande número de bactérias que se aproximavam da praça principal de Incisivocity, sabia que a situação estava agravando-se muito e que
talvez nem mesmo a força policicálcio conseguisse uma reação
perante o tamanho das forças degradantes da Cárie.
Naquele instante, Sr. Esmalte percebeu também que a
Cárie havia mostrado sua face pela primeira vez e se postava a
frente das demais bactérias ao lado de Ácido Açucarado e Clostridium Botulinium, bem na porção central da praça.
– Desça, Esmalte! – gritou a Cárie em sua gloriosa tática
de combate. – Entregue imediatamente Incisivocity se não quiser que somente parte dela reste.
Sra. Dentina aproximou-se de Esmalte e, abraçando-lhe
pelas costas, pediu ao esposo para que não fizesse o que a Cárie estava pedindo. Sr. Esmalte por sua vez respondeu à esposa
que não haveria como ficar escondido dentro de seu gabinete
enquanto a sua população estava isolada por aqueles vermes,
num ato de terrorismo e covardia.
– Tenho que encará-la se quiser realmente saber o que
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Incisivocity
ela quer – respondeu o prefeito voltando-se para a esposa. –
Vou arrumar alguma maneira para que você e Madame Mielina
possam sair daqui em segurança. Quero que sigam em direção à
nossa casa e fiquem com o sargento.
– Quero que vá comigo, Esmalte – ordenou Sra. Dentina já
temendo a resposta negativa do marido.
– Faça o que o prefeito está pedindo minha cara – interveio Madame Mielina. – Tenho dois oficiais à minha espera em
um veículo blindado no pátio da prefeitura, logo atrás. Vá e diga
a eles que autorizei você ir até sua casa, pegar sua filha, Célion,
Dona Célica e Calcion a se retirarem de Incisivocity o quanto antes.
– Quero que você vá também, Madame Mielina – completou o prefeito. – Não quero que nada lhe aconteça enquanto ainda eu estiver no comando deste complexo.
Madame Mielina se aproximou de Sr. Esmalte trazendo
nos olhos um brilho fervoroso, do qual ele jamais havia visto em
ninguém. Parecia que Mielina já não era a mesma pessoa e o prefeito sentiu-se completamente intimidado ao perceber que sua
ordem não havia agradado-a.
– Sei que ainda está no comando de Incisivocity e que
sua autoridade aqui é suprema – disse Madame Mielina encarando firmemente o prefeito. – Mas desde que Clostridium
Botulinium esteja metido nisso, também passa a ser assunto
meu. Por isso suas ordens, senhor prefeito, não valerão de nada
enquanto eu estiver aqui.
Sr. Esmalte engoliu seco notando que Madame Mielina realmente estava disposta a enfrentar aquela situação de uma vez
por todas e, retornando à esposa, pediu a ela para que fizesse o
que Mielina havia dito, em prol da segurança de Amelodentina.
– Então quero que me prometa uma única coisa – pediu
Sra. Dentina olhando bem no fundo dos olhos de Esmalte, sabendo que as promessas dele eram como preceitos de honra.
– Volte, não importa como, para nós. Além de ser o que você
é, quero você de volta como esposo e pai, enquanto você não
retornar cuidarei de Amelodentina, com minha própria vida se
for necessário, eu lhe prometo.
Sr. Esmalte não sabia se naquelas circunstâncias poderia
cumprir aquela promessa. Sabia que a Cárie, além do comando
de Incisivocity, também queria a sua queda de uma vez por todas e ele não estava disposto a entregar a cidade. Contudo, ao
olhar para os olhos de Dentina, enxergou aquele antigo brilho
de quando haviam se conhecido e desejou jamais perder aquele
improvável duelo contra sua inimiga.
– Prometo – disse ele também flamejando os olhos dentro de Dentina. – Volto e com Incisivocity nas mãos. Eu prometo.
Aquelas palavras amansaram o coração de Dentina que se
sentiu mais segura, uma vez prometido, o marido lutaria até o
fim para cumprir o compromisso.
Madame Mielina orientou um oficial policicálcio, que estava de vigia na porta do gabinete, a levar Sra. Dentina em segurança até o pátio da prefeitura que, naquele momento, ainda
estava seguro, já que os muros, além de serem altos, estavam
cobertos de policicálcios em vigia total.
Sr. Esmalte ficou observando sua esposa se retirar sem
maiores delongas e sentiu um aperto em seu peito, como se
aquela fosse a última vez que estivesse olhando para a esposa.
– E agora, o que vamos fazer? – perguntou Dr. Fibrone
Júnior que se mantinha de pé próximo à janela olhando uma
imensidão de bactérias que apareciam de todos os lados, pelos
quatro cantos da praça.
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– Você é a maior testemunha contra Dr. Fibron e Linfon
T, doutor – respondeu Esmalte abrindo uma gaveta e retirando de lá uma pistola calcítica que mantinha guardada desde
que ganhara de presente do sargento Calcion, antes mesmo de
ter ganhado o pleito eleitoral. – Por isso, vou pedir para que se
mantenha aqui dentro da prefeitura até que as forças linfóides
retornem para nos ajudar.
– Isso se elas retornarem – complementou Oncoblasto
olhando para Obariloclasto, que se mostrava ansioso por demais.
– Vão retornar – disse Madame Mielina toda segura. – Farão de tudo para voltar e acabar com estes vermes.
– E a Liga de Amálgama? Onde estarão eles neste momento? – perguntou Cementom lembrando-se daquele corajoso esquadrão que ajudou as forças de Incisivocity em Molares.
– Desculpe-me decepcioná–lo, Cementom – respondeu Sr.
Esmalte. – Mas com certeza eles já devem estar atuando em algum dos bairros distantes, como Molares. Sua ação não é efetiva
nos bairros Incisivos e Caninos, sendo assim, não vamos poder
contar com a ajuda deles aqui no centro.
– Como sabe disso, senhor prefeito? – perguntou espantado Obariloclasto.
– Foi a própria Prata quem nos alertou – respondeu o prefeito novamente olhando para a janela. – Ela disse que fariam
sempre o possível para proteger Incisivocity em sua periferia,
mas não poderiam garantir jamais a segurança no centro do
complexo.
Naquele instante todos olharam pela janela, observando ao longe os bairros Molares, tanto os superiores quanto os
inferiores, imaginando onde e o quê estariam fazendo naquele
instante.
– Será que já estão combatendo estes seres imundos? –
perguntou Oncoblasto.
– Creio que sim – respondeu Sr. Esmalte temendo o pior.
– Vou descer com você, prefeito – disse Madame Mielina
apoiando uma das mãos no ombro direito de Esmalte. – Quero
encarar este meu inimigo que há tempos me persegue por todo
o sistema.
– Sinto muito ser justamente aqui que a tenha encontrado, Mielina – completou Sr. Esmalte decepcionado.
– Teria me encontrado em qualquer outro complexo com
maior facilidade ainda, se Incisivocity tivesse sucumbido por
estes anos – atenuou Mielina notando a tensão nos ombros do
prefeito. – Já está na hora de enfrentarmos nossos fantasmas,
não é mesmo prefeito?
Sr. Esmalte simplesmente concordou com a cabeça e ambos seguiram em direção à porta de entrada do gabinete para
juntos encararem seus adversários frente a frente, a fim de esclarecerem suas verdadeiras intenções.
Calcion havia terminado de vedar todas as entradas do
apartamento do prefeito e estava, naquele momento, observando por uma das gretas feitas por ele mesmo para vigiar a rua.
Alguns odontoblastos ainda corriam em busca de esconderijo
ou até mesmo em direção às próprias casas, mas nenhum sinal
de invasores por aquelas bandas.
– Onde estão? – perguntou consigo mesmo o sargento.
Dona Célica estava próxima das crianças e de vez em
quando buscava o sargento em olhadas rápidas, preocupada
com o que estivesse realmente acontecendo. Mantinha-se totalmente controlada no propósito de não assustar ainda mais as
crianças.
– Tudo bem aí, sargento? – perguntou Célica em alto e
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bom tom.
– Tudo nos conformes, Dona Célica – respondeu Calcion,
mas acenando para que a cementócita se aproximasse dele naquele momento.
Célica aproximou-se batendo os dedos das mãos uns contra os outros, demonstrando sua tensão.
– O que houve? – sussurrou ela sem olhar para trás e alertar as crianças.
– Há um veículo da comitiva de Madame Mielina se aproximando no final da rua – disse ele também sussurrando. – Parece-me que está vindo para cá. A esta altura os linfócitos também
devem estar à minha procura, então, se ele parar aqui no prédio,
vou me esconder e vocês se apresentem como se eu nunca estivesse estado aqui.
Dona Célica consentiu, mas estava achando muito esquisito a aproximação de um veículo do sistema sozinho. Muito observadora, ainda mais com aqueles olhos enormes, ela mesma já
havia notado que sempre andavam em comitiva. Pelo menos foi
assim quando esteve pela primeira vez em Incisivocity e quando
veio, desta última vez, alertada pelo prefeito.
– Será que Madame Mielina está lá dentro? – perguntou
Dona Célica também para si mesma.
– Como é que sabe que aquele é o veículo que transporta
Madame Mielina? – perguntou Calcion espantado, quando também percebeu que se tratava do automóvel de transporte mielóide, ou seja, de transporte único de Madame Mielina.
– Eu sei – respondeu ela sem querer estender mais a conversa e despertar novas perguntas. Ela mesma sabia de suas
qualidades e não era necessário expô–las a outras organelas.
Quando o veículo parou em frente ao prédio, ambos viram
um agente linfócito sair da direção e abrir a porta traseira, de-
sembarcando a primeira dama de Incisivocity.
– Sra. Dentina! – disseram ambos espantados quando
viram a primeira dama sair e correr m direção à entrada principal.
Foram poucos os segundos que levaram para que Calcion
corresse até a porta do apartamento e começasse a retirar cadeiras, tábuas entre outros objetos que vedavam a entrada para
que Sra. Dentina pudesse entrar assim que chegasse naquele
andar.
Amelodentina já se demonstrava eufórica desde que percebeu que sua mãe estava chegando, uma alegria tão intensa
que contaminou até mesmo Célion ao seu lado. A mesma euforia
não chagava até o coração de Calcion que começou a suspeitar
de algum fato aterrorizante, do qual Sra. Dentina pudesse ser
mensageira.
Quando finalmente a primeira dama atingiu o andar correspondente ao seu apartamento, já encontrara a porta aberta e,
sem mesmo parar para cumprimentar o sargento e Dona Célica,
correu para os braços da filha como se já estivessem passados
anos sem vê-la.
– Vamos, não temos muito tempo! – alertou Sra. Dentina
olhando para trás e observando o restante. – Peguem o essencial
que puderem e vamos embora daqui urgente.
– Vamos encontrar o papai? – perguntou Amelodentina
segurando sua boneca Diamanta, como se ela fosse a única coisa
que levaria consigo.
– Papai vai nos encontrar mais tarde, filhinha.
Aquilo parecia mesmo ter afetado o sargento que, ao ouvir aquelas palavras, engoliu a seco temendo o pior. Pensou que
alguma coisa havia acontecido ao prefeito, mas não poderia perguntar nada naquele momento, já que nem mesmo a primeira
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dama estendeu muito a conversa.
Dona Célica também correu em direção ao filho erguendo-o do chão e esperando a próxima manobra da Sra. Dentina.
– Então vão – disse rapidamente o sargento. – Ficarei dando suporte da janela enquanto descem. Se vir algo diferente, vou
gritar da janela e não saiam.
– Não senhor – discordou Sra. Dentina. – O senhor vem
conosco. São ordens do prefeito e de Madame Mielina.
Calcion não entendera nada. Ficou parado matutando se
aquilo era mesmo uma ordem dada pelo Sr. Esmalte ou se Sra.
Dentina estava somente camuflando o pior.
– Tem certeza, Sra. Dentina? – perguntou fazendo uma expressão de dúvida notável para a primeira dama. – Irei em um
veículo do sistema imunológico, mesmo nestas circunstâncias?
– Prefiro não tentar entender de que circunstâncias o
senhor está falando. O que quero deixar bem claro é que o seu
lugar nesta viatura foi cedido pela própria Madame Mielina, então é melhor o senhor não fazer mais perguntas e vir conosco
agora.
Assim, todos desceram as escadarias do prédio até o hall
de entrada, onde o oficial linfóide esperava por todos. Amelodentina foi a primeira a pular para dentro do veículo, seguida
por Célion e Dona Célica. Sargento Calcion, ainda desconfiado
daquela situação, passou pelo oficial encarando-o, esperando,
assim, algum tipo de reação, o que para o seu desapontamento não ocorreu. Porém, antes de entrar no automóvel voltou-se
para a primeira dama tentando receber alguma informação sobre o que poderia estar acontecendo, ou acontecido na prefeitura.
– A situação é um pouco delicada, senhor sargento – respondeu Sra. Dentina pausadamente e muito baixinho, olhando
para dentro do veículo no intuito de ver se Amelodentina estava
escutando alguma coisa. – A Cárie finalmente apareceu.
– E o prefeito? Não acredito que ainda está por lá.
– Pode acreditar, Sargento. Conhece muito bem meu esposo e sabe que sua consciência não o deixaria abandonar Incisivocity, deixando para trás toda a população em risco.
– Mas isso é pior do que abandonar a população.
Calcion notou que depois daquele comentário, Sra. Dentina abaixou o rosto e ficou calada, demonstrando uma profunda
preocupação. Talvez devesse tê-la poupado daquele comentário.
– Eu tenho que ficar, Sra. Dentina. – disse ele enfim. – Tenho que reunir as forças de policiamento para ajudar o prefeito.
– Acho que não será uma boa ideia – afirmou Dentina. –
Sabe muito bem que o sistema imunológico está atrás não só de
Calcin, mas do senhor também. Se o pegam por aí, será muito
pior.
– É um risco que terei de correr.
Sra. Dentina não tentou convencê-lo mais a ir com ela. No
fundo sentiu que Esmalte realmente precisaria mais de Calcion
do que ela mesma. O maior problema seria se o sargento fosse
preso pelas forças do sistema, aí sim tudo estaria perdido.
– Para onde vão? – perguntou Calcion notando que Sra.
Dentina havia se mostrado mais aliviada com a sua persistência
em ficar.
– Existe uma saída subterrânea próximo de Caninus Inferiores. Parece-me que se atingirmos os Vasos Mentonianos, poderíamos pegar um caminho pelo Canal do Nervo Mandibular e
sair do complexo de Incisivocity em segurança.
– Mas a senhora conhece este caminho?
– Cementon nos disse que Dona Célica saberia nos explicar que caminho seria este – explicou ela olhando para dentro
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do veículo buscando por Célica. – De lá o agente Linfóide conhece o caminho.
Mesmo entre uma faca de dois gumes; defender Dentina
ou ajudar Esmalte, Calcion sabia que naquele momento, a decisão mais plausível seria optar por Incisivocity, uma vez que a Cárie já estava atacando o centro do complexo. Sendo assim, esperou até que a primeira dama adentrasse no automóvel e partisse, para começar uma corrida quase que interminável pela rua,
entre odontoblastos e apatitas desesperadas até a prefeitura.
A Cárie estava se sentindo realmente satisfeita. Seu plano
não havia dado errado em nenhum aspecto e ainda por cima poderia olhar bem no fundo dos olhos do Sr. Esmalte e humilhá-lo
perante todos os que o apoiaram. Clostridium Botulinium, pela
primeira vez em muitos anos estava em frente ao seu alvo principal e depois de eliminar, de uma vez por todas, Madame Mielina, chegar até o Sistema Nervoso Central seria moleza.
– Vamos acabar de uma vez por todas com essa palhaçada,
Cárie – disse Sr. Esmalte irritado. – O que você quer? O comando
do complexo ou a destruição dele?
– Vejamos, meu caro Esmalte – respondeu a Cárie cruzando os braços e simulando uma decisão muito difícil. – Acho que
as duas coisas estarão de bom tamanho para mim.
– Cárie... Cárie. Lembra-se no início, muito antes de se falar
sobre uma formação inicial da cidade, quando lhe propus uma
aliança para que juntos construíssemos um complexo perfeito?
– Isso foi há quase seis anos atrás, Esmalte – disse ela. – E
juro que não entendi nada naquela época. Um complexo perfeito?
– Não seria difícil.
