Revista Mais Dados 2014 - Narrativa da Imaginação
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Revista Mais Dados 2014 - Narrativa da Imaginação
Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 2 Revista científica da ong narrativa da imaginação voltada à análise de experiências e pesquisas sobre role playing EDITOR-CHEFE RESPONSÁVEL Rafael Correia Rocha – Universidad de la Empresa (Uruguai) CONSELHO EDITORIAL CONSELHO EXECUTIVO Márcio Roberto do Prado – UNESP Marialva Pinto Moog - Universidade do Vale do Rio dos Sinos Dr. Sérgio Paulo Morais - UFU Dr. Túlio Barbosa – UFU Ms. Rafael Correia Rocha – Universidad de la Empresa (Uruguai) Maria do Perpétuo Socorro Calixto Marques - Unesp - Universidade Júlio de Mesquita Matheus Vieira Silva - Universidade Tuiuti do Paraná Esp. Fernando Paulino de Oliveira UFU Michele Mogami - Universidad de La Empresa (Uruguai) Fernando José Calazan Florêncio – UFU Rafael Carneiro Vasques - Unesp Araraquara CONSELHO CONSULTIVO Rafael Duarte Oliveira Venancio USP Raimundo Rangel Dinello Universidade de Bruxelas (Belgica) Alessandro Eleutério de Oliveira – UFSCAR Sonia Aparecida Silva Gonçalves – Uniube Carlos Eduardo Klimick Pereira PUC-Rio Paulo Roberto de Almeida - UFU Dilma Andrade de Paula - UFU Wagner Luiz Schmit - Universidade Estadual de Londrina Edvaldo Souza Couto - UNICAMP Waléria Furtado Pereira – USP Eliane Bettocchi - UFJF Fabiano Rodrigo da Silva Santos – UNESP Ana Letícia de Fiori - USP COLABORADORES EXTERNOS Gercina Santana Novais - USP Lucas Ferreira de Paula – UFU Luiz Gonzaga Falcão Vasconcellos – UFU Ana Letícia de Fiori – USP Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Goshai Daian Loureiro - Fundação Oswaldo Cruz Luiz Falcão - Unicentro Belas Artes R349 Revista mais dados: o role playing por diferentes olhares e contextos – Ano 1, v. 1 (2014) Uberlândia, MG: Narrativa da Imaginação, 2014-. v. : il. ; 15 cm. Anual. ISSN: 2358-1301. 1. Educação 2. Jogos 3. Role-playing game (RPG) I. Título CDD 794 CDU 79 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP Roberta Amaral Sertório Gravina, CRB-8/9167 REVISOR: Ismael Gonzaga Magalhães Neto e Aroldo José dos Santos. CAPA: Rafael Correia Rocha PERIODICIDADE: Anual INDEXADORES: Sumários.org. DISPONÍVEL EM: http://www.narrativadaimaginacao.com/p/revista-mais-dados.html CORRESPONDÊNCIA ONG Narrativa da Imaginação Av: Estrela do sul, 1946 – B. Osvaldo Resende - CEP 3840-399 – Uberlândia/MG E-mail: [email protected] MAIS DADOS é uma publicação virtual da ONG Narrativa da imaginação. Número editado pela mesma em julho de 2014. 2 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 2 ÍNDICE APRESENTAÇÃO 05 Artigos 07 POR TRÁS DA MÁSCARA, OS SIGNOS DE CAIM: REMINISCÊNCIAS DO ROMÂNTICO E DO TRÁGICO EM VAMPIRO: A MÁSCARA, DE MARK REIN-HAGEN - Fabiano Rodrigo da Silva Santos 08 A LINGUAGEM DO ROLE PLAYING - Rafael Correia Rocha 35 POR UMA TEORIA LACANIANA DO ROLE PLAYING GAME - Rafael Duarte Oliveira Venancio 54 ROLE-PLAYING GAME: o que é isso que me faz desejar criar e aprender? - Eliane Bettocchi e Carlos Klimick 70 Traduções 92 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 LINGUAGEM CULTURAL DE ROLE-PLAYING - Angelina Ilieva – Trad. Giovanni Barbon de Oliveira 93 AS REGRAS INVISÍVEIS DO RPG: O QUADRO SOCIAL DO PROCESSO DE RPG – Markus Montola – trad. Reynaldo Allan Fulin e Giovanni Barbon de Oliveira 123 NOVOS SABORES NO LAR BRASILEIRO: Da coca-cola à caipirinha com gelo nórdico – Luiz Falcão – Trad. Luiz Falcão 158 Entrevistas 179 GRUPO INTERPRETAR E APRENDER – Lucas Eduardo de Freitas 180 ARTICULAÇÕES SOBRE PROJETOS DE RPG E EDUCAÇÃO EM UBERLÂNDIA (MG) – Vinícius Rennó 185 ASSOCIAÇÃO E ENCONTROS DE RPG EM VIÇOSA (MG) - Rafael Correia Rocha 190 Jogos 196 Álcool - Luiz Prado 3 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 197 4 Café amargo - Luiz Prado 200 Aos Colaboradores 203 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 APRESENTAÇÃO 5 Este primeiro volume surgiu com o amadurecimento de discussões que foram fomentadas em 2006, no quarto e último Simpósio de RPG e Educação. Havia à época debates sobre as produções acadêmicas do gênero role playing, assim como hoje é uma das questões mais comuns feitas na