SOBRE AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS DE PRIVAO DE

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SOBRE AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS DE PRIVAO DE
1
SOBRE AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
Solange Rubim de Pinho 1 , Vicente Dunningham 2 , Carla Pirajá Gonçalves2, Tiara Rubim de
Pinho Almeida 3 , Francisco Magalhães 4 , Wania Márcia de Aguiar 5 , William Dunningham 6
“Eu sustento que a finalidade da ciência é aliviar a miséria humana.”
Brecht
RESUMO
Este estudo propõe uma reflexão sobre o processo da institucionalização dos menores
infratores que cumprem medidas socioeducativas no Brasil, acentuando a necessidade de
estabelecer diretrizes mais promissoras e efetivas no seu tratamento. Além de registrar
dados históricos das instituições brasileiras destinadas a acolher crianças e jovens
transgressores, ele evidencia os instrumentos legais que definem os direitos fundamentais
do cidadão, em especial o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual assegura a
ambos proteção jurídica e social. O diagnóstico precoce e o encaminhamento adequado são
requisitos fundamentais nos casos de infratores que apresentam distúrbios psiquiátricos,
desde a sua chegada ao Ministério Público. Pôr em prática propostas educativas e
profissionalizantes, bem como dar acesso ao mercado de trabalho, são metas a serem
perseguidas para a reintegração dos menores em conflito com a lei na sociedade.
Palavras-chave: Delinqüência juvenil; Psiquiatria forense.
1
Pós-graduanda em Medicina Interna da Fundação Bahiana para o Desenvolvimento da Ciência, psiquiatra,
Professora de Psiquiatria da Infância e da Adolescência da Faculdade de Medicina da UFBa
2
Graduando(a) de Psicologia da Faculdade de Tecnologia e Ciências de Salvador – Bahia;
3
Graduanda de Comunicação Social da Faculdade Jorge Amado – Bahia;
4
Médico Psiquiatra;
5
Doutora em Psiquiatria, Professora de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFBa
6
Professor Doutor em Psiquiatria e Livre Docente da Faculdade de Medicina da Ufba, Professor de
Psiquiatria Faculdade de Medicina da UFBa.
2
ABSTRACT
The present research proposes a reflexion about the institutinalization process of the
trangressor minors that are performing social-educative punishments in Brazil, emphasizing
the necessity of establish a guideline more promising and effective in their treatment.
Besides registering historical data of the Brazilian institutions toward to shelter transgressor
children and youngsters, this research also make evident the legal instruments that define
the basics citizens rights, ins especial the “ The Children and Adolescents Statute “, that
assures to both legal and social protection. The precocious diagnosis and the adequate
direction are fundamental requirement in the case of transgressors that presents psychiatric
disorders since their arrival at the Public Ministery. To put in practice educative and
professionalizing proposals, as well as give access to the work market are the goal to be
pursuited to the social reintegration of the minors in conflict with the law.
Key-words: Juvenile Deliquency; Forensic Psychiatry.
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem o objetivo de refletir sobre modelos para o atendimento ao
menor infrator, trazendo uma discussão acerca das instituições responsáveis pela
recuperação de crianças e adolescentes autores de atos anti-sociais.
Em A questão da violência, Faleiros (1998) 1 reúne conceitos de violência e
demonstra a complexidade desse fenômeno, estudado em diferentes áreas do conhecimento.
Numa ampla abordagem de teorias psicossociais, econômicas e políticas, ele
apresenta a concepção de que “privatização” gera desigualdade social, e esta desperta
apreensão no cotidiano, deflagrando assaltos, seqüestros e assassinatos. Do ponto de vista
político, o autor considera a violência como um efeito da colonização, caracterizada pelo
poder do dominador sobre o dominado. Acredita que “a ordem política se articula à
econômica”, comprometendo a vida das pessoas e grupos pela desigualdade econômica e
ideológica. Acrescenta: “o econômico, o cultural, o político, o social se entrecruzam
dialeticamente na disputa pelo território, poder, [...] posse do outro, liberdade, pois a
violência coloca todas essas questões em jogo na prática cotidiana”.
