Um jeito anglicano e ecumênico de fazer teologia

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Um jeito anglicano e ecumênico de fazer teologia
Centro de Estudos Anglicanos
Um jeito anglicano e ecumênico de fazer teologia
Dom Sumio Takatsu*
O propósito deste trabalho é conversar sobre um jeito anglicano de fazer
teologia com perspectiva e ingredientes ecumênicos.
Por ingredientes queremos dizer as propostas e produções teológicas feitas no
âmbito do CMI, do qual fazemos parte e também nos diálogos bilaterais com outras
Comunhões, em que está empenhada a nossa Comunhão.
Com a perspectiva ecumênica desejamos expressar o que a raiz desse termo
quis dizer, isto é, o oikoumene, a humanidade, o mundo todo habitado, o universo.
Em poucas palavras, a teologia que se interessa pela Criação como um todo e sua
integridade e não apenas pela Igreja e sua unidade. Nessa perspectiva, a unidade da
Igreja é uma amostra escatológica da unidade de toda a Criação. Essa é uma visão
que anima os movimentos ecumênicos. Essa foi também a perspectiva adotada pelo
Arcebispo de Cantuária na recente Conferência de Lambeth. Em sua preleção, a
metáfora condutora, por assim dizer, da sua reflexão foi a Cidade de Deus, Novo Céu
e a Nova Terra no Livro de Apocalipse.
A proposta deste trabalho levanta uma questão. Existe uma teologia anglicana?
Há teólogos e produções teológicas e temos até os santos teólogos dos séculos XVI a
XVIII como Thomas Cranmer, John Jewel, Richard Hooker, Lancelot Andrewes, Jeremy
Taylor, F.D.Maurice. Neste século tivemos indivíduos como William Temple, e antes
dele Charles Gore, ou mais recentemente, M. A. Ramsey. Também não podemos
deixar de mencionar obras coletivas como Essays and Reviews, Lux Mundi e, na
década de 30, O Relatório sobre a Doutrina na Igreja da Inglaterra (1938), ainda mais
recentemente, O Relatório da Comissão Consultiva da Igreja Episcopal nos Estados
Unidos, Theological Freedom and Social Responsibility,(1967). Na década de 80 vimos
a publicação de vários simpósios como Study of Anglicanism, The Spirit of
Anglicanism, Anglican Spirituality. Assim, não faltam autores e obras que falem sobre
o anglicanismo. E um levantamento bibliográfico cuidadoso nos informaria a existência
de uma lista imensa de produções teológicas anglicanas. No entanto, o que se
constata é que não há o sistema teológico reconhecidamente anglicano, nem teólogos
em cujas obras as Igrejas de nossa Comunhão ou o público interessado pudessem
encontrar a teologia anglicana.
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O autor foi bispo da Diocese Anglicana de São Paulo e faleceu em janeiro de 2004. O presente texto,
inédito, foi encontrado em seu arquivo pessoal.
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Stephen W.Sykes, em sua obra The Integrity of Anglicanism, dedica um
capítulo sobre essa questão. Existe uma teologia anglicana?
De passagem, deve-se dizer que, por teologia, Stephen Sykes quer dizer uma
teologia sistemática, isto é, a organização das doutrinas que as Igrejas da Comunhão
Anglicana possam reconhecer como sendo cristãs e sua articulação entre si
coordenada por um conceito teológico mestre, em resposta aos desafios do contexto
em que se procura pensar teologicamente. Em outras palavras, uma teologia
sistemática trataria, pelo menos, do relacionamento entre a Revelação e o
pensamento filosófico (epistemologia), do conceito articulador do sistema, por
exemplo, Cristologia, ou o Reinado de Deus, a Justificaçåo, o Espirito Santo, da
fecundação mútua entre as doutrinas para a compreensão da vida e da missão da
Igreja, etc.
