Revista Fusca.p65

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Revista Fusca.p65
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RESERVADO
PARA
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RESERVADO
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Edição e Diagramação
Roberto Tenório
Reportagem
Roberto Tenório
Arte Final
Priscilla Tenório
Orientador
Laerte Fernandes de Oliveira
Colaborador
Edvaldo Idalgo Fernandes
(Fusca Clube ABC)
Revisor
Gamaliel Inácio
Reportagem Especial
Qual o
segredo do
Fusca?
O carisma que desperta a
simpatia em muita gente
intriga estudiosos e levanta a
questão sobre sua origem.
Roberto Tenório
– Olhe, pai! Achei mais um
fusquinha ali!
A frase acima pode soar um
pouco estranha a princípio, mas
é só dizer que é uma brincadeira
entre pai e filho procurando ver
quem acha o maior número de
Fuscas no trânsito de hoje que ela
se torna um pouco mais familiar.
Afinal de contas, encontramos
vários casos de pessoas que brincam com crianças dessa forma,
visando estimular o raciocínio ou
mesmo só pelo prazer da brincadeira em torno daquele que é um
dos mais populares carros da história da indústria automobilística
mundial, e ainda querido por uma
parte significativa da população.
Ao longo desses 40 anos de história aqui no Brasil, o carro
coleciona uma série de admiradores e levanta algumas questões
referentes a seu sucesso na época e sua simpatia atualmente.
Para tentar compreender essas
questões é necessário relembrar
alguns aspectos do cenário político e econômico do Brasil quando o Fusca chegou por aqui; os
motivos que levaram o governo
a conceder maiores incentivos à
indústria do automóvel; os fatores determinantes para que o
carro sobrevivesse em meio a
concorrentes mais espaçosos e
luxuosos e como o carro conquistou a confiança dos consumidores. São essas idéias que darão o
tom do texto a seguir, procurando contextualizar e descobrir um
pouco mais dessa relação entre
os proprietários e o carro, em um
ciclo que dura pelo menos seis
décadas e remete à criação do
carro na Alemanha.
O surgimento
Tudo começou através de
Ferdinand Porsche. Nascido em 3
de setembro de 1875, na cidade
Fusca Brasil n Novembro de 2007
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de Maffersdorf, região Austro-Húngara, era autodidata e mostrou-se
um empreendedor visionário. Aos
25 anos já apresentava, no Salão
do Automóvel de Paris, em 1900,
o projeto do seu primeiro carro
com tração elétrica e motores instalados no lugar das calotas. No
entanto, ao contrário do que se
imagina, o projetista começou sua
carreira especializando-se em
projetos de carros de luxo para a
montadora Austro-Daimler, que
depois mudou o nome para
Daimler-Benz (atual MercedesBenz). Mas o que mais desafiava
Porsche era desenhar um carro que
todos pudessem comprar, e foi
dessa idéia que surgiu o projeto
daquilo que daria origem ao carro
mais famoso do planeta.
O Fusca foi gestado na cidade
de Sttutgard, Alemanha, em 1932,
quando Porsche começou a projetar o carro em sua própria garagem, devido a falta de apoio para
desenvolver-lo em uma linha de
produção. Após isso, ele conseguiu viabilizar duas parcerias, uma
após a outra, com fábricas de
motocicletas para tentar a construção em série do modelo. A primeira foi em abril de 1932, onde
o projetista conseguiu, por meio
de um protótipo construído em
parceria com a fábrica de motocicletas Zündapp, colocar o primeiro carro nas ruas, mas devido à
falta de recursos a idéia foi abandonada. A segunda tentativa foi
feita com a NSU, que investiu mais
no projeto por estar em queda a
venda de motocicletas e acreditar
ser promissor o mercado do futuro carro popular; por isso, os protótipos, conhecidos como “Ty p
32”, foram mais bem elaborados
e feitos em carrocerias de aço com
motor de dois cilindros opostos –
o irmão mais novo do motor boxer
que equipou o Fusca durante sua
jornada. Entretanto, os testes foram encerrados em 1933, pois a
NSU não tinha de onde tirar a
Reportagem Especial
tido um enorme sucesso
durante sua implantação.
O carro deveria viajar a
uma velocidade de 100
km/h para “encarar” as
Autobahns (acabavam de
ser construídas as primeiras), possuir um consumo
médio de 14 km por litro
de combustível, ter um
espaço de quatro a cinco
lugares (perfil da família
alemã de então) e refrigeração a ar, pois nem
todos os proprietários poderiam possuir uma garagem e no inverno europeu a água do sistema de
O “typ 32”, segundo protótipo. Foram produzidos
refrigeração congelaria.
três pela fabrica de motocicletas NSU
Tudo isso a um preço de
quantia estimada para colocar o 990 marcos alemães, cerca de R$
carro em linha de produção.
5.500,00 atualizados. Ferdinand
Através do projeto de um aceitou o desafio e em 22 de juótimo carro de corridas para a nho de 1934 – atual dia mundial
Auto Union (atual Audi), o qual do Fusca –, seguindo as regras
proporcionou grande destaque citadas acima, apresentou um préinternacional à Alemanha por projeto que serviu de base para o
meio das vitórias conseguidas nas contrato assinado entre a emprecorridas, Porsche despertou a sa dele e o governo alemão. Era o
atenção de Hitler. Os motores e surgimento daquilo que seria o
os carros utilizados nas corridas primeiro Fusca. A aquisição do
tinham também como objetivo, modelo pela população poderia
na época, desenvolver tecnologia ser à vista ou parcelado. Esta últimecânica e aerodinâmica de pon- ma opção só seria possível medita sem despertar a atenção de ou- ante uma inscrição junto ao gotros países, pois os resultados dos verno onde o comprador recebetestes desenvolvidos nas pistas ria um tipo de caderno, e colaria
seriam usados posteriormente nele “selos” mensais até completápara equipar os aviões de guer- lo, efetivando a compra do veícura. E foi em função de um proje- lo – era parecido com os “álbuns
to ligado a carros de corrida que de figurinhas” que hoje são venhouve o primeiro encontro en- didos nas bancas de jornal. Para
tre Porsche e Hitler, no mês de suprir essa demanda foi construída
abril de 1933. Por meio desse fato uma fábrica, a “Volkswagenwerk”
o líder alemão revelou os requi- (fábrica do carro do povo), que
sitos do governo para o lança- no início pertencia aos trabalhamento de um “Volkswagen” (tra- dores e ao governo alemão e cuja
duzindo: “carro do povo”), que primeira fase estava pronta em
seria um dos pilares políticos do 1939, mas nem chegou a produgoverno nazista juntamente com zir para o público geral em razão
o “Volksradio” (rádio popular), do início da guerra.
veículo de comunicação já preMesmo assim, foram
sente em praticamente todos os construídos na primeira fase cerlares alemães e que já havia ob- ca de 30 protótipos experimenFoto/Crédito: Edvaldo Fernandes, Fuca abc
Fusca Brasil n Novembro de 2007
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tais para serem usados e testados
por homens da SS, tropa especial
do exército alemão. Eles rodaram
cerca de 80 mil quilômetros com
cada carro, totalizando aproximadamente dois milhões e trezentos mil quilômetros de testes em
reprodução severa de uso diário,
detalhes exigidos pessoalmente
por Ferdinand e que eram anotados em relatórios para o aperfeiçoamento do projeto, onde ao final de cada dia os carros eram
analisados e revisados para a observação das possíveis alterações
que poderiam ocorrer. No final,
todos os carros foram destruídos
a golpes de marreta pelos soldados para que ninguém pudesse
copiá-los.
Na opinião de Edvaldo Idalgo
Fern a n d e s , f u n c i o n á r i o d a
Volkswagen do Brasil, pesquisador e um dos coordenadores do
Imagem/Crédito: Edvaldo Fernandes, Fuca abc.
Anúncio feito pelo governo alemão para
a aquisição do “carro do povo”. Ao
fundo, destaque para a caderneta
(espécie de financiamento) que servia
para colar os selos que eram comprados
em postos autorizados pelo governo. Ele
funcionava como um tipo de álbum;
assim que fosse comple-tado, o carro
estava “quitado”.
Reportagem Especial
Fusca Clube do ABC, embora seja
praticamente impossível não associar a imagem de Hitler ao próprio carro, o que causa certo desconforto em algumas pessoas, o
ditador não “encomendou um
Fusca”. Fernandes explica que
“deveria ser um carro de baixo
custo, mecânica simples, projetado para andar em terrenos acidentados e para uma família de dois
adultos e três crianças”. Portanto,
reforça ele, “Hitler não encomendou um Fusca, mas sim um carro
com alguns pré-requisitos; e como
Porsche já tinha um projeto semelhante, foi só adequá-lo”.
Foto/Crédito: Edvaldo Fernandes, Fuca abc.