– Ah, não? – continuou ela. – Então vamos rever os nossos
conceitos. Você quer uma cidade limpa, eu não. Você quer um
complexo forte e pouco dependente do sistema, eu quero exatamente o contrário. Você quer uma cidade toda organizada, eu
prefiro a desordem. Bem, você realmente achava que um complexo estaria perfeito com nós dois no comando? O que lhe fazia
pensar assim?
– Você não deve conhecer Intestinópolis, não é mesmo? –
interveio novamente o Esmalte. – Lá, as bactérias se interagem
com as organelas do complexo e num grau de mutualismo invejável entre todos os outros, vivem em harmonia total.
−Você é tão romântico, Esmalte – Ironizou a Cárie. – Tão
“zen” que se esquece de que lá é o “fim do mundo”.
– Esmalte tem razão, Cárie – interveio Madame Mielina.
– Sempre há uma maneira de organizar as coisas em perfeito
equilíbrio.
– Mas não é a minha praia, sua intrometida! – gritou a Cárie se irritando com a presença de Madame Mielina.
– Cárie, preste atenção. Veja o que está fazendo! – continuou Esmalte. – Sem Incisivocity nem mesmo você sobreviveria.
Por que está querendo sua destruição?
– Escute bem, Esmalte – insistiu a Cárie. – Ou você entrega
a cidade, ou então se prepare para o maior massacre da história
em todo o complexo.
Madame Mielina puxou Sr. Esmalte para trás, ao perceber
que mais bactérias se aproximavam do lugar, e cochichou alguma coisa para o prefeito, coisa que a Cárie não pudesse ou conseguisse escutar.
– Estamos preparados para lutar, Cárie – respondeu o
prefeito. – Não terá este complexo de mãos abanando, sem que
passe por cima de nossas defesas.
– Suas defesas? – repugnou Clostridium Botulinium. – Por
acaso já deu uma boa olhada pelos arredores de Incisivocity,
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Esmalte? Está tudo tomado pelos Streptococos Mutants e por
mais que a Liga de Amálgama se esforce em combatê-los pelos
bairros Molares, jamais conseguirão detê-los devido à grande
desvantagem numérica.
Ao ouvir aquilo, Sr. Esmalte teve a confirmação de sua suposição em relação à Liga de Amálgama e teve a certeza também
de que um terrível combate já estava em andamento pelos arredores da cidade.
Depois de dizer algo, também em sussurros para Madame
Mielina, ambos partiram em retirada para dentro da prefeitura
novamente. Era a cena que faltava para o desfrute da Cárie. Ver
seu adversário correr em refúgio era justamente o ápice de sua
glória.
– Bom, já vimos o bastante – disse a Cárie voltando-se para
Ácido Açucarado. – Pode dar a ordem de ataque aos streptos.
Não quero ver um único mineral em pé neste complexo e só vou
embora daqui com a certeza de que Esmalte fora derrotado.
Ao atingir novamente a sua sala, Sr. Esmalte certificou-se
de quantos policicálcios estavam de prontidão em Incisivocity,
por um catálogo dentro de uma gaveta, entregue pelo próprio
sargento Calcion no início de seu mandato.
–São muito poucos! – disse o prefeito esmurrando a mesa.
– Não temos a mínima chance.
Oncoblasto ficou olhando pela janela estarrecido ao ver
que as bactérias avançavam dentro de lojas, casas e centros bancários com uma voracidade terrível.
Fibrone Júnior, ao lado de Obariloclasto, empunhava um
longo castiçal que havia encontrado em uma das salas da prefeitura, como se estivesse pronto para atacar qualquer um que
fosse ao seu encontro.
Cementon e Oncoclastos se mantinham sentados com as
cabeças baixas, demonstrando certo desânimo perante aquela
absurda situação.
Estava armada uma verdadeira guerra dentro de Incisivocity. Viaturas passavam correndo por todos os lados do complexo e, por onde se via, havia bactérias pichando muros, quebrando vidraças e tombando portas. Podiam-se ouvir gritos aterrorizados por todos os cantos.
Muitos dos policicálcios montavam barreiras entre as
ruas na tentativa de conter o avanço dos streptos, porém muitas barricadas tombavam com o ininterrupto avanço daquelas
bactérias.
Mesmo com os enormes portões da prefeitura fechados,
as bactérias tentavam arrombá-los com toda a fúria o que fazia
com que os policicálcios que tentavam segurar o portão recuassem aos poucos.
Algemados, Calcin e Calcine se entreolhavam em fúria no
banco de trás da viatura principal, que era conduzida por Linfon
B, avançando pelas ruas, já sujas, de Molares Inferiores. Anipatita vinha logo atrás em outro veículo, tentando, ainda, esclarecer
os tópicos do ocorrido há pouco na região do Trígono Retro Molar. Contudo, os oficiais linfóides somente a olhavam pelo retrovisor sem demonstrar nenhum interesse nas palavras da moça.
Era um total de quatro veículos conduzidos por agentes
linfócitos e seguiam pelas ruas bem devagar, alertas pelo risco
eminente de um ataque bacteriano. Linfon B se mostrava preocupado, não só com aquela nova situação de perigo, mas também com a segurança de Madame Mielina.
– Você ainda acha que eu tenho alguma coisa a haver com
isso, oficial? – perguntou Calcin olhando também para fora, em
um momento de trégua com Calcine. – Condenaram-me por causa do sumiço de Calcine e Anipatita, mas ambos estavam a salvo
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desta situação toda. Qual seria então a razão para que os mantivessem fora da área de risco de um ataque de bactérias?
– Desviar a atenção das autoridades para atacar sem dificuldades – respondeu Linfon B.
Calcin estava quase de pé no banco de trás quando um
dos oficiais, o que estava ao lado de Linfon B, o cutucou com um
cassetete fazendo com que o agente caísse sentado novamente se encurvando da dor. Calcine, naquele instante, não conteve
uma rápida gargalhada ao perceber que Calcin estava perdendo
a cabeça.
– Então, Linfon B – continuou Calcin, ainda sentindo o rápido golpe. – Não há lógica nesta suposição.
– Não há lógica em nada, Calcin. Nem mesmo nas acusações de Anipatita – respondeu o subtenente linfóide olhando
para os altos muros já demonstrando sinais de rachaduras.
Calcin pensou em responder novamente, mas percebeu
que não estava adiantando muita coisa. Calcine já não o encarava mais, mas estava certo de que em pouco tempo os streptos
atacariam e poderia sair dali para se esconder novamente.
Não havia ninguém naquelas ruas e Calcin pôde notar
que as casas estavam todas arrombadas e que ninguém poderia
estar dentro delas. Os moradores de Incisivocity sempre foram
bastante ariscos, mesmo quando o risco não era produzido por
bactérias, e com certeza estariam correndo para regiões mais
seguras naquele instante. O problema era justamente em qual
região poderia se acreditar estar mais segura?
– Não podemos avançar senhor subtenente – disse Calcin.
– Somos alvos fáceis neste lugar.
– Disso eu sei agente – respondeu Linfon B. – Mas não temos outra opção. Temos que chegar ao centro do complexo o
quanto antes.
Calcin arriscou uma última pergunta antes de tentar levantar alguma acusação.
– Onde está o delegado, senhor subtenente?
Linfon B olhou pelo retrovisor e ficou encarando o agente
por alguns instantes, antes de responder. Achou bastante esquisita a pergunta do agente já que o delegado andava muito estranho de uns tempos para cá.
–O delegado Linfon T não se encontra em Incisivocity, se
é o que deseja saber, agente Calcin – respondeu Linfon B um
pouco desconfiado. – Do que está suspeitando, agente?
Linfon B era um linfócito muito esperto e talvez já estivesse levantando algumas suspeitas também em relação ao delegado, mas Calcin optou pelo silêncio, aguçando ainda mais a
curiosidade do subtenente.
Mas naquele mesmo instante em que Linfon B matutava sobre suas desconfianças, um grupo volumoso de bactérias
apareceu bloqueando a rua pela qual seguiam as viaturas e em
poucos segundos partiu para cima dos veículos como um bando
de loucos.
– Engate a marcha ré! – gritou Calcin.
– De jeito nenhum – respondeu Linfon B acelerando. – Vou
atropelá-los como verdadeiros vermes que são.
– Irão nos massacrar do mesmo jeito! – insistiu o agente.
– Recue!
– Deixe de ser covarde, Calcin – Calcine provocou. – Vamos passar por cima de todos.
– Você é que está sendo idiota! – retrucou Calcin. – São
inúmeros streptos. Não vamos conseguir.
Mesmo assim, Linfon B acelerou ao máximo abrindo uma
verdadeira clareira entre os primeiros streptos que avançavam,
mas não conseguindo prosseguir mediante o estrago que esta-
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vam fazendo ao veículo e parando poucos metros depois.
Calcin, algemado, mal conseguia se movimentar, enquanto observava as bactérias balançar o veículo de um lado para
outro num alvoroço sem limites, enquanto Calcine, tranquilo,
esperava o momento certo de ser libertado por elas.
Linfon B começou a disparar com uma semi-automática
carregada de interleucina, munição capaz de afetar as mais temíveis bactérias em todo o sistema, fazendo com que os primeiros vermes tombassem do lado de fora.
–Não tenho munição suficiente para atacar todas elas –
gritou Linfon B enquanto disparava.
O outro linfócito também começou a atacar as bactérias
que se aproximavam do veículo, porém, mesmo naquela situação sufocante, Calcin se preocupava com a viatura que vinha
atrás deles. O mesmo veículo que trazia Anipatita.
– Por favor, solte-me – disse Calcin se levantando e pondo-se de costas mostrando as mãos atadas pelas algemas. – Vou
tentar sair pelo vidro de trás e assim poderemos fugir para os
outros veículos.
Naquele momento, somente a viatura que levava Calcin
e o subtenente estava sendo atacada e o agente percebeu que
poderiam ter uma chance se conseguissem escapar pelo vidro
de trás.
Mesmo ocupado em efetuar os disparos, Linfon B acabou
cedendo à estratégia de Calcin, vendo naquele plano o único
meio de saírem ilesos daquela crítica situação.
– Continue disparando, soldado – ordenou Linfon B para
o outro linfócito que continuava sua empreitada. – Aproxime-se
mais, Calcin. Vou libertá-lo.
Sem perder tempo e após ter sido libertado pelo subtenente, Calcin quebrou o vidro traseiro com alguns pontapés e
pulando para o lado de fora gritou para os outros integrantes do
veículo para que fizessem o mesmo.
Mesmo atirando para todos os lados, Linfon B conseguiu
pular para o banco de trás juntamente com o outro oficial.
– Vamos, vou libertá-lo também – disse Linfon B para
Calcine que continuava estático.
Calcine olhava para Linfon B com uma expressão muito
esquisita, demonstrando-se totalmente despreocupado com a
ação das bactérias contra os oficiais e pela primeira vez o subtenente teve a sensação de que Calcin poderia ser realmente inocente de todas as acusações feitas a ele.
– Você não virá conosco? – perguntou novamente Linfon
B sem obter resposta de Calcine.
Sem sucesso nas tentativas de retirar Calcine do veículo,
Linfon B pulou para fora da viatura logo depois que o outro linfócito tinha saído e enquanto corria, olhava para trás indignado
com a atitude daquele cálcio que, ao mesmo tempo em que se
tornava explicável, era a mais maluca de todas as reações.
– Ainda bem que conseguiram sair – disse Anipatita abraçando Calcin. – Pensei que fosse o fim para vocês.
– Parece que o fim chegou foi para Calcine – respondeu
Linfon B se aproximando ainda perplexo com o ocorrido. – Senhorita Anipatita, quero que me diga exatamente o que ocorreu naquela noite em Incisivocity – e apontando para o linfócito
que estava na direção da nova viatura ordenou rapidamente. – E
você, avise os outros dois veículos atrás para darem marcha ré
na maior velocidade que conseguirem. Vamos dar o fora daqui.
– E para onde vamos? – perguntou Calcin.
– Vamos atingir a região do Nervo Alveolar Inferior e partiremos de encontro ao Sistema Nervoso Central – respondeu o
subtenente olhando em volta preocupado com um novo ataque
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de bactérias. – Tenho algumas suspeitas que poderão ser fortalecidas com o esclarecimento de Anipatita. Poderemos também
reunir reforços para retornar à Incisivocity com força maior. A
única coisa que me preocupa no momento é a segurança de Madame Mielina que ainda se encontra no centro do complexo.
– E também Sr. Esmalte – acrescentou Calcin.
– Podem não acreditar – concluiu Anipatita. – Mas o que
mais me deixa preocupada com esta situação, muito mais do que
a Madame Mielina e o senhor prefeito, é a segurança da menina
Amelodentina. Tão frágil perante estes asquerosos vermes.
Enquanto recuavam, ainda na primeira viatura, Calcine
permanecia parado esperando ser libertado pelos streptos que
continuavam a destruir o veículo, até que um deles arranca a
porta de trás e atira Calcine para fora, fazendo com que o cálcio
caísse próximo ao meio fio da estreita rua.
– Já estava na hora – disse Calcine se remexendo tentando
se levantar. – Achei que jamais me tirariam daquele veículo.
– O que você está pensando que faremos? – perguntou o
strepto que havia retirado Calcine do veículo, e por sinal o maior
deles.
– Ora, não seja estúpido. – respondeu o cálcio pondo-se de
pé e mostrando as algemas para a bactéria. – Retire logo isto de
mim, que ainda temos de alcançá-los.
– Alcançar quem? – perguntou a bactéria com uma voz
rouca e um hálito horroroso.
– Aqueles imbecis que acabaram de atacar, seu idiota! –
Calcine continuou retrucando. – Eles tentarão de qualquer maneira entrar em Incisivocity.
– Em primeiro lugar, não somos idiotas – começou o
strepto demonstrando estar furioso. – Em segundo lugar, não
estamos preocupados com aqueles linfócitos e nem na tentativa
deles entrarem no complexo, já que está todo dominado; e por
último não vamos tirar estas algemas de você.
Calcine arregalou os olhos atônito.
– Se foi capaz de trair sua própria espécie, imagina do
que seria capaz de fazer às outras – continuou a bactéria. – Não
temos uma boa impressão de você, seu cálcio ridículo. E pode
ter certeza de que de Molares, você jamais irá sair.
Recuando em direção à saída da cidade novamente, as
viaturas restantes seguiram rumo à região do Ramo Mandibular,
pretendendo partir em direção ao Sistema Central para buscar
alguma solução.
Calcin, abraçado à Anipatita, observava Incisivocity ficar
para trás enquanto as viaturas partiam a toda velocidade, com
a sensação de que jamais veria aquele cálcio traidor novamente
e temendo que o mesmo que ocorresse a ele, viesse acontecer
também com outros cidadãos inocentes em todo o complexo.
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Capítulo 15
As armas calcíticas não estavam dando conta de deter
todas as bactérias que se aproximavam dos portões e todos os
policicálcios, que dentro da prefeitura restavam, sabiam que os
portões iriam ceder muito rápido.
– Senhor prefeito, estamos ficando sem munição – gritou
um oficial em uma das janelas da porção superior da prefeitura.
– Estamos precisando de mais calcitina – voltou-se o prefeito para Oncoblasto que se posicionava na porta de entrada do
gabinete.
Mais que depressa, o administrador saiu correndo em direção ao centro administrativo de policiamento, que mantinha
uma divisão dentro da própria prefeitura, seguido por Oncoclastos e Obariloclasto.
Madame Mielina estava em outra área da prefeitura,
acompanhada de Dr. Fibrone e mais três oficiais policicálcios,
averiguando o isolamento de todas as entradas do prédio. Quando encontrava alguma janela ou porta que ainda se mantinha
aberta ou mesmo sem ser lacrada, imediatamente providenciavam seu vedamento por completo. As únicas janelas que permaneciam abertas em toda a prefeitura eram as que serviam
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de barricada dos oficiais policicálcios e a do gabinete principal,
onde Sr. Esmalte, também, de porte de uma espingarda calcítica,
efetuava disparos e enviava ordens aos demais oficiais.
– Atenção oficial do terceiro andar – gritou o prefeito
ao perceber que um número maior de streptos se ancoravam
junto aos demais no portão de entrada da prefeitura. – Feche
sua janela e desça para um andar mais baixo. Dê suporte aos
oficiais que se mantêm na portaria
Era exatamente onde a situação estava mais complicada
naquele momento, e Sr. Esmalte tinha que manter a entrada
principal ainda vedada se quisesse ter alguma chance naquela
desvantajosa batalha.
