1 Tecnologia e a difusão da ideia de progresso da

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1 Tecnologia e a difusão da ideia de progresso da
Tecnologia e a difusão da ideia de progresso da ciência
Clecí Körbes1
Noela Invernizzi2
Resumo
O problema abordado no artigo é a ideia de progresso da ciência e da tecnologia
como uma visão que reforça as concepções instrumentalistas e deterministas da tecnologia.
O assunto central é a divulgação da nanotecnologia na mídia brasileira, na qual se destaca
a recorrência (talvez pela aderência às mesmas necessidades de mercado, pautadas pela
concorrência capitalista) a um discurso muito similar feito mais de 100 anos antes nas
Exposições Universais e Passagens na Europa. Os dados empíricos provêm de pesquisas
realizadas por integrantes do Grupo de Pesquisa Nanotecnologia, Sociedade e
Desenvolvimento, quais sejam: a pesquisa que trata da informação sobre nanotecnologia
divulgada ao público, no período de 2002 a 2007, a partir do Jornal Folha de S. Paulo,
Revistas Semanais Veja, Isto É e Época, e revistas de divulgação científica Galileu e Super
Interessante; e a análise da série de reportagens “Universo Nano”, que foi ao ar pelo Jornal
Bom Dia Brasil, da Rede Globo de televisão, no período de 01 a 04 de setembro de 2009.
Prevalece o discurso das promessas da nanotecnologia para transformar nossa vida
cotidiana, nossa sociedade e a relação com a natureza. Concluímos que a ênfase na
comunicação dos progressos tecnológicos parece estar atrelada, de um lado, à aura
mistificadora que envolve os cientistas e às visões de determinismo, neutralidade e
inexorabilidade da ciência e da tecnologia e, de outro lado, ao maravilhamento inerente ao
processo de emancipação do homem em relação à natureza. Por fim, a principal conclusão
é a recorrência do discurso do progresso e do determinismo apesar dos avanços, tanto no
campo acadêmico como social, no sentido de questionar essas concepções.
Palavras-chave: Progresso Tecnológico. Nanotecnologia. Divulgação midiática.
1. Introdução
Nesse artigo analisamos as origens da ideia de progresso da ciência e tecnologia
(C&T) e alguns mecanismos utilizados nos últimos séculos para difundir essas concepções,
1
Doutoranda em Tecnologia, área de concentração Tecnologia e Sociedade, pela
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Curitiba, Paraná, Brasil. Bolsista pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Mestre em Educação e
Pedagoga pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Paraná, Brasil.
<[email protected]>
2
Doutora em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), Campinas, São Paulo, Brasil. Professora adjunta do Setor de Educação da Universidade
Federal do Paraná (UFPR) e professora colaboradora da Universidade Tecnológica Federal do
Paraná (UTFPR), Curitiba, Paraná, Brasil. <[email protected]>
1
como as Exposições Universais e Passagens do século XIX e a divulgação científica recente
sobre nanotecnologia na mídia impressa e televisiva do Brasil.
A noção de contínuo e inevitável progresso tecnológico presente na divulgação sobre
C&T na mídia e expressa em uma série de promessas parece estar atrelada, de um lado, às
visões de determinismo tecnológico e neutralidade da tecnologia e, de outro lado, ao
maravilhamento diante do domínio da natureza (experimentado pelos homens também em
outros períodos históricos, embora com características bem distintas). A recorrência de
narrativas na mídia que vinculam o avanço científico-tecnológico com o “bem-estar social”,
como se o desenvolvimento tecnológico seguisse um curso natural e autônomo que
invariavelmente beneficiasse a sociedade, chama a atenção no contexto de questionamento
dessas ideias no campo acadêmico e social.
Na primeira parte revisamos brevemente a bibliografia sobre as origens da ideia de
progresso da ciência moderna. Na segunda revisamos estudos sobre a divulgação da
ideologia industrial nas Exposições Universais e Passagens do século XIX. Na última
discutimos aproximações dos Estudos Sociais da C&T com os dados empíricos sobre
nanotecnologia em diversos meios de comunicação brasileiros.
2. Origens e difusão da ideia de ciência como progresso
De acordo com Rossi (2000) a ideia de progresso é constitutiva da imagem de
ciência moderna e tem origens históricas precisas: a Europa entre a metade do século XVI e
o fim do século XVIII. A imagem da ciência moderna surge como alternativa à visão mágicohermética do mundo3 e implica:
1. a convicção de que o saber científico é algo que aumenta e cresce, que
atua mediante um processo para o qual contribuem, uma após outra,
diferentes gerações; 2. a convicção de que esse processo, em qualquer
uma de suas etapas ou de seus momentos, jamais é completo: ou seja, que
não necessita de sucessivos acréscimos, revisões ou integrações; 3. enfim,
a convicção de que existe de certo modo uma tradição científica que tem
características específicas (refiro-me aqui às instituições mais do que às
teorias) e dentro da qual se colocam as contribuições individuais. (ROSSI,
2000, p. 49).
Sobre a relação entre magia e ciência, cabe recordar que: “É verdade também que ambas
se configuraram, pelo menos em determinados períodos históricos, como instrumentos de resgate e
de salvação e que a ciência muitas vezes carregou-se de tonalidades e finalidades religiosas.”
(ROSSI, 2000, p. 47-8).
3
2
Além da ênfase no progresso, é comum se falar em “revoluções científicas” quando
mudanças significativas são introduzidas na técnica e na ciência. No nascimento da ciência
moderna falava-se em “revolução científica” e Rossi (2001) indica algumas de suas
características que, como sabemos, se estendem ao longo da Era Moderna:
Um dos aspectos característicos das revoluções consiste no fato de que
elas não só olham para o futuro, dando vida a algo que antes não existia,
mas também constroem um passado imaginário que, em geral, tem
características negativas. Basta ler o Discurso preliminar à grande
Enciclopédia dos iluministas ou também o início do Discurso sobre as
ciências e sobre as artes de Jean-Jacques Rousseau para ficar cientes de
como circulava com força, desde meados do século XVIII, a definição da
Idade Média como época obscura, ou como um „retrocesso para a barbárie‟
a que os esplendores da Renascença teriam posto um fim definitivo.
