O Modelo do Trigo - Franklin Serrano professor de economia IE

Transcrição

O Modelo do Trigo - Franklin Serrano professor de economia IE
1
TEXTO DIDÁTICO
GRUPO DE PESQUISA EM ECONOMIA POLÍTICA
IE/UFRJ
ABORDAGEM CLÁSSICA DO EXCEDENTE *
Fabio Freitas**
Franklin Serrano***
Terceira Versão
Agosto de 2008
O Modelo do Trigo
I –Modelo do Trigo Simplificado
II – Renda da Terra
III – Bens Não-Básicos
IV – O Modelo do Trigo Completo
*
Os autores gostariam de agradecer a ajuda de Luiz Daniel Willcox de Souza.
Professor Adjunto do IE/UFRJ
***
Professor Adjunto do IE/UFRJ
**
2
3
I - O Modelo do Trigo Simplificado
(a) Objetivo e Hipóteses
(a.1) Objetivo
(a.2) Hipóteses
(b) O Modelo
(b.1) Tecnologia e Viabilidade
(b.2) O modelo com os salários pagos ao final do período de prdoução.
(b.3) O modelo com os salários pagos antecipadamente
4
(a) Objetivo e Hipóteses
(a.1) Objetivo
Vamos começar pela versão mais simples possível de uma análise do tipo clássico.
Nesta versão conhecida como “modelo do trigo”1 procura-se ilustrar como os dados ou
variáveis independentes da teoria clássica do excedente são suficientes para determinar a
taxa de lucro (r) de maneira consistente: (i) com a noção de excedente com grandeza
determinada residualmente e (ii) com a noção de livre concorrência entre os capitais (e,
conseqüentemente, com a hipótese de uniformidade da taxa de lucro de todos os setores).
(a.2) Hipóteses
H.1 – Estamos tratando de um sistema econômico capitalista onde é
produzido um único produto, “trigo”, por meio da combinação dele mesmo como
insumo com trabalho homogêneo.
H.2 – O trigo é utilizado como capital circulante, isto é, ele é totalmente
consumido ao longo do período de produção que assumimos ser uniforme e, por
conveniência expositiva, igual a um ano.
H.3 – Existe um único método de produção que combina trigo com trabalho
para produzir trigo.
H.4 – Considera-se que as terras e os demais recursos naturais são
relativamente abundantes e que, portanto, as suas respectivas remunerações são
nulas.
1
O modelo do trigo é proposto por Sraffa na introdução às obras completas de Ricardo com o objetivo de
reconstruir racionalmente os argumentos apresentados por David Ricardo no seu Ensaio Sobre os Lucros de
1815. Convém ressaltar que a versão do modelo analisado na presente unidade é diferente daquela encontrada
no trabalho de Ricardo. Todavia, onde for pertinente faremos menção ao modelo do trigo encontrado em
Ricardo.
5
(b) O modelo
(b.1) Tecnologia e Viabilidade
(i) Tecnologia
A tecnologia do sistema é dada pelas seguintes relações equivalentes
2
que
descrevem um método ou processo de produção:
A11  L1  X 1
ou
a11  l1  1
A primeira relação indica as quantidades, medidas em suas respectivas unidades físicas, de
trigo (A11) e de trabalho (L1) necessárias para produzir X1 unidades físicas de trigo. A
segunda relação expressa as quantidades requeridas de trigo (a11=A11/ X1) e de trabalho
(l1=L1/X1) para produzir uma unidade física de trigo. Trata-se dos coeficientes técnicos de
produção do trigo e do trabalho para a produção de trigo. O símbolo “” indica que o
método produtivo requer necessariamente a combinação de trigo e trabalho para produzir
trigo. Já o símbolo “” indica que uma determinada combinação dos insumos permite a
produção de uma determinada quantidade do produto.
Com base no que foi dito acima podemos estabelecer a seguinte relação:
a11 X 1  Y  X 1
onde Y é o produto líquido da economia em um determinado ciclo produtivo. Em uma
economia capitalista simplificada como a que estamos trabalhando o produto líquido é
composto, do ponto de vista da apropriação dos rendimentos, por lucros e salários.
(ii) Viabilidade
2
As duas formas de representar a tecnologia da economia são equivalentes e independem de hipóteses sobre
rendimentos variáveis porque, em acordo com a noção clássica do excedente, consideramos dado o nível de
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Conhecida a representação da tecnologia, podemos estudar a condição de
viabilidade do sistema. De um ponto vista puramente tecnológico o sistema acima é viável
desde que a111. Esta condição indica apenas que a técnica existente é capaz de gerar uma
produção superior a que é necessária para a reposição dos insumos utilizados no processo
produtivo. Ou seja, tal condição garante que o sistema é capaz de se reproduzir período
após período, gerando um produto líquido.
Todavia, de um ponto de vista social, a condição anterior não é suficiente. É
necessário ainda que se garanta pelo menos a reprodução da força de trabalho. Neste caso a
condição de viabilidade seria dada pela seguinte desigualdade:
a11+v1.l1 1,
onde v1 é a taxa de salário real, isto é, na economia simplificada em questão, a remuneração
em trigo para o uso de uma unidade física de trabalho (e.g homens-ano de trabalho,
homens-horas de trabalho). Na condição acima quando vale a igualdade (a11+v1.l1=1)
estamos tratando do caso de uma economia de subsistência. A produção de trigo é
suficiente, e apenas suficiente, para garantir a reposição do trigo consumido como meio de
produção e a reprodução da força de trabalho. Entretanto, neste caso, embora a economia
seja viável, não estaríamos tratando de uma economia capitalista. O funcionamento desta
última requer necessariamente que uma parcela do produto líquido da economia (o
excedente econômico) seja destinado aos capitalistas na forma de lucros. Sendo assim, a
condição de viabilidade relevante do ponto vista da reprodução social de um sistema
capitalista é a11+v1.l11.
(b.2) O modelo com salários pagos post factum
O modelo do trigo pode ser apresentado em duas versões distintas de acordo com
hipótese que façamos acerca da forma de pagamento dos salários. Numa versão supõe-se
produto. Em particular, é importante frisar que não estamos trabalhando com a hipótese de retornos constantes
de escala.
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que os salários são pagos no final do período produtivo (post factum) e noutra que eles são
pagos antecipadamente3. Vejamos inicialmente a primeira versão.
O nosso ponto de partida é a equação que define o valor total da produção em um
dado período:
p1 . X 1  p1 . A11 1  r   w. L1  p1 . A11  p1 . A11 . r  w. L1
(I.1),
onde p1 é o preço do trigo, r é a taxa de lucro e w é a taxa de salário monetário. Dividindo a
equação (I.1) por X1 obtemos a equação de preço para o trigo:
p1  p1 . a11 1  r   w. l1
(I.2).
Usando o trigo como unidade de medida (numerário) temos que p1  1 e, portanto, que
w  p1 . v1  v1 . Com isso a equação (I.2) transforma-se em:
1  a11 1  r   v1 . l1  a11  r. a11  v1 . l1 ,
donde podemos obter:
r
1  a11  l1 . v1 
a11