Quando Oncoblasto retornou, Sr. Esmalte lhe entregou a
espingarda e pediu-lhe que se aproximasse da janela.
– Nunca atirei nem pedaços de papel nos outros, senhor
prefeito – disse Oncoblasto com as mãos trêmulas. – Como o senhor espera que eu derrube Streptococos Mutants?
– Pense nos demais cidadãos que estão pelas ruas, meu
amigo – respondeu o prefeito. – Pelo menos é o que está me dando coragem de abater algumas destas bactérias covardes.
Oncoblasto se aproximou da janela, ainda tremendo e empunhou todo sem jeito a arma nos ombros. Fechou um dos olhos
e tentou mirar em uma das bactérias que estava mais perto.
Quando percebeu que não havia mais jeito e que realmente teria
de atirar, acabou fechando os dois olhos e apertando o gatilho.
– Eta, porcaria! – gritou o odontoblasto depois de ouvir o
barulho do tiro que acabara de disparar.
Quando abriu os olhos, estava sentado no chão com a
espingarda ainda posta em seu ombro e mais que depressa se
colocou de pé e correu novamente em direção à janela, se assustando ao averiguar que a mesma bactéria mirada por ele, antes
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de atirar, estava agora a metros de distância dos portões, abatida
junto à calçada.
– Upa! – gritou ele novamente. – Esta é por todos os
odontoblastos que estão vivendo este dia de penumbra.
Obariloclasto havia então acabado de chegar ao gabinete, trazendo mais munição calcítica e acabou se estarrecendo ao
ver Oncoblasto na janela, mais parecendo um dançarino de balé
do que um atirador.
– O que eu perdi? – perguntou Obariloclasto sem tirar os
olhos de Oncoblasto.
– Bom, até agora você só perdeu o tombo dele – respondeu o prefeito procurando por Oncoclastos que ainda não havia
chegado. – Onde está o odontoclasto?
– Oncoclastos subiu ao terraço levando um canhão de
calcitina – respondeu Obariloclasto piscando bruscamente os
olhos a cada disparo do administrador, que parecia agora estar
se divertindo, como se estivesse numa barraca de tiro ao alvo.
– Droga! – respondeu o prefeito saindo correndo da sala.
– Tenho que impedir que ele caia lá de cima tentando efetuar
algum disparo com aquela coisa.
Sr. Esmalte saiu em disparada em direção ao terraço, driblando pequenas mesinhas, enfeites, entre outros objetos que
encontrava pelos corredores e escadarias. Realmente estava
preocupado com a possibilidade de Oncoclastos não conseguir
controlar um canhão de calcitina.
Acabou chegando a tempo do odontoclasto não começar
a disparar e, de súbito, se atirou próximo à Oncoclastos fazendo
o mesmo dar um pulo de susto.
– Prefeito! – disse assustado ao ver Esmalte. – O que está
fazendo aqui em cima?
– Eu é que lhe pergunto.
– Ora, vou tentar fazer alguma coisa pra ajudar. – disse
Oncoclastos se aproximando novamente do canhão.
– Por algum acaso já viu uma destas armas em ação, Oncoclastos?
– Eu estava em Caninus naquela movimentação de odontoclastos, quando os policicálcios chegaram com estas coisas –
começou Oncoclastos a mexer no aparelho enquanto conversava. – Não deve ser tão difícil assim.
−Naquele dia, os policicálcios não dispararam nenhuma
gota de calcitina destes canhões – interveio novamente Sr. Esmalte.
−Por que o senhor não deixou.
−Então... você ao menos tem noção do que vai acontecer
se disparar?
−Uma grande parte destes bichos será derrotada – respondeu ainda procurando o botão de gatilho.
−Ora, Oncoclastos! Você não está achando nem o gatilho
do instrumento. Quando você disparar isso, sairá voando para
trás como se fosse um foguete. Tem ideia do que poderá lhe
ocorrer se cair lá embaixo.
Oncoclastos arregalou os olhos imaginando aquelas bactérias ao seu redor. Aos poucos foi se afastando do armamento
com um sorriso amarelo no rosto.
Sr. Esmalte aproximou-se do parapeito a fim de avaliar a
situação lá embaixo. Eram realmente numerosos e, a cada instante, parecia que mais bactérias apareciam. Esmalte também
pôde ver algumas das ruas próximas à prefeitura e viu que outros policicálcios haviam armado barreiras pelas entradas das
ruas, contudo não seria uma empreitada que levaria sucesso por
muito tempo.
Os odontoblastos e apatitas se uniam aos odontoclastos,
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também em repressão aos agressores. Muitos deles estavam em
cima de varandas ou até mesmo de telhados arremessando objetos para baixo numa tentativa ininterrupta contra os streptos.
– A que ponto chegamos! – disse o prefeito com as mãos à
cabeça. – Está tudo de cabeça para baixo.
– A coisa está pior ainda para o sargento – comentou Oncoclastos que estava em outra parte do parapeito, também observando a cidade.
Ao ouvir o comentário, Sr. Esmalte sentiu até mesmo seus
cabelos arrepiarem, como se um trovão houvesse arrebentado
os céus com toda a fúria e correu na direção de Oncoclastos,
chegando rapidamente ao parapeito oposto quase caindo com
a trombada.
E Sr. Esmalte conseguiu ver, em uma rua mais estreita,
Calcion correndo a todo o vapor seguido por um batalhão de Actinomyces. Era a visão que faltava para que o prefeito entrasse
em pânico pela primeira vez.
Antes daquele momento, ele tinha a certeza de que o sargento já estaria a caminho do sistema central junto com sua esposa e filha, mas em questão de segundos tudo havia mudado.
Lá estava Calcion, enrascado, correndo de uma leva de bactérias
perigosas.
– Fique aqui, Oncoclastos e assim que eu der o sinal, grite
pelo sargento – ordenou Sr. Esmalte.
– Que sinal? E aonde o senhor vai? – perguntou sem entender nada.
– Aquela rua vai dar direto no estacionamento da prefeitura – explicou o prefeito. – Lá deve ter alguma escada, pois os
muros são altos e é o único lugar no qual as bactérias ainda não
tentaram invadir.
Era o local também que serviu de fuga para Sra. Dentina
e Sr. Esmalte sabia que teria de ser muito rápido, pois, logo após
conseguir colocar o sargento para dentro, o lugar iria se infestar
de bactérias.
– Dá facilmente para me ver daqui de cima – continuou
Esmalte. – Quando me vir jogar a escada para o outro lado do
muro, grite para o sargento.
Oncoclastos ainda parecia meio aéreo, mas no fundo conseguiu entender o propósito da coisa. Sr. Esmalte não ficou para
tentar esclarecer ainda mais, pois o tempo não era seu maior
aliado naquele instante e seguiu descendo toda a escadaria,
numa esperteza quase que infanto-juvenil, sem dar atenção aos
outros guardas que subiam em direção aos outros postos de
combate.
Calcion já não possuía munição naquele momento e não
lhe restava muita alternativa a não ser correr para chegar a tempo na prefeitura, coisa que parecia não ter dado certo também,
pois havia bactérias por todos os lados no centro do complexo.
Ao chegar numa pequena rua que dava para a parte de
trás da prefeitura, o sargento já tinha uma legião de bactérias ao
seu encalço e a cada passo que dava lhe escapavam esperanças
de chegar a salvo em algum lugar, até poder ver alguém acenando pelo terraço da prefeitura.
À medida que se aproximava, o sargento notava que quem
estava lá em cima, aos berros, era Oncoclastos. Não podia escutar o que o odontoclasto dizia, mas pôde perceber que apontava
para a alta mureta do lado esquerdo, de onde acabava de cair
uma escada muito frágil.
Era a única alternativa naquele momento tão sem expectativas, e Calcion adiantou ainda mais sua correria, numa tentativa ofegante de chegar a tempo de pular pelo muro e dar sumiço
na escada.
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Quando chegou ao local, ergueu do chão a velha escada
e pôs-se a subir, notando também que à medida que subia, os
degraus iam se quebrando embaixo.
– Só faltava essa! – resmungou para si mesmo.
Mesmo assim não desistiu de prosseguir, chegando ao
topo do muro e debruçando-se na tentativa de recolher a escada. Conseguiu trazer somente parte dela, já que, quando as bactérias chegaram ao mesmo lugar, tentaram segurá-la, fazendo
com que a escada se partisse no meio.
– Pule logo, sargento! – Gritou o prefeito ao ver que Calcion tentava golpear alguém do outro lado.
Calcion sentiu um grande alívio ao ouvir a voz do prefeito
e neste instante pulou para o lado de dentro caindo próximo a
Esmalte.
– É melhor o senhor entrar. Não vai demorar nada para
estes Actinomyces conseguirem pular para cá – disse Calcion se
levantando.
– Então é melhor entrarmos nós dois e tentarmos bloquear a porta dos fundos – respondeu o prefeito.
Calcion esperou o prefeito passar pela porta e, agarrando uma barra próxima a um armarinho encalçou a fechadura da
porta travando sua abertura. Sr. Esmalte ainda empurrou uma
cadeira para dar suporte ao bloqueio e logo depois ambos saíram correndo em direção ao terraço.
– Oncoclastos posicionou um canhão de calcitina lá em
cima – disse o prefeito enquanto corria.
– Quem está lá com ele? – perguntou o sargento já temendo por algo sério.
– Ninguém, mas pode ficar tranquilo que ele não irá acionar o canhão – respondeu o prefeito reconhecendo o temor do
sargento. – Mas foi por pouco.
Chegando lá, encontraram o odontoclasto pulando como
se estivesse com pulgas na vestimenta, sinalizando em direção
ao pátio de estacionamento.
– Estão conseguindo! – disse Oncoclastos ainda pulando.
Sargento Calcion observou os Actinomyces se amontoando em forma de escada, formando degraus para que os outros
conseguissem subir.
– Rápido, passe-me este canhão agora! – ordenou o sargento para o odontoclasto.
Oncoclastos trouxe, empurrando, o canhão para perto do
sargento, que imediatamente começou uma sequência de manobras na arma, completamente esquisitas para o odontoclasto e
para o prefeito.
– E você pensando que o negócio era fácil – Sr. Esmalte
não perdeu a oportunidade de criticar Oncoclastos.
Depois daquele ritual todo, sargento Calcion pediu para
que os outros dois se abaixassem, sendo obedecido sem questionamentos. Vendo que tudo estava seguro, Calcion também se
afastou do artefato e abafou as orelhas.
A explosão foi certeira. Quando Sr. Esmalte levantou seus
olhos em direção ao armamento, notou que o mesmo havia se
afastado do parapeito e que Calcion já se apossava do instrumento recomeçando aquela movimentação.
– Caíram todos – disse Calcion enquanto rearmava o canhão. – Mas vão tentar novamente. Tenho que ser rápido.
Sr. Esmalte, mesmo sabendo da ocupação do sargento,
não pôde se aguentar em curiosidade sobre o que havia acontecido para que Calcion estivesse de volta à prefeitura.
– Pode ficar sossegado, senhor prefeito – respondeu o
sargento. – Sra. Dentina conseguiu embarcar com sua filha e já
devem estar a caminho do centro do sistema.
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– Não conseguiria ficar tranquilo um só segundo, sabendo
que não estariam em segurança – respondeu o sargento atirando mais uma vez com o canhão.
– Desculpe-me ser tão sincero, senhor sargento, mas não
acho que adiantou muita coisa não – interveio Oncoclastos. – Um
cálcio a mais ou a menos, diante deste exército de bactérias não
está levando vantagem nem desvantagem a ninguém.
Sr. Esmalte olhou com repreensão para o odontoclasto
que ao perceber a gafe, tentou se redimir.
– Bom, pelo menos o canhão de calcitina está disparando,
né? – tentou consertar Oncoclastos todo sem graça.
– Ora, por favor! – respondeu o prefeito – Não perca tempo em ficar falando, vamos agir, sim.
Era uma via de circuito rápido, e vários veículos seguiam
para o mesmo local, sem voltas. Todo o fluxo seguia em uma única direção, e em certos trechos os veículos aceleravam mais que
em outros. Calcin estava abraçado à Anipatita, admirado com
aquele trânsito tão espetacular.
Linfon B estava sério e fixo com um olhar distante, Anipatita notava que aquilo tudo que se mostrava novo para ela e
Calcin, já devia ser bastante comum ao subtenente.
– Onde estamos senhor subtenente? – perguntou Anipatita sem olhar para Linfon B, ainda surpresa com aquela estrada
cheia de veículos de todos os tipos.
– Estamos pegando o fluxo da Artéria Jugular, em sentido
à Cerebrópolis – respondeu Linfon B coçando o nariz. – Engraçado, está mais quente do que de costume.
Linfon B realmente se mostrava com uma intensa sudorese, mas Anipatita somente pôde notar depois do comentário
do linfócito. Calcin, todo alucinado, notava que às vezes eram
ultrapassados por veículos maiores e muito rápidos, o que fazia
com que ele se encostasse no vidro, quase que querendo pular
para fora, a fim de acompanhá-los.
– O que são estes veículos maiores? – perguntou Calcin
com o rosto grudado ao vidro da viatura.
– São Macrófagos – respondeu Linfon B, agora olhando
também pelo pára-brisa. – São veículos de combate bastante eficientes. O que está me deixando grilado é o fato de que muitos
já passaram por nós e parece que seguem em sentido oposto da
Jugular.
– Estão entrando na próxima direita, subtenente – respondeu o oficial que estava na direção. – Sentido da Artéria Alveolar Superior.
Calcin voltou sua atenção à Linfon B um pouco assustado
com aquela afirmação.
– É o caminho de entrada para os bairros superiores de
Incisivocity! – disse ele. – Será que o Sistema Nervoso Central já
está sabendo de alguma coisa?
– Pouco provável, Calcin – respondeu Linfon B. – Ainda
mais porque Madame Mielina ainda está na cidade. Não há a mínima possibilidade de o Sistema Nervoso Central suspeitar de
alguma coisa sem os relatórios dela.
– Então, para que um veículo de combate tão avançado
esteja por estes lados... – ia concluir Calcin até ser interrompido
pelo próprio subtenente.
– Já deve haver vazão de bactérias para o fluxo do sistema.
As três viaturas, que seguiam sentido à Cerebrópolis, já
estavam se preparando para entrar no trecho que levaria à Artéria Jugular quando um quarto veículo oficial se aproximou pela
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feito.
– E por que o senhor não foi com elas? – perguntou o pre-
Incisivocity
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direita em alta velocidade, chamando a atenção do subtenente.
– Parece que outra viatura conseguiu sair de Incisivocity
– comentou Linfon B tentando identificar o veículo.
Por alguns instantes, Anipatita cismou em ter visto Amelodentina refletida no vidro lateral da suposta viatura, porém,
eram tantos outros veículos que transitavam por aquele lugar
que a própria apatita pensou estar enganada.
Assim, os quatro veículos tomaram o caminho da Jugular
entrando em um fluxo maior ainda que o do canal alveolar, o que
fez Calcin suspirar de emoção. Nunca em sua vida fora além das
fronteiras de Incisivocity e agora estava em um universo completamente diferente do seu, e iriam muito mais longe ainda.
– Puxa! Estava muito quente antes de entrarmos nesta via
– exclamou Anipatita ainda tentando observar o veículo novo,
porém sem sucesso, já que havia se adiantado.
– E isso não é normal – explicou Linfon B.
– Como assim? – perguntou Calcin.
– Estes aquecimentos são recursos que o próprio sistema lança para poder facilitar a ação das tropas de combate em
áreas de conflito intenso – continuou Linfon B. – Incisivocity é
o complexo mais novo de todo o sistema e isso explica o fato
de vocês não entenderem o que realmente ocorre. Antes mesmo
de Incisivocity, vários outros complexos receberam cargas bacterianas de alta destruição. Parece que esta gana por domínio do
sistema é coisa muito antiga e o sistema descobriu que à medida
que se envolve em conflitos, maior aumenta seu reconhecimento genético sobre estes seres, o que nos torna muito mais fortes.
O aquecimento das áreas de conflito é um recurso usado para
poder eliminar as bactérias menos resistentes.