3
Segundo o sociólogo Júlio Jacob Waiselfisz 2 , a origem da violência está na
concentração de renda: “o problema é a pobreza dentro da riqueza”. Jacob exemplifica
dizendo que, nos Estados em que existe desigualdade, ainda que a escola seja garantida e a
renda familiar alta, a taxa de crime é elevada.
A Organização das Nações Unidas para Educação Ciência e Cultura (Unesco), num
estudo desenvolvido em 27 Estados brasileiros, entre jovens de 15 a 24 anos, estabeleceu o
Índice de Desenvolvimento Juvenil (IDJ). O IDJ resulta dos seguintes indicadores: taxa de
analfabetismo de jovens, nível de escolaridade, qualidade do ensino, taxa de mortalidade
por causas violentas com mortalidade por causas internas, além da renda per capita familiar
dos jovens. Entre os jovens do Nordeste, encontram-se os menores níveis de renda do País,
ocupando a Bahia o 16ª lugar, e observa-se que, nos Estados em que existe maior
desigualdade, ainda que a escola seja garantida e a renda familiar alta, a taxa de crime é
elevada.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em vigor a partir da Lei 8.069, de 13 de
julho de 1990 3 , mesmo considerando a completa desigualdade econômica e social no
Brasil, introduziu o sistema de garantia e proteção integral ao menor, assegurando-lhe todas
as oportunidades, a fim de lhe facultar desenvolvimento físico, moral e social. A privação
de liberdade prevista pela lei tem o objetivo de concretizar o princípio de reparação do ato
cometido, numa perspectiva oposta à noção de castigo.
Segundo os dados da Subsecretaria dos Direitos da Criança e do Adolescente 4 ,
39.578 jovens, entre 12 e 18 anos, cumprem medidas socioeducativas. Desse total, 13.489
encontram-se em regime fechado e 26.089 em regime aberto: semiliberdade, liberdade
assistida e prestação de serviço à comunidade. O Estado com maior número de infratores é
São Paulo, que responde por 50% do total. A Bahia aparece em 11ª colocação, situando-se
atrás de São Paulo, Paraná, Ceará, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Goiás, Distrito Federal,
Rio Grande do Sul, Pernambuco e Pará. Os números divulgados não refletem a realidade do
momento presente, tendo em vista que alguns Estados não atualizaram suas estatísticas.
Constata-se, na prática, uma contradição entre a proclamada finalidade de proteção
e as medidas adotadas para a recuperação do adolescente e sua reinserção na sociedade. É
4
pertinente aqui um questionamento, ao analisar as instituições responsáveis pela execução
das referidas medidas.
As instituições geram, tratam ou mantêm a identidade do infrator? Não cabe a
defesa da impunidade dos jovens que executam contravenções; contudo, é preciso buscar
mecanismos que possibilitem a diminuição da violência. A superpopulação das instituições,
a inexistência de uma estrutura que leve em conta a idade, o tipo de delito cometido, o
número de entradas nas instituições, a existência ou não de patologia física e/ou
psiquiátrica, entre outras, são questões que devem ser avaliadas no momento de definir a
indicação das medidas de privação de liberdade para o menor infrator. O planejamento
institucional deve estabelecer a formação de grupos homogêneos, distinguindo os
portadores de doença mental dos demais e possibilitando aos enfermos o acesso não apenas
à assistência psicossocial, mas também a um adequado tratamento psiquiátrico.
O método de repressão isolado não reeduca o indivíduo. Medidas dirigidas apenas à
melhoria das instituições não serão suficientes para diminuir a violência, elas precisam
estar aliadas à implementação de políticas que defendam a sobrevivência digna e os direitos
da cidadania.
DADOS DA HISTÓRIA DAS INSTITUIÇÕES NO BRASIL
Atos de violência vêm sendo descritos no Brasil desde o século XIX. O Código
Criminal do Império, de 1830, indicava internação para menores de 14 anos que
realizassem atos considerados anti-sociais 5 . Alguns documentos mostram que, por volta de
1895, as leis já recomendavam a criação de instituições para menores infratores.
Publicações do final do século XIX ainda apontavam para crianças pobres que cometiam
furtos e roubos sendo conduzidas para cadeias públicas, onde eram mantidas junto aos
adultos criminosos.