(ROSSI, 2001, p. 14)
Portanto, o maravilhamento com o futuro, com as novas possibilidades da C&T é
acompanhado de certa descaracterização do que elas proporcionaram no passado,
conhecimentos que geralmente serviram de base para a dita “nova revolução”4.
Tal é a caracterização do “passado imaginário” da Idade Média, expresso no mito de
época de barbárie e escuridão5 (ROSSI, 2001). O autor aponta uma série de argumentos de
oposição à forte descontinuidade entre essa era e a Moderna, tais como: que na primeira
difundiram-se universidades, técnicas de desenvolvimento da agricultura; que a natureza de
que tratam os modernos é radicalmente diferente daquela abordada pelos filósofos da era
anterior; a experiência antes construída a partir da cotidianidade, agora é construída
artificialmente para testar teorias, etc. Rossi (ibid) prefere falar em ciência moderna como
revolução intelectual, no modo de pensar, e não como revolução científica.
4
Álvaro Vieira Pinto (2005) faz uma análise crítica do conceito de Revolução Tecnológica e
Era Tecnológica. Para ele, esse conceito está relacionado a uma incompreensão dialética do
desenvolvimento da tecnologia nas diferentes sociedades e períodos históricos. Para o autor, “toda
época teve as técnicas que podia ter” (VIEIRA PINTO, 2005, p. 234) e em diferentes épocas a
humanidade viu com esplendor o desenvolvimento tecnológico. Ainda segundo o autor, todo
acréscimo de técnica contém simultaneamente dois aspectos: transformações quantitativas e
qualitativas. A apreensão das leis do comportamento dos fenômenos físicos, químicos e biológicos, o
surgimento de novas concepções sobre a estrutura da matéria e a criação de novos aparelhos e
dispositivos são manifestações de modificações qualitativas. Quando alterações qualitativas são
possibilitadas, fala-se em “explosão tecnológica”. Cada “era tecnológica” é portadora de uma
inevitável dualidade: “A era tecnológica presente, pelo fato de ser, já representa negação de si e o
prenúncio da era tecnológica seguinte” (ibid, p. 48).
5
Por falar em escuridão, Karl Sagan (2006) considera a ciência e tecnologia positivas (“a
luz”), pois a divulgação de seu conhecimento colabora para a superação de explicações míticas e
ficções (“a escuridão”).
3
Outro exemplo de ênfase no progresso foi o projeto de engenharia contemporânea
(século XX) da Ferrovia Madeira-Mamoré, que conforme Hardman (1991) era uma
promessa de transformação da vida “na selva”, dessa “região sem história6” através da
técnica. De acordo com o autor, a presença dos símbolos da sociedade industrial provocava
o sentimento do sublime, que já era procurado nas grandes obras do século XIX: “Na cidade
transfigurada do século XIX, as estações e as linhas ferroviárias, os amplos mercados e
novas avenidas, os jardins botânicos, o palácio cristal em todas as suas réplicas foram
alguns dos principais cenários dessa procura”. (HARDMAN, 1991, p. 99).
O conceito do sublime era o “infinito artificial”. De acordo com Hardman (1991):
[...] Edmund Burke, em seu ensaio filosófico sobre o sublime e o belo (17579), já enunciava, ao estudar a natureza desses objetos e situações capazes
de produzir um estado especial em que se imbricam medo e prazer: a
obscuridade e a solitude; a vastidão e o infinito; o imprevisto e a
intermitência. Ao mesmo tempo, ao pesquisar como o sublime é produzido,
fixa-se nas maneiras em que se forja o infinito artificial, enfatizando os
efeitos da extensão, sucessão e uniformidade dos objetos, além de
sublinhar a importância das grandes dimensões (comprimento, altura ou
profundidade) como causas eficientes daquele sentimento. (HARDMAN,
1991, p. 99).
A questão da grande dimensão (já apontada por Burke no século XVIII) foi uma das
ênfases em relação ao projeto da ferrovia Madeira-Mamoré. Difundiu-se a ideia de que
somente o desenvolvimento tecnológico poderia integrar regiões pouco desenvolvidas à
modernidade e, de modo especial, as grandes obras de engenharia. Porém, sabe-se que
até hoje essa ferrovia permanece como obra fantasma na selva amazônica.
A exaltação das descobertas mecânicas por Francis Bacon também é ilustrativa da
ideia de progresso e do sublime, já no século XVII: exaltação da imprensa (considerada
importante para a literatura), da pólvora (para a guerra) e do ímã (para a navegação)7.
3. Exposições Universais e Passagens do século XIX: a divulgação dos avanços
da indústria
O final do século XIX esteve marcado por uma atmosfera de prosperidade, utopias e
luxo, por isso duas expressões remetem àquele momento: fin de siècle e belle époque. De
acordo com Costa & Schwarcz: “[...] certas verdades religiosas e a lealdade à pátria não
6
Segundo Hardmann (1991) essa expressão foi utilizada pelo engenheiro Euclides da Cunha,
que estava envolvido na obra.
7
Conforme Novum Organum (1620) apud Debus (1996).
4
haviam sido testadas por guerras mundiais, pela revolução comunista ou pelo encolhimento
do mundo alterado de forma radical pelas viagens aéreas e pelos meios de transporte de
massa” (COSTA; SCHWARCZ, 2000, p. 15).
Segundo Pesavento (1997) as Exposições Universais foram fenômenos típicos do
século XIX que visavam o contato entre produtores e consumidores para divulgar ou
anunciar a existência de novos produtos e ampliar as vendas. Conforme Barbuy (1999) elas
difundiam a ideia do progresso industrial/material como caminho de felicidade. Estavam,
portanto, estritamente vinculadas ao desenvolvimento industrial:
Tais exposições estariam associadas, basicamente, ao desenvolvimento
industrial, exibindo máquinas e produtos resultantes desta atividade. Mesmo
que reunissem entre os itens expostos elementos que nada tinham a ver
com esta atividade produtiva, sem dúvida alguma as grandes vedettes das
exposições universais foram sempre as máquinas, os novos inventos e os
produtos recém-saídos das fábricas, cujo consumo se busca difundir e
ampliar mundialmente. (PESAVENTO, 1997, p. 43)
Todavia, a autora ressalta que o caráter de feira de mercadorias e da expressa
intenção de obtenção de lucros constitui uma visão parcial das referidas Exposições. Elas
teriam também motivações ideológicas, expressando os desejos da classe burguesa em
ascensão e “criando uma fantasmagoria da realidade”, ou seja, “uma imagem da realidade
que oculta as verdadeiras relações entre o homem e as coisas” (PESAVENTO, 1997, p.