– Mas em Incisivocity ainda não houve modificação de
temperatura – respondeu Calcin tentando assimilar os aconte-
cimentos.
– Isso porque o sistema ainda não reconheceu as bactérias ofensivas de Incisivocity. Nós linfócitos ainda não entramos
em contato direto com esses seres, e nem conseguimos capturar
nenhum deles para análise.
– Como poderíamos capturar um Streptococos ou um Actinomyce? – Calcin se mostrava curioso. Talvez a resolução dos
problemas estivesse próxima de ser descoberta.
– Lembra-se daqueles veículos que nos ultrapassaram no
canal alveolar? – continuou Linfon B. – Pois é. São veículos de
combate ultra-eficientes pelo fato de, além de combater, capturar bactérias em todo o sistema.
– E como poderíamos levar um deles para Incisivocity? –
Calcin se demonstrava realmente animado.
– Sem autorização do Sistema Nervoso Central? Nunca!
– respondeu o subtenente voltando sua atenção novamente à
estrada.
Calcin encarou firmemente Anipatita com uma expressão
de euforia, contaminando até mesmo a secretária, que já imaginava estar Calcin planejando algo muito importante.
– É a nossa chance de ajudar Incisivocity, querida – disse
ele apertando as mãos de Anipatita.
– O quê? Vamos roubar um destes veículos? – interrogou
Anipatita não entendendo direito.
– Basta o Sistema Nervoso Central nos dar autorização. Eu
conheço como agem essas bactérias e sei como capturá–las.
– Está pensando na Liga de Amálgama? – raciocinou Anipatita.
– Você é ótima, linda! – respondeu Calcin quase dando um
pulo dentro da viatura. – O único problema será chegar até eles.
Mas com os linfócitos do nosso lado, acho que não será tão com-
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Incisivocity
plicado assim.
– Você é que pensa – comentou sorrateiramente Anipatita, – Pelo que sei de Sistema Nervoso Central, é que se trata
de um governante justo, porém muito impaciente e soberano,
ainda por cima. Não pense que vamos conseguir chegar até ele
assim tão fácil. Nosso amiguinho subtenente está somente levando acusações sobre o delegado. Há dias que ele foi designado para agir junto ao Linfon T somente para estudar suspeitas
sobre ele.
– Como é que você sabe disso?
– Prestei atenção na conversa destes dois linfócitos aí – e
Anipatita apontou com os olhos para o Linfócito que dirigia e o
outro que estava mais atrás no banco. – Seremos meras testemunhas de acusação, pode apostar.
Calcin ficou observando para os lados, prestando atenção se alguém estava escutando sua conversa com Anipatita e
ao concluir que todos estavam simplesmente atentos ao trajeto,
sussurrou o mais baixo possível.
– Vamos tentar chegar até o Sistema Nervoso Central.
– Está maluco? – respondeu a apatita ainda mais baixo do
que o cálcio.
– Está comigo ou não?
Anipatita também se certificou de que todos não estivessem ouvindo e confirmou com a cabeça.
O resto da trajetória até Cerebrópolis foi muito mais rápido, cada vez mais passando por lugares inusitados, porém
majestosos aos olhos de Calcin e Anipatita. Não demorou muito
para que as primeiras luzes, de um lugar fascinante, começassem a ser vistas pelos tripulantes daqueles quatro veículos oficiais, talvez o que poderia ser a única salvação para Incisivocity.
Madame Mielina conseguiu chegar até o segundo andar,
guiada por alguns policicálcios, com certa dificuldade. Quando
estava lacrando uma das poucas janelas que ainda não estavam
fechadas no andar térreo da prefeitura, um estalo a fez cair para
trás, perto de uma pequena poltrona no canto do hall. Naquele instante, poderia ter sido o seu fim se não fosse por Obariloclasto e Fibrone Jr. que conseguiram chegar até ela a tempo de
puxá–la na direção oposta aos streptos, que começavam a entrar
pela janela. Pouco tempo então restou para que os poucos policicálcios que tentavam amparar a porta de entrada também se
afastassem correndo e chegassem até Madame Mielina, socorrendo-a. Fibrone Jr. foi o primeiro a subir correndo as escadas e
ficar posicionado na plataforma do primeiro andar. Com a ajuda
de Obariloclasto, empurraram uma grande estante, que mantinha pequenos troféus de honra ao mérito ganho por alguns dos
funcionários do sistema municipal, até o último degrau que,
depois de esperarem os policicálcios passarem com Madame
Mielina, empurraram o móvel, bloqueando, temporariamente,
as escadas. Fizeram quase a mesma coisa no segundo andar, só
que desta vez usando uma mesa de mineral bastante reforçada,
o que daria mais tempo aos fugitivos até ser removida.
O segundo andar era exatamente onde estava o gabinete
do prefeito, e onde ainda estava, aos disparos, Oncoblasto.
– Vamos subir, Oncoblasto! – anunciou Obariloclasto se
aproximando do administrador próximo à janela. – Os streptos
conseguiram invadir a prefeitura.
– E agora! – exclamou Oncoblasto encerrando seus disparos. – O que vamos fazer?
– Vamos para o terraço – respondeu Obariloclasto. – Lá, a
única escada de acesso é na vertical e fácil de desprender-se. Se
chegarmos a tempo, poderíamos derrubá-la e ficar isolados no
topo da prefeitura.
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Assim sendo, Oncoblasto saiu correndo em direção à Madame Mielina para poder ajudá-la também, mas ao perceber que
ela já se recompunha de algo do qual resolveu não perguntar,
começou a subir juntamente com os demais companheiros escadaria acima.
Não foi difícil fazer como havia explicado Obariloclasto, e
assim, ao terminarem todos de subir pela estreita escada até o
terraço, derrubaram a velha escada desparafusando suas pregas
e jogando-a para baixo.
– O que é isso! – adiantou-se Oncoclastos ao ver aquele
mundo de gente no terraço do prédio.
– Não adiantou. Entraram do mesmo jeito – respondeu Fibrone Jr. correndo para outra ponta do parapeito e olhando para
baixo. – E agora já devem ter tomado quase todo o prédio.
– Menos o terraço – completou Obariloclasto vendo o sargento disparando contra o pátio da prefeitura. – Pelo menos por
enquanto.
– Já esperava por isso – disse Sr. Esmalte com um olhar
completamente diferente daquele chefe municipal do qual todos
admiravam. – Vamos ter de nos aguentar aqui em cima enquanto dermos conta.
– O que parece que não será por muito tempo – concluiu
Oncoclastos. – Não estou vendo muitas armas por aqui.
Naquele instante todos tiveram de concordar com o odontoclasto, pois até os policicálcios que também chegaram, estavam com suas munições escassas. Seria realmente questão de
tempo, até as bactérias encontrarem um meio de conseguir chegar lá em cima.
Cerebrópolis era surpreendente. Não havia prédios, e sim
estruturas sistematicamente interligadas por caminhos luminosos, suspensos em um universo escuro, porém muito iluminado.
Parecia um céu infinito, cheio de estrelas, e naquele instante estavam todos os veículos flutuando sobre o nada, guiados pelos
traços luminosos que emanavam para todos os lados indicando
as estruturas habitáveis.
– Como é possível estarmos voando? – perguntou alucinadamente Calcin.
– Não estamos voando, Calcin – respondeu Linfon B. – Na
verdade, estamos imersos em uma solução aquosa.
– E como continuamos vivos? – foi a vez de Anipatita também admirada.
– Pelo oxigênio – respondeu naturalmente, como se aqueles novos visitantes já conhecessem tudo.
– Se estamos imersos em uma solução aquosa, como assim oxigênio? – Anipatita estava realmente entusiasmada com
aquele novo universo.
Talvez nem mesmo Linfon B saberia responder aquela
pergunta, o que não estava fazendo a mínima diferença para o
agente Calcin, tão abobado com aquele mundo, tão diferente do
seu, que se esquecera por alguns instantes até mesmo dos problemas de Incisivocity.
– E eu pensando que o Trígono Retro Molar era o lugar
mais fantástico que poderia existir – resmungou Calcin olhando
para outros veículos, agora luminosos vagando sobre o céu.
– Para mim a região Retro Molar ainda é o melhor lugar
do mundo – respondeu bruscamente Anipatita cutucando firmemente Calcin, que parecia também ter se esquecido de um
detalhe bastante importante.
O agente engoliu seco e teria começado a suar frio se não
fosse pelo movimento forte do veículo que parecia estar se preparando para uma aterrissagem.
– É aqui – disse Linfon B confiante. – Cerebelus, o centro
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de todo o sistema.
Anipatita se arrepiou toda ao ver aquela enorme estrutura, que recebia ligamentos de todos os lados. Agora sim era perceptível acreditar que todo e qualquer lugar do sistema poderia
ser comandado dali.
Calcin olhando para as mãos de Anipatita, observava que
sua aliança, aquela mesma dada a ela em pedido de casamento
no Trígono Retro Molar, brilhava mais que qualquer estrutura
em Cerebrópolis e se repudiava pelo comentário mais idiota que
poderia ter feito.
Mas foi no momento em que todos aterrissaram que Calcin se adiantou em frente de Anipatita e tentou se retratar com a
moça, todo desconcertado.
– Realmente eu estava enganado sobre Cerebrópolis, Anipatita – disse Calcin levantando a mão da garota. – E também
errado sobre o Trígono Retro Molar.
– Como assim? – perguntou a garota confusa.
– A coisa mais linda que já vi foi esta aliança em seu dedo.
Não há lugar no universo que se compare a esta beleza.
Anipatita, branca como era não poderia ter ficado mais
vermelha, não sabia ao certo o que falar e estava totalmente
desconcertada. A única coisa que tirou sua atenção aos olhos do
agente foi a imagem do quarto veículo pousando, logo atrás da
cabeça de Calcin.
– Amelodentina! – exclamou Anipatita passando rapidamente por Calcin deixando-o com a imagem do subtenente, que
apareceu logo atrás de sua namorada.
Sra. Dentina saiu do veículo segurando as mãozinhas de
Amelodentina, que trazia sua boneca Diamanta no outro braço, e
alargou um maravilhoso sorriso ao ver a secretária. Dona Célica
estava logo atrás e do outro lado saiu Célion e o oficial linfóide.
Outra cena esquisita foi a de um veículo particular do Fibrospital Regional Palatino estacionado mais adiante, o que chamou a atenção de Calcin e Sra. Dentina.
– Dr. Fibron! – disse consigo mesma a primeira dama. –
Esmalte estava certo em acreditar naquele jovem médico. Tem
coisa errada nessa estória.
Mas o agente foi o primeiro que saiu correndo na direção
do veículo, sendo detido por dois linfócitos, ainda sob as ordens
do subtenente.
– Larguem este cálcio! – pediu Sra. Dentina ao perceber
que os linfócitos ainda suspeitavam do agente.
– Desculpe-me, Sra. Dentina, mas estamos fora da jurisdição de Incisivocity – respondeu Linfon B se adiantando. – Suas
palavras não têm força jurídica por aqui.
– Não estou ordenando nada, oficial – disse ela reparando
na patente do linfócito, ainda não o conhecia, mas não teve a
mesma impressão de Linfon T com aquele novo agente linfóide.
– Quero que saiba que Calcin não teve nada há ver com o que
está de fato ocorrendo em Incisivocity.
– Também tenho fortes indícios de que isto seja verdade,
Sra. Dentina – respondeu calmamente Linfon B. – Mas, se nos
afobarmos agora, Sistema Nervoso Central não irá querer nem
nos ouvir. E Calcin está bastante eufórico.
Calcin, na verdade, estava querendo justiça, não só com a
sua pessoa, mas com todos os que acreditavam numa Incisivocity mais forte com o Sr. Esmalte à frente de tudo e já não estava
vendo a hora de colocar tudo em pratos limpos na frente do Sistema Nervoso Central.
– Fibron está aí. Ninguém sabe o que pode estar se passando lá dentro – disse Calcin se remexendo nos braços dos linfócitos. – Foi este ser repugnante quem forjou esta trama contra
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mim e agora quero saber o por que.
– Calma, Calcin! – Anipatita se preocupara com aquela
atitude impensável de Calcin. – Se você entrar lá dentro assim,
tentarão te prender novamente.
– Sujaram a minha imagem perante toda Incisivocity
– respondeu Calcin ainda abalado. – Minha imagem. Todos os
cidadãos que estão passando por momentos difíceis em Incisivocity neste momento, pensam que eu é que sou o responsável
por tudo. Eu, e não vocês. Tudo por causa deste Dr. Fibron. O que
ele tem contra mim? Mal o conheço e ele faz as coisas penderem
para o meu lado? Quero acertar as contas com ele.
– Não é bem assim, Calcin – aproximou-se Sra. Dentina. –
Esmalte nunca acreditou que você estivesse metido nisso, pelo
contrário, facilitou as coisas para que você corresse atrás de
justiça. Neste momento, realmente, eles devem estar passando
por momentos bastante críticos, mas tenho certeza que não está
pensando mal de você. Não estrague tudo agora.
Sra. Dentina virou-se para Linfon B, que reparava curioso
na atitude frenética do agente Calcin em buscar sua própria justiça, e pediu novamente para que ele liberasse o agente. Linfon
B também acreditou que aquelas palavras surtiram efeito em
Calcin, que se manteve totalmente inalterado naquele instante.
– Agora, vamos – disse Sra. Dentina apontando para os
degraus de Cerebelus. – Incisivocity já esperou demais por socorro.
E partiram todos em direção à entrada de Cerebelus, esperando ter uma boa conversa com o Sistema Nervoso Central
e preocupados com o que Dr. Fibron poderia estar fazendo por
aqueles lados.
Gigantesco, o hall de entrada se estendia quase que infinitamente para todos os lados. Anipatita chegou a imaginar que
dali poderia se chegar a qualquer lugar do sistema bastando seguir na direção certa.
Linfon B seguia na frente como se já conhecesse muito
bem o local, virava aqui, entrava ali e sempre indo para o caminho certo. Alguns dos linfócitos ficaram para trás, e naquele momento seguiam por um caminho iluminado de azul Sra. Dentina,
Linfon B, Calcin, Anipatita e mais dois oficiais linfócitos, os demais ficaram esperando no hall de entrada. Era o caminho para
o salão central de todo o sistema.
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Capítulo 16
O salão central de Cerebelus era enorme. Várias pilastras continham enormes paredes que sustentavam um teto
quase imperceptível mais ao alto. As luzes eram mais intensas
e Calcin tremeu-se todo quando viu pela primeira vez a figura
pomposa de Dr. Fibron próximo a uma parede de vidro escura.
Linfon B também notou que Linfon T estava junto de Fibron e
ambos estavam segurando uma pasta, cada um deles.
No canto superior do salão, uma enorme mesa se estendia
em formato de meia lua, nela, várias pilhas de papéis e coisas
desconhecidas roubavam a cena de uma figura acinzentada, porém muito brilhante e sistematicamente concentrada em várias
contas, notas, processos, títulos entre outras coisas importantes
vindas de vários lugares do sistema.
– Estava lhe esperando, Linfon T – respondeu uma voz
imponente e grave, fazendo ecoar o nome do subtenente por
todo o salão.
Calcin e Anipatita ficaram sem entender o motivo pelo
qual Sistema Nervoso Central estava esperando pelo subtenente
e o porquê de Linfon B não ter dito nada no caminho.
– Você já sabia que Dr. Fibron e Linfon T estariam aqui? –
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perguntou Anipatita não conseguindo controlar a curiosidade.
– O que na verdade está acontecendo aqui?
Calcin sentiu seu sangue pulsar violentamente, com uma
vontade ilimitada de sair correndo em direção à Fibron e esmurrá–lo, assim como a Calcine, mas estava se tornando muito embaraçoso aquele episódio, onde todos os principais suspeitos se
encontravam no mesmo lugar.
– Tem muita coisa que não poderia ser dita antes do
tempo, Anipatita – respondeu Linfon T, aguçando ainda mais as
ideias da secretária. – E vocês dois são apenas uma peça posta
estrategicamente em um tabuleiro muito bem armado.
Naquele momento, Linfon T começou a se aproximar juntamente com Dr. Fibron vagarosamente, sendo observados por
todos dentro do salão, e Calcin, só então se deu conta de que
muitas pessoas também se encontravam naquele recinto. Sem
entender o que estava se passando, o agente se aproximou de
Anipatita e lhe segurou uma das mãos apertando firmemente.