Naturalmente, há muitas maneiras de se fazer teologia sistemática. Voltando à
questão em foco, se existe teologia sistemática anglicana ou não, o que podemos
dizer é que, após o exame das obras de anglicanos influentes na Comunhåo, neste
século, Sykes conclui o seguinte: não há desejo da parte deles de se dedicar à
teologia sistemática e justifica a sua posição com o ethos anglicano, isto é, a nossa
maneira de ser Igreja é avessa à teologia sistemática. Alguns fatores que contribuem
para ausência de uma sistemática podem ser delineados da seguinte maneira:
1) De modo geral, não há no anglicanismo um corpo de doutrinas nitidamente
delineado como sendo anglicano nos seus documentos confessionais ou num
reformador como Lutero ou Calvino. Na verdade não temos tais documentos e tais
figuras. Dissemos, anteriormente, que há "santos teólogos", embora influentes e
reverenciadas suas obras, não têm peso de documentos confessionais. Em lugar
disso, temos o padrão do Livro de Oração Comum. Isto ficou patente no diálogo com
os luteranos. Por exemplo, O Relatório de Niagara (1987) traz uma recomendação de
que aos anglicanos conheçam a Confissão de Augsburgo, e o Catecismo Menor de
Lutero, e os luteranos, o LOC, para o crescimento no conhecimento mútuo.
2) Os anglicanos prezam, altamente, a liberdade espiritual, de modo que
relutam em ter as orientações oficiais e em disciplinar os hereges.
3) Os anglicanos afirmam ter a fé católica, isto é, o ensino da Igreja indivisa.
4) Visto que nenhuma teologia pode ser qualificada suficientemente por
descrições secundárias como anglicana, reformada, romana, etc, o que importa para
os anglicanos é que a teologia seja verdadeira.
Diante dessa constatação, Sykes conclui que, embora não haja desejo anglicano
de produzir teologia sistemática, desejo esse condicionado historicamente, existe, não
obstante, uma posição teológica nitidamente anglicana e que é possível elaborar uma
teologia (plural) sistemática anglicana. A obra de Sykes foi publicada pouco antes da
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Conferência de Lambeth 78 e tive a oportunidade de ouvir Prof. Geoffrey W.Lampe, da
Universidade de Cambridge, que se mostrou um tanto apreensivo com a proposta de
Stephen Sykes.
Por outro lado, há quem pratique a teologia sistemática, por exemplo, como
Charles C. Price, de Virgínia Theological Seminary. Está consciente de que ele é uma
das aves raras no anglicanismo. Devido a compreensividade do anglicanismo, há
lugar, diz ele, para os praticantes da teologia sistemática. E ele faz, também, a alusão
ao fato de que, nestes últimos 50 anos, os professores dos Seminários da Igreja
Episcopal dos Estados Unidos têm-se formado nos grandes centros ecumênicos e
protestantes como Union, Yale, Princeton, Harvard, etc e têm absorvido o espírito
sistemático da Teologia trazendo-o para o contexto anglicano.1
Também, John Macquarrie, em sua contribuição publicada num Simpósio The
Anglican Tradition2 conclui que o anglicanismo não é dado à teologia sistemática por
razões históricas. Por exemplo, a Reforma foi menos radical na Inglaterra do que em
outros países europeus. Em contraste com outras Igrejas da Reforma, que careciam
de produzir confissões de Fé, manuais de dogmáticas, a Igreja da Inglaterra acreditou
permanecer na fé da Igreja Universal. Por isso, os Artigos que ela produziu visaram
apenas corrigir as distorções medievais e não pretendiam ser um tratado sistemático
da Fé.
Exemplo disso é a obra de Thomas Cranmer publicada em 1550 com o seguinte
título sugestivo: Uma defesa da verdadeira e católica doutrina do Sacramento do
Corpo e Sangue de nosso Salvador Cristo: com refutação de vários erros sobre o
mesmo baseada e estabelecida na Santa Palavra de Deus e aprovada pelo consenso
dos antiquíssimos doutores da Igreja. Esse título diz o seguinte: não há doutrina
especificamente anglicana. Em primeiro lugar, trata-se da doutrina da Igreja
Universal. Em segundo lugar, Cranmer baseia-se nas Escrituras e a leitura das
Escrituras não é uma leitura isolada das interpretações dos doutores mais antigos da
Igreja. Finalmente, Cranmer afirma que suas afirmações não são contrárias à razão e
à experiência.
Essa posição teológica foi retomada por Jewel e Hooker e por outros já
mencionados e reafirmada na Conferência de Lambeth 30 e 48 nos termos de Igreja
Católica Reformada, Católica que é Reformada e Reformada que é Católica.