1  l1 . v1
1
a11
(I.3)
A partir desta equação (I.3) podemos ver se as variáveis independentes da teoria
clássica do excedente são suficientes para determinar a taxa de lucro do sistema definida
acima. Pode-se então ver que, como as condições técnicas de produção e a taxa de salário
real são consideradas por tal teoria como variáveis independentes, então a11 e l1, de um
lado, e v1 de outro, são supostas conhecidas. Sendo assim, os dados da teoria clássica do
excedente são suficientes para determinar a taxa de lucro através do modelo do trigo.
Mas será que a relação que assim obtivemos é compatível com a idéia de conflito
distributivo entre lucros e salários subjacente à teoria clássica do excedente? Podemos
verificar com base em (I.3) que a resposta à esta questão é afirmativa. Para uma economia
3
Neste caso os salários fariam parte do capital adiantado pelos capitalistas e, portanto, a taxa de lucro
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que respeita a condição de viabilidade e para valores não negativos de v1 e r - que são os
únicos que nos interessam do ponto vista econômico - salários e lucros estão inversamente
relacionados.
Isto pode ser melhor visualizado através de um gráfico que retrata, para a versão do
modelo do trigo em análise, a relação salários-lucros. Seguindo uma convenção da
literatura representaremos a taxa de lucro sobre o eixo horizontal e a taxa de salário real
sobre o eixo vertical. Neste sentido é conveniente expressar, de um ponto de vista
puramente formal (e não teórico), a taxa de salário real em função da taxa de lucro e das
condições técnicas de produção. Com efeito, de (I.3) podemos obter:
v1 
1  a11 1  r 
l1
 1  a11   a11 