– Está pronta? – perguntou em voz baixa o agente.
– Estou, mas o que você está pretendendo fazer?
– Corra comigo – disse ele apertando ainda mais as mãos
da secretária. – Vamos chegar até a mesa do Sistema Nervoso
Central e contar tudo o que sabemos sobre essa armação.
– Quando? – perguntou ela percebendo que Linfon T já se
aproximara o bastante.
Calcin encarou profundamente Dr. Fibron, agora com os
olhos temerosos, pois ali poderia estar sendo formado um verdadeiro pacto do mal. Estariam Linfon B e Linfon T juntos naquela trama? Se fosse essa a verdade, provavelmente, tanto Calcin como Anipatita seriam detidos naquele instante e só restaria
esperar pelo fim de Incisivocity. Portanto teriam de fazer algo
naquele segundo.
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Fabiano Freire
Incisivocity
– Agora, Anipatita! – gritou Calcin largando a mão da secretária e correndo na direção de Linfon T e Dr. Fibron – Corra
para a mesa do Sistema Nervoso Central e diga o que sabe.
Anipatita ficou assistindo Calcin se jogar sobre Linfon T e
Dr. Fibron num ataque bem ao estilo suicida e ao ver que nada
poderia fazer para deter o namorado, saiu correndo também,
desta vez em direção à mesa do Sistema Nervoso Central.
– Não, Anipatita. Espere! – gritou Sra. Dentina saindo correndo atrás da secretária.
– Pare Calcin! – Gritou Linfon B. – O que está pretendendo?
Calcin se jogou sobre Dr. Fibron numa agilidade digna de
sua reputação, fazendo o médico cair sobre uma mesa, espatifando–a por completo. Linfon T tentou segurar em vão o agente,
que já estava com as mãos sobre o pescoço de Fibron, tentando
esganá-lo.
Anipatita ao notar que a primeira dama também corria
numa empreitada alucinante, no intuito de tentar detê-la, deu
tudo o que podia para acelerar suas passadas em direção ao Sistema Nervoso Central. Quando enfim atingiu a mesa, começou a
disparar palavras na mesma velocidade da corrida da qual havia
investido.
– Calcin é inocente, Sr. Sistema Nervoso Central – dizia
ela. – Não fui sequestrada por ele, e sim por Calcine. Temos
provas de que Linfon T e Dr. Fibron estão juntos, ligados numa
trama maliciosamente traçada contra Incisivocity.
Naquele instante, Sra. Dentina já havia chegado até ela e a
agarrado por trás, caindo as duas ao chão, sendo ambas observadas atentamente por Sistema Nervoso Central.
– Sra. Dentina! – exclamou Anipatita perplexa com a atitude da primeira dama. – O que a senhora está fazendo? Não me
detenha. Sabe muito bem do que estou falando e sabe também
que foi tramado um plano envolvendo Calcin.
– Sei sim, Anipatita – respondeu Sra. Dentina segurando a
secretária. – A ideia de colocar Calcin envolvido nisso foi minha.
Ao ouvir aquilo, até mesmo Calcin interrompeu seus ataques contra Dr. Fibron, que num único movimento conseguiu
sair debaixo do agente, correndo para o lado de Linfon T.
Anipatita estava tão gelada, que mal conseguia sentir suas
pernas e teria desmaiado se não fosse pelo absurdo daquela declaração tão imprevisível.
– Sra. Dentina, por favor, diga que isto é mentira – implorou Anipatita enchendo seus olhos de lágrimas.
– Não, senhorita Anipatita – respondeu segura a primeira
dama. – Não se trata de uma mentira. Na verdade, estamos todos
juntos nessa trama. Linfon B, Linfon T, Dr. Fibron, inclusive eu.
– Eu não posso acreditar – respondeu já em prantos a secretária. – Ou melhor, eu não consigo aceitar. Seu marido está lá,
cercado de bactérias por todos os lados. Como pôde?
– Eu tenho que voltar à Incisivocity! – gritou Calcin se levantando e posicionando-se em direção à saída, quando foi detido por Linfon T e Linfon B ao mesmo tempo. – Foi um grande
erro virmos. Soltem-me!
– Não foi um erro – disse a voz grave do Sistema Nervoso
Central. – Tínhamos de tirá-lo de lá.
Como assim, tínhamos? Foi o que pensaram Calcin e Anipatita ao mesmo tempo. O Sistema Nervoso Central também
estava envolvido naquela sórdida trama contra Incisivocity? A
cada minuto que se passava, as coisas se tornavam mais nebulosas, tanto para Anipatita quanto para Calcin.
– O que está acontecendo? – perguntou Anipatita ainda
em lágrimas vendo Calcin sendo detido novamente e desta vez
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Incisivocity
na frente do governante geral, que parecia não se importar com
nenhum dos dois. – Pelo menos nos dê a dignidade de entender
o motivo de tudo isso sem essa covardia da qual estão nos fazendo passar.
– Primeiro quero que se acalme – falou pausadamente
Sra. Dentina.
Anipatita abaixou seus braços e sentou-se ao chão já em
soluços, ainda olhando para Calcin que parecia ainda resistir.
– Há alguns meses atrás, Madame Mielina foi atacada a
caminho de Incisivocity – começou a explicar Sra. Dentina. –
Por sorte, Linfon B havia recebido uma mensagem do sistema
de que bactérias não reconhecidas estavam se posicionando
em Estomagolópolis.
Naquele instante, Calcin parecia estar se acalmando, possivelmente para poder prestar maior atenção ao que dizia a
primeira dama, o que, pelo que parecia, estava ciente de muitas
coisas importantes.
– Naquele dia, Madame Mielina estava sozinha e já havia
passado por uma barreira de policicálcios – continuou Sra. Dentina.
– Barreira de policicálcios fora de Incisivocity? – argumentou Calcin já cedendo ao seu abatimento.
– Foi exatamente este detalhe que nos chamou atenção –
disse Linfon B.
– Viemos constatar mais tarde que a barreira, da qual Madame Mielina passou, era formada somente por dois policicálcios – completou Linfon T.
– Calcine e Calcitis – respondeu Calcin começando a pescar as informações e gradativamente sendo solto pelos linfócitos.
– Desculpe–me tê-lo atacado na entrada de Incisivocity,
Calcin – falou Linfon B. – Mas naquele momento não estávamos
cientes de que você estivesse naquela viatura. Sabíamos que
Calcine iria voltar para a cidade e por incrível que pareça, não
contávamos com seu sucesso no resgate de Anipatita.
– Temos de admitir que você superou todas as expectativas, Calcin – foi a vez de Linfon T. – Não sabíamos onde Anipatita estava e quando nossos oficiais encontraram Calcitis em sua
casa, você já havia passado por lá. Antes de vir para Cerebrópolis, eu e alguns agentes passamos pelo local informado por
Calcitis, mas a garota já não se encontrava mais lá. Antes de vir,
ainda informei Linfon B sobre o ocorrido, e ele montou guarda
na entrada da cidade.
– Voltando à barreira formada por Calcine e Calcitis, como
estava dizendo – continuou Linfon B. – Foi um pulo para concluirmos que eles estavam envolvidos no ataque contra Madame
Mielina.
– Conseguimos evitar o sequestro de Madame Mielina e
de quebra capturamos uma das bactérias lideradas por Clostridium Botulinium – continuou Linfon T. – Naquele dia, Madame
Mielina retornou para Cerebrópolis conosco e descobrimos, por
intermédio desta bactéria, que a Cárie havia se aliado à Clostridium.
– Naquele mesmo dia elaboramos um audacioso plano de
captura à Clostridium Botulinium – novamente a voz pomposa
de Sistema Nervoso Central ecoou pelo salão. – Audacioso, porque seria realizado em Incisivocity.
– Madame Mielina me colocou ciente deste plano e me
orientou para que não dissesse nada para Esmalte – disse Sra.
Dentina abaixando a cabeça como se aquilo para ela fosse um
verdadeiro martírio. – Porém, o sistema não poderia ser descoberto nesta armadilha e foi daí que surgiu a ideia de driblarmos
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Incisivocity
as forças malignas da Cárie usando Calcin como isca.
Calcin encostou-se em um dos pilares do salão e ficou com
os olhos vidrados ao chão. Por dentro, se sentia, ao mesmo tempo, enganado e usado. Mas começou também a entender o plano de confusão contra a Cárie, porém foi Anipatita quem disse
primeiro.
– Se Calcin, que estava se tornando um braço forte do
prefeito, estava sendo acusado de traição, então a força de inteligência armada de Incisivocity estaria deficiente – Anipatita
soluçava, mas não chorava mais. – O caminho para entrar em
Incisivocity, por intermédio de Calcine e Calcitis, estava aberto
para a Cárie.
– O resto foi fazer os dois, verdadeiros traidores, entrarem
em nossa jogada – disse Linfon T olhando para Dr. Fibron.
– Daí em diante foi comigo – iniciou Dr. Fibron. – Pedi a
um de meus residentes para entrar em contato com Calcine, secretamente em Incisivocity, alegando suspeitas sobre mim. Na
mesma noite Calcine estava na minha sala se mostrando entusiasmado na minha conspiração contra Calcin e Incisivocity.
– Dr. Fibrone Júnior – respondeu Calcin olhando para o
médico não acreditando naquilo tudo. Só poderia ser a única explicação para que uma pessoa que nunca tivera contato levantar
tanta coisa contra outra em tão pouco tempo.
– Exato – concluiu Fibron. – Dr. Fibrone Júnior foi uma
peça fundamental para o plano de persuasão contra a Cárie.
– Como a Cárie possuía espiões em Incisivocity, com certeza ficou segura de um novo ataque no complexo – explicou
Linfon T.
– Quando uma nova suspeita de que Linfon T havia se
aderido a um movimento contra o complexo de Incisivocity foi
levantada, a Cárie realmente colocou em prática um plano de
ataque – completou Linfon B.
– Mas por que deixar o Sr. Esmalte fora dos planos? – perguntou Anipatita olhando para Sra. Dentina e percebendo uma
fagulha de tristeza.
– Madame Mielina não deixou – respondeu a primeira
dama sem olhar Anipatita nos olhos. – Ela mesma prometeu ficar ao lado de Esmalte para enfrentar seus inimigos.
– Se quiser enganar o seu inimigo, primeiro engane o
maior amigo – disse Sistema Nervoso Central imponentemente.
– É assim que nós trabalhamos.
– Nós? – perguntou Calcin. – Nós quem?
– Atrás desta grande parede de vidro escurecido, vive Sistema Nervoso Periférico – continuou Sistema Nervoso Central.
– Quando estou dormindo, ele assume o comando de todo o sistema. O que ele faz eu jamais fico sabendo, assim como minhas
ações nunca são reveladas a ele. E assim vencemos qualquer
obstáculo em todo o sistema. Nossos inimigos jamais sabem
como nos afetar.
Calcin ficou por alguns instantes observando atentamente o enorme vidro atrás da mesa do Sistema Nervoso Central e
imaginando como seria o outro governante noturno.
– Sr. Esmalte foi mantido fora deste esquema para não
comprometer a operação – continuou Sistema Nervoso Central.
– Minha esposa se comprometeu a mantê-lo fora de conhecimento.
Anipatita havia entendido até o motivo de deixar Sr. Esmalte fora disso. O prefeito possuía uma índole incorruptível
e, talvez, jamais conseguiria jogar daquela maneira, até mesmo
contra um inimigo desvirtuoso, porém aquela conversa lenta e
cheia de calmaria estava deixando a secretária muito tensa.
– Olha, o plano de vocês pode até ter dado certo neste
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Incisivocity
ponto de enganar todo mundo – Anipatita estava ficando nervosa. – Mas neste momento, Incisivocity deve estar cercada
por todos os lados, e a vida de todos lá não pode esperar por
socorro.
– Vocês não sabem, mas neste momento também, o complexo de Incisivocity está cercada de Macrófagos por todas as
vias de vasos – antecipou-se Linfon B. – Estrategicamente está
tudo pronto para a captura em massa de streptococos, actinomyces e também do Clostridium Botulinium.
Anipatita se lembrou do momento em que foram ultrapassados por um Macrófago no sentido superior de Incisivocity,
mas aquela explicação em nada confortou o coração da secretária, que olhava apreensiva para Calcin, notando também a sua
preocupação.
Sra. Dentina também não parecia estar confortada. No
fundo sabia que seu marido, juntamente com os outros, estavam passando por momentos muito delicados naquele momento.
– Eu não entendo só uma coisa – perguntou Calcin. – Se
vocês estavam cientes de toda a movimentação nesta conspiração contra Incisivocity e já tinham a confirmação de um ataque,
por que não investiram na segurança primeiro. Financeiramente a Cárie não tem como ficar sabendo de nada que ocorre na
cidade.
Fibron, Linfon B e Linfon T se entreolharam com uma
expressão não muito agradável e depois passaram seus olhares
em sentido à primeira dama que buscou não corresponder,
mesmo sabendo do que realmente se tratava.
Anipatita, esperta como sempre demonstrou, não deixou
este fato escapar imperceptível.
– O que ainda falta nos dizer de tão grave, Sra. Dentina? –
perguntou Anipatita encarando firmemente a primeira dama. –
Ainda existe alguma coisa errada em Incisivocity, não é mesmo?
– Não poderíamos nunca fazer uma ação dessas, sem que
a Cárie ficasse sabendo em primeira instância – respondeu o
Sistema Nervoso Central, agora estendendo uma das mãos no
sentido de Linfon B e Fibron, exigindo a pasta que seguravam.
– Como assim? – perguntou Calcin. – Isso é impossível,
toda movimentação financeira é feita de uma maneira administrativa muito sigilosa.
– Sim, mas recentemente, Linfon B descobriu um espião
muito importante dentro de Incisivocity – respondeu o Sistema
Nervoso Central. – O que nos fez redefinir todo um plano feito
inicialmente.
– Se há um espião desta categoria, que pudesse passar
informações financeiras à Cárie, então este traidor só pode ser...
– Anipatita engoliu seco e levou suas mãos à boca num ato de
espanto aterrorizante. – Não pode ser possível.
Calcin ficou observando a secretária engolir junto com
o susto, um nome que parecia já estar na ponta da língua, mas
que nem mesmo ela conseguiu pronunciar devido ao absurdo
do fato.
– O quê? Quem? Falem logo! – Calcin já de pé no centro
do salão, novamente estava todo descontrolado.
Anipatita somente olhou para o namorado balançando a
cabeça de um lado para outro, ainda não conseguindo dizer o
nome do suposto traidor de peso, o que angustiava ainda mais
o agente, que buscou por outros olhos a fim de que alguém ali
pudesse dizer rapidamente de quem se tratava. Mas foi a própria Sra. Dentina quem retomou a palavra e começou a dizer,
chamando para si não só os olhares de Calcin, mas de todos ali
presentes.
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– Quando Madame Mielina me informou, eu mesma não
pude acreditar, e foi este um dos grandes motivos que me fez
conseguir não revelar nada para Esmalte – começou Sra. Dentina. – Na verdade, creio que meu marido não aguentaria seguir
em frente com o plano sabendo que um de seus principais
aliados era um traidor. As providências seriam tomadas por
Esmalte no mesmo instante em que soubesse que seu fiel administrador, Sr. Oncoblasto, estava facilitando as coisas para sua
principal inimiga.
O choque para Calcin foi imediatamente notável por
todos. Jamais, em toda a sua história de Incisivocity, o agente
poderia notar algo tão camuflado. Foi, até então, a pior notícia
em relação às coisas ruins no complexo, que o agente pudesse
ter conhecimento.
– Eu não sei o que, de fato, pretendem fazer – começou
a dizer Calcin lentamente, ainda afetado pelo choque da notícia sobre Oncoblasto. – Só espero que seja rápido, pois eu não
duvido nada de que, se existe uma pessoa na qual Sr. Esmalte
confia plenamente, esta pessoa é o Sr. Oncoblasto.
– A Liga de Amálgama já isolou toda a cidade – Linfon
B ponderou. – Estão fazendo um ótimo trabalho junto com os
linfócitos. Disso vocês não sabiam também. Não há como escapar ninguém da cidade e não é por acaso que as bactérias estão
concentrando seu ataque no centro de Incisivocity.