No século XX, os projetos legislativos trataram com veemência o direito do menor,
e o Instituto Sete de Setembro foi criado em 1913, com a perspectiva de acolher menores
abandonados e infratores. Em 1917, foi instituída a primeira lei considerando não
criminosos os jovens que cometiam delitos, na faixa etária de 12 a 17 anos. O Código de
Menores 6 vigorou a partir de 1927, sendo o Brasil o primeiro país da América Latina a
5
implantar medidas próprias para menores. Aqueles com idade inferior a 14 anos não seriam
submetidos a processo penal de natureza alguma, enquanto os que tivessem entre 14 e 18
anos se submeteriam a processos específicos. Em 1941, foi criado o Serviço de Assistência
ao Menor (SAM) para receber os menores abandonados e/ou infratores, substituindo o
Instituto Sete de Setembro, que ficou marcado por uma política repressora e rígida. Há
relatos de que as crianças ficavam amontoadas, cuidadas por uma equipe sem preparo,
sendo, portanto, aquele sistema reconhecido como desumano e ineficaz.
A partir da década de 1960, aconteceram mudanças no tratamento dispensado à
“infância abandonada”. Foi criada a Fundação Nacional do Bem Estar do Menor
(Funabem), pela Lei 4.513, de 1º de dezembro de 1964, seguida da instalação, em vários
Estados, de unidades desta Instituição, com projetos de pesquisas e objetivos de
reintegração do menor à família e à comunidade. Seu autoritarismo, no entanto, motivou o
novo Código de Menores, dispositivo da Lei 6.697, de 10 de outubro de 1979. Assim como
o SAM, a Funabem também foi extinta por maus-tratos aos menores e condições físicas
insalubres 7 .
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) estendeu os direitos
fundamentais a todas as pessoas. A positivação de tais preceitos demonstra o cuidado de
amparar o homem legalmente, de forma a protegê-lo. "Os direitos do homem nascem como
direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para
finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais." 8
No entanto, é evidente que não se atingiu tal meta até o momento. A situação hoje
vivida ainda é de busca não apenas de consecução, mas de implementação dos meios pelos
quais se chegará aos fins já estabelecidos.
Nesse sentido, vários documentos foram elaborados, a exemplo de: Convenção
sobre os Direitos Políticos da Mulher (1952), Convenção para a Prevenção e Repressão
do Genocídio (1958), Declaração dos Direitos da Criança (1959), Declaração sobre a
6
Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais (1960), Declaração sobre a
eliminação de todas as formas de discriminação racial, particularmente o apartheid
(1963), Pacto sobre os Direitos Econômicos e Culturais (1966), Pacto sobre o Deficiente
Mental (1971), Declaração dos Direitos Civis e Políticos (1966) e Declaração dos Direitos
dos Deficientes Físicos (1975).
Os direitos sociais (saúde, educação, trabalho e lazer) surgem como meio, ou
instrumento, para que se alcancem os fins almejados, que são os direitos individuais:
liberdade, igualdade e direito à vida digna de cidadão.
Para Lima (2002) 9 , a garantia do direito à saúde da população infanto-juvenil é
resultante de múltiplos fatores de ordem política, socioeconômica, jurídica, cultural,
ambiental, e não exclusivamente de natureza física.
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Em 1990, promulgou-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ratificando
a Declaração Universal dos Direitos da Criança e do Adolescente, da Organização das
Nações Unidas, seguindo o princípio da cidadania, e revogando o Código de Menores de
1979. O ECA 10 é uma legislação especial que regulamenta as normas, definindo quais
medidas devem ser adotadas aos adolescentes de 12 a 18 anos que cometem atos
infracionais: I) advertência; II) obrigação de reparar os danos; III) prestação de serviço à
comunidade; IV) liberdade assistida; V) semiliberdade; VI) internação. A diferença dessas
medidas em relação às do Código Penal é o seu caráter socioeducativo. Os jovens menores
de 18 anos são penalmente inimputáveis, e as medidas de internação, que colocam o menor
infrator sob a custódia do Estado, privando-o de liberdade total ou parcialmente, são
reservadas a menores que cometem infrações graves. Apesar de não estar estabelecido o
tempo dessa privação, este não deverá ultrapassar três anos. A liberdade é compulsória aos
21 anos.