O Fusca e a Segunda
Guerra Mundial
Mas, com o advento da Segunda Guerra Mundial, em 1939, o
carro nem chegou a ser vendido
ao povo, sendo transformado em
versões adaptadas para o uso no
campo de batalha. Era o caso do
“Schwimmwagen” (carro que
nada), com tração nas quatro rodas, utilizado para uso misto na
água ou em terra e o
“Kübelwagen” (carro caçamba),
jipe leve com tração somente nas
rodas traseiras. Uma outra versão
foi feita com a carroçaria do Fusca, suspensão mais alta e o chassi
e a tração nas quatro rodas do
Schwimmwagen, eram os
Imagem/Crédito: Edvaldo Fernandes, Fuca abc.
Modelo deveria acomodar dois adultos e
três crianças, o perfil da família alemã
de então.
Soldados da SS, tropa de elite de Hitler, destroem os protótipos com golpes de
marreta em 1939.
“K o m m a n d e u r w a g e n” (carro do
comandante) utilizados no transporte de oficiais do exército alemão e que conseguiam superar
com maior facilidade terrenos acidentados. Mas no final da guerra
sobrou pouca coisa da Alemanha
e da fábrica. Localizada na hoje
chamada cidade de Wolfsburg, a
Volkswagen estava quase totalmente destruída devido aos intensos bombardeios que sofreu, pois
também era utilizada para construir e reparar peças para os aviões de combate.
Com a divisão do território alemão em quatro partes, no ano
de 1945, os ingleses passaram a
controlar a região em que a fábrica estava instalada, deslocando para lá todo o contingente da
REME (Royal Electrical and
Mechanical Engineers), um braço do exército britânico especializado em assuntos mecânicos
e civis, incluindo a produção e
manutenção de veículos. Esse
segmento do exército era comandado pelo coronel M. A. Mcevoy,
Fusca Brasil n Novembro de 2007
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que já havia visitado a feira do
automóvel em Berlim e ficado impressionado com o projeto do
carro popular de Porsche, e logo
ao recolocar a fábrica em funcionamento passou a utilizar os
Kommandeurwagen e os Kdfwagen para o transporte e deslocamento de suas tropas.
A fábrica da Volkswagen passou a atuar como contratada da
REME e tinha a função de consertar e recuperar os caminhões
e ônibus danificados na guerra,
estabelecendo uma estrutura de
transportes satisfatória para manter o país em atividade. Sendo
assim, Mcevoy nomeou o engenheiro e major, Ivan Hirst, então
com 29 anos, para comandar a
oficina adaptada na parte da fábrica que não havia sido
destruída pelos bombardeios, utilizando a mão-de-obra dos próprios funcionários que haviam
sobrevivido à Guerra. Com isso,
em 1945 foram produzidas cerca
de 1.800 unidades dos Kdfwagens. O nome, que significa
Reportagem Especial
pletasse seu cardápio de
veículos oferecidos em
outros países. Para a
companhia americana
não era um mau negócio, pois os carros da
Volkswagen passariam a
completar seus produtos
disponíveis para a exportação
e,
em
contrapartida, para a
montadora alemã era a
chance de tornar-se conhecida em outros paíEmbarque dos primeiros modelos para exportação
ses. Ta l v e z e l e s n e m
em 1950. Entre os vários destinos estava o Brasil.
imaginassem que esse
primeiro passo seria de“carro força através da alegria do cisivo para que o carro fosse expovo”, e se refere ao nosso co- portado para 150 países e vennhecido Fusca, foi dado pelo desse 22 milhões de unidades em
próprio Hitler em um discurso toda a sua trajetória.
feito na inauguração da fábrica,
explicando que o carro deveria Imagem/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc.
portar o mesmo sentimento dos
funcionários e do povo para o
qual estava sendo feito.
Em 1948, a fábrica da
Volkswagen na Alemanha começava a mudar seu perfil de produção com a chegada do novo
presidente da empresa. O engenheiro Heinrich Nordhoff assumiu o controle da companhia no
dia 5 de janeiro e passou a ace- Projeção da sede da Volkswagen
lerar a produção na linha de localizada em Wolfsburg, Alemanha.
montagem, aperfeiçoando o carO Brasil antes do Fusca
ro e transformando-o em um sucesso comercial. Sua experiência
Atualmente, o carro é um bem
como ex-funcionário da Opel
( d i v i s ã o a l e m ã d a G e n e r a l de consumo durável acessível a
Motors) e os treinamentos que uma boa parte da população, não
recebeu nos Estados Unidos an- somente pela facilidade das lites da guerra ajudaram a levan- nhas de crédito disponíveis no
tar a empresa, conquistando no- mercado, mas, principalmente,
vos mercados. E em 1949 ele con- devido à grande variedade de
segue, através de uma parceria modelos e preços. No entanto,
com a montadora americana nem sempre foi esse o cenário
Chrysler, efetivar um importante que predominou nas grandes
acordo para que o Fusca chegas- capitais brasileiras.
No início do século XX, o munse a praticamente todos os continentes do planeta: a fábrica do vivia uma grande recessão
americana cederia suas conces- devido aos prejuízos que o final
sionárias fora da América do Nor- da Primeira Grande Guerra hate para que a Volkswagen com- via causado. Com isso, para conFoto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc.
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seguir captar mais recursos, os
países ricos passaram a investir
naquilo que foi denominado de
“mercados emergentes”, trazendo tecnologia e auxiliando na
criação de grandes pólos industriais. No Brasil da primeira década predominava como base da
economia nacional a exportação
dos bens de consumo primários
como os grãos, as frutas e verduras. Esses produtos eram gerados através da monocultura e
do latifúndio, onde os grandes
proprietários de terras conhecidos como “coronéis” eram quem
ditavam as regras; contudo, esse
cenário passou aos poucos a
perder espaço para as indústrias
(entre elas a automobilística) que
começaram a crescer por aqui a
partir da segunda década, com a
chegada da industrialização.
Henry Ford é considerado hoje
um pioneiro daquilo que seria
um dos principais pilares da economia mundial: a produção e
venda em massa de veículos
automotores. Com o objetivo de
popularizar os carros, Ford tentou quebrar a barreira daquilo
que até então era privilégio somente das classes mais abastadas mediante o lançamento do
Ford T, o famoso “Ford bigode”,
um automóvel de uso misto que
tanto poderia ser utilizado para
o trabalho, colocando uma caçamba na parte de trás da
carroçaria, como para passeio. E
procurando aumentar seus lucros, Henry passou a ampliar sua
produção levando seus produtos
para outros países, e o Brasil era
um deles.
Em 1912, desembarcaram os
três primeiros carros modelo Ford
T adquiridos por uma empresa
de táxi, em São Paulo. À época,
através das importações, os automóveis já começavam a fazer
parte da paisagem dos grandes
centros urbanos brasileiros como
São Paulo e Rio de Janeiro. Com
Reportagem Especial
o objetivo de organizar esse mercado de importação que estava
crescendo por aqui, foi fundada
em 24 de abril de 1919 a primeira subsidiária brasileira da Ford,
pioneira no investimento em
mercado de automóveis aqui no
Brasil. E como o setor estava em
expansão, a decisão de instalar
uma montadora em terras brasileiras foi tomada logo em seguida pelo próprio empresário americano e ocorreu no ano de 1922,
obedecendo ao conceito idealizado por ele de produção de
veículos em série. Era o início da
industrialização e a fundação do
mercado de consumo de bens
duráveis, que trouxe uma boa
injeção de investimentos ao país,
algo em torno de US$ 320 mil,
atualizados.
A capacidade anual da fábrica
era em torno de 4,7 mil automóveis e 360 tratores, números consideráveis se analisarmos a frota
de cerca de quatro mil carros que
rodavam em São Paulo na época. O galpão da linha de montagem funcionava na Rua Sólon,
Bom Retiro, região central da
capital paulista e foi utilizado até
o ano de 1953. Com o estímulo
do governo através de incentivos
fiscais e outras medidas, o setor
respondeu de forma totalmente
positiva levando a empre s a a
comemorar o primeiro recorde de
vendas anuais: 24 mil unidades
em 1925 – ano da chegada da
General Motors aqui no Brasil.
Esse feito foi repetido até o final
dos anos 60, quando se iniciou a
produção de veículos totalmente nacionais. Com isso, o crescimento da indústria automobilística na época e os benefícios
gerados por ela até os dias atuais
mereceram destaque na revista
Autodata de fevereiro de 2007,
com circulação interna da Ford,
onde, segundo o texto, um país
sem um parque industrial voltado para o setor de transportes se
torna totalmente inapto ao crescimento da economia de uma
maneira geral.