   r
 l1   l1 
(I.3’).
A equação (I.3’) acima mostra que, no caso em que os salários são pagos post factum, a
relação salário-lucros é linear. Além disso, quando r  0 existe uma taxa máxima de salário
real V  (1  a11) l1 que representa a produtividade média do trabalho(Y/L1); quando v1  0
existe uma taxa máxima de lucro R  (1  a11 ) a11 que corresponde à produtividade média
do capital (Y/A11); finalmente, segundo (I.3’) a inclinação da curva que descreve relação
salário-lucro depende da relação capital-trabalho (A11/L1=a11/l1) estabelecida pela
tecnologia. Podemos então expressar (I.3’) graficamente (Figura 1) do seguinte modo:
incidiria sobre o mesmo.
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Figura 1
v1
V

a11
l1
R
r
(b.3) O modelo com os salários pagos antecipadamente.
No modelo com os salários pagos antecipadamente, a equação referente ao valor
total da produção é dada por:
p1 . X 1   p1 . A11  w1 . L1 . 1  r 
(I.4).
Donde, dividindo (I.4) por X1, obtemos:
p1   p1 . a11  w1 . l1 . 1  r 
(I.5).
Supondo, como fizemos acima, que p1  1 , temos, novamente, que w1  v1 e, portanto,
que:
1  a11  v1 .l1 
. 1  r   a11  v1 .l1  (a11  v1 .l1 ).r
Donde chegamos à relação salário-lucro na versão com os salário pagos antecipadamente:
r
1  a11  l1 . v1 
a11  l1 . v1 

1
1
a11  l1 . v1
(I.6).
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Da equação (I.6) podemos depreender que, assim como no caso da versão anterior,
os dados da teoria clássica do excedente são suficientes para determinar a taxa de lucro com
base no modelo do trigo. A presente versão do modelo também é compatível com a relação
inversa entre salários e lucros subjacente à teoria clássica do excedente.
Todavia, existe uma diferença importante entre as duas versões. Quando os salários
fazem parte dos adiantamentos, sobre eles deve incidir uma taxa de lucro assim como
acontece com o trigo utilizado como insumo. Isto faz com que a relação entre salários e
lucros nesta versão do modelo do trigo não seja linear, embora as taxas máximas de salários
e lucros sejam as mesmas nas duas versões. Com isso o gráfico representando a relação
salário-lucros é convexo em relação à origem. Para ver isto basta notar que de (I.6):
v1 
a
1
 11
l1 1  r  l1
(I.6’),
cujo gráfico está apresentado na figura 2 abaixo para valores não negativos de v1 e de r.
Figura 2
v1
V
r
R
Portanto, em suas duas versões, o modelo do trigo permite concluir que os dados da
teoria clássica do excedente são suficientes para determinar a taxa de lucro e que, de uma
maneira compatível com tal teoria, existe uma relação inversa entre salários e lucros.
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II - Renda da Terra
(a) Hipóteses
(b) Tecnologia
(c) O modelo com renda da terra
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Na seção anterior, vimos como o modelo do trigo simplificado permite determinar a
taxa de lucro com base nos dados da teoria clássica do excedente e como a teoria da
distribuição assim obtida mostra que salários e lucros estão inversamente relacionados.
Nesta seção vamos verificar se as principais conclusões obtidas com base no modelo do
trigo simplificado continuam válidas no caso mais geral em que tenhamos terras e recursos
naturais escassos.
(a) Hipóteses
Na apresentação do modelo do trigo simplificado adotamos a hipótese (H.4) de que
as terras e os demais recursos naturais são relativamente abundantes. Podemos agora
abandonar esta hipótese. Para tanto é também necessário abandonar a hipótese (H.3) de que
existe apenas um processo para produzir trigo como fizemos no caso da análise da escolha
das técnicas. Além disso, faremos algumas hipóteses adicionais. Em primeiro lugar,
trataremos apenas do caso da renda diferencial extensiva. Neste sentido, suporemos, para
simplificar, a existência de apenas dois tipos de terra de qualidades diferentes, cada um
deles associado a um processo de produção distinto. Chamemos de I e II os dois tipos de
terras e processos de produção. Em segundo lugar, assumiremos que os proprietários de
terra não têm outro emprego para as suas terras que não alugá-las para os capitalistas.
(b) Tecnologia
Dadas as hipóteses anteriores, a tecnologia do sistema pode ser descrita pelo
seguinte conjunto de relações:
I
I
a11  l1  1
 II
II
a11  l1  1
onde a11I 
A11I
L1I
A11II
L1II
I
II
II
l