Então, embora refratários à teologia sistemática, os anglicanos têm uma
posição teológica. Ela vive da Palavra de Deus, na Tradição, faz uso da razão e da
experiência e aberta para novos tempos e novas circunstâncias. Por isso, para os
anglicanos a tarefa teológica é e deve ser sempre provisória. No dizer de John
The Identity and Viability of the Anglican Tradition, Vol XXIII, no.4
2- pp.27-43
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Macquarrie, é essa consciência anglicana da interinidade que resiste à teologia
sistemática. No entanto, ele diz: uma boa teologia sistemática trabalha com o
pressuposto do caráter passageiro da obra teológica. Como diz o Relatório Por Causa
do Reino, "a história da teologia de boa qualidade é sempre a história de constante
renovação em circunstâncias também novas."3 Diante do reinado de Deus, e, em
função da compreensão mais rica e mais plena da graça de Deus, a tarefa da teologia
deve ser pluralista.4 Em síntese, existe uma posição teológica anglicana e é possível
pensar teologicamente e de modo sistemático no anglicanismo.
E uma maneira de fazer teologia condizente com o ethos anglicano deve levar
em consideração a experiência dominical e cotidiana da Igreja e de seus membros.
Com efeito, os anglicanos de diferentes matizes, em diferentes circunstâncias sociais e
históricas participam, pouco ou bastante, das celebrações dominicais ou diárias, e se
dão, de um modo ou de outro, à devoção familiar ou individual e à diakonia de
alguma forma.. Ao vivenciarmos essa prática enfrentamos direta ou indiretamente, a
questão da identidade ou do ethos anglicanos. Então, perguntamos onde está a fonte,
a matriz da qual nasce e se forja a identidade anglicana?
Essa matriz é o Livro de Oração Comum. Como foi dito anteriormente, na
caminhada com os luteranos, para o conhecimento mútuo, a única obra teológica que
os anglicanos ofereceram foi o Livro de Oração Comum.
Mas de que modo o LOC nos proporciona uma maneira de fazer teologia?
Com efeito, o LOC nos oferece ponteiros para uma teologia nestes termos: (1)
o contexto da koinonia e do mundo em que a Igreja vive e participa da Missão de
Deus, (2) o conteúdo ou ingredientes principais da teologia, isto é, as Escrituras, a
tradição da doutrina, vida e missåo da Igreja, (3) perspectiva doxológica,
escatológica, missionária e pastoral necessária para uma teologia.
O LOC como o padrão litúrgico fala na Igreja como a comunidade do povo
reunido de Deus. O próprio Deus em Cristo no poder do Espírito Santo reúne o seu
povo para anunciar e celebrar a inauguração do Seu reinado e para tanto envia o Seu
povo em missåo.
É nessa comunidade que, movida pela fé, fala sobre o Deus que, em sua grande
bondade, veio ao encontro da humanidade e assumiu a condição humana e se fez
Deus-conosco, segundo o anúncio do Evangelho e trabalha refletidamente sobre essa
fala no sentido de prática das Boas Novas. Nisto se faz a teologia e se faz em louvor a
Deus.
3-
p.23
4- Por Causa do Reino, p.90.
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Assim, o labor da teologia ocorre na comunidade onde as pessoas têm paixão
por Deus e ousam se dirigir a Deus, falar sobre Ele e fazer a caminhada com Ele,
comprometendo-se com o seu reinado. Essa paixão acontece em virtude da ação do
Espírito Santo. Em outras palavras, há teologias e teólogos, porque o Espírito Santo
nos traz o Cristo ressuscitado e crucificado na vida deste e cria um novo
relacionamento, uma nova situação, em que dialogamos com Deus e deixamos que
Ele tome conta das nossas vidas e seu relacionamento. Em poucas palavras, essa
situação nova de confiança e compromisso é o que chamamos de fé. Trata-se da
confiança em Deus. Creio em... e não creio que... Essa fé é basicamente a presença
de Deus em nós, o dom de sua Presença que se reverte em tarefa. A teologia é uma
das tarefas possibilitadas pelo Espírito Santo e necessária na Igreja. Essa tarefa é a
busca da fé pelo seu entendimento. O movimento que parte da experiência primária
da confiança, do relacionamento comprometido para a sua compreensão é expresso
por uma fórmula antiga que se encontra em Santo Agostinho e Santo Anselmo, credo
ut intelligam.
O LOC como fonte, lugar, e perspectiva da teologia sublinha uma outra coisa
muito importante para a teologia. Ela é uma tarefa que se realiza em abertura para
Deus, na busca de sua Presença, com o desejo de ouvi-lo e louvá-lo.