45)8. Deste modo, tiveram função didático-pedagógica clara de promover a adesão ao
ideário burguês. Além disso, as exposições eram também um espaço de lazer, diversão e
de espetáculo, imagem que permaneceu no imaginário social, bem como havia
reivindicação de autoria operária em relação aos grandes feitos da indústria. Também para
Benjamin (2006): “As exposições universais idealizam o valor de troca das mercadorias.
Criam um quadro no qual seu valor de uso passa para o segundo plano. Inauguram uma
fantasmagoria a que o homem se entrega para divertir-se. A indústria de entretenimento
facilita isso elevando-o ao nível da mercadoria. Ele se abandona às suas manipulações ao
desfrutar a sua própria alienação e a dos outros” (BENJAMIN, 2006, p. 44).
Tais exposições tinham, segundo Pesavento (op. cit.), o propósito de divulgação
científica, que consiste num processo pedagógico que não é neutro. A divulgação científica
referida tinha como ideias-chave o tripé progresso, técnica e razão. Na perspectiva positiva
da época, a noção de progresso surgia do pensamento racional que produziu a ciência, a
qual, por sua vez, seria aplicada à técnica, originando novas máquinas, dispositivos e
inventos que beneficiariam a todos na medida do seu merecimento:
8
A autora se baseia em estudos de Walter Benjamin e Karl Marx.
5
Pelos olhos da burguesia, o progresso era desejável, o desenvolvimento da
técnica produzia um mundo melhor e o futuro se apresentava como a
concretização da sociedade do bem-estar. Sem dúvida alguma, o
progresso técnico fora obtido pelo pensamento racional. O personagemsímbolo da racionalidade era também, sem sombra de discussão, a
burguesia triunfante que, com seu gênio criativo e sua racionalidade, fora
capaz de „produzir‟ a moderna sociedade industrial. Desenvolvia-se assim
uma particular forma de concepção da razão libertadora: a racionalidade
fora capaz de romper as barreiras da ignorância e produzir a ciência. O
conhecimento científico, por sua vez, aplicado à técnica, concebera as
máquinas e os novos surpreendentes inventos. (PESAVENTO, 1997, p.
47, grifos nossos).
A partir desse texto, e especialmente a partir dos trechos grifados, nota-se que a
perspectiva burguesa apontada por Pesavento corresponde ao que conhecemos como visão
linear da C&T, que se resume na equação do modelo linear de desenvolvimento: “+ ciência=
+ tecnologia = + riqueza = +bem-estar social” (BAZZO, LINSINGEN; TEIXEIRA, 2003, p.
120) e caracteriza-se como parte da teoria instrumentalista e substantiva de tecnologia.
De acordo com Feenberg (2002/2008) há dois tipos principais de teorias
estabelecidas sobre a tecnologia: as instrumentalistas e as substantivas. A primeira é a
visão mais amplamente aceita de tecnologia e baseia-se na ideia (de senso comum) de que
as tecnologias são ferramentas que podem ser empregadas em qualquer contexto social,
que servem para valores e propósitos estabelecidos em esferas sociais como a política e a
cultura, e enquanto instrumentalidade são neutras (indiferentes) aos fins a que servem,
devido ao seu caráter “racional” e “universal”. A segunda, conhecida pelos escritos de
Jaques Ellul e Martin Heidegger, concebe a tecnologia como um novo sistema cultural
autônomo que rejeita outros valores e entende que o progresso é inevitável (a menos que se
retorne à tradição), causando um impacto “substantivo”, ou seja, significativo no modo de
vida.
Com relação a essas duas teorias, Feenberg (2002/2008) assim se manifesta:
Apesar de suas diferenças, as teorias instrumental e substantiva
compartilham uma atitude de „pegar ou largar‟ para com a tecnologia. De
um lado, se a tecnologia é uma mera instrumentalidade, indiferente aos
valores, então seu design não está em questão no debate político, apenas a
extensão e a eficiência de sua aplicação. De outro lado, se a tecnologia é o
veículo de uma cultura de dominação, então nós estamos condenados a
seguir seus avanços em direção a distopia ou regressar a um modo mais
primitivo de vida. Em nenhum dos casos nós podemos mudá-la: em ambas
teorias, a tecnologia é o destino. A razão, nesta forma tecnológica, está
além da intervenção ou reparo humano. (FEENBERG, 2002/2008, p. 143).
Em virtude desse modo de compreender a tecnologia como “destino”, as propostas
de reforma da tecnologia elaboradas com base nessas teorias não sugerem transformações,
6
mas soluções morais como “pagar o preço” pela rejeição ao emprego de certas tecnologias,
por exemplo, adotar um modo mais natural de vida substituindo o uso do automóvel pela
bicicleta, pela caminhada ou pelo transporte coletivo.
Essa visão continua presente nos discursos sobre C&T, como será explicitado mais
adiante a respeito da divulgação científica sobre nanotecnologia. Cabe relembrar aqui que,
conforme Feenberg (2002/2008), a racionalidade técnica traz intrínseca uma racionalidade
política9. A ideia de progresso associada à expectativa de uma sociedade de bem-estar faz
parte de uma perspectiva positivista da tecnologia, pois no plano objetivo se nota que o
bem-estar não é universal: as classes sociais se relacionam de modo diverso com a
tecnologia, e acessam tecnologias diferentes em razão de suas distintas necessidades e
condições de acesso.
Assim, a teoria crítica da tecnologia atribui um papel importante aos valores sociais
no processo de design, para além do mero uso dos sistemas técnicos. Opõe-se à
neutralidade da tecnologia e argumenta que a “racionalidade técnica” é uma “racionalidade
política”, pois os interesses sociais dominantes estão presentes no processo de design das
máquinas e ferramentas “racionais”. Por isso - argumenta a teoria crítica - as escolhas
tecnológicas não são autônomas; elas são resultado do jogo de interesses envolvidos,
alternativas históricas influenciadas pelo nível de cultura de uma sociedade (FEENBERG,
2002/2008; MARCUSE, 1982).