a

l

,
,
e
são os coeficientes técnicos referentes aos
1
11
1
X 1I
X 1I
X 1II
X 1II
processos de produção I e II respectivamente.
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Consideramos que, para dado o salário real v1, as terras estão ordenadas em ordem
decrescente de rentabilidade. Nesse sentido, vamos supor que o excedente em trigo e a taxa
de lucro r obtidos utilizando-se apenas a terra do tipo I são maiores que os obtidos usandose apenas a terra II. Vamos chamar esta ordenação de ordem decrescente de qualidade ou
“fertilidade”. Esta “fertilidade” depende dos coeficientes técnicos correspondentes a cada
uma das técnicas. Assim, quanto melhor a qualidade da terra utilizada maior a quantidade
de produto (“trigo”) obtida por unidade de trabalho e capital empregados e menor o seu
respectivo custo de produção.4
(c) O modelo com renda da terra
Vamos supor que a produção de trigo tenha alcançado um patamar que exige a
utilização dos dois tipos de terra. Neste caso, a quantidade disponível de terra do tipo I,
mais fértil (i.e., com um menor custo de produção dado o salário real vigente), não é
suficiente para permitir a produção de trigo no nível requerido pelo sistema econômico.
Sendo assim, para atender a demanda existente por trigo é necessário usar a terra do tipo II
– menos fértil. Isto quer dizer que os dois processos de produção, correspondentes aos dois
tipos de terra, devem co-existir para que a produção de trigo na quantidade exigida seja
viabilizada.
Além disso, vamos supor que na situação descrita acima o único recurso natural
escasso é a terra do tipo I. A quantidade disponível de terra do tipo II não é plenamente
utilizada e, portanto, não é escassa. Com isso, supondo salários pagos post-factum, as
equações de preços obtidas em condições de livre concorrência são:
I
I
I

 p1  p1a11 (1  r )  p1v1l1  RT

II
II

 p1  p1a11 (1  r )  p1v1l1
(II.1)
onde RTI é a renda por unidade de produto obtida nas terra do tipo I.
4
Note que como o custo em trigo depende do nível do salário real a própria ordem de “fertilidade” pode
mudar se o salário real mudar. Logo, em geral, é necessário conhecer o salário real para podermos ordenar as
terras sem ambigüidade.
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A princípio poderíamos pensar que, como o custo de produção na terra II é maior do
que na terra I, o preço do trigo produzido na terra II seria maior do que aquele produzido na
terra I. Todavia, isto não ocorre porque a concorrência entre os produtores de trigo faria
com que houvesse um único preço para o trigo. Por outro lado, se o preço do trigo é o
mesmo para as duas terras poderíamos pensar que, devido a vantagem de custo, os
capitalistas que exploram a terra I aufeririam uma taxa de lucro anormal. Isto é, a taxa de
lucro dos capitalistas usando a terra I seria maior do que a dos capitalistas utilizando a terra
II. De fato, isto poderia ocorrer transitoriamente. Entretanto, o diferencial de lucratividade
nas duas terras faria com que os capitalistas concorressem pelo uso da terra I. Como
resultado desta concorrência aumentaria o poder de barganha dos proprietários da terra I
frente aos capitalistas nas negociações dos contratos de aluguel deste tipo de terra. Isto faria
com que houvesse uma tendência para o surgimento de uma renda em tal terra, o que
provocaria a diminuição do diferencial de lucratividade entre as duas terras. Por intermédio
deste mecanismo de concorrência, esta renda da terra tenderia a aumentar até que a taxa de
lucro obtida na produção de trigo na terra I fosse igual à taxa de lucro auferida na terra II.
Neste ponto seria indiferente para os capitalistas produzirem numa ou noutra terra. Assim, a
taxa de lucro da economia tenderá a ser aquela obtenível na terra II que não paga renda,
pois esta terra ainda é relativamente abundante.
Para verificar este último resultado basta adotarmos o trigo como unidade de
medida (p1=1). Com efeito, do sistema (II.1) obtemos:
I
I
I