Contudo, após o “crack” da
Bolsa de Nova York, no dia 29
de outubro de 1929, o mundo inteiro sofreu um grande abalo
econômico. Os americanos respondiam por grande parte da
produção e compra dos produtos mundialmente negociados e,
com a retração do mercado americano, os demais países entraram em colapso. Paralelamente
a isso, o Brasil, que tinha como
sua principal base econômica a
agricultura e era o maior exportador de café do mundo, sofre u
Foto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc.
sil e Estados Unidos – com o
objetivo de afastar a proximidade que o governo brasileiro de
então possuía com os alemães –
, levando a uma participação do
Brasil na guerra em 1942. Mas
seu término, com a grande pressão que foi estabelecida pelos
americanos para o “afrouxamento” dos regimes autoritários e a
crescente preocupação com o
possível surgimento de outros
regimes socialistas, os EUA passaram a patrocinar regimes com
maior disciplina e controle da
sociedade. Foi então que Getúlio sofreu o golpe que levou os
militares ao poder em 1945, estabelecendo o que ficou conhecido, de 1946 a 1964, como República Populista.
A conjuntura política
brasileira
Linha de montagem manual do Fusca na
década de 1950.
um grande encalhe da produção,
levando o mercado a entrar em
colapso e gerar uma gigante massa de desempregados. Um dos
resultados disso foi o retrocesso
da pequena evolução industrial
que o país começava a experimentar. A situação que se estabeleceu contribuiu para abalar as
bases políticas da República Velha, gerando a revolução de 1930,
que levaria Getúlio Vargas pela
primeira vez ao poder como chefe do governo provisório (193034), depois como presidente
constitucionalmente eleito pelo
Congresso (1934-37), em seguida como ditador (1937-45) e, finalmente, como presidente por
voto universal em 1950.
A Segunda Guerra Mundial
criou um clima favorável nas
relações diplomáticas entre BraFusca Brasil n Novembro de 2007
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A promulgação da Nova Constituição Liberal em 1946 visava,
a partir daquele momento, levar
o país a promover as eleições
para presidente, deputados e senadores procurando restabelecer
as bases democráticas de direito ao povo e à nação, que até
então fora dominado pelo regime ditatorial de Vargas. Entretanto, após a Segunda Guerra,
eram os socialistas que passavam
a integrar o “rol de ameaça ao
mundo” no contexto dos americanos, que fizeram com que o
governo brasileiro, então sob a
direção do presidente general
Dutra, rompesse com a então
URSS, e tornasse, conseqüentemente, o Partido Comunista Brasileiro ilegal, ferindo o decreto
constitucional de liberdade de
manifestação e de pensamento
estabelecido na recém-aprovada
Constituição. No contexto interno, o governo reduziu a intervenção do Estado na economia
– filosofia conhecida como liberal e que prega basicamente o
Reportagem Especial
livre mercado, ou seja, os preços são regulados pelos próprios negociadores –, atitude que
passava a vigorar no pós-guerra, e fracassou no propósito de
obter uma economia que trouxesse melhores condições de
vida à população. No mercado
de exportação ainda predominava
o
mesmo
modelo
agroexportador, enquanto o país
continuou a importar equipamentos ferroviários, artigos de
plástico, automóveis etc. A abertura ao capital estrangeiro, limitando a ação do Estado e dificultando o crescimento de determinados setores da economia
nacional devido à forte concorrência, somada ao arrocho salarial e à escalada assustadora do
preço dos alimentos, ajudou a
construir o cenário ideal para o
retorno daquele que ficou conhecido como o “pai dos pobres”: Getúlio Vargas, que voltou vitorioso ao poder nas eleições de 3 de outubro de 1950,
em um cenário político extremamente instável.
É importante notar o estilo do
discurso populista de Vargas, que
associava o desenvolvimento à
independência do país e da classe trabalhadora, mobilizando as
massas através dos comícios e
dos sindicatos que eram controlados pelo governo. Tal orientação ensina que a transmissão de
propostas amplamente dirigidas
às massas tem como objetivo
passar uma sensação de melhoria
a uma classe social excluída da
maior parte dos benefícios
econômicos e sociais do país,
manipulando-as em prol de interesses dos grupos dominantes
do sistema social; com isso consegue-se o apoio da maioria para
a implantação dos projetos políticos de interesse dos líderes. E
foi usando esse discurso que
Vargas enviou ao Congresso, no
ano de 1951, um programa de
governo que propunha a expansão industrial e o aumento da intervenção do Estado na economia, objetivando o aumento do
mercado interno, o crescimento
da produção de bens de consumo e a elevação da renda nacional. Na teoria, o objetivo do governo era modernizar o país,
construindo estruturas compatíveis com as condições do sistema capitalista do pós-Segunda
Guerra, mas na prática a condução política de desenvolvimento
sofreu pressões que refletiam a
diversidade de interesses dos distintos segmentos da burguesia
re p resentados no governo. O
Imagem/Crédito: Alexander Gromow.
Desenho do Fusca modelo 1950.
principal conflito deu-se entre os
nacionalistas, que apoiavam a
industrialização e a intervenção
do Estado na economia, e a ala
opositora, que sustentava uma
política com menor intervenção
do governo, e não priorizava o
crescimento industrial.
O Plano Nacional de
Reaparelhamento Econômico, ou
Plano Lafer, elaborado e apresentado em janeiro de 1951 pelo ministro da Fazenda, Horácio Lafer,
possuía projetos para a criação de
novas fontes de energia, ampliação das indústrias, da rede de
transportes, dos serviços portuários e da introdução de avançadas técnicas na agricultura. Uma
parte do dinheiro viria dos Estados Unidos; a outra, de recursos
i n t e rn o s
do
Fundo
de
Reaparelhamento Econômico,
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constituído por um adicional de
15% sobre o Imposto de Renda.
Por esse motivo tornou-se necessária a criação de órgãos que
viabilizassem a organização e eficácia das medidas econômicas.
Datam de então o BNDE (Banco
Nacional de Desenvolvimento
Econômico), cuja função era financiar o programa de crescimento, e o Banco Nacional de Crédito Corporativo com o objetivo de
subsidiar pequenos e médios produtores. Todavia, o maior de todos os problemas que Getúlio enfrentou talvez tenha ocorrido
quando foi criada a Petrobrás, em
dezembro de 1951. O projeto para
a criação da Petróleo Brasileiro
Sociedade Anônima foi enviado
pelo presidente ao Congresso e
colocava a União como
controladora majoritária da empresa, cujo objetivo era pesquisar,
lavrar, refinar, comercializar e
transportar o petróleo e seus derivados. A oposição, liderada por
comunistas, nacionalistas radicais
e alguns dirigentes de partidos
políticos, passou a mostrar forte
resistência à criação da empresa
e tinha um sentido, segundo historiadores, totalmente anti-Getúlio. Sendo assim, após o projeto
sofrer 32 emendas – parte das
quais permitia o controle da empresa por capitais nacionais e estrangeiros –, derrubadas nas votações da Câmara, foi aprovada a
versão final.
A soma dessas e de outras medidas causou na sociedade tal
efeito que, a partir do início da
década de 1950, o modo de vida
dos moradores de grandes centros urbanos começava a mudar
para um ritmo cada vez mais acelerado. Já para a classe média o
carro começava a se tornar um
fiador da liberdade de ir e vir e
símbolo do progresso, pois passou a ser cada vez mais indispensável para vencer as distâncias que estavam se tornando
Reportagem Especial
maiores nas cidades. Mas Getúlio pagou um preço muito alto
por essas mudanças. O combate
feroz dos opositores contra o seu
projeto nacionalista, somado a
outros fatores, fez com que o presidente, em intensa pressão emocional, se suicidasse em agosto
de 1954.
Após o suicídio do presidente
Vargas, o vice, Café Filho, assumiu interinamente o poder, procurando garantir ao país o cumprimento
do
re g i m e
presidencialista, que recebia uma
forte pressão dos militare s, e exigia m um governo mais rígido e
conservador. Apesar de toda essa
aparente confusão trazida pelo
início do desenvolvimento, a instabilidade foi de certa forma contornada e, em outubro 1955, foi
eleito Juscelino Kubitschek, que
governou de 1956 a 1961 e teve
como marca de seu legado a indústria automobilística nacional e
a construção da cidade de
Brasília. Aproveitando o pontapé
inicial de seu antecessor, Juscelino continuou estimulando essa
política de desenvolvimento intenso e procurou aproveitar o clima favorável às instituições do
governo, lançando o Plano de
Metas. Tratava-se de um pacote
de incentivos econômicos e investimentos em alguns segmentos estratégicos da economia que
abrangiam, basicamente, quatro
setores: energia, transportes, alimentação e indústria de base (fabricantes de matéria-prima para
confecção de produtos).
O Surgimento do primeiro
c a r ro nacional
E foi no auge dessas metamorfoses que, por meio de
uma propaganda veiculada na
revista “O Cruzeiro”, em 1955,
foi anunciado o primeiro “carro” montado em solo brasileiro:
a Romi-Isetta. Tratava-se de um
projeto lançado inicialmente na
Itália, sendo aperfeiçoado e incorporado pela montadora alemã BMW em 1955, que foi comprado pela fábrica de máquinas
agrícolas ROMI, passando a ser
o primeiro veículo a ser fabricado em série no país. A primeira
Isetta foi fabricada no dia 5 de
setembro de 1956, em Santa Bárbara d’Oeste.