Esse Deus é o Deus que se fez o nosso próximo em Jesus Cristo. No dizer de
Karl Barth, Deus em sua divindade inclui a humanidade, ou, Deus é humano na sua
divindade.
Por isso, erguer as mãos para Deus em oração e louvor é estender a
mãos ao próximo. É isso que ouvimos no Evangelho. Em poucas palavras, a oração
dirigida ao Pai tem a dimensão da intercessão pelo outrem.
O trabalho da teologia é movido por essa experiência primeira da fé que se
expressa em oração. Por isso, a teologia é desde o começo até o fim uma oração,
mas, ao mesmo tempo, um trabalho árduo feito com amor. Karl Barth salienta quatro
notas num labor teológico: (1) oração, (2) estudo, (3) serviço, (4) amor.5
Essa concepção de que o trabalho bastante intelectual como a teologia é
movida pela oração e é uma oração tem sua base e inspiração nas Escrituras. Por
exemplo, quando São Paulo fala na humanidade segundo a carne ou segundo o
espírito, ou carnal e espiritual fala na totalidade da vida de uma pessoa ou sob o
domínio do Espírito (neste caso, espiritual) ou fechado em si, sob domínio do pecado
(neste caso, carnal). Então, na sua religiosidade, a pessoa pode ser carnal, e, no seu
labor intelectual, pode ser espiritual. Em outras palavras, mesmo que esteja dividida
por dentro, e há essa divisão, a pessoa é um todo. Além disso, o Espírito Santo
Santificador é, com o Filho e o Pai, o Criador de todas as coisas. Por isso, aos olhos de
Deus a criação e as pessoas estão sob o domínio do Seu reinado ou não.
5-
Introdução à Teologia Evangélica.
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Uma obra teológica, que leva em consideração a unidade da oração e trabalho e
expressa essa atitude na forma de trabalho é o Proslogium de Santo Anselmo. É uma
oração dirigida a Deus, na qual ele discute a famosa prova da existência de Deus.
Essa reflexão é um trabalho intelectual bastante rigoroso. Então, há, aqui, uma
dialética de oração que se expressa em trabalho e trabalho, em oração. Trata-se do
dito clássico: ora et labora.
No trabalho com essa atitude de oração, há dimensão intelectual, que
aparentemente não tem muita conseqüência prática, mas que, no conjunto, faz
diferença. Por exemplo, Desmond Tutu deu um testemunho nesse sentido, no
Seminário preparatório de Lambeth, em Londres em 1987. Lá, ele disse que nós que
estamos na liderança do movimento de libertação na África do Sul reconhecemos o
preparo intelectual pelo qual passamos nas universidades européias estudando coisas
que hoje não utilizamos diretamente. Esse preparo tem feito diferença. Falando mais
a respeito dele e dos líderes eclesiais, disse que, por exemplo, o estudo da análise dos
Evangelhos Sinóticos de R. Bultmann, que hoje eles não fazem uso e que lhes
pareceram sem muita utilidade foi valioso no sentido de aguçar a capacidade de
discernimento.
Então, na teologia, a oração não substitui um trabalho árduo, isto é, a pesquisa,
a leitura, a análise, a síntese, a comparação. Nem tão pouco o bom trabalho feito com
dedicação pode substituir a oração. Levar sempre esses dois aspectos é o nosso
problema. Pois "a oração sem o estudo seria vazia e o estudo sem a oração seria
cego." 6 A oração sublinha o fato de que tudo que falamos e produzimos como
teologia ocorre na comunhão com Deus em sua comunidade. E não é o trabalho que
produz o que falamos sobre Deus. Como diz S.Paulo nos Atos dos Apóstolos, Nele
vivemos, nos movemos e existimos (17.28) e não o inverso.7 A oração nos mostra a
iniciativa divina e a sua bondade em nos tornar participantes e sua atuação em nossas
vidas por meio dos símbolos, narrativas e sacramentos.
Antes de falarmos que o LOC sugere trabalho, enumeremos algumas razões
porque a teologia deve ser feita na atitude de oração. Nisto nos baseamos mais uma
vez na contribuição de Karl Barth. Ele enumera quatro razões.
1) A tarefa teológica é feita dentro dos quadros da Igreja e do mundo, porém
sob o céu aberto. Na verdade, a abertura do labor teológico é feita pelo céu, pela obra
e palavra de Deus e dirigida também para a obra e palavra de Deus. No entanto, não
se pode tomar por certo que o trabalho teológico esteja a caminho desse horizonte.