Obedecendo ao ECA, o Brasil aderiu formalmente à concepção da criança como
sujeito detentor de direitos, de potencialidades a serem desenvolvidas em sintonia com as
normas internacionais. Concebe-se a criança como um ser em desenvolvimento, diferente
7
do adulto, e que traz em si uma gama de possibilidades de aprimoramento para a nossa
sociedade. Com o ECA surgiram os primeiros centros de defesa do menor, que assumem a
linha política indicada no art. 87 inciso V do Estatuto, assegurando "a proteção jurídícosocial por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente".
Na estrutura administrativa do Estado, o Ministério Público passou a ter funções
diversas e co-relacionadas à garantia dos direitos desse segmento. E, para formular políticas
e controlar ações, o ECA criou o Conselho Nacional de Direitos da Criança (Conanda) – os
Conselhos Estaduais e os Conselhos Municipais.
ASSISTÊNCIA AO MENOR INFRATOR NA BAHIA
No momento da promulgação da Lei 8.069, de 13 de junho de 1990, a Fundação de
Assistência aos Menores do Estado da Bahia (Fameb) apresentava uma estrutura
operacional deficiente para atender às exigências da nova lei. Para tal, a Fameb foi
reordenada, tendo como metas mínimas a superação do seu enfoque assistencialista e dar
abertura de espaço para as abordagens socioeducativas, cujo alicerce era o princípio de
igualdade entre os seres humanos. Em 22 de maio de 1991, pelo artigo 23 da Lei Estadual
6.079, foi efetivada a transformação da Fameb em Fundação da Criança e do Adolescente
(Fundac).
O adolescente, autor de ato infracional no Estado da Bahia, é encaminhado a
Delegacias Especiais; Centro de Liberdade Assistida (Celiba); Centro de Atendimento
Socioeducativo (Case I, em Salvador; Case II, em Simões Filho); e Casa de Acolhimento ao
Menor (CAM), em Tancredo Neves. O processo do adolescente é da competência da
Segunda Vara da Infância e da Juventude, e as unidades para a execução das medidas estão
ligadas à Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac), órgão da Secretaria do Trabalho
e Ação Social.
O Celiba acompanha com equipe técnica especializada os jovens que cumprem
medidas em meio aberto, o Case I assiste exclusivamente aqueles que cumprem medidas de
semiliberdade, enquanto o Case II comporta 120 jovens sujeitos a medidas socioeducativas
de privação de liberdade.
8
A CAM é uma instituição destinada a receber jovens para internação provisória
durante 3 a 6 meses e para cumprir medidas de privação de liberdade. Foi programada para
60 adolescentes, e hoje acolhe mais de 200.
Oliveira (1995) 11 , em Um mundo social específico – Casa de Acolhimento do
Menor – CAM: Medida socioeducativa de internação ou medida de privação de
liberdade?, estudou 51 prontuários de internos com mais de três meses sob medida de
privação de liberdade, levantando dados do Juizado de Menores – 2ª Vara da Infância e da
Adolescência, além do Serviço Social, Setor Médico e Coordenação Pedagógica da CAM,
Serviço de Informática, Secretaria de Pessoal e Secretaria do Adolescente. A autora sinaliza
a existência de jovens que chegam sem dados de identificação, sem relato sobre o ato, sem
informes de doença física e/ou psicológica prévia. Após abordar a necessidade de uma
melhor qualificação dos orientadores e de todos os outros que lidam com os adolescentes na
Instituição, conclui que, de acordo com a bagagem histórica de cada adolescente, alguns
passam pela Instituição apenas pela privação de liberdade e não têm nenhum crescimento
pessoal, enquanto outros internos vivem um processo de transformação, demonstrando
terem se beneficiado das medidas socioeducativas.
TRANSTORNOS
PSIQUIÁTRICOS
ENTRE
ADOLESCENTES
TRANSGRESSORES DA LEI
Thomas e Pen (2002) 12 assinalam o número crescente de jovens infratores e
familiares com distúrbios médicos psiquiátricos, abuso de drogas e dificuldades na esfera
psicossocial. O reconhecimento dessas altas taxas recomenda uma assistência especializada
a esses jovens. Para tal, é preciso que se definam, como prioridades, pesquisas sobre a
saúde mental desses menores, o desenvolvimento de protocolos de avaliação para screening
dos distúrbios psiquiátricos e a atenção médico-psicológica e social para eles dirigida. É
fundamental a avaliação prévia do adolescente, especialmente voltada para a identificação
do abuso de substâncias psicoativas, pois segundo o autor, se esse problema não for
enfrentado, provavelmente ele levará o resto da vida em processos judiciais. Por isso
defende que estabelecer padrões de atenção a esses jovens é a base para a sua reabilitação,
9
devendo os profissionais de saúde mental estar preparados para fornecer o suporte
apropriado.