academia, era o porquê estudar esse tema tão incipiente, ―que ninguém pesquisa‖ ou ―que ninguém ouviu falar‖. Com o tempo e muitas conversas entre pesquisadores dois pontos se tornaram chave para compreender as questões desse tema: organização e notoriedade. Os materiais sobre role playing estão espalhados na internet, nem todos com profundidade acadêmica, assim como os livros produzidos ou traduzidos sobre o tema são poucos. Nesse contexto, o pensamento mais transparente era sobre ―como estudar o que não tem fontes seguras e sobre o qual não se identificam trabalhos periódicos por núcleos de estudos, revistas, livros, simpósios, etc.?‖ O tema parecia que boiava em um oceano ondulado. Porém, mesmo em um cenário aparentemente crítico e vago, os pesquisadores Brasileiros surgem como uns dos maiores produtores acadêmicos do tema na América Latina em revistas sobre educação, arte, psicologia, ciências sociais, entre outras e eventos acadêmicos nos quais os trabalhos sobre role playing estão sempre presentes, mas de maneira dispersa, sendo esse um dos principais motivos para que o tema não seja levado a sério. O estudo do role playing no Brasil ainda é muito jovem e necessita de orientação crítica para criar distinção do campo do entretenimento sem perder sua raiz lúdica. Esta revista vem como uma devolutiva de representação social e científica sobre os saberes produzidos em relação ao tema e buscará suprir os pré-requisitos de organização e notoriedade. Atualmente, existem dois canais evidentes experimentados até então para estudar role playing, o live action role playing (representação ao vivo) e o role playing game (jogo de representação de papéis), porém, estes não são Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 padrões rígidos de representatividade, outros elementos lúdicos e expressivos interagem na composição dessas práticas ou derivam das mesmas. Penso que a revista possa criar espaços para diálogos entre LARP, RPG, MMORPG, RPG eletrônico, BOARD GAME, CARD GAME entre outros produtos e sub-produtos nessa teia espiral de produção imaginativa. Rafael Correia Rocha Editor Chefe 6 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 7 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 ARTIGOS 8 Este primeiro exemplar refletiu a distinta coligação entre ensino, pesquisa e extensão no ensino superior. Anunciando que o role playing de acordo com as manifestações sócio-culturais e educacionais no eixo sul-sudeste, dentro e fora das universidades, apresenta certo norteamento. Projetos de extensão e ensino são muito mais atuantes em forma de eventos, atividades em sala de aula e cursos; todavia se contrapõe em densidade na relação com a pesquisa mediante o devido registro de experiências e análise crítica sobre a mesma. Nos artigos subseqüentes é possível vislumbrar a flexibilidade de olhares diante do campo das ciências humanas na busca de compreender, em parte, uma identificação conceitual sobre o role playing e suas variantes, seus encontros com o posicionamento de autores de maneira transdisciplinar. Esses encontros de produções acadêmicas se agrupam com intuito de tornar-se um eixo referencial teórico e investigativo para os pesquisadores que buscam compreender e trabalhar com esse tema com seriedade, estabelecendo melhores parâmetros de diálogo com a academia. Vislumbrando, assim, possibilidades futuras de núcleos de pesquisa e disposição de pesquisadores que contribuam para a produção na relação entre a experiência e a análise crítica, permitindo o aprofundar sobre determinados interesses, instigando questões, dúvidas e problemáticas pertinentes ao exercício científico. Rafael Correia Rocha Editor Chefe Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 POR TRÁS DA MÁSCARA, OS SIGNOS DE CAIM: REMINISCÊNCIAS DO ROMÂNTICO E DO TRÁGICO EM VAMPIRO: A MÁSCARA, DE MARK REIN-HAGEN. Fabiano Rodrigo da Silva Santos Mestre e Doutor em Estudos Literários pela UNESP-FCL. [email protected] Resumo: O presente artigo tem por objetivo tecer algumas considerações acerca das reminiscências da estética romântica presentes no jogo de Vampiro: a máscara, de Mark Rein-Hagen. Tal perspectiva é sensível aos aspectos temáticos do jogo, que atestam vínculos com