Com efeito, o contexto, o lugar, a sala em que se faz teologia é dentro das limitações
humanas. É possível que todo o esforço dedicado e produtivo esteja girando dentro de
6-
idem, p.134
STEVENSON,W.Taylor, Lex Orandi-Lex Credendi, In: SYKES,S.S. e BOOTY,J.(Eds.)
The Study of Anglicanism, pp.174-87
7-
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uma gaiola sem receber a luz de cima. O trabalho enfrenta terríveis questionamentos
e dúvidas. Por isso, a pessoa ora, não para sacrificar o bom trabalho, mas para pedir
a luz e a bênção de cima.
2) O objeto da teologia é Deus que toma a iniciativa e vem ao nosso encontro.
Esse objeto é o Sujeito e não o podemos controlar, nem o criamos. Produzimos sim a
teologia como trabalho, mas nunca o seu objeto. E uma das tarefas primordiais da
teologia é ouvir a Deus. Então, a atitude de oração é importante. Diga-se de
passagem, nos momentos mais lúcidos, nos momentos mais obtusos, nos momentos
mais abertos e nos momentos mais confusos a oração dos que se dedicam à teologia
é Veni Creator Spiritus.
3) Não se pode fazer a teologia pensando que todas as questões já foram
definidas e respondidas. Traduzindo isso para o nosso contexto anglicano, a
observação de Stevenson é pertinente. Diz ele que a fraqueza anglicana é a tendência
de se apoiar na tradição. Por exemplo, em muito das resistências contra a Ordenação
Feminina está essa atitude de que a não ordenação já foi decidida no passado. Por
isso, se provasse que houve uma precedência, então...
Às vezes, esquecemo-nos de que a tradição cristã é a tradição da visão
escatológica. É isso que as Escrituras, o Evangelho que lemos e ouvimos nas
celebrações nos falam. Além disso, no século XVI, o anglicanismo absorveu o moto da
Reforma: semper reformanda, a Igreja Reformada é aquela que se reforma sempre.
Naturalmente, a base disso está no Batismo, que corresponde ao nascimento da
Igreja, isto é, o contínuo renascer. Cada Eucaristia é a renovação batismal.
O trabalho teológico deve estar aberto para novas questões e formular novas
respostas, perscrutando sinais dos tempos. Isso não significa que a teologia vá buscar
uma outra pedra angular. O que o Prefácio do Primeiro LOC procurou dizer a respeito
das formas e usos da Liturgia vale também para a teologia. Esse Prefácio demonstra
um grande esforço de ponderação para exercer a liberdade com que Cristo nos
libertou e se propor para alterar as formas e usos da Liturgia, sem tocar no essencial.
Ali, se forjou o que se chama de via media anglicana, isto é, o meio termo feliz entre
a rigidez e a licenciosidade, entre a reverência excessiva do passado e a inovação
desnecessária no presente. No comentário de Shepherd, a via media desenha uma
visão orgânica da Igreja, que preserva a continuidade estrutural com as gerações
passadas, mas como sendo uma realidade viva, se adapta ao ambiente em constante
mudança. Essa é a figura da Igreja em peregrinação. Em continuidade com o Primeiro
LOC o Livro Alternativo (ASB) inglês diz, no seu Prefácio, aceitando princípio de Lex
Orandi Lex Credendi, que os cristãos são formados pelo modo como eles oram e o
modo como eles oram expressa o que são. E continua: as palavras, e mesmo as
palavras de consenso são apenas o começo da adoração. Os que as usam fazem bem
em reconhecer o caráter transitório e sua imperfeição. Devem tratá-las como escada e
não como o alvo. Devem reconhecer seu poder para moldar a fé e animar a devoção,
sem alegar que são perfeitamente adequadas para tal propósito. E o Prefácio do novo
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LOC canadense é mais enfático: o trabalho da reforma litúrgica é inacabado. Com
efeito, nunca termina.
Voltando a Karl Barth, a oração como atitude do labor teológico nos mostra que
este trabalho da teologia se ocupa da graça sempre renovadora de Deus.