Entretanto, há uma divergência sobre o início propriamente dito da indústria do automóvel nacional. O jornalista especializado em indústria automobi-
um grande investimento em
mão-d e-obra especializada e um
mega desenvolvimento em estrutura urbana e rodoviária. O
crescimento da produção de automóveis (carros, utilitários, jipes e caminhões) aumentou rapidamente, tornando visível para
a população urbana e, em parte, para alguns setores rurais os
resultados palpáveis da política
econômica adotada pelo governo. Mas não foi somente isso
que o desenvolvimento trouxe
ao país. Essa ampliação
econômica implicou a
permanência da associFoto/Crédito: Site DKW
ação do capital estrangeiro ao nacional, criando laços com importantes setores internacionais através da importação de tecnologias
para a produção de
bens de consumo farmacêuticos, automóveis, máquinas, produtos químicos etc. E d e
capital de pagamento
dessas tecnologias obA “Vemaguete” da DKW. Modelo é reconhecido como
tido por empréstimos a
primeiro veículo nacional pelo GEIA.
juros com esses países.
Em contrapartida, o golística Fernando Calmon explica verno JK permitia imensas reque “a maioria dos historiadore s messas de lucros das empresas
considera as regras estabelecidas estrangeiras ao Brasil como forpelo Grupo Executivo da Indús- ma de tornar mais atraente o país
tria Automobilística (GEIA), ór- às outras nações; por isso hougão criado para regular o setor ve um barateamento de matérique acabava de surgir, válidas as-primas, impulsionando o Espara estabelecer o início das tado e expandindo a economia.
atividades aqui”. Portanto, ele fi- Um exemplo claro dessa denaliza dizendo que foi a DKW- monstração física de crescimenVemag camioneta, hoje chama- to e desenvolvimento foi a consda de perua ou station-wagon, t r u ç ã o d a r o d o v i a B e l é m com duas portas e espaço para Brasília, que encurtou os camicinco pessoas, o primeiro carro nhos para a Amazônia.
nacional a ser fabricado em série
Esse período marcou a entrano Brasil, no dia 19 de novem- da efetiva do país na fase de prob r o d e 1 9 5 6 , c o m 6 0 % d a dução de bens de consumo dutecnologia brasileira.
ráveis, mas sem conseguir reduA soma dessas medidas aju- zir os “buracos” entre as classes
dou na ampliação dos chama- sociais. Na realidade o crescidos “parques industriais”, com mento industrial só ocorreu deFusca Brasil n Novembro de 2007
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vido ao atraso tecnológico de
outras regiões, especificamente
as rurais, onde imperava o sistema de produção através de técnicas arcaicas de plantio, tornando favorável o êxodo dessa população para os centros urbanos
e favorecendo a mão-de-obra
barata necessária ao desenvolvimento. Mas o preço a ser pago
por todas essas medidas foi muito alto, principalmente no que
diz respeito às áreas interligadas
ao comércio exterior e finanças
do governo. Os gastos para sustentar o programa de desenvolvimento e a construção da cidade satélite resultaram em crescentes déficits no orçamento federal no final de seu governo.
Para simplificar, o governo gastava mais do que arrecadava e o
resultado disso foi uma relativa
perda de autonomia do país gerada por uma dívida extern a
muito alta em virtude dos empréstimos obtidos com bancos
estrangeiros, a qual juntamente
com a inflação alta que começava a crescer no país e trazer
consigo a recessão e o desemprego foram os resultados de
uma política ambiciosa para obter a tão sonhada promessa de
campanha do desenvolvimento
denominado “50 anos em 5”.
A chegada das montadoras
E é nesse cenário de transformação e desenvolvimento que o
Fusca começaria a se estabelecer
como o primeiro carro popular
brasileiro. De acordo com o livro
A História do Fusca, publicado
pelo estudioso e um dos criadores do dia nacional e internacional do carro, Alexander Gromow,
foi através de José Bastos
Thompson, da Companhia Geral
Distribuidora Brasmotor (atual
Multibrás), que o “besouro” chegou ao país. Segundo a versão
oficial da Volks publicada no li-
vro, após acompanhar uma reportagem sobre a reconstrução da
fábrica na Alemanha, Thompson
ficou apaixonado pelo carro, e ao
procurar saber mais sobre ele passou a acreditar que poderia dar
certo por aqui, fato que ficou ainda mais evidente quando descoFoto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc.
JK desfila a bordo de um Fusca conversível
durante a inauguração da fábrica da
Volkswagen em 1959.
Seu governo ficaria conhecido como o que
mais favoreceu a indústria automobilística.
briu que o carro era relativamente ágil e funcionava sem água no
sistema de refrigeração, algo inédito na época. Através de cartas,
tentou por muitas vezes entrar em
contato com a direção da fábrica
na Alemanha, mas sem sucesso.
Ao saber que a montadora americana Chrysler, da qual a Brasmotor
era representante aqui no Brasil,
também era a responsável pela importação do carro, entrou em
contato com o presidente mundial da montadora americana, Cecil
B. Thomas, para poder viabilizar
o processo de importação do carro ao país. Os primeiros carros importados pela Brasmotor chegaram via Porto de Santos, Estado
de São Paulo, no dia 11 de setembro de 1950. Segundo
Gromow, analisando em seu livro um jornal da época que pertence ao seu acervo particular, o
n o m e d o n a v i o e r a “ Va p o r
Fusca Brasil n Novembro de 2007
Página 10
Defland” e transportava dez VW
sedans (nome do fusca na época)
e dois comerciais VW (a Kombi
que nós conhecemos hoje), pioneiros em terras brasileiras.
Em janeiro de 1951, chegou o
primeiro lote de seis CKDs – sigla que traduzida significa “kits
de montagem de carros completamente desmontados” – de Fusca, dando início a montagem dos
veículos no Brasil pela
Brasmotor, prática já difundida na
época e que também era utilizada na montagem dos veículos da
Chrysler vendidos aqui pela mesma empresa. A Volkswagen montou no Brasil, no dia 23 de março de 1953, seu primeiro galpão
para trabalhar em parceria com
a B r a s m o t o r, e j u n t a s ,
comercializaram no mesmo ano
um total de 2.895 Fuscas. O
galpão da Volks ficava localizado na Rua do Manifesto, Bairro
do Ipiranga, São Paulo, onde
doze funcionários montavam os
primeiros lotes de veículos importados pela empresa, permanecendo no mesmo local até o
dia 2 de setembro de 1957, data
em que a produção dos veículos
foi transferida oficialmente para
o complexo industrial no Km 23,5
da Rodovia Anchieta.
Apesar de a Ford e a General
Motors já estarem presentes no
país há um bom tempo, a produção dos veículos de passeio só foi
intensificada nos anos 50, justamente por meio do conjunto de
medidas políticas que “costuraram” essa fase de desenvolvimento nacional. Com esse pacote de
favorecimento, montadoras como
a Volkswagen conseguiram construir seus megacomplexos industriais que geraram milhares de
empregos diretos e indiretos e fizeram da região do ABC, e d e
várias outras, importantes pólos
industriais do Estado de São Paulo. E foi justamente pela oferta de
mão-de-obra barata, boa infra-es-
Reportagem Especial
trutura de transporte urbano e rodoviário – este importante para o
escoamento da produção até o
Porto de Santos – que essas empresas escolheram essas localidades. Isso, somado ao pacote de
incentivos fiscais, tributários e
obras de terraplanagem em terrenos acidentados (porém bem localizados) que as prefeituras desses municípios ofereciam, foi decisivo para o investimento e transferência dessas companhias. No
início do desenvolvimento,
montadoras como a Volkswagen,
General Motors do Brasil, WillysOverland, Toyota, DKW-Vemag e
a Simca foram empresas que tiveram uma boa parcela de importância na industrialização.
Portanto, essa evolução do parque industrial de uma maneira
geral, que tinha como base a indústria do automóvel, mudou aos
poucos a vida dos brasileiros nos
grandes centros. Isso ocorreu devido a diversos fatores políticos
e e c o n ô m i c o s , e n t re e l e s a
atração de dinheiro estrangeiro
e o estímulo do governo para inv e s t i m e n t o s d e e m p re s a s
Imagem/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc.
Anúncio da época sobre o novo modelo
disponível no mercado.
Foto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc.
multinacionais
aqui no Brasil. Tanto que
as indústrias
com maior
concentração
de capital
eram de fora
do país e 98%
delas re p re sentavam a
indústria automobilística.