9
As ideias de Feenberg (2002/2008) se enraízam na recusa da neutralidade da C&T proposta
por Marcuse (1982). Este também considera que o universo tecnológico é político: "A racionalidade
tecnológica ter-se-á tornado racionalidade política" (MARCUSE, 1982, p. 19). Para ele, a sociedade
industrial desenvolvida é um sistema de dominação, pois prevalecem os interesses dominantes na
escolha entre alternativas tecnológicas. Argumenta que a C&T podem se transformar em um
instrumento de controle social eficaz, sobretudo pela transformação do conhecimento científico em
fonte de valorização do capital, através do processo produtivo e da instituição de novas formas de
degradação e controle do trabalho. Nesse sentido, analisa o “transplante de necessidades sociais
para individuais”, ou seja, como as relações sociais tornam-se parte do agir e sentir individual, bem
como reflete sobre “o grau com que essa civilização transforma o mundo objetivo numa extensão da
mente e do corpo humanos” (ibid, p. 29). Afirma que o capitalismo exerce o controle social mediante a
criação de novas necessidades e pelo modo como penetra na subjetividade humana, ou seja, pela
formação de um padrão de pensamento e comportamento unidimensionais. Questiona a capacidade
do indivíduo em ter noção de sua alienação diante do fato de que: “As criaturas se reconhecem em
suas mercadorias; encontram sua alma em seu automóvel, hi-fi, casa em patamares, utensílios de
cozinha” (ibid, p. 29). Nessa medida não é possível dizer que a livre escolha de mercadorias e
serviços significa o gozo de liberdade de escolha, pois “a reprodução espontânea, pelo indivíduo, de
necessidades superimpostas não estabelece autonomia; apenas testemunha a eficácia dos controles”
(ibid, p. 28).
Feenberg desenvolve idéias do Marcuse, entretanto, está em desacordo com o “pessimismo
tecnológico” deste, e enxerga possibilidades de inserir no desenho da tecnologia elementos
socialmente relevantes, a partir de uma democratização da tecnologia. O “pessimismo tecnológico” é
interpretado por Feenberg como uma concepção determinista da racionalidade tecnológica, pois
sugere que não há oposição humana possível, visto que a tecnologia domina tudo (MARICONDA;
MOLINA, 2009). Esse pensamento pode ser compreendido como substantivista ou como distópico (a
antítese da utopia).
7
Ainda no que diz respeito às Exposições Universais, a de 1900 foi a “festa
eletricidade”, representativa da ideia de progresso, estando a Torre Eiffel iluminada por 12
mil lâmpadas e uma estrela em seu topo (símbolo das inovações tecnológicas).
Além da eletricidade, os outros objetos prediletos eram a velocidade e o transporte
de massa, que modificariam as noções de espaço. A luz e a velocidade simbolizavam um
século prodigioso em termos científicos e econômicos. Já eram difundidos o bonde e a
ferrovia, e em 1900 foi inaugurado o metrô de Paris. Também começaram a fazer parte do
cotidiano europeu e norteamericano os automóveis movidos a gasolina (“brinquedos de
ricos”, “máquinas do terror” para alguns) e foram experimentados transportes aéreos
(dirigíveis). As comunicações foram potencializadas pelas ondas de rádio e pelo telégrafo.
Surgiu a tecnologia de raios-X, dentre outras10.
Todas essas novas tecnologias, entretanto, apesar da aprovação levada a cabo pela
Exposição Universal, assustavam, geravam ceticismo e reprovações, algumas vezes pelos
próprios inventores: “Não era fácil absorver tantas novidades e, muito menos, tomar partido
quanto a elas” (COSTA; SCHWARCZ, 2000, p. 19). Os sentimentos a respeito das novas
tecnologias eram essencialmente ambíguos, apesar do investimento na divulgação das
grandes realizações e das certezas da ciência: “De um lado, a certeza de que se controlava
tudo – a produção, a guerra, a natureza, os homens, a doença e a criminalidade. De outro, o
medo do descontrole do moderno e das conseqüências dessas invenções contínuas e sem
aviso prévio” (ibid, p. 147)11.
Segundo Benjamin (2006) as Exposições Universais, assim como as Passagens12,
exerceram uma função de “fantasmagoria” que parece exercer a função de transfiguração:
com seu “brilho” ocultam que as novas possibilidades técnicas não foram acompanhadas de
nova ordem social; transferiram-se para as mercadorias os desejos mais profundos da alma,
com isso desfocando da possibilidade de transformação social. No caráter ilusório do novo
10
Para o desenvolvimento da ciência, foram criadas as leis de 1830 e 1882 que concediam
privilégios para quem descobrisse algum objeto novo ou contribuísse para o aprimoramento da
indústria. Os inventos eram registrados em arquivos públicos, bibliotecas, revistas, liceus de artes e
ofícios, etc. Milhares de inventos foram registrados, mas grande parte dos protótipos não funcionava.
Tais modelos caracterizavam-se como idealizações, como avanços projetados, mas nem sempre
realizáveis: “Mais do que plantas e projetos isolados, esses desenhos representam a utopia de um
momento que sonhava e planejava outro” (COSTA; SCHWARCZ, 2000, p. 147).
11
A noção de “duplo” ou de ambivalência fora expressa, por exemplo, na obra “O grito”, de
Edward Münch (1893).
12
As Passagens são espécies de galerias da primeira metade do século XIX em Paris, na
França, também conhecidas como “avós dos shopping-centers”. Eram passagens construídas entre
imóveis, cobertas por vidro sustentado por estruturas metálicas onde se instalava o comércio de luxo,
como as precursoras das primeiras lojas de departamentos, tornando-se locais de passeio e
encontro.