4) A teologia é feita pelas pessoas falíveis usando as palavras humanas de
indagação e resposta. A oração nos mostra que enfrentamos o problema da cegueira
e da surdez diante dos desafios de Deus frente a novas situações. Afinal, a Bíblia é a
estória de gente que, no meio da situação confusa, conflitante e contraditório foi dado
a ouvir e ver a ação de Deus nos clamores e eventos humanos e balbuciar o que
entenderam e ver novos horizontes. Seguindo o modelo bíblico, podemos dizer que a
teologia é uma constante oração: dá-nos te conhecer e te ouvir.
Ao ouvir a Deus e aprofundar o conhecimento Dele, a teologia reflete sobre a
participação da Igreja e das pessoas na obra de Deus. Pois a oração juntamente com
o seu correspondente, o serviço, é a participação na obra e na palavra, que vêm de
Deus, nos envolvem, e nos levam à Sua presença. Com efeito, a oração é a resposta
ao Evangelho, o Cristo que de Deus vem, feita em Seu nome, isto é, por Jesus Cristo,
nosso Senhor. Ele é a escada de Jacó. Orar é celebrar a vida do Verbo feito carne, sua
vida, morte e ressurreição, ascensão e a vinda do Espírito Santo, em relação ao
Antigo Testamento e no contexto em que vivemos e renovar, confiante na graça, o
compromisso com Deus e com o seu reinado, sendo feito participante naquela única
oferenda do Filho. É isso que, em linhas gerais, o LOC propõe.
A teologia como oração tem outra dimensão, o estudo, uma tarefa, embora
livre e leve, e assim dever ser, porém árdua. O estudo é inevitável. E o que as
pessoas falam hoje sobre todas essas matérias, em grupo, ou em conferência, devem
ser examinadas numa comunidade maior. E cada uma dessas matérias tem uma
dimensão teórica e certa pluralidade de visão sobre isso. Fazer pesquisa nas
bibliotecas é inserir-se na comunidade de estudos.
Infelizmente, em nossa tradição no Brasil não há inclinação para o estudo e
existe até desprezo pelo mesmo em alhures. Na experiência enfrentamos essa
situação. Nesse contexto, o LOC é uma armadilha muito perigosa. Aparentemente,
nele tudo está escrito e só basta ler. E isso nos pode convidar para a preguiça. Essa é
a armadilha. Na verdade, o LOC é uma proposta com um determinado arcabouço de
orientação, por isso, nos convida a um trabalho prévio: preparação da Liturgia do
domingo seguinte com uma equipe. As rubricas são orientações. E tudo indica que há
uma tendência para o rubricismo. Pois a tendência que se vê é: as leis foram feitas
para serem cumpridas. Por outro lado, uma boa leitura das rubricas nos leva à pratica
da diversidade, das variações, etc. Havendo essa tendência, é preciso tirar boas
conseqüências da orientação de Jesus sobre o Sábado.
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O que viemos falando cai debaixo da rubrica lex orandi, isto é, o conjunto de
coisas e relações representado pela oração molda o conjunto de coisas que chamamos
fé-credo. A ação e a presença de Deus em Cristo que tocam as nossas vidas e
relações e nos abrem para sua companhia e comunidade por meio de narrativas,
símbolos, ritos e sacramentos, essa ação e a resposta no nível primário nos levam a
construir o que chamamos um conjunto de Fé, e doutrina.
O mundo da lex orandi é também o mundo da memória e continuidade, embora
seja a memória da visão escatológica. Neste caso, a continuidade é a continuidade da
graça de Deus. Por isso, da perspectiva humana, pode haver uma dimensão da
discontinuidade. A narrativa é praticamente uma continuidade. Lemos a Bíblia como
um todo num ciclo de três anos. O valor do Rito está na sua repetição. Fazemos
variações, mas terminamos cantando sempre mesmas canções.
Para Stevenson, já anteriormente mencionado, aí está ambigüidade anglicana,
ponto forte e ponto fraco meio confuso. Com efeito, lex orandi pode acentuar a
continuidade em detrimento do novo e o estudo pode virar uma arqueologia em busca
de precedentes para justificar algumas mudanças. Em outras palavras, isso
significaria a aceitação do passado acriticamente. Isto é, aceitar o processo do
desenvolvimento enquanto desenvolvimento, sem um critério teológico. Na verdade, a
Reforma do LOC no século XVI significou uma crítica aos desvios medievais a partir,
em parte, das doutrinas, isto é, lex credendi. Nisso o Primeiro LOC estabeleceu, no
seu Prefácio, a via media anglicana, isto é, o meio termo entre a recusa rígida de
mudança e a facilidade em fazer mudança, entre a excessiva reverência pelo passado
e desnecessária mudança e a compreensividade, a saber, não isto ou aquilo, mas isto
e aquilo.