a literatura fantástica de orientações romântica e manifestam motivos reincidentes na poética do romantismo, tais como o tema do duplo, o elemento fantástico e modernização do trágico. Pretende-se aqui tratar Vampiro: a máscara como um jogo, cuja constituição vale-se de alguns expedientes próprios da literatura, matizados pela perspectiva lúdica, pois é justamente nesses expedientes que residem os nexos do jogo em que a questão com a tradição da modernidade entrevista nos produtos da sensibilidade romântica. Palavras-chave: Romantismo. Modernidade. Role Playing Games. A dinâmica do passatempo contemporâneo conhecido como jogos de representação ou, na terminologia de sua origem, Role Playing Games (jogo de interpretação de papéis), desafia qualquer tentativa de categorização conforme as disposições dos jogos ordinariamente conhecidos. Ao contrário de práticas 9 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 lúdicas mais comuns como jogos de cartas, tabuleiros, atividades esportivas, etc., os RPGs não pressupõem a adversidade entre seus participantes, ou seja, não têm como ponto de orientação ou objetivo a competição entre jogadores e, portanto a vitória. Como a vitória surge como o término da maioria dos jogos, sua ausência em uma atividade lúdica exclui também seus limites e torna imprecisa a sua finalidade; ora, partidas de RPG não costumam terminar, exceto quando delimitados os fins objetivados por seus jogadores. Se a vitória não é necessariamente o norte dos jogos de RPG, seriam eles jogos de fato? Eis um questionamento comum que geram, inclusive, especulações a respeito de a que categoria de atividade pertenceriam os jogos de RPG. Como a dinâmica do jogo conta com forte participação de expedientes narrativos e dramáticos (os jogadores vivem histórias na pele de personagens que interpretam) é possível encontrar consonância entre os RPGs e determinados gêneros estéticos, podendo-se levantar questões acerca de quais seriam as fronteiras circunscritas ao conceito de jogo transpostas pelo RPG e se essa prática poderia ser observada sob os postulados da estética. Seria, contudo, um exagero considerar o RPG como atividade artística, visto que faltam aos RPGs objetivos de plasmação estética, criação de produto artístico, sem contar que eles não atendem às pretensões comuns à arte, sejam elas quais forem; ora, RPGs não buscam efeitos catárticos sobre o espectador, suscitar um novo olhar sobre o real ou permitir a eclosão da transcendência. Mesmo o belo, em qualquer acepção, não é agente motriz dos jogos de representação. Excluída a hipótese estética, volta-se à questão inicial: RPGs são, de fato, jogos? O mais correto seria classificá-los dentro de atividades lúdicas sim, mas que renovam o conceito de jogo, retrocedendo aos alicerces do conceito de jogo como atividade de entretenimento, distração e destituída de objetivos pragmáticos. Talvez, seu vínculo com a essência da atividade lúdica o distancie, paradoxalmente, das práticas lúdicas mais comuns; Elementos como vitórias, disputas, a superação de um jogador por outro não possuem correlação com os RPGs, mas sim, a intenção de configurar narrativas 10 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 vivenciáveis virtualmente, de constituir um simulacro de mundo edificado na imaginação. Originalmente, inspirado por romances de ficção – sabe-se que o primeiro RPG de que se tem nota, o Dungeons and Dragons, foi inspirado nas narrativas de Tolkien – os jogos de interpretação possuem uma identidade em comum à prática de contar histórias; de certo modo, o jogo serve de mote para o desenvolvimento de uma atividade análoga aos velhos contos populares e formas pré-literárias e estéticas; práticas, curiosamente, revivenciadas pelos RPGs em épocas contemporâneas. Os RPGs, de certo modo, ecoam as primeiras tentativas de mimesis do real, lembrando aqueles gêneros primordiais nos quais o embrião da arte ainda repousa no seio do lúdico. Podese admitir, grosso modo, que, arte, jogo e religião frutificaram do mesmo tronco – são oriundos da tentativa de representação do mundo, estando a religião e a arte em uma esfera mais vinculada ao transcendente (na religião, representada pelo sacro e na arte, pelo