O resultado
disso é que a Modelos deixam a linha de montagem em 1957. Fábrica começou a
renda nacio- operar dois anos antes de sua inauguração oficial pelo presidente JK.
nal com a
produção do café, principal pro- instalações em Tatuí cinco anos
duto brasileiro até então, já tinha depois e, em 1978, a Fiat lançou
sido ultrapassada pelo setor de o Pick-up 147, criando uma cateveículos. Sendo assim, de certa goria única até hoje no mundo: a
forma o carro passou a se tornar dos veículos pequenos de carg a
parte da identidade do Brasil, fi- derivados de automóveis.
cando muito difícil falar em proEsses fatos foram importantes
gresso sem citar os veículos. Para para o desenvolvimento de proa antropóloga Ana Lúcia Castro, dutos e tecnologia cada vez mais
“o carro representa uma identifi- brasileiros, como foi o caso do
cação brasileira com a constru- Proálcool, de 1975, que coordeção de uma indústria nacional; nava pesquisas na área de motoele é, devido a todo o processo res, fazendo o Brasil alcançar
pelo qual o Brasil passou, parte aquilo que Calmon chama de “esde uma identidade do país...”.
tado de arte” em motores a álcoE os resultados desse progres- ol, levando o país a produzir mais
so são apontados como relevan- de 90% da frota nacional exclutes por Calmon com mais intensi- sivamente para o uso do comdade nos anos 1970. Ele explica bustível vegetal em meados dos
que a própria Volkswagen, apro- anos 1980. Esses avanços foram
priando-se das antigas instalações alcançados no Laboratório de
da Vemag, criou um departamen- Pesquisa de Motores do Centro
to de projetos que desenhou em Técnico Aeroespacial, em São
suas pranchetas outro sucesso de José dos Campos (SP), com a ajuvendas: o VW Brasília em 1973, da do professor Urbano Stumpf,
um carro com desenho, fabrica- coordenador da pesquisa. Assim,
ção e desenvolvimento totalmen- a indústria conseguia aos poute nacionais. A partir disso, foi c o s s u p e r a r o s o b s t á c u l o s
dada a largada para a concorrên- tecnológicos, com pesquisas e
cia entre as montadoras, pois a exaustivos testes de campo.
GMB passou a investir em
Através disso, pode-se perceber
capacitação técnica e inaugurou que, do alto dos mais de 50 miem Indaiatuba, interior de São lhões de unidades de veículos (lePaulo, o primeiro campo de pro- ves e pesados) produzidas até hoje
vas da América Latina, em 1974, pela indústria do automóvel em
para Fernando “um verdadeiro geral, tudo foi conquistado a muito
marco”. A Ford inaugurou suas custo. O final da década de 1980
Fusca Brasil n Novembro de 2007
Página 11
Reportagem Especial
culminou com a decadência dos
motores a álcool, não por culpa
dos pesquisadores ou pela falta
de tecnologia, mas por questões
referentes à queda na oferta do
produto nos postos de combustível. Os anos 1990 ficaram marcados com a criação do Mercado
Comum do Sul e chega na fase
atual da indústria chamada de
“fase pró-ativa”, com o resgate do
interesse pelo álcool através da
nova tecnologia flex-fuel, onde
tanto se pode usar gasolina como
o combustível vegetal no tanque
do carro. Tecnologia que despertou a atenção dos países ricos com
a nova moda do “desenvolvimento sustentável”, e que trata basicamente do aproveitamento racional e consciente dos produtos que
podem ser obtidos na natureza
sem prejudicá-la. E sabe-se que o
álcool, por ser um combustível vegetal, além de mais barato, emite
uma menor quantidade de
poluentes na atmosfera terrestre,
contribuindo para uma melhor
qualidade do oxigênio a ser respirado.
Qual o segredo do Fusca?
Muito ao contrário do que possa parecer, o Fusca teve que enfrentar inúmeras dificuldades para
se estabelecer como um sucesso
de vendas nacional e conquistar
a simpatia que carrega até hoje.
No período que desembarcou
aqui, o país possuía uma frota de
aproximadamente 530 mil veículos, para cerca de 52 milhões de
habitantes. Uma proporção de um
veículo para cada 100 pessoas,
Foto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc.
Foto marca o início dos testes do
programa pró-álcool.
exatamente o mesmo cenário da
Alemanha quando ele foi lançado por lá. E ao chegar em terras
brasileiras ainda teve que “encarar” a concorrência dos modelos
americanos, carros grandes, imponentes, luxuosos e com muitos
detalhes cromados que dominavam o mercado nacional. Mas o
pequeno e, para muitos na época, “estranho carrinho” tinha ao
seu favor a facilidade e o baixo
custo de manutenção, aliado a
robustez, economia de combustível para os padrões da época e o
O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL)
Assinado em 1991, o tratado tinha incialmente como integrantes
o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai. Ele possui como
princípios básicos a livre circulação de produtos, bens e serviços
entre os participantes, juntamente com a criação de uma tarifa
externa comum para todas essas transações. Ou seja, não existem
taxas ou encargos extras para todo o tipo de negociação entre
os países integrantes.
Atualmente o acordo também é de extrema importância para as
montadoras, que usam as vantagens – como a isenção de impostos –
para importar ou exportar seus produtos e assim ampliarem seu
volume de vendas e sua margem de lucro.
Fusca Brasil n Novembro de 2007
Página 12
motor localizado na parte de trás
do carro. Este último ponto era
um ótimo aliado para vencer subidas íngremes de terra, algo
muito comum no Brasil da época. Outros fatores que foram decisivos para o carro “cair” no gosto do público eram: a simplicidade em reparar possíveis quebras
no carro, afinal de contas, na época era muito difícil encontrar oficinas com o equipamento necessário para a manutenção; a economia que o carro oferecia no
consumo de combustível, pois ele
rodava uma média de 10
quilômetros com um litro de gasolina dentro da cidade; e, finalizando, o desempenho satisfatório
nas estradas esburacadas, resistindo com valentia a possíveis quebras que esses obstáculos poderiam causar.
Com essas qualidades, o carro
conseguiu “quebrar” o gelo com
o consumidor da época. A explicação para a durabilidade do
motor está na relação da baixa
potência, pois, segundo o engenheiro mecânico Agenor Gea,
“quando se procura tirar o máximo do motor, conseqüentemente a vida útil dele acaba se tornando reduzida, e esse é o ponto principal da durabilidade do
Fusca, pois ele não utilizava toda
a potência que o motor teria condições de oferecer. Poderia até
ser feita uma comparação com
os motores de mil cilindradas
atuais, que devido a refrigeração
a água podem trabalhar em alta
rotação e normalmente depois de
um tempo de uso tem problemas
no cabeçote (parte superior do
motor), que empena por sofrer
superaquecimento”. Portanto,
essa “margem de segurança” para
não utilizar todo o limite nas partes estrutural e mecânica era o
principal fator que colaborava
para sua robustez.
Gea diz que o ponto positivo
do carro é realmente a sua sim-
Reportagem Especial
plicidade. “Não tem nada para
dar problema. Ele tem o básico
necessário, e também a refrigeração a ar é algo que facilita muito”, explica. O fato referente à
simplicidade e durabilidade de
manutenção do carro foi amplamente noticiado na época, de
forma que pudesse transmitir
confiança ao público em relação
à novidade. E deu certo. Tanto
que o carro carrega até hoje a
fama de mecânica simples, como
analisa Edivaldo. “Se você pegar
o manual (do proprietário) de
instrução de um Fusca da década de 1970, ele te ensina a fazer
tudo no carro, até desmontar o
carro. Se você pegar o de qualquer outro carro ele diz: “Olha
esse botão serve pra isso e aquele serve para aquilo”, ao contrário do Fusca que demonstra
como é simples a manutenção
dele”, conclui. Os resultados positivos referentes a essa estratégia foram colhidos na seqüência:
no ano de 1959, estréia da sua
fabricação aqui no Brasil, foram
comercializadas 8.500 unidades,
e a partir de 1962 ele consagrouse como líder de mercado, vendendo um total de 31.014 carros.
Alguns anos depois, em julho de
1967, a Volkswagen comemorava a produção de 500 mil “besouros” brasileiros.
A década de 1970 ficou conhecida como a “era do Fusca” e o
período em que ele sofreu o maior número de transformações.
Para se ter um idéia do tamanho
do mercado que o carro ocupava, em 1973, 224.154 unidades
foram vendidas, o que representou uma média de 18.679 veículos que saíam das concessionárias todos os meses durante o ano.
Nesse mesmo ano o carro era responsável por 40% do mercado de
automóveis no país, conseguindo manter a média de produção
anual acima dos 200.000 até 1976,
acumulando cerca de 1.800.000
unidades comercializadas até o
início de 1980. Depois dessa fase
o carro não sofreu nenhuma alteração significativa até sua saída
de linha em 1986, que ocorre u
devido a concorrência acirrada
que começava a tomar conta do
mercado, principalmente após o
lançamento do Gol e do Passat,
modelos que possuíam um espaço interno maior, motores mais
potentes e uma relação custo
benefício muito mais atraente.
A queda e o re t o rn o
A defasagem que o projeto do
Fusca vinha sofrendo foi um dos
fatores determinantes para deixar
de ser fabricado, pois um carro
pensado e construído na década
de 1930, sem sofrer praticamente
nenhuma modificação significativa ao longo desses mais de 50
anos, não conseguiria enfrentar os
concorrentes modernos com o
mesmo nível de competitividade.