1  a11.(1  r )  v1.l1  RT

II
II

1  a11 .(1  r )  v1.l1
(II.2)
Analisando o sistema acima podemos ver que, dada a tecnologia da economia e a taxa de
salário real, trata-se de um sistema com duas equações e duass incógnitas: r e RTI. A
segunda equação, referente a terra que não paga renda, é suficiente para determinar a taxa
de lucro. De fato, resolvendo a segunda equação acima para a taxa de lucro temos que:
r
1  v1l1II
1
a11II
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Esta equação é a mesma que obtivemos no modelo do trigo (na versão com salários pagos
post factum). Segue-se que os resultados obtidos naquele modelo mais simples são
preservados neste modelo com renda. Com efeito, conhecida as condições técnicas de
produção na terra que não paga renda ( a11II e l1II ) e a taxa de salário real (v1) somos capazes
de determinar a taxa de lucro com base na equação acima. Além disso, taxa de lucro e taxa
de salário real estão inversamente relacionadas em acordo com a teoria clássica do
excedente. Determinada desta forma a taxa de lucro, podemos usar na primeira equação
para determinar a renda da terra na terra II.
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III – Bens não-básicos
(a) Definições e significado econômico
(b) O modelo com um bem básico e um bem não-básico
(b.1) Tecnologia
(b.2) O modelo
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Até agora estávamos trabalhando com um modelo em que havia um único bem
produzido na economia, o “trigo”. Na presente seção procuramos generalizar as conclusões
obtidas no modelo do trigo básico para o caso em que mais de um bem é produzido. Tal
generalização pode ser realizada, sem nenhuma mudança substancial em nossa análise
anterior, no caso em que os demais bens produzidos são bens não-básicos.5
(a) Definições e significado econômico
Os bens básicos são definidos como aqueles bens que são necessários direta e
indiretamente para a produção de todos os bens na economia. Os bens não-básicos, por sua
vez, são aqueles que não se encaixam na definição anterior. Inclui-se na primeira categoria
os bens salários (que os clássicos chamavam de bens necessários) e os insumos de uso
difundido e na segunda os bens de luxo e os insumos de uso não generalizado
Decorre das definições acima uma importante assimetria no papel exercido pelos
dois tipos de bens em um sistema econômico. Se, por algum motivo, um bem básico não
for produzido nenhum bem poderá ser produzido nesta economia, colocando diretamente
em risco a reprodução do sistema econômico em questão. O mesmo não ocorre no caso de
um bem não-básico. Caso ele não fosse produzido em nada seria afetada a reprodução do
sistema econômico como um todo.
(b) O modelo com um bem básico e um bem não-básico
Os modelos analisados nas seções anteriores tratavam de uma economia em que se
produzia “trigo” por meio de “trigo” como insumo combinado com trabalho, cuja cesta de
consumo era constituída apenas de “trigo”. Como se pode depreender da definição de bem
básico acima, tratava-se de uma economia simplificada onde apenas um bem básico,
“trigo”, era produzido. Na presente seção vamos analisar um modelo em que, para
5
Para simplificar nossa análise vamos voltar a adotar as hipóteses de que não existe nenhum recurso natural
escasso na economia e de que só existe um método para a produção de “trigo” disponível.
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simplificar, admitimos a produção de apenas um outro bem, digamos “tecido”, que
supomos ser um bem não-básico. Vejamos inicialmente a descrição da tecnologia para esta
economia simplificada.
(b.1) Tecnologia
A tecnologia da economia em questão pode ser representada pelo seguinte conjunto
de relações.
Bem
Insumos
Produto
Trigo
a11  l1
1
Tecido
a12  l2
1
Onde a12 e l2 medem as quantidades de trigo e de trabalho (medidos em suas respectivas
unidades físicas) necessárias para produzir uma unidade física de tecido. Assim, a produção
de tecido requer trigo como insumo enquanto a produção de trigo não requer tecido como
insumo, apenas trigo. Isto, contudo, não é suficiente para caracterizar o tecido como um
bem não-básico. Como o trabalho é utilizado na produção de todos os bens, aqueles bens
que entram na cesta de consumo dos trabalhadores são também bens básicos. Deste modo,
para caracterizarmos o tecido como um bem não-básico é necessário supormos
adicionalmente que ele não entra na cesta de consumo dos trabalhadores, com o que
continuamos tendo que w=p1.v1.
(b.2) O modelo
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Vamos trabalhar aqui com um modelo em que os salários são pagos post factum.
Além disso, adotaremos o trigo como unidade de medida (numerário) do sistema de modo
que p1=1. Podemos representar formalmente um modelo com as hipóteses mencionadas
anteriormente da seguinte maneira:
 p1  p1 .a11.(1  r )  w.l1
 p  p .a .(1  r )  w.l
 2
1 12
2