– O plano final é a demolição total de Incisivo Centrales
Decíduos – disse Sistema Nervoso Central olhando o conteúdo
das pastas entregues por Linfon T e Dr. Fibron. – Há dias o doutor e o delegado está trabalhando juntamente com os cementócitos nas profundezas de Incisivocity, em sua região central.
Cementon também está ciente dos fatos e construiu uma passagem para que os habitantes do bairro central possam escapar
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Incisivocity
ilesos.
– Há vários linfócitos e macrófagos na região gengival de
Incisivocity, ao invés de bactérias como foi instruído ao prefeito, o que garante a vitalidade de todo o complexo – disse Linfon
T.
– Mas com a demolição do bairro central da cidade, ficaremos lesados em sua urbanização – disse Anipatita. – Não
pode ser uma boa ideia.
– Eliminaremos todas as bactérias, mas perderemos a
força do complexo – concluiu Calcin.
– Esmalte é um dos prefeitos mais dedicados em todo o
sistema – disse Sistema Nervoso Central olhando para Sra. Dentina e sorrindo. – Tenho certeza que em pouco tempo e com as
novas verbas, Incisivocity estará de pé, glamorosa e muito mais
fortalecida.
Pela primeira vez, Sistema Nervoso Central se levantou,
revelando ser um enorme governante, com brilhos por toda a
parte do corpo e enchendo os corações de todos ali presentes.
– Agora, vão – ordenou supremo. – Incisivocity está precisando de vocês. E tenho a honra de apresentar a todos a Capitã em definitivo da vitória em Incisivo Centrales.
Naquele momento, Sistema Nervoso Central apontou
para outro canto do salão apresentando uma nova aliada, e
pelo visto muito respeitada, dobrando a coragem daqueles novos heróis que estavam prontos para um último golpe contra as
forças opositoras à Incisivocity.
– Esta é a Resina, guardiã de um futuro próspero, caso as
forças negativas se levantarem novamente. – concluiu Sistema
Nervoso Central. – Experiente de outros universos, muito além
das fronteiras do sistema, Resina sempre foi muito próspera.
Desejo sucesso a todos.
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Calcin e Anipatita estavam boquiabertos. Jamais imaginaram nada do que realmente aconteceu em tão pouco tempo
em Cerebrópolis e, agora, além de todos os seus conceitos, estavam cientes de que o sistema sempre esteve de olhos ligados à
Incisivocity.
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Capítulo 17
A tarde avançava sobre Incisivocity rapidamente, o
que proporcionava vantagens aos atacantes do complexo. Agora
parecia que todas as bactérias estavam sobre o bairro central da
cidade e os moradores daquele bairro faziam o que era possível
para evitar a entrada dos germes dentro de suas casas.
Feito jogadores de um xadrez buscando a hora exata de
declarar o xeque-mate, Cárie, Clostridium Botulinium e Ácido
Açucarado esperavam sentados em um banco da praça principal do complexo. Nada poderia ser igual àquele momento para
a Cárie, que não cansava de se vangloriar para seus cúmplices,
que ao mesmo tempo descascavam elogios, paparicando a maquiavélica estrategista.
No topo da prefeitura, Obariloclasto com a ajuda de Dr.
Fibrone Júnior tentavam manter a pequena entrada, que dava
acesso ao andar de baixo, fechada, uma vez que as bactérias já
haviam tomado toda a prefeitura.
– Isso não vai durar muito – exclamou Fibrone pondo toda
a força necessária no bloqueio da passagem.
– Eu sei, mas se desistirmos, aí sim será o fim – retrucou
Obariloclasto. – Só espero que os odontoclastos de Incisivocity
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Incisivocity
também estejam fazendo o possível.
Na realidade, a maioria dos odontoclastos haviam se aderido às plataformas de combate montadas pelos policicálcios,
que ainda estavam pelas ruas. Verdadeiras barricadas contra
uma legião interminável de bactérias.
Madame Mielina olhava em direção à Clostridium Botulinium, sentado na praça ao lado da Cárie, que parecia corresponder aos olhares como se fosse um predador esperando a presa
cair da árvore para poder abatê-la. Já Sr. Esmalte buscava por alguma alternativa correta de escape, uma vez que sabia que não
poderiam ficar ali por todo o tempo.
Oncoclastos estava debruçado sobre o parapeito do terraço aterrorizado com o enorme número de germes que estavam
em volta da prefeitura, e ao seu lado estava Sr. Oncoblasto, também olhando para baixo.
– Minha munição acabou – disse Oncoblasto mexendo em
sua arma.
– Isso parece não ser um problema especificadamente
seu – respondeu Oncoclastos reparando que grande parte dos
policicálcios que estava lá em cima não disparava mais. – Acho
melhor encontrarmos outra maneira de atacar estas criaturas.
– É impressionante não haver nenhum linfócito por perto nestas horas – disse Oncoblasto olhando para o prefeito. – E
onde está a Liga de Amálgama? Sei que tem mais força nas mediações molares do complexo, mas poderiam estar aqui tentando fazer alguma coisa também.
– Meu amigo Oncoblasto, não se desespere – falou o prefeito. – Tenho certeza de que estão fazendo o possível pelas áreas marginais de Incisivocity e, se não estão aqui agora, é porque
não podem mesmo.
Madame Mielina olhava para Oncoblasto o tempo todo.
Desde que havia chegado ao complexo para ajudar nos assuntos
sobre Calcin e o desaparecimento de Anipatita, que ela não tirava suas atenções ao administrador. Com a habilidade discreta
que lhe era digna, Madame Mielina nunca deixou que ninguém
suspeitasse das informações que tinha sobre Oncoblasto. Certas
vezes, até ela mesma chegou a duvidar de que seria verdade o
envolvimento dele com as forças degenerativas da Cárie. Contudo, alguma coisa havia mudado no administrador desde que eles
chegaram ao topo da prefeitura. Oncoblasto estava mais negativo, crítico e apreensivo.
Sargento Calcion alertou a todos que estavam perto de fazer seus últimos disparos com o canhão de calcitina que após
este ato eles estariam completamente indefesos.
A única alternativa que passou pela cabeça do prefeito naquele momento e que pudesse levá-los a uma fuga seria a saída
pelo coreto da praça, porém o maior empecilho seria como passar pelas bactérias e ainda pela Cárie, que estava de olhos grudados na prefeitura. Outra coisa que brecava qualquer atitude
seria a de deixar a população para trás, algo que jamais passava
pela cabeça do Sr. Esmalte.
Sr. Esmalte, então, começou a pensar em uma saída, pelo
menos para os habitantes de Incisivocity.
– Madame Mielina, acho que só há um recurso para que a
população saia ilesa deste confronto – disse o prefeito sem muitas escolhas.
– E qual seria este recurso? – perguntou Madame Mielina.
– Vou me entregar.
Madame Mielina sentiu-se totalmente gelada depois daquelas palavras. Sabia que o prefeito estava falando sério e também que seria um recurso do qual a Cárie acataria em negocia-
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ção, mas era absurdamente fora de cogitação esta proposta.
– Se eu me entregar, vou pedir em troca a liberação total
dos habitantes de Incisivocity – continuou o prefeito. – Não há
como a Cárie se negar a isso.
– Claro que há – interrompeu sargento Calcion. – O senhor
está maluco? Não estamos em posição de negociação neste momento. Estamos sendo massacrados por estes germes e creio
que, emhipótese alguma, a Cárie vai aceitar um acordo como
esse.
– Eu acho que vai – interveio Madame Mielina. – Não há
interesse da Cárie sobre a população de Incisivocity, mas sim em
se beneficiar dos recursos do sistema.
– Exato – completou Sr. Esmalte. – A Cárie não quer construir nada e assim a população do complexo seria totalmente
descartável para ela.
– Porém, se o prefeito se entregar, eu também me entrego
– afirmou Madame Mielina chamando a atenção de todos.
– Como é que é? – assustou-se o prefeito.
– Isso mesmo. Vou com você e me entrego junto.
– De maneira alguma! – irritou-se Sr. Esmalte passando
as mãos no cabelo. – Nada disso. Sou eu quem ela quer e não a
senhora.
– Esqueceu de quem está ao lado dela? – alterou a voz
Madame Mielina. – Clostridium Botulinium jamais vai aceitar
que eu saia ilesa de Incisivocity. Tenho certeza de que, por causa
dele, a Cárie não irá negociar com o senhor.
Sr. Esmalte ficou calado com aquela explicação. Sabia que
era uma verdade e que, se Clostridium se opusesse, a Cárie também se negaria a aceitar. Agora o problema estava se tornando
maior ainda para o prefeito. Seu último recurso também levaria
ao fim de Madame Mielina, esposa do Sistema Nervoso Central e
o maior aliado que tivera em campanha.
– Então iremos todos nos entregar. Que tal? – aproximouse o sargento Calcion com um sorriso irônico. – Assim todos ficamos felizes.
– Ora, não seja ridículo! – Sr. Oncoblasto não se aguentou.
Até mesmo Sr. Esmalte, mesmo achando absurda a proposta de Calcion, não entendeu as palavras de Oncoblasto. Não
queria em hipótese alguma que alguém se arriscasse junto a ele,
mas, no fundo, tinha a certeza pessoal de que, dentre os dois,
seria Oncoblasto, e não Calcion, quem se arriscaria em primeira
instância.
– Eu... – depois de uma pausa, olhando para seu administrador, Sr. Esmalte concluiu suas palavras – Eu também não
concordo com esta ideia.
Naquela mesma hora, Madame Mielina teve a certeza de
que Oncoblasto não era mesmo uma pessoa confiável. Até mesmo Oncoclastos, que não era nada positivo naquele momento,
estava boquiaberto olhando para o administrador, que ao perceber a grande gafe tentou concertar.
– Incisivocity não precisa de heróis agora – disse Oncoblasto olhando para o prefeito. – E sim de ajuda. Por isso repito, onde está o sistema nesta hora? A senhora mesmo, Madame
Mielina. Não acha muito engraçado o Sistema Nervoso Central
não estar nem aí para sua segurança aqui em Incisivocity?
– Oncoblasto, eu não estou te entendendo? – disse o prefeito. – Isso não é verdade. O Sistema Nervoso Central mal deve
estar sabendo do que está se passando por aqui. Esqueceu-se de
que é justamente Madame Mielina quem passa as informações
para ele?
– Sim, mas então que sistema mais falho é este que se torna muito fácil descobrir o seu calcanhar de Aquiles? – respon-
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deu o administrador mergulhado em discórdias. – Basta então
sequestrar Madame Mielina e pronto! O sistema está perdido.
– Que isso? – disse Obariloclasto. – Como pode pensar
uma coisa destas?
– Realmente eu não estou te reconhecendo, Oncoblasto –
insistiu Sr. Esmalte.
– Ora, senhor prefeito – continuou Oncoblasto. – Seja mais
realista. Não temos a mínima chance e o senhor ainda acha que a
Cárie vai deixar-nos sair vivos daqui.
– Não precisamos que se sacrifique Oncoblasto – disse
Madame Mielina. – Somos somente nós dois que querem e não
os outros.
– Não mesmo – concordou Sr. Esmalte cada vez mais se
decepcionando com Oncoblasto.
Ninguém estava acreditando no que estava acontecendo
lá. Madame Mielina estava vendo a máscara de Oncoblasto se
desmoronar na frente de todos, o que lhe pouparia algumas explicações futuras. O que mais lhe chateava era ver os olhos de
Sr. Esmalte ficando cada vez mais distantes, parados no tempo,
como se sua alma estivesse perdendo o brilho. E começou, para
si mesma, a perguntar onde estariam os linfócitos naquele momento. Teria dado alguma coisa errada?
Para a sua surpresa e a de todos, o que parecia estar tudo
acabado, começou a dar sinais de reação. Alguns dos streptos
que estavam mais ao longe, nas ruas laterais de Incisivo Centrales estavam agora correndo de alguma coisa.
– Tem algo acontecendo na segunda via cruzando com a
rua central. – disse Calcion concentrando-se para o lado aonde
veio uma forte explosão.
Todos os que estavam no terraço, com exceção de Obariloclasto e Fibrone Jr., que tentavam manter a entrada do terraço
bloqueada, correram para o lado de onde se podia ver a segunda
via que passava mais à esquerda da prefeitura.
– E é algo que acabou assustando os streptos – emendou
Oncoclastos.
Sr. Esmalte ouviu também um grande barulho vindo do
pátio de estacionamento da prefeitura, mas foi Cementon que
correu para o parapeito oposto para averiguar o que estava
acontecendo.
– Prefeito, venha dar uma boa olhada nisso – gritou Cementon ao observar um grande buraco feito no centro do pátio.
Sr. Esmalte chegou correndo se posicionando ao lado de
Cementon e ainda chegou a ver alguns actinomyces voltando
correndo para o meio da rua. De dentro da grande cratera aberta, um vantajoso veículo saiu cheio de tentáculos já capturando
algumas bactérias que estavam próximas ao buraco. Ainda saiu
do mesmo lugar um bom número de linfócitos atirando, com
arma bastante avançada, para todos os lados.
– Finalmente chegaram – suspirou Cementon não percebendo Esmalte a olhá-lo com uma expressão atordoada.
– Chegaram? – perguntou o prefeito fazendo Cementon
tossir que não parava mais.
Madame Mielina também se aproximou de ambos colocando uma das mãos nas costas de Esmalte, que começou a
olhar para todos os lados como se alguma coisa fora de seu conhecimento estivesse acontecendo.
– O sistema imunológico chegou com força total – disse
ela olhando para o prefeito que estava sem reação.
Sr. Esmalte ficou parado apenas olhando por alguns instantes e vendo que aquele grande veículo estava capturando
ainda mais bactérias que saíam da prefeitura no sentido do pátio. Mas foi justamente ao ver Calcin aparecendo daquela enor-
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me fenda que as coisas começaram a se embaralhar dentro da
cabeça do prefeito.
– O que Calcin está fazendo lá embaixo? – perguntou Oncoclastos já gritando pelo agente.
Sr. Esmalte se afastou devagar do parapeito olhando para
Madame Mielina, desconfiado e com os olhos enrijecidos, cambaleando como se tivesse levado um gancho no meio do queixo.
– Segura ele aí! – foi a vez de Oncoclastos ordenar com as
mãos na cabeça.
A cena foi esquisita e cômica ao mesmo tempo, Esmalte
tombou para frente igual a uma pilastra, caindo sobre Madame
Mielina que tentou a todo o custo manter o prefeito de pé, mas
já perdendo o equilíbrio e também começando a tombar. Obariloclasto ficou parecendo um uma barata tonta, largando Fibrone
sozinho com a entrada do terraço.
– Oh! – gritou Fibrone aumentando a sua força no compartimento de entrada, uma vez que ficou sozinho sem estar
preparado. – Volta aí que eu não suporto segurar sozinho isso
aqui não!
Obariloclasto ficou entre Fibrone Jr. e aquela dupla de cainão-cai que haviam se tornado Sr. Esmalte e Madame Mielina.
– E agora, o que eu faço? – berrou Obariloclasto totalmente embaraçado.
– Ajuda o doutor ali que eu tento fazer alguma coisa – Oncoclastos também já estava aos berros, correndo para trás de
Madame Mielina e colocando-se de costas para ela para exercer
maior força contra o chão e segurá-los antes da queda.
– Perdeu o juízo? – argumentou Dr. Fibrone quando Obariloclasto assumiu de novo sua posição. – Você tem o dobro do
meu tamanho e me deixa sozinho aqui?
– Desculpe-me – respondeu todo sem graça o odontoclas-
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Incisivocity
to.
Quando Esmalte voltou a si, lembrou-se rapidamente do
que havia visto no pátio central e voltou novamente sua atenção
para Madame Mielina.
– O que Calcin está fazendo junto com aqueles linfócitos?
– perguntou Esmalte franzindo a testa.
– Acho que já posso lhe falar – Madame Mielina olhou rapidamente para Cementon que estava ao lado do Sargento que,
por sua vez, acenava para Calcin. – Toda aquela história sobre
Calcin ser um traidor era mentira.
– Disso eu já sei – respondeu o prefeito. – Afinal fui um
dos primeiros a arquitetar sua fuga.