Adotando esse critério anglicano, o problema se localizaria na separação entre
lex orandi e lex credendi. Simplificando essa relação, podemos dizer que a oração é
teológica e a teologia é oração. Trata-se da complementação de ora et labora.
Também deve-se dizer que o LOC como uma proposta para a reflexão teológica
proporciona-nos uma visão crítica, que vem corrigir determinadas orações, cujo
conteúdo teológico é pobre ou até inadequado. Não digo que se corrija de um
momento para o outro.
Falando na complementação, a história da Igreja no fim do século passado e do
começo deste nos mostrou que houve cooperação entre o movimento de renovação
litúrgica e o movimento de renovação bíblica. Essa fecundação mútua beneficiou a
vida e a missão da Igreja.
Como se complementam uma leitura crítica e outra devocional? Em linhas
gerais, o LOC propõe a leitura do AT, do Salmos, das Epístolas e do Evangelho. Com
um pouco de imaginação, podemos perceber uma diversidade de leitura. Por exemplo,
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a leitura simples e devocional. É isso que foi a proposta do primeiro Livro. Em
primeiro lugar, é preciso que nos familiarizemos com a leitura.
Essa leitura nos convida antes ou depois uma leitura crítica. O preparo do
sermão, por exemplo, pressupõe uma leitura crítica. Trata-se de um par inseparável,
que corresponde àquela par: a oração que nos leva ao estudo na teologia como um
todo e o estudo que nos leva à oração.
Como na liturgia se faz a leitura no contexto de louvor e oração, por exemplo, o
gloria in excelsis e suas alternativas e a coleta do dia, o estudo crítico, que contem
elementos de questionamento se faz como parte da espiritualidade. O Espírito Santo
como Aquele que nos conduz à verdade no nos leva a uma indagação? Porém, no
contexto da fé sabemos que a nossa procura da verdade tem também suas limitações.
Os estudos críticos da Bíblia nos ensinam que a Palavra de Deus se fez ouvir
através dos eventos e dos eventos feitos tradições, em diferentes contextos. Assim,
não se fizeram "dogmas" seguros, e o povo foi chamado a ouvir Deus atentamente
em suas situações. Um exemplo disso é uma das mensagens de Isaias de que Deus
protege Jerusalém. Já, posteriormente, Jeremias tinha uma outra mensagem de que o
povo deveria abandonar Jerusalém.
As intercessões, digo o padrão adotado no LOC para as intercessões, apontam
para nós a situação em que a leitura deve ser aplicada. E a situação exige um
conhecimento adequado como foi dito alhures. Ali comporta o conhecimento das
ciências humanas. Então, existe uma relação entre as Escrituras e o conhecimento da
situação. Ali há um espaço que comporta uma variedade de mediação e suas
discussões.
Em tudo isso é preciso levar em consideração a comunidade e a orientação
pastoral. Deve-se levar, também, em consideração, a tensão entre o que se conclui
como estudo e reflexão no estudo e sua aplicação imediata. A prática teológica deve
ter em mente os diversos estágios em que se encontram as nossas paróquias e os
participantes dentro das paróquias. Todos vivem com o peso e fardo da tradição.
Ninguém vive sem tradição. Todos se alimentam da tradição e ela nos dá sentido e
importância, mas ao mesmo tempo, ela pode ser uma carga opressora. Compreender
essa situação e abrir a comunidade para novas perspectivas e situações, amando as
pessoas e reunindo-as, principalmente, os que pensam diferentemente, requerem
uma boa compreensão teológica e amadurecimento pastoral.
O trabalho teológico deve ser feito no espírito de diálogo na comunidade. Esta
comunidade apresenta diversas dimensões. Podemos pensar na comunidade paroquial
onde as pessoas se encontram face a face. Mas como Credo nos lembra da Santa
Igreja Católica, a comunidade da Igreja não se limita apenas aos de perto. Potencial
ou escatologicamente toda a humanidade tem a ver com a comunidade local.