w  p1 .v1
 p1  1
(III.1).
A duas primeiras equações são as equações de preço do trigo e do tecido
respectivamente. A terceira equação retrata a hipótese de que a cesta de consumo dos
trabalhadores é constituída somente de trigo, enquanto a quarta equação representa a
hipótese de que o trigo é o numerário do sistema. Se substituirmos as duas últimas
equações nas duas primeiras obtemos o seguinte sistema:
1  a11.(1  r )  v1 .l1

 p2  a12 .(1  r )  v1 .l2
(III.2)
Supondo, em acordo com a abordagem clássica do excedente, dadas a taxa de
salário real e os coeficientes técnicos da economia podemos ver que o sistema acima é um
sistema com duas equações para determinar duas incógnitas: a taxa de lucro, r, e o preço do
tecido em termos de trigo, p2. A primeira equação é suficiente para determinar a taxa de
lucro. Conhecida esta última podemos usá-la na segunda equação para determinar o preço
relativo do tecido.
Vejamos agora o significado econômico da solução do modelo descrita acima.
Como o trigo é o único bem básico da economia, no setor em que ele é produzido, produto
e insumos são medidos em uma unidade física homogênea. Segue-se que neste setor tanto o
lucro como o capital adiantado pode ser medido numa mesma unidade física (quantidades
de trigo). Isto, por sua vez, possibilita a determinação da taxa de lucro só com base no
conhecimento da taxa de salário real e das condições técnicas de produção do trigo. Se
considerarmos dadas a taxa de salário real e as condições técnicas de produção do trigo,
20
como sugerido pela teoria clássica do excedente, então a taxa de lucro obtida na produção
de trigo não pode mudar. Em princípio, a taxa de lucro na produção de trigo poderia ser
diferente da taxa de lucro obtida na produção de tecido. Todavia, como foi visto
anteriormente, a livre concorrência tenderia a provocar a equalização das taxas de lucro.
Nestas circunstâncias a única forma desta equalização ocorrer é que a taxa de lucro na
produção de tecido se ajuste à taxa de lucro obtida na produção de trigo. A taxa de lucro do
tecido, por sua vez, é determinada pela taxa de salário real, as condições técnicas de
produção de tecido e pelo preço relativo do tecido como podemos ver pela seguinte
expressão obtida a partir da segunda equação de (III.2):
r2 
p2  v1 .l 2
1
a12
(III.3)
A taxa de lucro do tecido depende do seu preço relativo porque, na produção de
tecido, produto e insumo não são homogêneos e, portanto, os lucros e o capital antecipado
têm que ser medidos em valor. Desta maneira, a taxa de lucro obtida na produção de tecido
se ajusta à taxa de lucro determinada no setor produtor de trigo através de mudanças no
preço relativo do tecido. Com efeito, se por algum motivo a taxa de lucro na produção de
tecido for maior (menor) que a taxa de lucro na produção de trigo tenderia a ocorrer, por
força da concorrência capitalista, um(a) aumento(redução) na produção de tecido que
provocaria uma(um) redução(aumento) no preço relativo do tecido. Isto aconteceria
enquanto as duas taxas de lucro fossem diferentes, fazendo com que o preço relativo do
tecido tendesse para um nível ao qual as taxas de lucro fossem iguais nos dois setores. Este
é o valor do preço relativo do tecido determinado no sistema (III.2) acima, ou seja, o preço
relativo do tecido compatível com a hipótese de equalização das taxas de lucro entre os dois
setores – o preço natural ou normal do tecido.
Da discussão acima podemos depreender que a taxa de lucro da economia é
determinada no setor que produz o bem básico. Ela só depende da taxa de salário real e das
condições técnicas de produção do bem básico. Podemos então concluir que neste modelo
os dados da teoria clássica do excedente continuam sendo suficientes para determinar a taxa
de lucro. Além disso, podemos concluir também que dadas as condições técnicas de
produção do bem básico, uma mudança na taxa de salário real provoca uma mudança na
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direção contrária da taxa de lucro. Portanto, mantém-se a conclusão obtida anteriormente de
que salários e lucros estão inversamente relacionados. 6
6
Nesta seção não fizemos referência à existência ou não de recursos naturais escassos e, portanto, à questão
da renda da terra supondo implicitamente que estes recursos eram abundantes. Para o caso mais geral em que
temos tanto bens não-básicos como recursos naturais escassos veja a seção seguinte.
22
IV – O Modelo do Trigo Completo
(a) Hipóteses
(b) Tecnologia
(c) O Modelo
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IV – O Modelo do Trigo Completo
Podemos concluir nossa apresentação do modelo do trigo reunindo os resultados
obtidos anteriormente na versão completa do modelo do trigo. Com isso seremos capazes
de entender o que Ricardo quis dizer quando afirmou que “a taxa de lucro de todos os
negócios é regulada pela taxa de lucro do fazendeiro na terra que não paga renda”.
(a) Hipóteses
Vamos trabalhar com um modelo simples de uma economia que um bem básico,
trigo, e um bem não básico, tecido. Nesse sentido, o trigo é o único insumo de uso
generalizado e também o único bem salário. Além disso, suporemos que o trigo é produzido
em dois tipos de terra (I e II). Para o salário real vigente, a terra do tipo I é mais “fértil” que
a terra do tipo II e é escassa, pois se encontra plenamente utilizada.
(b) Tecnologia
A tecnologia subjacente a esta economia simplificada pode ser descrita da seguinte
maneira:
Bem
Insumos
Produto
a11I  l1I
1
Trigo
a11II  l1II
1
Tecido
a12  l2
1
24
Note que existem dois processos de produção para produção de trigo operados
conjuntamente, cada um deles correspondente a um tipo de terra tal como assinalado pelo
respectivo sobrescrito.
(c) O modelo
Vamos supor que os salários são pagos post factum e que o trigo é o nosso
numerário. Baseado nas hipóteses enunciadas anteriormente as equações de preços
competitivas do sistema podem ser apresentadas como segue:
 p1  p1a11I (1  r )  wl1I  RT I