Shelton (2001) 13 estimou as taxas de transtornos psiquiátricos entre jovens do
Sistema Judiciário Juvenil do Estado de Maryland – USA. A avaliação demonstra que 58%
dos jovens apresentavam sintomas de ansiedade; 40% distúrbio de comportamento
disruptivo; 38% esquizofrenia e outras psicoses; 16,7% transtorno afetivo e 17,5%
transtornos diversos.
Outros investigadores sinalizam a freqüência dos transtornos de atenção, ansiedade
e depressão na população judiciária juvenil, assim como a ocorrência de transtornos de
conduta em comorbidade com outros diagnósticos (transtornos do Eixo I ou Eixo II do
DSM IV).
Em Taylor e Gunn (1999) 14 , o elevado e alarmante número de assassinatos em
Londres, cometidos por doentes mentais, sugere que os cuidados comunitários na área da
saúde mental são precários nessa cidade. Com o objetivo de avaliar se os homicídios se
tornam menos freqüentes à medida que o serviço psiquiátrico se transforma, os autores
levantaram dados do centro responsável pela estatística criminal na Inglaterra, no período
de 1957 a 1995, e os submeteram a análise de tendências. No decorrer dos 38 anos de
estudo, houve um declínio anual de 3% no número de homicídios. A autora conclui que
deve existir uma atenção especial no sentido de melhorar os serviços psiquiátricos,
focalizando principalmente os transtornos de personalidade e o abuso de drogas.
MORBIDADE PSIQUIÁTRICA ENTRE ADOLESCENTES INFRATORES NA
CAM – SALVADOR – BAHIA – BRASIL
Pinho 15 , em trabalho sobre transtornos mentais entre adolescentes infratores,
descreve o perfil psiquiátrico dos adolescentes em conflito com a lei. Trata-se de um estudo
de corte transversal de caráter censitário, com uma população de 290 jovens, cumprindo
medidas de privação de liberdade na Casa de Acolhimento ao Menor (CAM), Salvador/
Bahia/ Brasil, entre outubro de 2002 a maio de 2003.
Utilizou-se um questionário, testado e validado, para identificar dados
demográficos, sinais e sintomas psicopatológicos, tipos de delito, tipos de droga e dados
10
psicossociais, seguido de exame psiquiátrico realizado pelo pesquisador principal, sem ter
conhecimento prévio dos dados registrados nesse instrumento.
Na população em estudo, a idade variou de 12 a 21 anos, com média de 16,3%,
sendo 89,3% do sexo masculino e 10,7% do sexo feminino. Dos indivíduos pesquisados, é
importante registrar que 92,8% tinham o curso fundamental incompleto ou eram
analfabetos; 67,6% possuíam uma renda familiar média menor que um salário mínimo, e
53,4% eram da capital do Estado. Com relação à raça; 42,1% eram negros; 38,6% pardos e
19,3% brancos.
Dentre os 290 adolescentes examinados; 24,8% não apresentaram transtorno
psiquiátrico e 75,2% deles foram diagnosticados como portadores de transtorno mental.
O gráfico 1 mostra a distribuição da morbidade psiquiátrica da população por
categorias nosológicas agrupadas: 17% de transtorno de conduta; 21% de transtorno por
abuso de drogas; 10% de retardo mental; 7% de psicoses em geral (esquizofrenia e outras);
3% de transtorno de ansiedade; 4% de transtorno depressivo; 2% de transtorno mental
orgânico (TMO) e 12% de transtorno hipercinético.