Um exemplo disso é o motor a ar
que, “devido à ausência da refrigeração a água, torna o carro
muito barulhento, e isso prejudica a zona de conforto que as pessoas tanto procuram, gerando
uma desvantagem para o consumidor em relação aos motores a
água mais modernos”, observa
Agenor. E foram basicamente esses motivos que levaram ao término do período de fabricação do
Fusca. Mas após um período de
sete anos, mais precisamente no
dia 25 de janeiro de 1993, Pierre
Alain de Smedt, então presidente
da Volkswagen do Brasil, foi chamado à Brasília para uma reunião
com o presidente do Brasil Itamar
Franco. Em pauta estava o interesse de Itamar em relançar o carro no mercado a um preço acessível, com a justificativa de combater o desemprego, estimular o
mercado de consumo de carros
populares – que tomava novos
rumos com o lançamento dos
A “cidade do Fusca”
Não, não se trata de piada nem de
brincadeira. Ainda existem cidades
onde os Fuscas são encontrados
freqüentemente nas ruas e são muito
valorizados na hora da revenda. Cunha, localizada em São Paulo, entre
as serras do Mar e da Bocaina, é aparentemente uma cidade como qualquer outra.
Ela é conhecida pelo seu potencial
turístico, tanto por meio de seus aspectos naturais como pelos ateliês de
produtos de cerâmica, onde é possível acompanhar o processo de
cozimento do barro em uma espécie
de “ritual” aberto a todos os interessados no assunto. Mas suas grandes ladeiras fazem com que os habitantes
da cidade quase sempre tenham que
enfrentar subidas ou descidas, dificilmente encontrando uma rua plana.
E esses são os principais motivos que
fazem do Fusca o transporte oficial da
maioria dos moradores de lá. A resposta para esse sucesso está na tração das
rodas traseiras, ingrediente essencial para
Fusca Brasil n Novembro de 2007
Página 13
Imagem/Crédito: Alexander Gromow.
um carro vencer subidas íngremes ou
atoleiros. Essas características associadas
ao baixo custo de manutenção e a facilidade para encontrar peças fazem do
carro um objeto cobiçado por lá.
Com esse exemplo, vemos que
mesmo depois de praticamente 60
anos de sua criação, em pleno o século XXI, o Fusca continua em alta
em alguns lugares e cumprindo fielmente sua missão de servir a muitas
pessoas que ainda não possuem condições de adquirir um carro mais
apropriado, e feito especificamente
para andar em terrenos acidentados.
Reportagem Especial
veículos de 1000 cilindradas – e
aproveitar a imagem positiva que
faz parte do carro. Entretanto, a
notícia não foi bem aceita pelos
críticos do governo e pela mídia
em geral. Para eles seria um retrocesso o país voltar a fabricar
um carro que já havia saído de
linha com o discurso de que outros veículos modernos estavam
chegando para melhorar a qualidade dos produtos oferecidos.
Mesmo assim, foram investidos cerca de US$ 30 milhões
Imagem/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc.
Ilustração com os detalhes internos do
cãmbio (acima) e do motor (abaixo) do
Fusca. De acordo com Gea, “Não tem
nada para dar problema. Ele tem o
básico necessário, e também a refrigeração
a ar é algo que facilita muito”.
para adequar a linha de montagem ao relançamento do carro,
gerando algo em torno de 800
novos empregos diretos e aproximadamente 24 mil indiretos.
A festa de inauguração ocorre u
no dia 24 de agosto de 1993,
em uma cerimônia que o presidente Itamar, da mesma maneira que Juscelino fez, desfilou
em carro aberto pela fábrica.
Para Gea, a decisão foi mais política do que comercial, pois o
carro já havia chegado em seu
limite de produção, ou seja, não
havia muito mais o que fazer
para melhorar o projeto. Prova
disso é que nem chegaram a utilizar a injeção eletrônica no carro – usada por um período na
Kombi antes da substituição
pelo atual motor 1.4 com refrigeração a água – , um importante recurso na ampliação da
potência do carro. Na verdade,
Gea acredita que foi tirado “sal
de pedra”, porque ele rendeu
até demais, passando de 1.200
cilindradas para 1.300, 1.500 e
finalmente 1.600, tendo inclusive várias versões.
Um dos motivos para esse retorno do Fusca foi a diminuição
do IPI (Imposto sobre Produtos
Industrializados) que incidia sobre os carros populares da época. O imposto passou a ser cobrado através de uma taxa simbólica de 0,1% para carros 1.0,
incluindo o “besouro”. As vendas responderam de forma mais
positiva após a implantação do
Plano Real, em 1994, acabando
com a inflação crônica e acelerando o consumo de bens duráveis através da criação de linhas
de crédito para financiamento.
Em setembro de 1994, o ministro da Fazenda, Rubens
Ricupero, decidiu antecipar a implantação de tarifas externas comuns do Mercosul que começaram a vigorar em 1995. O
objetivo dessas tarifas era faciliFusca Brasil n Novembro de 2007
Página 14
tar a entrada de veículos importados com um preço competitivo para o mercado nacional,
combatendo a elevação dos preços via ágio que acabaram se
multiplicando após o excesso de
procura pelos carros novos que
o crédito fácil provocou, colocando em risco a inflação do
país. Contudo, o conjunto dessas medidas aumentou a importação dos bens e diminuiu a exportação, causando um crescente prejuízo na balança comercial (responsável pelo cálculo daquilo que o país vende e compra de outras nações), e fazendo com que o governo aumentasse o IPI para 32%. Essas medidas, somadas à crescente disputa e modernização do segmento dos veículos 1.0, fez com
que o Fusca, juntamente com o
seu projeto antigo, ficassem
inviáveis para a Volks.
Mesmo assim, nesse último e
curto período de fabricação, o
carro vendeu cerca de 50 mil
unidades, tendo o último modelo deixado a linha de produção brasileira em junho de 1996.
Essa versão continuou sendo
fabricada até o dia 30 de julho
de 2003, na cidade de Puebla,
México, onde definitivamente
deixou de ser produzido para o
mundo. Além do próprio esgotamento do projeto do carro, a
saída de linha do modelo ocorreu, entre outros fatores, devido às normas internacionais que
controlam a emissão dos
poluentes,
procurando
minimizar a quantidade dos gases que provocam o efeito estufa,
aumentando
gradativamente a temperatura
do planeta. Gea explica que isso
ocorre porq u e: “quando você
não tem uma boa relação potência/consumo, existe um grau
de emissão de poluentes muito
maior. Na tecnologia atual, através de sensores de oxigênio
Reportagem Especial
chamados de sonda lambda
(que calculam a medida ar/combustível exata e enviam ao computador central do carro os dados da proporção correta que
deve ser utilizada no momento) procura-se obter uma queima de combustível na medida
certa para que o motor aproveite melhor a gasolina ou o álcool. Portanto, quando se queima
melhor o combustível, evidentemente obtém-se um nível de
emissão de poluentes menor;
são os chamado motores ecologicamente corretos”.
O Fusca chegou ao Brasil em
um momento que era necessário um meio de transporte
confiável para desbravar estradas cheias de buracos, e que
em muitos casos nem asfaltadas eram. Gea explica que a
contribuição do carro foi principalmente na criação e estabilização de um mercado consumidor de carros em massa, “fato
que nem o Ford T, ou Ford bigode, havia conseguido por
aqui”, salienta. E essa expansão da qual o carro participou
criou uma relação com os proprietários de tal maneira que é
muito difícil você encontrar
uma pessoa na faixa dos 40
anos, hoje, que nunca teve e
nunca dirigiu um Fusca. Por
esse motivo, os saudosistas
Foto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc.
Linha de produção do Fusca em 1964.
Foto/Crédito: Edivaldo Fernandes, Fuca abc.
logo trataram de criar
clubes e encontros que,
segundo Ana Lúcia Castro, revelam essa identificação de nacionalidade brasileira com o “besouro”. Isso quer dizer
que é necessário para
esses amantes do Fusca
se encontrar com outros
que expressem o mesmo Modelo conhecido como “Itamar” foi relançado em
sentimento pelo carro 1993, e fabricado até 1996.
para poder mostrar qual
é o modelo mais antigo, o mais am clubes, são aficionados na
bem conservado, qual a peça história, na trajetória do carro. “É
que deu mais trabalho para ser possível encontrar vários tipos de
encontrada. Nesses simples en- pessoas que são fãs do mesmo
contros, barreiras sociais e cul- carro”, finaliza.
turais são transpostas através da
O encontro dos
discussão dos assuntos referenp roprietários
tes ao carro, estabelecendo uma
linguagem característica no gruE é essa impressão que temos
po por meio de uma ponte de
ligação com um passado que quando presenciamos um enconprovavelmente deixou saudade tro. Em um deles, realizado no ese, ao mesmo tempo, fugindo de tacionamento da Fundação Santo
u m p re s e n t e c u l t u a d o r d o André, na cidade de m e s m o
consumismo que torna as pes- nome, todo segundo domingo de
cada mês, encontramos os mais
soas mais vazias.