8
completava-se a ideia do avanço científico como progresso. Porém, o autor reconheceu que
as mesmas “imagens mágicas do século”, “imagens de desejo” ou “resquícios de um mundo
de sonhos”, expressas pelas Passagens e seus interiores, bem como pelas Exposições
Universais, encerravam também o “despertar histórico”, o despertar para o novo e, por
conseguinte, o fim do “velho”. Essa análise de “fantasmagoria” difere da análise de Marx
sobre o fetichismo como algo objetivo: uma forma social existente entre os homens assume
a forma de relação entre as coisas, ou seja, a relação social de troca de mercadorias com
base no respectivo valor de trabalho humano abstrato nela investido assume
imaginariamente a forma de troca de coisas materiais, concretas, físicas, úteis. Benjamin
desenvolveu o conceito de uma “fisiognomonia materialista” que poderia ser um
complemento da teoria marxista: a partir da observação das passagens ele procurava
compreender “a expressão da economia na cultura”, ou seja, a cultura (superestrutura) não
simplesmente como uma determinação da infraestrutura, mas como expressão, no sentido
de não ser um simples reflexo da economia.
A seguir, analisaremos a divulgação científica sobre nanotecnologia na mídia
impressa e televisiva, com especial atenção às manifestações da visão de avanço
tecnológico como progresso e às narrativas veiculadas para obter aderência do público aos
propósitos defendidos pelos cientistas.
4. Divulgação científica sobre nanotecnologia
Estudos recentes sobre a divulgação científica na mídia indicam a prevalência de
uma categoria comum que já se manifestava nas Exposições Universais do século XIX, a
ênfase na concepção de avanço científico-tecnológico como progresso. Podemos citar
dentre tais estudos: a pesquisa de Invernizzi & Cavichiolo (2009) que trata da informação
sobre nanotecnologia que chegou ao público, no período de 2002 a 2007, a partir do Jornal
Folha de S. Paulo, Revistas Semanais Veja, Isto É e Época13, e revistas de divulgação
científica Galileu e Super Interessante; a análise de Körbes (2009) sobre a série de
reportagens “Universo Nano”, que foi ao ar pelo Jornal Bom Dia Brasil, da Rede Globo de
televisão, no período de 01 a 04 de setembro de 2009. Notamos, todavia, algumas
abordagens que relativizam essa concepção (de progresso), em especial no jornal Folha de
13
No jornal e nas revistas semanais a pesquisa se concentrou nas seções de ciência e
tecnologia.
9
S. Paulo e nas revistas de divulgação científica, mas estas estão totalmente ausentes no
caso da série de reportagens televisivas sobre nanotecnologia.
A concepção do avanço ilimitado da C&T está interrelacionada com a visão linear de
seu desenvolvimento, bem como à visão do público como destituído de saberes prévios a
respeito do que é divulgado, quase como analfabeto científico. A primeira visão surge
associada com novos campos científico-tecnológicos, numa tentativa de legitimar o novo
campo de pesquisa perante a sociedade. A última concebe o público como sujeito a ser
informado e a ser convencido (com promessas) em vez de se proporcionar uma visão mais
equilibrada que melhoraria o posicionamento da pessoa como consumidor, trabalhador etc..
Essas duas visões foram bastante evidentes na divulgação sobre nanotecnologia e são
apresentadas a seguir.
4.1 Promessas da nanotecnologia, narrativas de progresso tecnológico e
determinismo tecnológico
É comum nos meios de comunicação a associação de novas tecnologias com o
discurso de Era ou Revolução Tecnológica. Muitas enunciações deste tipo se referem à
nanotecnologia14. A apresentação dos avanços da nanociência e nanotecnologia vinculada a
visões de progresso científico-tecnológico em artigos e reportagens se dá por meio de
metáforas, sons, figuras, fotografias ou artefatos de caráter futurista, e comparações da
pesquisa com a ficção científica15. Essas visões de futuro portadoras de promessas surgem
e se difundem entre cientistas e formuladores de políticas de pesquisa. A mídia - que tem
como uma de suas principais fontes de informação a comunidade científica e suas
14
Nanociência é o estudo dos princípios de moléculas e estruturas com dimensão de pelo
menos entre 1 e 100 nanômetros (1 nanômetro equivale a 1/1.000.000.000 de metro, ou seja, um
-9
bilionésimo de metro ou 10 ). Essas estruturas são conhecidas como nanoestruturas (as menores
estruturas sólidas possíveis de se fazer no atual estágio de desenvolvimento da ciência). A
nanotecnologia é a aplicação dessas nanoestruturas em dispositivos de nanoescala. Na nanoescala,
as propriedades dos materiais e máquinas dependem do seu tamanho como em nenhuma outra
escala, por exemplo, o alumínio pode entrar em combustão e servir como combustível para foguetes
(RATNER; RATNER, 2002). Pelas suas propriedades diferenciadas, as nanotecnologias podem ter
implicações desconhecidas na saúde, no meio ambiente e na sociedade.
15
É recorrente a comparação com o filme “Viagem Insólita” (1987). No filme, o piloto Tuck
(Dennis Quaid) participa de um projeto secreto de miniaturização que injetará sua nave dentro do
corpo de um coelho. Porém, no dia do experimento, traficantes de tecnologia causam um tumulto e o
veículo acaba sendo introduzido, acidentalmente, dentro do corpo do hipocondríaco Jack (Martin
Short). Juntos, os dois perseguem os vilões, tentam recuperar o chip de aumento e garantir que Tuck
volte ao tamanho inicial antes que seu oxigênio acabe. Para isso os dois contam com a ajuda de
Lydia (Meg Ryan) que é namorada do piloto. A obra foi inspirada no clássico da ficção científica
''Viagem Fantástica'' (1966).
10
produções - divulga essas visões ao público16. Elas se orientam para demarcar e legitimar o
novo campo de pesquisa, assegurar seu financiamento, obter apoio público e influenciar o
curso de desenvolvimento das trajetórias tecnológicas (INVERNIZZI; CAVICHIOLO, 2009).
Essa relação ciência-mídia-público também marcou recentemente a divulgação sobre
reprodução assistida e seus desdobramentos na Folha de S. Paulo, que destacou a
polêmica das pesquisas com células-tronco embrionárias (KÖRBES, 2008).