Gráfico 1 – Distribuição da Morbidade Psiquiátrica por Categorias Nosológicas agrupadas
3%
4% 2%
24%
10%
2%
5%
Sem Distúrbio
T. Conduta
T. Hipercinético
T.Abuso de Drogas
Outros T. Psicóticos
T. Esquizofrênico
Retardo Mental
17%
21%
12%
T. Ansioso
T. Depressivo
T. Mental Orgânico
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Segundo a autora, há indícios de que a ausência de informações da família e da
escola, quanto ao desenvolvimento dos jovens pesquisados, dificultou o processo de
diagnóstico do transtorno hipercinético. Além disso, na adolescência, o transtorno
hipercinético freqüentemente aparece em comorbidade com outros transtornos, o que pode
ter subestimado a ocorrência desse diagnóstico.
No que se refere ao transtorno de conduta e ao transtorno de hiperatividade, uma
alteração importante do DSM-III para o DSM-III R foi o agrupamento do transtorno de
atenção com hiperatividade (TDAH) com o transtorno de conduta e o de oposição, sob a
categoria de transtorno de déficit de atenção e de comportamento disruptivo. Isso reflete o
reconhecimento de que essas síndromes têm aspectos difíceis de diferenciar. Pinho conclui
que os transtornos psiquiátricos são mais comuns entre jovens trazidos ao Juizado da
Infância e da Adolescência do que entre jovens da mesma faixa etária sem envolvimento
com a Justiça. Esse estudo, ainda em processo, pode contribuir para nortear políticas
públicas, subsidiando o planejamento e a execução de ações para a prevenção e o
tratamento da delinqüência juvenil.
DISCUSSÃO
Os estudos científicos trazem o alerta para a necessidade de maiores investimentos
no campo da saúde mental voltados para o adolescente, especialmente no sentido de
prevenir infrações de jovens considerados em situação de risco, promovendo avaliação e
acompanhamento de jovens infratores por profissionais da área – psiquiatras e psicólogos.
Para a aplicação de medidas socioeducativas a esses adolescentes, devem ser
privilegiados os programas de cumprimento das medidas em meio aberto, revertendo a
visão repressiva e de contenção como a única forma de reparação dos atos cometidos.
Visando à cidadania e à autoconfiança, as medidas devem ter como base o exercício da
“Pedagogia participativa” e o atendimento personalizado.
A família do adolescente em conflito com a lei é uma parceira privilegiada no
desenvolvimento das ações socioeducativas, e o fortalecimento das relações familiares é
fundamental no âmbito da prevenção e da reinserção do jovem no contexto social. A
pobreza condiciona a qualidade de vida dessa população, comprometendo a saúde, a
educação e a integridade da família, levando-a à marginalidade.
12
Na prática, as instituições estão distantes de adaptar suas ações às leis e às
necessidades desses jovens, adotando um trabalho emancipador. As condições externas,
aliadas às dificuldades das instituições, na maior parte dos casos, mantêm a identidade do
infrator. Os monitores e técnicos são elementos-chave na recuperação desses adolescentes
e, em conseqüência da convivência constante com estes, tornam-se, freqüentemente,
referências – modelos de identificação. Existem jovens que, em função de consecutivas
entradas, se ligam afetivamente aos monitores e a cada retorno atualizam esse vínculo, mas
também é comum o sentimento hostil dos internos em relação aos mesmos. Os orientadores
revelam sentimentos extremos, demonstrando muitas vezes condutas autoritárias, aplicando
castigos diversos e outras estratégias para o controle do grupo.
O sentimento de impotência toma conta de um grande número de profissionais, que
constatam a limitação dos serviços públicos. A grande prova da insuficiência desse sistema
está na saída dos jovens do mesmo modo como entraram: com chances mínimas de
obtenção de um trabalho remunerado. Concomitantemente, uma parcela da sociedade
insiste nas medidas de repressão, acreditando que nesta reside a resolução da violência. A
realidade é que um círculo vicioso se instala, resultando numa taxa de reincidência
significativa. Esta decorre, principalmente, do fato de não ter se consolidado, entre nós,
uma rede de atendimentos básicos que dê suporte às medidas socioeducativas, como é
preconizado pelo ECA.
A mídia divulga atos infracionais graves de maneira superdimensionada, que assusta
e constrange a sociedade, sem atribuir aos fatores causais sua devida importância. Para
enfrentar o problema do menor infrator, é preciso atuar sobre esses fatores. Urge, dessa
forma, estabelecer uma parceria entre o Estado e a sociedade civil, capaz não apenas de
definir metas, mas também de priorizar ações voltadas para os aspectos sociais da infância
e adolescência.