ideal) e os jogos mais ligados ao profano. Arte e religião seriam atividades miméticas mais pragmáticas, ao passo que, os jogos não; contudo, os três gêneros encontram-se na esfera da tentativa de criação de um simulacro do real com o intento de explicá-lo; uma tentativa de localização do homem na ordem cósmica e mesmo de atribuição a ele de poderes performáticos. A semelhança entre jogo, religião e arte é flagrante em várias atividades. Por exemplo; jogos de azar, como dados ou cartas, se por um lado constituem meros entretenimentos, por outro, flertam com a imprevisibilidade da fortuna – força que, por obedecer a uma ordem desconhecida ao homem, evocam o caráter hermético do caos, o monstro devorador que levou as religiões a plasmar suas cosmogonias e suscitou representações que estiveram sempre entre o sacro e o estético. Poder-se-ia dizer que dados não são menos que oráculos profanos, brincadeiras com as forças do destino que sempre assombraram a humanidade em sua tentativa de depreender a ordem que ata o universo a um eixo. Artes, práticas religiosas e jogos desfrutariam, portanto, do mesmo status de rito; atividade humana arquetípica vivenciada cotidianamente, de forma quase intuitiva, em práticas aparentemente 11 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 dissociadas de suas formas originais, mas que guardam certo fundo transcendente. Mesmo em nossos tempos os ritos se mantêm ativos e dotados de função indispensável, de modo que o enfraquecimento de seu conteúdo sacro foi percebido e, por vezes lamentado, desde o início da modernidade. Muitos estetas, ao se depararem com o fenômeno moderno, viram a necessidade de se recuperar a perspectiva do religioso em uma época, iniciada em meados do século XVIII, tomada pelo utilitarismo, pela falta de referência metafísica e pelo fenômeno definido por Max Weber como Entzauberung der Welt (desencantamento do mundo). O romântico alemão Friderich Schlegel, em sua Conversa sobre a poesia (1800), com efeito, vê a urgência de se recuperar o senso de religião no cerne da estética, para que a poesia moderna alcançasse o mesmo status da poesia dos antigos. Em suas palavras: Afirmo que falta a nossa poesia um centro, como a mitologia o foi para os antigos, e tudo de essencial que a arte poética moderna fica a dever à antiga reside nessas palavras; nós não temos uma mitologia. [...] é chegado o momento em que devemos colaborar seriamente para produzi-la. Pois ela nos virá através do caminho inverso da de outrora, que por toda parte surgiu como a primeira floração da fantasia juvenil, diretamente unida e formada com o mais vivo e o mais próximo do mundo dos sentidos. A nova mitologia deverá ao contrário, ser elaborada a partir do mais fundo do espírito; terá de ser a mais artificial de todas as obras de arte, pois deve abarcar todo o resto, um novo leito para a velha e eterna fonte primordial da poesia; ao mesmo tempo, o poema infinito, que em si oculta o embrião de todos os outros poemas. (SCHLEGEL, 1994, p. 51) Mais tarde, Baudelaire, no ensaio intitulado O pintor da vida moderna (1859-1860), dissertará sobre o fenômeno moderno, materializando-o na alegoria da transitoriedade urbana, chamando a atenção para o fato de que o objetivo da arte moderna seria alcançar a dignidade de ser antiguidade; algo que ocorria mediante a apreensão do elemento eterno em meio ao contingente, ao cotidiano e ao passageiro; enfim: ―para que toda Modernidade seja digna de tornar-se Antiguidade, é necessário que dela se extraia a beleza misteriosa que a vida humana involuntariamente lhe confere‖ (BAUDELAIRE, 1996b, p. 27). 