Os relatos sobre a suposição de progresso da ciência caracterizam a noção de
abismo entre ciência e público (BENSAUDE-VINCENT, 2001). Essa noção é característica
do modelo de déficit de comunicação da ciência. Segundo esse modelo, o público carece de
informação e o papel da divulgação é suprir essa carência. Concebe o público como
analfabeto científico, destituído de conhecimentos e valores, e receptor passivo da
informação. (LOZANO, 2005; CONTIER; NAVAS; MARANDINO, 2007; KÖRBES, 2008).
A pesquisa sobre nanotecnologia na mídia impressa constatou visões geradoras de
críticas ao progresso, com traços de superação do modelo de déficit, mas estas tiveram
menos atenção do que as visões otimistas. Já nas reportagens da televisão o debate de
versões contraditórias esteve totalmente ausente, motivo pelo qual centramos o presente
artigo na análise das visões que associam o avanço tecnológico unicamente com benefícios
para a sociedade.
As seções de divulgação científica na mídia analisada têm sido espaços privilegiados
para o anúncio de novidades, de novos produtos, mesmo que geralmente sem anunciar a
empresa fabricante ou vendedora. A série “Universo Nano”, por exemplo, citou produtos
disponíveis no mercado: a) no mercado nacional - curativo inteligente – que impede a
infecção por bactérias; difusores aromáticos – destinados a criar “fantasias olfativas” para
aumentar as vendas; embalagens que prolongam a vida útil do alimento; secador de cabelos
que filtra o ar; nanopartículas magnéticas que jogadas sobre o óleo derramado na água
podem ser retiradas da água junto com o óleo com a ajuda de um ímã (DUARTE; ARAÚJO,
02 set. 2009); b) mercado internacional, sobretudo do Japão - televisão com espessura
menor que de uma moeda; umidificador que limpa o rosto e previne envelhecimento;
aparelho de barbear que corta o pêlo mais profundamente; creme dental que aumenta
proteção contra cáries; comprimido-câmera e sensores para diagnóstico de câncer, etc.
(KOVALICK; SUZUKI, 04 set. 2009).
Nas revistas e no Jornal Folha de S. Paulo, inúmeros outros produtos foram
mencionados, como automóveis econômicos com pinturas que se autopreservam, vidros
16
Há carência de contraposição de visões de cientistas ou de contraposição dessas visões às
de outros atores.
11
que limpam sozinhos e mudam de cor conforme o ambiente, tecidos antibacterianos que
não precisam ser lavados nem passados, roupas que poderiam liberar doses de remédios
para diabetes ou anti-stress, biquínis sensíveis ao calor (que mudam de cor quando a
exposição ao Sol começa a passar do recomendado), etc. (INVERNIZZI; CAVICHIOLO,
2009).
A apresentação de produtos e materiais mais eficientes e inteligentes foi a principal
promessa difundida no conjunto de textos e reportagens analisadas, ou seja, foi o principal
benefício da nanotecnologia anunciado tanto na televisão, quanto no jornal e nas revistas.
Essa promessa de tom futurista é resultado da exploração das propriedades que a matéria
exibe em nanoescala e apela para uma vida cotidiana facilitada.
Em segundo lugar, no conjunto dos meios analisados, está a promessa da saúde e
qualidade de vida. A visão de nanorobôs que monitoram o corpo viajando pela corrente
sanguínea, detectando enfermidades antes que se manifestem e liberando medicamentos
para as células afetadas, foi a visão de futuro mais citada nos artigos da mídia impressa
analisada (INVERNIZZI; CAVICHIOLO, 2009). Na mídia televisiva, os nanorobôs também
tiveram destaque, num misto de visão de futuro e de realidade. A reportagem de Losekann
& Gilz (03 set. 2009) destaca os planos dos “inventores”17 ingleses em utilizar nanorobôs
(introduzidos por via oral ou intravenosa) para destruir células cancerosas ou infectadas por
vírus, bem como regenerar tecidos. Nessa reportagem, os benefícios para a saúde humana
parecem estar apenas no plano das promessas. Já segundo Kovalick & Suzuki (04 set.
2009), em um hospital de Tóquio já é utilizado um comprimido-câmera que permite
diagnosticar alguns tipos de câncer que passariam despercebidos nos exames tradicionais,
mas esta reportagem não aponta o uso de nanorobôs para o tratamento da doença.
Segundo a primeira dessas reportagens, os cientistas prevêem, em tese, a cura da AIDS,
doença para a qual nem vacina existe ainda, de modo que dá para se ter uma dimensão da
extensão da promessa. Aliás, a promessa está no próprio título: “Nanotecnologia é
esperança na cura de doenças como Aids e câncer”18.
De acordo com Marx & Smith (1996) é comum o título de um texto midiático
apresentar a ideia de que o avanço tecnológico tem um crescimento constante e um poder
quase irresistível para determinar o curso dos acontecimentos19. Em relação ao modelo de
17
Com todo respeito aos inventores, a invenção não é algo como uma “pronta inspiração”,
mas um trabalho essencialmente coletivo. (MacKenzie; Wajcmann, 1985/1996).
18
Uma frase de efeito referente ao mesmo conteúdo foi empregada para apresentar a
nanotecnologia na Revista Época: “esperança para o tratamento de enfermidades devastadoras
como câncer e Aids”. (Época, Nº 345, 27 dez. 2004, p. 68, apud Invernizzi; Cavichiolo, 2009, p. 154).
19
Os autores caracterizam este tipo de pensamento como determinista e, mais
especificamente, como determinismo hard”, que é para os otimistas a realização do progresso como
12
narrativa empregado nas matérias, este frequentemente é do tipo que Marx & Smith (1996)
denominam “modelo do antes-e-depois” (before-and-after model). São narrativas que
atribuem poder à tecnologia como agente autônomo da história; quase-fábulas baseadas no
modelo do “antes-e-depois” de certos desenvolvimentos tecnológicos20. Vejamos um
exemplo: os nanorobôs poderiam “agir onde medicamentos convencionais – baseados
somente em química – não conseguem ser eficientes ou são muito demorados”.
(LOSEKANN; GILZ, 03 set. 2009).