Fato comprovado se analisar- diversos tipos de grupos. Existem
mos os clubes do Fusca que exis- a q u e l e s q u e g o s t a m d o
tem atualmente em vários países Volkswagen Gol, dos modelos da
e s p a l h a d o s p e l o m u n d o . Fiat, da Chevrolet, do Fusca, de
E d i v a l d o c o n t a q u e p o s s u i alguns tipos de motos etc; e cada
contato com “gente do mundo qual se reúne no seu espaço deinteiro” que possui Fuscas. “São terminado para trocar informações
países pequenos que mantêm a sobre o assunto. Isso sem contar
mesma paixão pelo carro, e mes- o mercado paralelo de peças desmo estando do outro lado do tinadas a esses modelos, o chaplaneta o sentimento é o mes- mado “mercado de pulgas”, onde
mo. Tem amigos meus na Ilha se encontra quase de tudo: carda Madeira (Portugal), que é um buradores, volantes, emblemas
pedacinho de terra no meio do com o nome do carro, painéis e
oceano pacífico, e nós mantemos até alguns produtos artesanais
contato sempre. Tem também na como pinturas, miniaturas etc. A
África do Sul, Espanha, Costa- impressão que se tem é a de uma
Rica, Alemanha, Estados Unidos, feira de exposição com locais reonde você imaginar; é até um servados para a compra e venda
pouco de troca de cultura”, ex- de veículos, peças e outros proplica. Para ele o público que dutos. Nesses locais, é possível
mantêm o carro é bem eclético, notar a presença de famílias com
vai desde a pessoa que tem o seus animais de estimação, criancarro por necessidade até os ças, jovens, adultos e idosos pas“cultuadores desse mito” que cri- seando tranqüilamente e reparan-
Fusca Brasil n Novembro de 2007
Página 15
Reportagem Especial
do em cada modelo, cada detalhe, trocando informações e fazendo perguntas aos proprietários sobre como achar bons mecânicos,
peças de qualidade, carros impecáveis para compra, manuais do
proprietário de alguns veículos
raros, os principais defeitos e qualidades de cada modelo etc. Sem
contar os que gostam do carro um
pouco mais modificado, com alterações na potência do motor, rodas maiores e cores diferentes da
época em que foi fabricado. Enfim, é um prato cheio para quem
gosta de uma boa conversa, e
agrada aos diversos estilos daqueles que gostam de carros antigos.
E foi em meio a esse ambiente
que encontramos Luiz Carlos, 39
anos, técnico em laboratório, que
possui um Fusca de cor branca,
turbinado. Ele conta que sempre
gostou do modelo, e o seu primeiro carro foi justamente um
fusquinha comprado de sua avó.
“Era um modelo 1973, verde limão,
que foi usado por ela um bom tempo.” A relação com o carro é tão
intensa que ele afirma que “está
no sangue, veio do meu pai e por
incrível que pareça já contaminei
minha filha. Uma vez uma pessoa
me ofereceu uma grana muito boa
para comprar meu carro, e ela começou a fazer um escândalo tão
grande quando eu disse que ia
vender, que acabou não deixando eu vender, não. Então ele (o
carro) não é importante pelo uso,
mas sentimentalmente ele é muito importante pra mim”.
Caso semelhante ocorreu também com a publicitária Priscilla
Ozanan, de 24 anos. Ela conta que
ganhou o carro do avô que, embora permaneça vivo, acabou cedendo o Fusca para ela quando
completou 18 anos. No princípio,
por não gostar muito do carro,
acabou desprezando um pouco o
presente, mas com o tempo acabou se apaixonando. “Eu achava,
a partir dos conceitos de outras
pessoas, que era um carro velho,
só servia para trabalhar. A única
coisa que eu gostava era que ele é
redondinho, porque eu não gosto
de carro quadrado”. No começo o
carro era usado para ir e voltar d a
faculdade e do trabalho, e ele sempre respondeu às suas expectati-
vas, nunca apresentando um defeito grave. Com o tempo, o sentimento aumentou pelo fato de
perceber que o amor de seu avô
estava expresso através daquele
carrinho. “Onde eu passava as pessoas, principalmente com mais idade, olhavam e admiravam o carro,
Entrevista com a Antropóloga Ana Lúcia Castro
Buscamos a ajuda da doutora em antropologia, Ana Lúcia Castro, para tentar
compreender um pouco mais sobre a paixão pelo Fusca. De acordo com ela,
todo ser humano busca produzir algum sentido à sua vida através da identificação com grupos. Isso vale tanto para a pessoa que procura se vestir de uma
determinada maneira e só anda com o grupo que utiliza àquele tipo de vestuário, como para os colecionadores de um determinado tipo de objeto. Através
disso estabelecem uma linguagem, costumes e regras próprias que vão designar
suas atitudes e demonstrar que fazem parte de uma “tribo”, automaticamente se
diferenciando de outras.
Essa análise é de extrema importância para tentar entender o que move e estimula
tantos proprietários a cultivarem o carro e esse tipo de “ritual” que são os encontros,
onde os grandes personagens são os Fuscas.
1) Porque em determinados grupos um carro antigo pode despertar uma
paixão tão grande?
Eu acho que tem uma questão que a gente precisa ter sempre em mente: é
próprio do ser humano buscar o que dá sentido à sua vida através de elos de
pertencimento a um grupo. Eles indicam a identificação com outros seres humanos
e com outros elementos do mesmo grupo, e ao mesmo tempo, e isso que é mais
interessante, essa identificação implica em uma fronteira simbólica que é levantada
em relação ao diferente. Então eu me identifico com alguns e estou me distinguindo
de outros grupos.
Portanto, essa paixão pelo carro antigo, que poderia ser por outro tipo de
objeto, é um exemplo, mas de uma questão mais real, e é interessante você
perceber isso expresso na paixão pelo carro, ainda mais o Fusca que tem toda
essa identificação com uma nacionalidade brasileira e com a construção de uma
indústria nacional.
2) Então essa paixão não é ideológica, mas sim uma busca pelo consumo?
O que vincula essas pessoas, esse grupo, não é ideológico, você pode até ter ali as
pessoas que tem militância política ou não. O recorte é simbólico de outra ordem. É
relativo ao que o carro simboliza pra essas pessoas.
3) Mas não seria um recorte de classe?
Claro que você tem que ter um pouco de informação e um poder aquisitivo
mínimo para poder adquirir os objetos. Mas passado esse patamar mínimo, você
pode ter pessoas de classe A ou de classe B e não é isso que vai definir. Não é uma
definição de classe que está unindo essas pessoas é a necessidade de dar sentido às
suas vidas nesse mundo tão complexo e com significados tão emaranhados. Um
mundo onde você tem uma multiplicidade tão grande de referências e ao mesmo
tempo um certo vazio, porque as pessoas ficam perdidas nessas referências e esse
mundo acaba gerando um certo vazio.
Você pode entender que a motivação, mesmo de uma pessoa aficionada que
comprou o Fusca zero e o mantém até hoje, é dar um sentido à sua vida se apegando a um bem de consumo que no passado foi até um objeto de ostentação, mas que
caiu em desuso, e através desse Fusca, ele procura gerar um sentido.
Nosso mundo, em função do processo de globalização, tem uma profusão de
imagens e de informações intensa, por isso as pessoas criam formas de se apegar
a elementos, objetos ou produtos culturais que são constantes, porque senão cai
no vazio mesmo. Quando nós olhamos para essas práticas cotidianas, vemos que
o indivíduo está se posicionando, está buscando canalizar os seus anseios.
Fusca Brasil n Novembro de 2007
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Reportagem Especial
perguntavam pelo ano e diziam
que estava muito bonito.” Para ela
o carro tem sentimentos. “Sempre
via que as pessoas não cuidavam
muito bem dos Fuscas nas ruas,
para muita gente nem carro ele é
considerado. Mas se as pessoas
cuidarem direitinho dele, nunca
vai dar trabalho. E essa sensação
de que o carro sente quando nós
gostamos dele aumentou ainda
mais quando assisti ao filme
Herbie, meu Fusca turbinado, porque você vê que é realmente assim; olhando pra carinha dele, parece que tem sentimento.”
Já para Ronaldo Alves, 22
anos, assessor de imprensa, o
Fusca é um carro sem nada para
oferecer. Ele acha o modelo “um
pouco bonito, simpático, mas
não compraria de jeito nenhum.”
“Não consigo entender o que
vêem no carro; é preciso gostar
muito para comprar um”, ironiza.
Seu primeiro carro foi um
“golzinho” que deixou muita
saudade. “Ele tinha um ótimo espaço interno, sua mecânica nunca me deu trabalho e suas peças
eram muito baratas”, por esse
motivo ele disse que preferiu esperar um pouco mais para adquirir o primeiro carro, já que na
época o dinheiro que tinha só
dava para comprar um Fusca.
“Meu pai ainda me sugeriu um
Foto/Crédito: Roberto Tenório.