13
“Cada indivíduo é encarado como tendo capacidade produtiva potencial cujo
desenvolvimento exige esforço tanto do próprio como de seus instrutores e familiares. Esse
esforço se traduz num custo, que pode ser formulado em termos pecuniários e representa o
valor do capital humano de que dispõe cada indivíduo.” 16
Tendo em vista a qualidade de vida da população estudada, os autores do presente
artigo propõem aos órgãos do governo e à sociedade:
-
Lutar para que o poder público – nacional, estadual e municipal – destine um
percentual de recursos para a aplicação de medidas socioeducativas;
-
Estabelecer parcerias com setores da sociedade interessados na criança e no
adolescente em risco social;
-
Estabelecer parcerias com as ONGs e fiscalizar as alocações dos recursos;
-
Estabelecer convênios com instituições voltadas para as questões da maternidade
precoce e das doenças sexualmente transmissíveis;
-
Combater o abuso e a exploração sexual;
-
Envolver a família na elaboração e execução dos programas de atendimento;
-
Revitalizar o projeto “Toda Criança na Escola”;
-
Ampliar os recursos do Programa Bolsa Escola, visando a atingir o maior número
possível de crianças;
-
Adotar, em todas as escolas, um currículo programático que inclua temas como
família, infância, adolescência, buscando resgatar valores humanos e éticos;
-
Envolver profissionais das áreas de Psicologia e Assistência Social no corpo de
profissionais de todas as escolas de ensino fundamental e médio, com a finalidade
de atender às necessidades de integração escola–família–comunidade;
-
Promover a implantação de Centros de Atendimento Integral à Família, com
programas de geração de renda, parcerias e trabalhos em rede;
-
Revitalizar os cursos técnicos profissionalizantes, com vistas à reinserção social do
jovem infrator;
14
-
Implantar programas municipais de liberdade assistida;
-
Criar condições para a atuação conjunta de uma Polícia Comunitária com o
Conselho Tutelar e o Juizado da Infância e Adolescência, promovendo visitas
diárias em locais de risco social.
CONCLUSÃO
As ações da instituição devem ser inovadoras e coerentes, obedecendo os direitos
dos adolescentes em conflito com a lei. Faz-se necessário um cotidiano que envolva
educação, oficinas profissionalizantes, rotinas, definindo o papel do infrator como
educando. O contato desses jovens com a arte, a ciência e as letras é um estímulo de grande
importância para o seu crescimento pessoal, acrescentando ou, até, modificando valores.
Estudos nacionais e internacionais evidenciam a associação entre transtornos
psiquiátricos e comportamento infrator em crianças e adolescentes. No planejamento
institucional, deve-se contemplar a assistência à saúde mental da população jovem
transgressora das leis. É evidente a necessidade de diagnóstico precoce e especializado dos
adolescentes portadores de transtornos mentais, desde a sua chegada ao Ministério Público,
e a criação de um espaço adequado para o tratamento dessa população na instituição ou no
âmbito dos serviços de saúde do Estado.
Compreender, acolher, integrar, qualificar equipes para estabelecer a superação de
enfoques repressivos ou assistencialistas e adotar um trabalho pautado na cidadania são
metas a serem atingidas.
Cabe ao Estado cuidar da prática institucional para que a experiência no interior
desses espaços não se constitua numa etapa de aprendizado e aperfeiçoamento para o crime.
O espaço para discussão e transformação de valores humanos como autoconhecimento,
espírito de equipe, respeito às diferenças, importância dos limites etc. é prioridade na
recuperação do adolescente infrator.
Para a construção de uma alternativa política democrática, que articule os
movimentos sociais na direção de uma sociedade mais justa, é necessário estar atento às
demandas individuais, habilitando-se então a desenvolver um projeto coletivo que
possibilite o fortalecimento da identidade da criança e do adolescente. Particularmente no
Brasil, e em especial na Bahia, a exclusão e a desigualdade estão presentes, na sociedade,
prejudicando a vida de grande número de jovens, que devem ser respeitados como sujeitos
15
transformadores e aptos a promover mudanças fundamentais para o avanço da população
brasileira.
REFERÊNCIAS
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7
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