– Esmalte, você jamais teria conseguido libertar Calcin se
o sistema não tivesse deixado – disse Madame Mielina balançando sua cabeça. – Estou dizendo que toda a estória sobre Calcin
ser traidor, Linfon T e Dr. Fibron estarem por trás de uma trama
contra Incisivocity entre outras coisas, foi uma jogada do sistema para poder acabar com os planos da Cárie em se apoderar do
complexo bucal.
– Vá devagar – pediu Sr. Esmalte. – Preciso assimilar as
coisas.
Madame Mielina passou exatamente todo o plano do Sistema Nervoso Central para poder cercar a Cárie e Clostridium
Botulinium no centro de Incisivocity, inclusive o fato de Sra.
Dentina estar por dentro do plano e ser instruída, por ela, a não
dizer nada ao marido, mesmo muito a contragosto.
Sr. Esmalte sentou-se, deslizando pela pequena parede
que dava alicerce para o parapeito, totalmente desconcertado.
Sentiu-se completamente impotente, como se o sistema não lhe
desse todo o crédito do qual ele acreditava ter.
– Não se preocupe prefeito – continuou Madame Mielina.
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– Foi justamente acreditando em sua integridade que meu marido teve essa ideia.
– Você tem noção do que acontecerá à Incisivocity depois
de uma demolição do bairro central? – argumentou o prefeito
deixando todos com as caras mais estranhas possível.
Mas foi um novo estrondo que interrompeu o prefeito em
suas considerações. Madame Mielina também se assustou com o
novo barulho, justamente por este ser mais perto que os demais.
Desta vez foi em frente à prefeitura e com isso as atenções
se voltaram todas para a entrada do prédio, com exceção do Sr.
Esmalte que continuava sentado, ainda pensando sobre as informações recentes.
Outro macrófago apareceu bem em frente ao portão de
entrada da prefeitura, já capturando bactérias que estavam na
rua e também no hall de entrada do prédio.
– O que está acontecendo? – perguntou a Cárie se levantando instantaneamente do banco em que estava sentada.
Ácido Açucarado foi o segundo a se levantar seguido de
Clostridium Botulinium, ambos com caras de bobo, tentando
avaliar a situação.
– Macrófagos! – respondeu Clostridium. – Mas como pode
ser?
– Como pode ser o quê? – perguntou Ácido Açucarado.
– Madame Mielina ainda está em Incisivocity e com isso
não havia como o sistema ter noção do que se passava por aqui
– respondeu a bactéria.
– Se não é possível, como é que o sistema de defesa chegou aqui? – foi a vez da Cárie, demonstrando-se totalmente impaciente.
– Aquele odontoblasto mentiroso nos enganou – afirmou
Ácido Açucarado. – Bem que eu avisei para não dar créditos a
alguém ligado ao partido do Sr. Esmalte, mas ninguém me escutou.
– Parece que há macrófagos brotando por todos os lados neste lugar – acrescentou a Cárie, percebendo que uma boa
parte das bactérias corria em direção ao centro do bairro sendo perseguidas pelos enormes veículos de combate do sistema
imunológico. – Vamos ter de nos retirar.
O que a Cárie não contava era a presença de uma força de
defesa bucal tão elitizada que, nem mesmo ela, estava preparada
para enfrentar.
Bem ao fundo da praça central, uma multidão de bactérias
estava levando uma verdadeira surra de um grupo de linfócitos
já aderidos aos policicálcios, que cuidavam de uma barreira formada em uma das ruas atrás da praça e, junto a eles, um esquadrão de primeira geração de polímeros liderados pela Resina.
A Cárie ficou por alguns segundos paralisada observando
a Resina se aproximar lentamente enquanto os polímeros, linfócitos e policicálcios combatiam as bactérias que tentavam resistir ao recente ataque do sistema.
– Já ouvi falar muito sobre você, Resina – começou a dizer
a Cárie intimidando a adversária. – Só não esperava que viesse
tentar salvar um bairro já condenado.
– Se já ouviu falar muito de mim Cárie, então sabe também que nunca entro em uma batalha com intenção de perdê-la
– respondeu a Resina não demonstrando ser afetada às primeiras intimidações da Cárie.
– Então é melhor se preparar para conhecer sua primeira
derrota – e assim a Cárie correu em sua direção seguida por Ácido Açucarado e mais uma dezena de actinomyces que estavam
próximos.
Não por menos, a Resina seguiu ao seu encontro, segui-
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da também pelo seu aliado universal Ácido Poliacrílico e alguns
linfócitos.
Clostridium Botulinium preferiu não participar daquele
confronto sem graça e partiu em direção à prefeitura, levando
consigo mais algumas bactérias a fim de tentar driblar a nova
defesa que se posicionava na entrada do prédio.
– Se você acha que vai sair daqui sem nenhum arranhão,
está muito enganada Madame Mielina – retrucou consigo mesmo Clostridium, mordendo os lábios de raiva.
Calcin subia rapidamente as escadas, distribuindo disparos degermantes em todas as bactérias que apareciam em seu
caminho, logo atrás vinha Linfon B também atirando. Muitos linfócitos vinham mais atrás, seguindo os dois que estavam apressados para chegar ao topo do prédio.
Fibrone Júnior já não sentia muita força tentando abrir
a portinhola de acesso ao terraço, o que o fez deduzir que os
streptos estavam se afastando daquele andar.
– Continue segurando, Obariloclasto – alertou Fibronelevantando-se.
Obariloclasto continuou segurando e olhando para Fibrone vendo-o correr na direção do parapeito frontal e se debruçar
sobre ele.
Fibrone Júnior foi o primeiro a notar que a Liga de Amálgama já estava em Incisivo Centrales, quando viu, ao longe, o
refletir prateado de algumas tiras matrizes chicoteando e cercando as entradas do bairro central.
– A Liga de Amálgama também está aqui – gritou Fibrone
apontando para o lado direito.
Sr. Esmalte se levantou para poder avaliar a situação melhor, já se recuperando do forte choque de informações e tentando entender até que ponto o sistema poderia interferir nos
assuntos públicos do complexo.
Naquele mesmo momento, Obariloclasto notou que não
havia mais forças na tentativa de abrir a portinhola do terraço e
escutou a voz de Calcin logo embaixo da entrada.
– Sou eu, Calcin. – gritou. – Abram logo isso!
Quando Obariloclasto abriu, de um único salto, Calcin
apareceu seguido por Linfon B. O agente correu na direção do
prefeito, parando à sua frente e segurando as duas mãos. Esmalte por sua vez ficou parado em silêncio olhando para Calcin, com
uma expressão de espanto.
– O que aconteceu a ele? – perguntou Calcin olhando para
Madame Mielina.
– Acho que ele surtou – respondeu Oncoclastos todo intrometido.
– Pois eu acho que ele está é passando mal – foi a vez de
Oncoblasto.
Calcin não conseguiu nem olhar para o administrador de
tanta raiva que estava sentindo. Calcin não tinha a mínima ideia
de como Incisivocity havia se transformado em um campo de
batalha e isso o incomodava profundamente, ainda mais que um
dos principais colaboradores para aquela situação esta ali junto
a eles.
– Sr. Esmalte já está por dentro dos fatos. – respondeu Cementon. – Madame Mielina já lhe colocou a par de tudo.
– Escute prefeito – começou Calcin segurando e sacudindo
as mãos do Sr. Esmalte. – Eu também fiquei chocado com a intromissão do sistema em nossos assuntos, pensei até que o sistema
não confiava em nosso poder de defesa. Agora eu sei que se o
sistema não tivesse agido, nós não teríamos chance alguma.
– Sistema Nervoso Central vai demolir Incisivo Centrales
– falou pela primeira vez depois do choque o prefeito.
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– Também fiquei assombrado com esta notícia, senhor
prefeito – disse o agente. – Mas é a única alternativa para salvar
Incisivocity neste momento.
– Seria a exodontia do principal bairro da cidade – completou Sr. Esmalte. – Me pergunto como vamos retirar toda a população daqui?
– Senhor prefeito, o subterrâneo periodontal não foi atacado por bactérias e está cheio de soldados do sistema imunológico – foi a vez de Cementon.
– Mas eu ouvi um de seus homens lhe dizerem pessoalmente que a área periodontal já havia sido dominada pelas bactérias – argumentou o prefeito.
– Fazia parte do plano – concluiu Cementon olhando para
Madame Mielina. – Aquele foi o sinal para que soubéssemos que
o sistema imunológico estava preparado.
Sr. Esmalte estava se sentindo completamente isolado do
plano e se perguntava cada vez mais o porquê de ter ficado fora
desta manobra. Afinal, a Cárie era sua inimiga.
– Retirar a população será fácil pelo periodonto subterrâneo, senhor prefeito – continuou Cementon.
Esmalte levantou sua cabeça em direção de todos os cantos do bairro e percebeu que por todo o lado havia macrófagos
e linfócitos agindo com toda a força, porém ao ver que a população também havia se juntado às forças do sistema imunológico
na defesa da cidade, o prefeito tomou fôlego e suspirou.
– Quero encontrar a Cárie – disse soltando todo o ar preso no peito. – Quero olhar em seus olhos e mostrar a todos que
Incisivocity irá se reerguer mais poderosa do que nunca, ou
não me chamo Esmalte Esmaltus.
Madame Mielina sentiu um arrepio tomar conta de todo
o seu corpo, Sr. Esmalte retomou aquela antiga gana pela cida-
de, algo que não sentia desde os primeiros sinais de ataque ao
complexo.
Mas naquele mesmo instante, Linfon B percebeu algo errado no andar de baixo. Podiam-se ouvir alguns linfócitos gritarem por reforço. Foi então que o subtenente pulou de volta ao
andar inferior e se deparou com Clostridium Botulinium e uma
grande leva de actinomyces contra–atacando os linfócitos.
– Sei que estão atrás de mim desde quando declarei
guerra à Madame Mielina – falou alto Clostridium. – Vamos ver
do que são realmente capazes de fazer.
Linfon B partiu em direção à bactéria, mas foi arremessado contra a parede. Clostridium era muito mais forte do que
poderia imaginar o linfócito. Grande, rápido e com sua enorme
calda, Clostridium Botulinium avançava sobre os linfócitos com
os olhos em brasa.
Calcin também pulou para aquele andar, justamente no
momento em que Clostridium avançava na direção do terraço. Parecia uma locomotiva desgovernada e Calcin não estava
preparado para qualquer tipo de reação, sendo assim pulou em
cima de um pequeno sofá no canto daquela sala.
Clostridium nem sequer parou para atacar o agente, realmente estava com a intenção de subir e encontrar Madame
Mielina. Quando atingiu finalmente o terraço, a bactéria sorriu
ao ver que Madame Mielina estava sozinha em um dos cantos e
teria avançado com toda a fúria em sua direção se não fosse algo
a impedindo de passar completamente para o topo do prédio.
Calcin estava dependurado na calda de Clostridium, que
ricocheteava de um lado para outro, jogando Calcin para todos
os lados. Contudo, o agente não se desprendia de maneira alguma do agressor principal.
– Solte-o, Calcin! – gritou Linfon B vendo o agente bater
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nos cantos da sala grudado em Clostridium. – Você vai se machucar!
– Não posso Sr. Esmalte e Madame Mielina estão lá em
cima – dizia sendo jogado para todos os lados. – E os policicálcios estão revidando contra as bactérias que estão lá embaixo.
Linfon B levantou-se, recuperando-se do ataque da bactéria e começou a disparar contra a calda de Clostridium Botulinium que, por sua vez, sacudia-se com mais voracidade ainda,
deixando Calcin completamente tonto.
Quando Calcin caiu próximo a um armário, Linfon B correu para ajudá-lo desviando-se das rabadas desferidas por Clostridium, que por sua vez, ao se ver livre do agente, conseguiu
saltar totalmente para cima.
Madame Mielina estava parada apreensiva sem saber
como aquela bactéria havia conseguido chegar lá em cima sem
ser capturada pelo macrófago que cobria a entrada principal do
prédio. Os segundo pareciam horas na cabeça de Madame Mielina que, estagnada, ficou apenas olhando Clostridium sorrir e
correr em sua direção sedento.
Nem mesmo alguns policicálcios que abandonaram seus
postos de combate conseguiram segurar a criatura que estava
totalmente fora de controle, até que então, quando parecia ser
o fim para Mielina, ouve-se um grito do sargento pedindo para
que ela se abaixasse rapidamente.
Sem pensar no que poderia ser, Madame Mielina se atirou
ao chão com as mãos na cabeça esperando apenas pelo ataque
de Clostridium. Ela só não contava que o sargento Calcion levava
uma granada germicida em seu cinto, que possivelmente seria
usado em última instância. Para surpresa geral de todos, naquele exato momento.
Calcion correu o máximo que pôde se chocando contra
Clostridium Botulinium, fazendo com que ambos caíssem próximo à parede do parapeito esquerdo do terraço, e em poucos
segundos uma explosão arrebentou toda a lateral esquerda juntamente com Clostridium Botulinium e sargento Calcion.
– Sargento! – Gritou Sr. Esmalte correndo na direção da
explosão, sendo impedido por Obariloclasto que se atirou contra o prefeito, caindo ambos ao chão.
Desmoronou-se todo o lado esquerdo da parede e Madame Mielina acabou caindo sobre o pequeno sofá do andar abaixo, onde estavam Calcin e Linfon B.
– A senhora está bem? – perguntou Calcin segurando a
mão de Madame Mielina erguendo-a.
– Sim, mas parece que o sargento não – respondeu olhando para o buraco acima de sua cabeça, por onde ela caiu. – Calcion despencou junto com Clostridium Botulinium do terraço.
– O quê? – assustou-se Calcin já se pondo a correr escada
abaixo e deixando Madame Mielina sob os cuidados de Linfon
B.
Fibrone Júnior também pulou para o andar onde estavam
e saiu correndo atrás de Calcin, para poder tentar fazer alguma
coisa pelo sargento.
Quando, depois de correr entre os Linfócitos e bactérias
que ainda duelavam pelos andares, chegaram ao lado de fora,
Calcin já na companhia de Fibrone correu para o lado esquerdo
do prédio da prefeitura, onde havia um pequeno beco.
Chegando ao beco, Calcin pôde ver o sargento caído sobre
uma grande lata de lixo de um lado e Clostridium desacordado
do outro, no chão. Correram no sentido de ambos, Fibrone checou as atividades vitais de Clostridium, enquanto Calcin as do
sargento.
– Ele ainda está vivo, mas desacordado – disse o médico
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olhando para um oficial policicálcio que chegara logo em seguida.
– Vou chamar os linfócitos para fazer a apreensão dele
antes que acorde – disse o oficial correndo novamente para a
entrada do beco.
– Não estou conseguindo checar o pulso do sargento –
disse Calcin olhando para Fibrone.
Fibrone Júnior levantou-se e voltou-se para o sargento, já
checando todos os sinais. Os segundos que se passaram enquanto o médico residente checava Calcion eram lentos na cabeça de
Calcin, que estava ficando apavorado.
Pela entrada do beco chegaram também Linfon T e Dr. Fibron. Linfon T colocou as algemas em Clostridium e juntamente com outros linfócitos arrastaram a bactéria já recobrando os
sentidos para um veículo macrófago que estava posicionado na
frente do beco. Dr. Fibron se aproximou de Fibrone Júnior.
– Como ele está? – perguntou ao seu residente.
– Precisamos removê–lo urgentemente para o Fibrospital
Regional – respondeu Fibrone. – Caso contrário o sargento não
vai aguentar.
Sr. Esmalte chegou logo em seguida acompanhado de
Madame Mielina, Obariloclasto e Oncoclastos. Cementon estava
do lado de fora do beco esperando Oncoblasto que havia ficado
para trás.
– Precisamos fazer alguma coisa – disse Madame Mielina.
– O sargento salvou a minha vida.
– Vamos removê-lo para o Fibrospital Palatino. Lá, ele terá
maiores chances – respondeu Dr. Fibron.
– Por favor, doutores – pediu o prefeito. – Façam o melhor
que puderem.
Rapidamente uma ambulância se posicionou também na
entrada do beco e outros fibroblastos saíram carregando uma
maca e balões de oxigênio. Imobilizaram o sargento e voltaram
para o veículo de resgate, desta vez com Dr. Fibron e Fibrone
Júnior.
– Deve ter acontecido também alguma coisa à Oncoblasto
– disse Cementon que ainda não sabia das suspeitas do administrador. – ele ainda não saiu do prédio.