O sentimento do poder da tecnologia como agente transformador da sociedade
ocupa um lugar chave na cultura moderna. As pessoas se habituaram a associar o avanço
da tecnologia com mudanças de estilo de vida aparentemente determinadas pelas novas
tecnologias (computador, internet, televisão, anticoncepcionais, antibióticos, e agora, em
potencial, os nanorobôs)21. A série “Universo Nano” mostra como a nanotecnologia começa
a fazer parte da vida cotidiana. A reportagem de Duarte & Araújo (01 set. 2009) intitulada
“Nanotecnologia transforma vidas sem que se perceba” não é, no entanto, a que melhor dá
conta disso, limitando-se a dizer que: “Ela [a nanotecnologia] salva vidas, faz música,
perfuma, deixa até o cabelo mais bonito”. O subtítulo da reportagem (“Quando falamos em
nano, estamos falando de uma medida que significa um bilionésimo do metro”) dá uma ideia
mais exata do que a reportagem aborda – a definição de nanotecnologia. No mais, ela
refere-se predominantemente à transformação do trabalho no laboratório, ou seja, às
transformações na pesquisa científica mediante a utilização de novos instrumentos, como o
microscópio de força atômica ou o microscópio de transmissão em varredura. A explicação
do processo de produção do conhecimento (seus procedimentos, técnicas e instrumentos) é
um traço do modelo de déficit de comunicação da ciência (LOZANO, 2005).
Para MacKenzie e Wajcman (1985/1996), a noção difundida pela mídia de que as
tecnologias mudam (por causa do avanço científico ou segundo sua própria lógica) e então
causam efeitos na sociedade remete ao que se chama determinismo tecnológico. Essa
resultado de livres escolhas e para os pessimistas, um produto da necessidade e um pesadelo
totalitário (MARX; SMITH, 1996).
20
Os autores citam como exemplos as narrativas: 1) o antes e depois da bússola e de outros
instrumentos de navegação (antes, os europeus conheceram pouco ou nada do Ocidente; e depois,
Colombo e seus companheiros puderam cruzar o Atlântico, conhecer e conquistar rapidamente um
novo mundo); 2) a narrativa de que o desenvolvimento da mídia impressa seria possível causa da
Reforma (antes, poucas pessoas além do clero podiam ler a Bíblia e, depois, muitos).
21
As notícias que divulgam os novos progressos da ciência e tecnologia nos telejornais, nos
jornais impressos e nas revistas costumam ser elaboradas de modo que pessoas de distintas classes
sociais se sintam beneficiadas pelos “avanços”. Marcuse (1982) certamente chamaria isso de
imposição da “razão” da civilização industrial. Conforme ele, a liberdade poderia ser conquistada pela
consciência da “servidão” à razão dominante, mas o surgimento dessa consciência é limitado pelas
necessidades sociais introjetadas nos indivíduos pela publicidade.
13
concepção contém uma verdade parcial, pois a tecnologia também está relacionada ao
modo pelo qual vivemos em sociedade. Segundo os autores, o determinismo tecnológico é
uma simplificação excessiva das relações entre tecnologia e sociedade. Os aspectos
sociais, políticos, econômicos e culturais da mudança tecnológica não são simples, pelo
contrário, são complexos e contingentes. Isso não implica em um determinismo social22 ou
mesmo em dizer que há efeitos não sociais da tecnologia.
A teoria do determinismo tecnológico promove uma atitude passiva em relação às
mudanças tecnológicas, induzindo-nos a pensar em como devemos nos adaptar às referidas
mudanças e não em como direcioná-la. No entanto, o “progresso tecnológico” é um aspecto
chave sobre o qual a sociedade necessita discutir publicamente e realizar escolhas de
caráter político (ibid). A utilização de nanorobôs, por exemplo, poderia ser amplamente
discutida. Para tanto, uma eficaz compreensão política da tecnologia e uma sistemática
tentativa para que o desenvolvimento tecnológico traga benefícios, requer uma
compreensão da mudança tecnológica23.
A terceira promessa é a de desenvolvimento econômico e competitividade, sendo a
nanotecnologia considerada um diferencial competitivo para as empresas. Segundo Kovalick
& Suzuki (04 set. 2009), no Japão: “O nano já está bem à mostra, para atrair o consumidor.
Virou uma obsessão para empresas japonesas, um jeito de dizer „o nosso produto faz coisas
que o da concorrência não faz‟”. Se a promessa de competitividade é realizável, ao menos
para as empresas que focam no consumidor de alto poder aquisitivo, o mesmo não é
verdadeiro para o desenvolvimento econômico (ao menos não numa relação de causalidade
e efeito direta). Cabe ressaltar que desenvolvimento econômico (elevação da qualidade de
vida) não é o mesmo que crescimento econômico (elevação da renda de um país). O
crescimento econômico pode ocorrer sem desenvolvimento, especialmente nos países
22
Segundo Marx & Smith (1996), o “determinismo soft” considera a história da tecnologia
como história das relações humanas; a tecnologia como produto social e com grande poder de
influência sobre as transformações sociais.
23
A compreensão de que os cientistas produzem conhecimento sobre a realidade e essas
são aplicadas em coisas úteis é subjacente ao determinismo tecnológico. Circulam algumas noções
errôneas sobre a noção da tecnologia como aplicação da descoberta científica, dentre elas: 1) a
noção de “descoberta” - ignora que os cientistas estão em constante diálogo com o mundo material,
constroem esquemas conceituais, tradições experimentais, modelos, metáforas e modos de
compreender o mundo, etc.; 2) a noção de que ciência e tecnologia sempre foram atividades
intimamente ligadas e, no contexto da conexão crescente entre ciência e tecnologia (desde a
segunda metade do século XIX), o erro recorrente em se considerar a tecnologia como dependente
unidimensionalmente da ciência. A tecnologia, como conhecimento e artefato, também contribui para
a ciência (MARX; SMITH, 1996). Um exemplo é o desenvolvimento do microscópio de varredura de
efeito túnel e o microscópio de força atômica que possibilitou a manipulação de estruturas atômicas e
moleculares e, portanto, o desenvolvimento da nanociência e nanotecnologia (REISING, 2009) e que
foi citado, por exemplo, pela primeira reportagem da série “Universo Nano”.
14
subdesenvolvidos24. Se a maior renda gerada na economia for mal distribuída, a maioria da
população não se beneficia desse crescimento. Além do mais, a melhoria tecnológica é
apenas um dos fatores que impactam no crescimento.