“Besouros” em exposição durante o
encontro no ABC.
Fusca, disse que seu primeiro
carro foi um que se chamava
“Precioso”, mas eu não ia conseguir andar com um carro barulhento, fraco e que não oferece nenhum conforto. Por isso
não tive dúvida: esperei mais um
pouco e comprei o carro que
queria”, afirma.
A antropóloga Ana Lúcia Castro explica que as modificações
pela qual o mundo vem passando no decorrer dos anos, junto
com o bombardeio de imagens e
informações, faze m com que as
pessoas se apeguem a eixos que,
“
têm pessoas que andam com o carro do
ano, enquanto eu
ando com o carro do
século...
”
como no caso do Fusca, representariam um elo do passado com
o presente, e deste com o futuro.
É como o exemplo do proprietário que comprou o carro zero e o
conserva até hoje em suas mãos.
Na época que ele comprou o carro era um produto da moda, mas
com o passar do tempo ele tornou-se um objeto ou elemento
cultural que proporciona sentido
à vida do dono. Assim, é possível notar que tal proprietário procura manter essa ligação com a
época em que ele adquiriu o carro, levando-o a crer que era uma
fase que acrescentou algo muito
bom à sua vida.
O fato observado diz respeito
à maneira como o carro marca a
vida dos proprietários. Muitos
dos que “cultuam” o carro
atualmente já tiveram na infância algum tipo de experiência
que os faz lembrar do carro com
carinho. É o caso do Balconista
Rogério, de 31 anos, que explica sua relação com o carro. “O
Fusca Brasil n Novembro de 2007
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imagem/Crédito: Roberto Tenório.
O chamado “mercado de pulgas”, local onde
podem ser achadas algumas peças raras.
Fusca foi meu primeiro carro. É
uma coisa que vai ficar marcada
para sempre, é como a primeira
namoradinha: a gente nunca esquece.” Seu primeiro contato
com o carro foi através de seu
irmão, que possuía um, quando
Rogério era bem novinho. “Comecei vendo ele mexer no carro, transformar algumas partes,
trocando pneus e rodas. A partir daí comecei a pegar gosto
pelo carro, peguei gosto pela
coisa”, brinca. Para ele, muitos
“torcem o nariz” para o carro
pelo simples fato de ele estar associado à imagem do proletariado até hoje. “É o que eu falo:
tem pessoas que andam com o
carro do ano, enquanto eu ando
com o carro do século!” Carro
que aliás já o deixou em situação de apuros. “Uma vez saí com
a minha namorada e fazia uns
três meses que a gente estava
junto. Quando eu estava indo
embora do local do encontro,
meu Fusca quebrou e não havia
quem fizesse o carro pegar.”
Para ele, o mais complicado foi
mandar a namorada embora de
ônibus. “O pior foi ver ela entrar no ônibus com aquela cara
de sem graça”, se diverte.
Sangue brasileiro
E é justamente por todos esses motivos que muitas pes-
Reportagem Especial
de tecnologia, gerando mais
e m p regos e transforma n d o a
rotina das grandes cidades,
seja porque foi o primeiro veículo que conseguiu atingir o
maior número de consumidore s , q u e b r a n d o re c o r d e s d e
vendas e compondo grande
parcela da frota de automóveis
soas têm a impre s s ã o d e q u e
o carro possui “alma” brasileira. De certa forma, o carro re almente está profundamente
enraizado na história do país
de uma maneira geral. Seja
pelo fato de ter chegado por
aqui em uma fase de transição
industrial, que elevou o nível
que transportou quase todos
os brasileiros que hoje estão
na faixa dos 40 a 50 anos de
idade. Com isso, a verdadeira
re s p o s t a p a r a a q u e s t ã o d o
Fusca está na história que cada
proprietário viveu com ele, e
na maneira que essa experiência foi vivida.
Entrevista com Alexander Gro m o w
1) Como surgiu seu interesse pelo
c a r ro ?
Com a compra do primeiro e único Fusca que tenho até hoje (um modelo 1955).
Fui me interessando pelo carro, comecei a comprar revistas especializadas e a
colaborar com elas, pesquisar em livros
estrangeiros e a me informar sobre a história do Fusca. Logo cheguei à conclu-
5) Como foi o processo para criar o
dia municipal e mundial do Fusca?
Foto/Crédito: Ervin Moretti.
Ele é referência quando o assunto é
Fusca. Alexander Gromow pode até ser
considerado como o “Papa” dos
fusqueiros, não só pelo conhecimento
profundo em relação ao assunto, mas,
principalmente, pela sua dedicação na
busca e organização dos documentos,
datas, nomes e fatos relacionados ao
famoso carrinho. Nascido na Alemanha,
em 1947, vive no Brasil desde 1949,
onde ainda criança aprendeu a gostar
de automóveis. Foi um dos fundadore s
do Fusca Clube do Brasil, atualmente a
única entidade reconhecida oficialmente pela Volkswagen do Brasil como representante do carro. Engenheiro bem
sucedido e poliglota (fala sete idiomas)
é reconhecido como entusiasta da marca pela própria Presidência e Diretoria
da Volkswagen.
No Brasil foi um dos responsáveis pela
criação do “Dia Municipal do Fusca”,
comemorado no dia 20 de Janeiro através da lei promulgada pelo então prefeito Paulo Salim Maluf, além de lançar
no conhecido evento de Bad Camberg
(um encontro anual que reúne Fuscas
de várias partes do mundo), na Alemanha, o “Dia Mundial do Fusca”, celebrado no dia 22 de Junho, data da aprovação do projeto do carro pelo governo alemão, em 1934. Por todos esses
motivos e por pesquisar a história do
carro desde 1970, seu nome é muito
popular entre os amantes do carro e sua
autoridade no assunto reconhecida internacionalmente.
E com exclusividade, a Revista Fusca
Brasil traz uma entrevista sobre o autor
do livro: Eu amo o Fusca, fruto de vários
anos de pesquisa.
Alexander Gromow e o seu “Rosinha”.
são de que aquela história tinha ingredientes especiais e que não se tratava de
mero produto industrial.
2) De onde surgiu a idéia de escre v e r
o l i v ro ?
Durante essa fase de descoberta sobre o
carro, eu procurei uma publicação com a
história do Fusca também no Brasil e não
encontrei nada. Ai surgiu a idéia de preencher esta lacuna para a posteridade, ou
seja, para permitir uma fonte de pesquisa
para as gerações vindouras também.
3) Há quanto tempo você pesquisa sob re o assunto?
Desde o início da década de 70. O trabalho
de preparo do primeiro livro levou 15 anos.
4) Em seu livro você aborda muitos
fatos re f e rentes às datas, pessoas e
e m p resas envolvidas com o Fusca. Porque você não relacionou a todo esse
p ro c e s s o a s d e c i s õ e s p o l í t i c a s e
econômicas que o governo brasileiro
tomou na época?
Havia a necessidade de se fazer um compromisso entre o tamanho do livro e seu
conteúdo. Para fazer um registro completo o livro teria o triplo do tamanho, entraria em detalhes que interessariam a poucos e fugiria da meta inicial que foi respeitar o lamentável fato do brasileiro preferir
uma revista de fotos a um livro.
Fusca Brasil n Novembro de 2007
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O Dia do Fusca no Município de São
Paulo foi instituído pela Lei Municipal
número 12.202 de novembro de 1996. A
idéia surgiu de contatos com o Prof. Fábio Lazzari que tinha um cargo na Secretaria de Esportes Turismo e Lazer, e era
assessor do Vereador Toninho Paiva. No
dia 20 de janeiro de 1997 foi realizada
uma cerimônia solene para a comemoração do primeiro Dia do Fusca oficial
em São Paulo.
Já a criação do dia mundial foi um trabalho árduo que levou vários anos e que
envolveu clubes de várias partes do mundo. Eu tive a idéia e trabalhei no sentido
de lançá-la mundialmente. Acabou prevalecendo o dia 22 de junho, pois nesta
data, em 1934, foi assinado o contrato
que deu início ao desenvolvimento do
Fusca por Ferdinand Porsche.
6) Na sua opinião, qual foi a importância e a colaboração histórica do
Fusca para a indústria de uma forma geral?
Costumo afirmar que o Fusca foi o presente que Hitler deu para a Alemanha,
país que, paradoxalmente, ele mesmo
ajudou a destruir.
Resumindo: por onde o Fusca passou,
ele trouxe progresso, conhecimento e
alegria para os povos dos países onde
ele foi fabricado, montado ou simplesmente vendido. Seu significado histórico é indelével, já foi eleito o carro do
século, foi produzido, praticamente com
a mesma “cara” mais de 22 milhões de
vezes, e há muitos deles andando por
aí, e muitos “objetos” com seus componentes andando no céu (aviões) e na
água (barcos).
7) O que o leva a cultivar a paixão
p e l o c a r ro ?
O carro e sua história. Sei o que houve e
sei que há muito para recolher de dados
históricos, e aprender é cativante. Para
mim, isso já basta como motivo.
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