Também, o estudo se faz em diálogo com os pequenos grupos de estudos,
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associações, seminários, etc. A nível nacional, há muitos grupos ecumênicos de
estudos. E há também uma comunidade de estudos, que se faz presente através das
produções literárias. Um livro ou uma revista representa uma biblioteca e uma
biblioteca uma comunidade imensa de estudiosos. Em nosso caso anglicano, há
aquelas produções que vêm dos seminários, das universidades, e também dos grupos
formados pelo Conselho Consultivo Anglicano. Se desejamos ser anglicanos e
ecumênicos, temos de acompanhar essas produções.
Então, a sugestão do LOC como modelo contem diversos aspectos do trabalho
teológico que se entrelaçam entre si.
Também, o LOC nos sugere uma perspectiva compreensiva do trabalho
teológico, que nos previne e nos cura da miopia da preocupação com a vida de cada
dia na paróquia ou na diocese. Então, facilmente ficamos "prisioneiros" da
preocupação com a unidade da paróquia, da diocese, e da Igreja, perdendo de vista
que a unidade da Igreja está em função da unidade toda a Criação como foi o tema
principal da preleção do Arcebispo de Cantuária, na recente Conferência de Lambeth.
Por outro lado, podemos enxergar longe, mas podemos ignorar o que está perto
e o que é cotidiano. Afinal, a comunidade local é feita de pessoas e cada pessoa tem
seus problemas, preocupações peculiares. Pois Deus em Cristo é o Deus dos que estão
perto e longe. A arte pastoral consiste em saber juntar a visão universal e as coisas
que afligem as pessoas.
O Credo, por exemplo, que comporta um trabalho histórico e dogmático é um
bom lembrete. Por exemplo, nem sempre ouvimos sobre a Criação nas leituras. Mas o
Credo e a Oração Eucarística nos falam que o Pai que enviou Jesus Cristo para a nossa
Redenção é o Criador junto com o Filho e o Espírito Santo.
Em poucas palavras, o LOC nos sugere um jeito de fazer teologia comprometido
com as comunidades locais, sem perder de vista uma visão universal, em diálogo com
os que se dedicam à pesquisa teológica.
Também desejaria deixar dito que uma perspectiva teológica sugerida pelo LOC
não significa necessariamente subordinar os estudos, as perspectivas teológicas a
uma pastoral da Igreja ou às necessidades da Igreja. É claro que o fazer a teologia na
Igreja implica, de um modo ou de outro, certo atrelamento às necessidades, à
identidade e outras coisas eclesiásticas. No entanto, o LOC sugere que todas essas
coisas sejam vistas, à luz do que Deus fez em Jesus Cristo e se propõe Nele completar
a sua obra. A leitura das Escrituras tem esse aspecto entre outros.
É claro também que facilmente o estudo da Bíblia pode ser subordinado à
dogmática.
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Centro de Estudos Anglicanos
E, aqui, o Relatório da Conferência de Lambeth 48 sobre a autoridade difusa da
Igreja nos ajuda. Diz o Relatório que a autoridade que a Comunhão Anglicana herdou
da Igreja indivisa dos primeiros séculos é moral, espiritual, que reside na verdade do
Evangelho e no amor, que é paciente e deseja submeter-se à mente comum. Essa
autoridade é una, porque deriva da única fonte divina e reflete em si a riqueza e
historicidade da revelação divina, isto é, a autoridade do eterno Pai, do Filho feito
carne e o Espírito Santo, Doador da vida. Ela é distribuída nas Escrituras, na Tradição,
no Ministério da Palavra e dos Sacramentos, no testemunho dos santos, no consenso
dos fieis, que é a continua experiência do Espírito por meio do seu povo fiel na Igreja.
Mais adiante, o Relatório diz:
Essa experiência da revelação divina é descrita nas Escrituras, definida nos
Credos, mediada pelo Ministério e verificada no testemunho dos santos e no consenso
dos fiéis.
Embora a Escrituras tenham o lugar de primazia, todos os elementos
mencionados não estão subordinados às Escrituras ou ao magistério da Igreja. Ao
Cristo testemunhado nas Escrituras, nos Credos, na Tradição teológica, no Ministério,
na Missão, no Serviço é que tudo está subordinado. Então, temos uma relativa
autonomia dos estudos das Escrituras, da Teologia dogmática ou sistemática, história,
liturgia, pastoral, etc.
Tudo isso nos mostra que há necessidade de se ter uma instituição teológica,
que vise suprir as necessidades da Igreja e que também prime pela liberdade
teológica.
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