Por último, a quarta promessa é a de preservação do meio ambiente (INVERNIZZI;
CAVICHIOLO, 2009; KÖRBES, 2009). Os materiais inteligentes poderiam resolver algumas
ameaças ao meio ambiente: “O óleo se derrama sobre a água. Como retirá-lo? Basta jogar
em cima da mancha de óleo nanopartículas magnéticas. Em seguida, com a ajuda de um
ímã, todo o óleo e as nanopartículas são retiradas da água rapidamente” (DUARTE;
ARAÚJO, 02 set. 2009). Segundo Invernizzi & Cavichiolo (2009), o título de uma matéria da
Folha de S. Paulo de 18 de maio de 2002 - “Nanoímãs contêm derramamento de petróleo” apresentou como realidade uma investigação que segundo o conteúdo do artigo ainda
estava em fase de conclusão. A ambiguidade temporal dessa matéria, divulgada dias após o
derramamento de petróleo em Angra dos Reis, pode ser um recurso para chamar a atenção
do leitor e também a transposição para a mídia de visões desencadeadas no campo
científico sobre as promessas das nanotecnologias.
Esse aspecto está relacionado com as fontes consultadas pelos jornalistas. Na série
“Universo Nano”, por exemplo, foram consultadas fontes nacionais nas duas primeiras
reportagens: dois terços de cientistas de universidades (Unicamp e USP) e/ou de
laboratórios (LNLS – Laboratório Nacional de Luz Síncroton – e Laboratório de
Nanotecnologia da USP), pertencentes às áreas de Física, Química e Engenharia Genética,
e um terço de empresas (não especificadas). Nas duas últimas reportagens foram
consultados
cientistas
estrangeiros
(cientistas
japoneses
e
de
Laboratório
de
Desenvolvimento Nanotecnológico de Londres) e empresas (japonesas não especificadas).
(KÖRBES, 2009). Já as matérias sobre nanotecnologia na Folha de S. Paulo indicam que
foram consultados predominantemente cientistas estrangeiros e, em segundo lugar,
cientistas nacionais.
As revistas, por sua vez, consultaram fontes mais diversificadas: além de cientistas e
empresas, consultaram ONGs (Organizações Não-Governamentais), ativistas e políticos
que expressaram opiniões sobre a nanotecnologia (INVERNIZZI; CAVICHIOLO, 2009). Ou
seja, apesar da prevalência da noção de progresso tecnológico, que tem a ver com a
concepção de que a ciência não tem limites, há espaços (mesmo que poucos) para opiniões
divergentes, assim como nas exposições universais do século XIX.
24
Para o aprofundamento sobre a relação entre desenvolvimento e subdesenvolvimento,
sugerimos consulta às obras de Celso Furtado. Para uma primeira aproximação, pode-se ler
Szmreczányi (2001).
15
5. Conclusões
A ideia de progresso é constitutiva da imagem de ciência moderna desde as suas
origens. Surge associada com as chamadas “revoluções científicas” num movimento de
oposição ao pensamento da Idade Média. Está interrelacionada à visão linear de
desenvolvimento da C&T, que associa o progresso com o bem-estar social, concebendo a
C&T descoladas das reais e complexas relações sociais, culturais, políticas e econômicas.
Essa visão integra a teoria instrumentalista e substantiva da tecnologia, ao que Feenberg
(2002/2008) contrapõe a teoria crítica.
A recorrência na mídia da noção de que a nanotecnologia transforma a vida das
pessoas é um traço do determinismo tecnológico. Essa abordagem propicia uma atitude de
passividade do público em relação à nanotecnologia, minimizando o papel das pessoas
como agentes históricos e atribuindo à tecnologia a autoria do destino. As trajetórias
tecnológicas, no entanto, podem ser influenciadas por escolhas políticas (feitas por
humanos) entre um conjunto de opções possibilitadas pelo conhecimento científicotecnológico disponível.
Concluímos que a ênfase na comunicação dos progressos tecnológicos parece ser,
de um lado, parte da aura mistificadora que envolve os cientistas e que se manifesta pelo
modelo de déficit e, de outro lado, parte do maravilhamento inerente ao processo de
emancipação do homem em relação à natureza. O progresso se apresenta como as duas
faces de uma moeda ou como a unidade de contrários: como mistificação da C&T e como
libertação de explicações místicas e ficcionais.
A divulgação das novas realizações da C&T nas Exposições Universais e Passagens
do século XIX e a divulgação científica na mídia impressa e televisiva sobre nanotecnologia
no século XXI guardam uma relação de semelhança no sentido de enfatizarem o avanço
científico-tecnológico como progresso (que, por extensão, beneficiaria a humanidade),
permitindo a reflexão de que “a ideologia da sociedade industrial” se manifesta de formas
diferentes ao longo do tempo, mas com o mesmo propósito de obter adesão pública aos
seus interesses. O questionamento do pensamento hegemônico, embora presente na mídia
impressa e totalmente ausente na série de reportagens da mídia televisiva, não constituiu
foco desse artigo. No entanto, vale destacar que análises sobre controvérsias e debates a
respeito de riscos e implicações da nanotecnologia na informação que chega ao público são
desenvolvidas no artigo de Invernizzi & Cavichiolo (2009).
Por fim, a principal conclusão é a recorrência do discurso do progresso e do
determinismo apesar dos avanços, tanto no campo acadêmico como social, no sentido de
questionar essas ideias. Os Estudos Sociais da C&T têm insistido em concepções segundo
16
as quais a C&T são socialmente construídas e destituídas de neutralidade, mesmo quando
são apresentadas como se fossem neutras. Além disso, o público vem demonstrando
preocupações em relação a novas e velhas tecnologias e pressionando pelo debate, ainda
insuficiente na mídia.
6.
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metro. Rede Globo: Jornal Bom Dia Brasil, Série Universo Nano, 01 set. 2009. Disponível e.
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doenças como aids e câncer: com dimensões tão pequenas, remédios e procedimentos com
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nanotecnologia: por lá, o mundo em miniatura já ajuda na hora de se barbear e de ver TV,
por exemplo. Conheça uma televisão que dobra. Rede Globo: Jornal Bom Dia Brasil, Série
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