– Saiu sim – disse Calcin apontando para a praça principal. – Lá está ele correndo.
Sr. Esmalte não entendeu o motivo pelo qual Oncoblasto
estaria correndo no sentido onde estava a Cárie e saiu correndo
naquele rumo também. Calcin e Linfon B, que havia chegado recentemente tentaram alcançar Sr. Esmalte, mas o prefeito parecia ser mais rápido que ambos.
Quando Oncoblasto percebeu estar sendo seguido pelo
prefeito, tentou correr mais rápido, chutando e derrubando algumas latas que apareciam pelo caminho.
– O que está havendo Oncoblasto? – perguntou o prefeito
gritando enquanto corria e se desviava dos obstáculos.
Nada dissera Oncoblasto até o momento em que chegou
onde estavam a Cárie e um batalhão de polímeros travando um
combate exaustivo contra algumas bactérias. Mais ao fundo o
odontoblasto pôde dar conta de que duas mulheres travavam
uma briga mais exaustiva ainda, mas foi depois que o prefeito
fora golpeado pelas costas por Ácido Açucarado, que Oncoblasto
começou a falar.
– Era muito simples – começou a dizer num tom completamente desconhecido. – Já tínhamos uma cidade organizada
sem a necessidade um conselho de odontoclastos.
Sr. Esmalte estava caído devido ao golpe desferido por
Ácido Açucarado e atordoado tentou ficar de pé, quando nova-
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mente levou mais uma pancada.
– Bravo prefeito este heim? – disse Ácido Açucarado com
uma barra nas mãos – Agora eu vejo porque Incisivocity está
caindo. Sua principal peça mal consegue ficar de pé.
Esta última pancada fora muito mais forte que a primeira,
mas o prefeito ainda insistia em levantar o rosto para Oncoblasto e encará-lo.
– Não entendo – disse Sr. Esmalte mal conseguido pronunciar as palavras. – Você foi um dos que mais apoiaram este
conselho. Por que está dizendo isso?
– Eu nunca disse que era a favor de odontoclastos em Incisivocity – continuou Oncoblasto. – Escute bem Esmalte, odontoclastos nunca fizeram nada por nosso complexo.
– Estão nos ajudando agora – respondeu o prefeito tentando se aproximar do administrador rastejando. – Pare com
isso. Você não pode estar falando sério.
– Muito sério – disse Oncoblasto. – Eu iria me eleger membro supremo do conselho se não fosse Obariloclasto ter se tornado mais popular entre os conselheiros.
Sr. Esmalte não estava acreditando que, por um motivo
tão bobo, Oncoblasto se voltou contra seu próprio município.
Estava agora sentindo sua cabeça doer e rodar, como se fosse
perder os sentidos.
– Engraçado – disse Ácido Açucarado erguendo bem ao
alto a barra com que golpeara o prefeito. – A Cárie sempre quis
o fim de Esmalte, mas serei eu, um ácido, que acabarei de uma
vez por todas com ele.
Mas quando se preparava para desferir a barra com toda
a força sobre a cabeça de Sr. Esmalte, recebeu um violento golpe,
também por trás, caindo desmaiado na frente de Oncoblasto.
– Se quer acabar com o Esmalte, lembre-se que existe
uma Dentina por trás dele – disse a primeira dama segurando
outra barra e ameaçando atacar também Oncoblasto.
Oncoblasto saiu tropeçando entre alguns bancos, mas foi
cercado por Calcin e Linfon B antes de chegar ao centro da praça.
– Está preso por traição, senhor Oncoblasto – deu a voz
de prisão Calcin. – E é melhor não dizer uma só palavra.
Sra. Dentina se abaixou colocando Sr. Esmalte em seu
colo. Esmalte por sua vez estava totalmente abobalhado devido aos golpes que tomara de Ácido Açucarado, mas conseguiu
sorrir para a esposa que interrompeu as primeiras palavras do
marido.
– Não se preocupe tudo vai ficar bem – disse Sra. Dentina com as mãos tampando a boca do prefeito. – Estamos bem,
Amelodentina está com Dona Célica, Célion e Anipatita em Cerebrópolis seguros.
Esmalte suspirou de alívio ao ver que a esposa estava realmente bem e ouvir que nada havia acontecido à filha.
– Vão demolir Incisivo Centrales – disse com certa dificuldade o prefeito.
– Esmalte, você ergueu uma cidade inteira. Não terá dificuldades em reconstruir um único bairro – respondeu Sra. Dentina. – Confio no homem com quem me casei, e tenho, juntamente
com o sistema, total confiança de que o prefeito escolhido para
governar Incisivocity fará o melhor para que isso seja possível.
Antes de fechar os olhos, sentindo uma dor violenta nas
costas, Sr. Esmalte percebeu que a Liga de Amálgama passou
correndo por eles em direção à Cárie.
Naquele momento, a Cárie estava ao chão, sentada e mordendo os lábios de raiva. Resina estava de pé, olhando fixamente
para a mestra do terror em Incisivocity depois de tê-la derrotado sem dificuldades depois que Ácido Açucarado a abandonou
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para atacar Sr. Esmalte.
Deparando-se com uma cena histórica, a Liga de Amálgama chegou ao mesmo instante que a Resina se aproximou da
Cárie, erguendo-a do chão.
– Parece que você não é tão forte assim sozinha – disse a
Resina.
A Prata, o Cobre, Estanho e Mercúrio ficaram em volta da
revoltosa Cárie que não acreditava em sua derrota.
– Por favor, leve-me até ela – disse Sr. Esmalte abrindo novamente os olhos.
– Esmalte, você está muito fraco – retrucou Sra. Dentina.
– Preciso vê-la.
Calcin deixou Oncoblasto em poder de Linfon B e ajudou
Sra. Dentina levar o prefeito até a roda formada por Resina e a
Liga de Amálgama, que abriram espaço para que o prefeito se
aproximasse ancorado pelos dois.
Sr. Esmalte olhou vagarosamente para sua rival derrotada
e humilhada na frente de todos. Teve a prova concreta de que Incisivocity se tornara vitoriosa sobre os malefícios cariogênicos.
– Sabe que isso não muda nada entre nós – disse a Cárie
com ódio nos olhos. – Sempre que Incisivocity se descuidar eu
voltarei, e cada vez mais forte.
– Pode vir quantas vezes quiser Cárie – respondeu Sr. Esmalte com certa dificuldade. – Mas eu lhe digo que sempre que
vier, encontrará uma Incisivocity muito mais forte e resistente,
sempre pronta a ajudar a todo o sistema.
E olhando para a Resina, Sr. Esmalte teve a comprovação
de que precisava em relação ao sistema. A crença de que Incisivocity era primordial para todo o sistema era uma certeza do
Sistema Nervoso Central, que dispunha de armas e braço forte para ajudar em tudo o que precisasse a “grande menina dos
olhos” de um organismo perfeito: Incisivocity.
– Está tudo pronto para a evacuação de Incisivo Centrales
– disse Cementon aproximando-se. – Os caminhos feitos pelos
macrófagos facilitarão o escape de todos os habitantes que aqui
ainda se encontram.
– Então vamos – respondeu Sr. Esmalte dando as costas
para a Cárie e todo um plano falido vindo dela. – Vamos extrair
este bairro e construir um centro mais forte do qual a Cárie jamais conseguirá entrar novamente.
Sargento Calcion estava sentado próximo ao Dr. Fibrone
Júnior, ainda sob os cuidados do médico, bem na segunda fila.
– Foi por pouco, não é mesmo? – perguntou Sargento Calcion ao médico residente, afastando um pouco mais as muletas
que o ajudaram a chegar àquele lugar.
– É sargento, por muito pouco – respondeu Fibrone tentando enxergar sobre os ombros altos do prefeito que estava
sentado bem a sua frente acompanhado de Sra. Dentina, Amelodentina e Madame Mielina. – O senhor é realmente “duro na
queda”.
Linfon T estava bem trás, nas últimas cadeiras, com um
olhar vigilante e preciso. Ao seu lado estava Dr. Fibron e alguns
oficiais policicálcios à paisana. Fibron parecia desconcertado,
parecia não ser chegado a cerimônias.
– Juro que não estaria nem ligando se não fosse convidado – disse recolhendo um pouco os ombros o médico turrão.
– Ora ora, até parece – retrucou Linfon T. – Ainda ontem
no fibrospital vi você comentando com o sargento que iria se
esbaldar na festa como nunca.
– Só para dar mais ânimo naquele sargento grosseiro –
respondeu Dr. Fibron. – Nunca vi um paciente mais reclamante
do que aquele.
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Cementon, Dona Célica e Célion estavam do outro lado do
corredor, mais à frente. Célion, com seus enormes olhos azuis
flertava levemente com Amelodentina que sorria, sempre que
arriscava também umas olhadelas.
– Isso me lembra tempos inesquecíveis – disse Dona Célica olhando de banda para Cementon.
– Não pense que eu não me lembro – disse ele segurando a mão da esposa. – Só que com menos pomposidade, não é
mesmo?
– Não por minha causa – disse Célica apertando a mão do
marido.
– Acontece que naquela época eu não era amigo do prefeito – respondeu Cementon. – Mas se você quiser, podemos relembrar em grande estilo.
Obariloclasto estava sentado no meio de alguns odontoclastos que davam risadas abafadas graças às piadinhas disparadas por Oncoclastos.
– Controle-se, homem – chamou atenção Obariloclasto. –
Pare com gracinhas.
– Desculpe-me, mas olha só a cara do Linfon T lá trás –
respondeu entre risos o odontoclasto. – Parece que está dentro
do quartel e todo mundo aqui vai bater continência.
Isso aguçou ainda mais os risos nos companheiros e deixou Obariloclasto roxo de vergonha.
– Ele está olhando em nossa direção – disse Obariloclasto.
– Pare já com isso.
Estava presente também toda a Liga de Amálgama um
pouco mais atrás de Cementon e sua esposa.
– Odeio demora! – disse o Cobre cruzando os braços e fechando a cara como de costume.
– Ai, não começa – adiantou a Prata cutucando o colega. –
Você odeia tudo mesmo.
– Seria uma grande novidade se ele estivesse curtindo –
cochichou o Estanho para o Mercúrio.
A Resina, que estava bem próxima da Liga de Amálgama,
não poderia deixar de ter ouvido o comentário do Cobre e por
incrível que parecesse concordou com ele diante dos amigos.
– Desculpe-me intrometer, mas a moça está demorando
mesmo – falou sorrateiramente a Resina olhando para a Prata.
Cobre ficou tão vermelho que todos poderiam jurar que
ele fosse explodir. Nem mesmo ele esperaria uma pessoa tão
graduada quanto a Resina concordar com ele.
A igreja estava lotada de apatitas, odontoblastos, odontoclastos, cálcios, linfócitos, cementócitos e também polímeros.
Calcin estava apreensivo com a demora de Anipatita. Sra. Dentina somente sinalizava com as mãos pedindo calma ao agente
que estava próximo de ter um ataque.
– Calcin está bonito não é mamãe? – comentou Amelodentina.
– Bonito e a ponto de sofrer um enfarto – disse Sr. Esmalte
baixinho fazendo a filha rir.
– Esmalte! – repreendeu Sra. Dentina.
– Só estou dizendo o que estou vendo. Não sei como ainda não afundou o chão da igreja com aquelas batidas do sapato
no chão? – continuou Sr. Esmalte arrancando mais risadas da
menina.
Foi quando Anipatita entrou, arrancando suspiros em
todos que estavam na igreja. Madame Mielina colocou as mãos
sobre a boca, admirada com a beleza da apatita, enquanto Sra.
Dentina simplesmente repetia várias vezes a frase “como está
linda”.
Para Calcin, o prêmio pela demora foi alcançado no mo-
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mento em que viu sua noiva entrar, toda reluzente, em seu vestido recheado de brilhantes de hidroxiapatita. Orgulhoso, o agente olhava para as pessoas dentro da igreja e sorria ao ver que todos estavam embasbacados com a beleza de sua futura esposa.
A cerimônia ainda contou com Amelodentina e Célion
levando as alianças amarradas à boneca Diamanta da menina,
uma ideia da própria Anipatita que não encontrou uma maneira
mais doce e original de completar o maior evento de sua vida.
Ao saírem da igreja, já instalada no novo bairro central de
Incisivocity, Anipatita agradecia com sorrisos para todos, mas
correu em direção ao prefeito e a primeira dama puxando Calcin
pelas mãos.
– Ainda está em construção, mas eu já sabia que o senhor
conseguiria reerguer Incisivo Centrales – disse Anipatita ao prefeito.
– Agora ele será permanente – respondeu o prefeito
olhando para as estruturas do novo bairro, que começou a ser
reconstruído dias após a demolição do antigo bairro. – Suas estruturas estão mais fortes e toda a cidade será ligada a Incisivo
Centrales Permanentes por vias subterrâneas.
– Não poderia existir ninguém melhor para o cargo de
prefeito em Incisivocity – completou Anipatita. – Pena que não
estarei na nova prefeitura por estes dias para poder ajudá-lo.
– Não se preocupe com isso, querida – antecipou-se Sra.
Dentina. – Você não volta mais para este cargo. Já tem outra garota em seu lugar.
– O quê? – perguntou Anipatita completamente assustada. – Mas como? O que foi que eu fiz?
Sr. Esmalte olhou para a esposa e deu uma grande gargalhada, achando a maior graça nas perguntas da apatita.
– Puxa, por um segundo achei que fosse verdade – disse
Anipatita respirando fundo.
– Mas é verdade – afirmou o prefeito causando de novo
toda a sensação de espanto em Anipatita. – Coloquei uma nova
apatita em seu lugar como secretária.
Anipatita olhou para Calcin sem entender os motivos que
levaram o prefeito a fazer aquilo com ela.
– Tive que tomar esta atitude, agora que fiquei sem um
administrador para tomar conta dos assuntos de Incisivocity –
completou Sr. Esmalte.
Anipatita já era branca como um floco de neve, mas ficou
quase transparente depois de ouvir aquelas palavras do próprio
prefeito. Calcin arregalou seus olhos em direção à nova esposa e
a abraçou firmemente, mas Anipatita estava totalmente em choque.
– Descanse bastante, porque, quando voltar, o trabalho
vai ser duro – comentou o prefeito novamente.
Anipatita não sabia o que fazer, beijou Calcin, abraçou Sr.
Esmalte e Sra. Dentina juntos e até dançou de roda com Amelodentina, que era só festa.
– É melhor o senhor descansar também, sargento Calcin
– falou Calcion chegando de fininho ajudado por Dr. Fibrone
Júnior. – Quando retornar, eu quero ver se não fica tão rabugento quanto eu. Pensa que vida de sargento é moleza? Não é só
ficar dando ordens não.
Calcin ficou sem palavras. Não tinha entendido direito.
Seria o novo sargento da cidade? Era possível?
– Desculpe-me sargento, ou melhor, sei lá... – Calcin estava
confuso.
– Fui nomeado Tenente da força policicálcio de Incisivocity e ficarei somente atrás da mesa agora – disse Calcion estufando o peito. – Pode se preparar que as ordens se multiplicarão.
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Fabiano Freire
– Era muito bom para ser verdade – sussurrou Calcin para
Anipatita. – Agora é que vou ter trabalho mesmo.
Sr. Esmalte se aproximou de Calcin e novamente colocou
uma das mãos no ombro do novo sargento, fazendo-o lembrar
da época em que estavam fazendo sua primeira missão em Caninus e sorriu com o momento de nostalgia.
– Meu caro sargento e amigo Calcin – começou Sr. Esmalte. – Todos nós teremos muito trabalho daqui para frente.
Tenho certeza de que a Cárie ainda vai rondar nosso complexo
por muito tempo e vai realmente aproveitar as brechas de nosso trabalho, mas este episódio só me fez ter a certeza de uma
coisa.
Todos olharam na direção da nova prefeitura que se erguia ao longe, bem ao fundo da nova praça, entre pequenos
prédios e grandes estruturas, sinalizando o que ainda iria vir.
A tarde caía devagar e o vento, suave, amansava os corações de
um povo que, por mais minúsculos que fossem, grandes obras
traziam nas esperanças.
– Não sou eu nem tampouco o sistema a manter a paz,
integridade e fortaleza deste complexo – continuou o prefeito. –
Mas sim todos nós, habitantes deste lugar primordial e importante. Incisivocity.
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