II
II
 p1  p1a11 (1  r )  wl1

 p2  p1a12 (1  r )  wl2
 w  p .v
1 1

 p1  1

(IV.1)
Substituindo as duas últimas equações nas três primeiras obtemos o seguinte sistema de
equações.
1  a11I (1  r )  v1l1I  RT I

II
II
1  a11 (1  r )  v1l1
 p  a (1  r )  v l
12
1 2
 2
(IV.2)
Com base nas equações acima é possível constatar que a taxa de lucro, uniforme
para todos os tipos de aplicação de capital por força da concorrência, é determinada
isoladamente pela segunda equação do sistema. Com efeito, resolvendo tal equação para a
taxa de lucro ficamos com:
r

1  a11II  v1l1II
a11II

25
A teoria clássica do excedente supõe que a taxa de salário real ( v1 ) e as condições técnicas
de produção ( a11II e l1II ) são conhecidas, de modo que a taxa de lucro pode ser determinada
pela equação acima. Mas note que a taxa de lucro assim determinada depende apenas das
condições técnicas referentes ao processo de produção correspondente à terra do tipo II,
menos “fértil”. Pela operação do processo de concorrência capitalista esta é a taxa de lucro
geral da economia, o que explica a afirmação de Ricardo de que a taxa de lucro de todos os
negócios é regulada pela taxa de lucro auferida na produção de trigo (ou genericamente do
bem básico), de acordo com as condições de produção da terra marginal (menos “fértil”).
Assim, a taxa de lucro obtenível na terra do tipo I é determinada pela taxa de lucro auferida
na produção de trigo na terra menos “fértil”. Para tanto, a concorrência fará surgir uma
renda da terra num montante suficiente para compensar os menores custos de produção na
terra do tipo I, de modo que as taxas de lucro sobre os capitais aplicados na produção de
trigo nos dois tipos de terra sejam iguais. O mesmo ocorre em relação a determinação da
taxa de lucro obtenível na produção de tecido, nosso bem não básico. A concorrência fará
prevalecer um preço relativo do tecido (i.e, seu preço natural ou normal) para o qual a taxa
de lucro é igual a taxa de lucro determinada independentemente na produção de trigo na
terra menos “fértil”

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