12 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Como a eternidade é a instância do sacro, Baudelaire parece buscar na arte um elemento além dos limites do mundo finito e físico; esse outro mundo por ele aspirado, seja ele localizado na esfera do ideal, do eterno ou da imaginação, encontra correspondente na religião e no mito por ser uma instância superior, acessível apenas pela ponte da transcendência. Os exemplos de Friedrich Schlegel e Baudelaire, apesar de incidirem sobre a estética, refletem como há no centro da sensibilidade moderna (sobretudo aquela parcela definível pelo conceito de romantismo) o mal-estar quanto à perda de referência metafísica, de unidade religiosa, de sentido transcendente, de ―encantamento‖. Tal perspectiva levou, na arte, a uma mitificação do estético, fazendo com que o ideal artístico se tornasse cada vez mais inacessível e hermético e que a atividade artística encontrasse correspondência no sacerdócio, no anátema religioso ou no vaticínio. Assim, o artista converte-se em demiurgo de um mundo sem Deus. Esse fenômeno se observa desde o século XIX e contemporaneamente ainda se preserva não apenas na arte. Em atividades mais cotidianas, na esfera dos costumes, por exemplo, ocorre algo análogo: gosto pelo exotismo místico, ritualização de agremiações, mitificação do ordinário, surgimento de novas superstições, lendas urbanas, etc. Se houve de fato o Entzauberung der Welt na modernidade, como supõe Weber, esse fenômeno não parece ter ultrapassado muito além dos limites do imaginário oficial; e como a modernidade se define pela autoaniquilação e pelas contradições (COMPAGNON, 1996), o desencantamento sempre conviveu com o seu contraponto e, hodiernamente, em uma época em que se auspicia a superação da modernidade, a revitalização do imaginário de outros tempos se torna mais intensa, adentrando inclusive a indústria cultural, os entretenimentos de massa e o kitsch. Nessa esfera, os jogos de representação parecem se inserir justificando o caráter de rito a eles inerente. Voluntariamente, todavia, os RPGs não parecem ter de imediato reconhecido a sua intimidade com as histórias ao pé do fogo evocadas pela sua prática. O primeiro deles, Dungeons and Dragons, surge na década de 1970 como uma espécie de sistema de jogo que poderia 13 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 simular aventuras ambientadas nos universos de fantasia medieval criados por Tolkien, popularizados, sobretudo, entre jovens norte-americanos e ingleses por conta do sucesso de seus romances do ciclo do Senhor dos Anéis. No início e durante muito tempo, o paradigma dos jogos de tabuleiro prevaleceu sobre os RPGs, sofisticado, contudo, pelo ensejo que esses jogos davam à interpretação de personagens e ao desenvolvimento de histórias. Trajetória essa que toma outros rumos com o desenvolvimento de uma linha de jogos surgida no início da década de 1990, tributária às contraculturas urbanas com ênfase no misticismo e na adaptação da tradição da literatura fantástica do século XIX para a juventude e as ruas do século XX. É em meio à cultura conhecida como punk-gótica que surgem os jogos da White Wolf da série Storyteller, divisores de águas no mundo dos RPGs por pretenderem constituir uma forma de entretenimento mais ―sério‖ que o regular entre os jogos de fantasia, enfatizando mais a interpretação de personagens e o desenvolvimento de histórias que seus antecessores ainda atrelados aos jogos de tabuleiro. O primeiro jogo da série Vampiro: a máscara (1991) compartilha com cultura urbana punk-gótica o cultivo de uma espécie de neo-romantismo, misticismo apocalíptico e estetização da decadência, elementos aclimatados à indústria cultural; daí ser possível ler as particularidades desse jogo à luz de muitos postulados estéticos do romantismo, como se pretende com as seguintes considerações. A linha de jogos Storyteller tem como motivo axial a invenção de universos ficcionais nos quais os jogadores seriam capazes de interpretar entidades sobrenaturais difundidas pelo folclore de várias culturas e, hodiernamente, presentes em diversos veículos de entretenimento, tais como a literatura e o cinema. Vampiros, lobisomens, fantasmas, magos e fadas estão entre os protagonistas desses jogos. Tais entidades, favorecidas pelo sistema de jogo e orientações temáticas que as estruturam, são passíveis de receber humanização na prática desses jogos. Os livros da Storyteller são concebidos com o propósito de que essas criaturas, tradicionalmente antagonistas nos jogos de fantasia, forneçam personagens aos próprios jogadores. 14 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Tanto no imaginário quanto nos meios de entretenimento, esses seres surgem como alegorias de temores humanos, tais como o medo da noite, do desconhecido, do ctônico, do macabro e dos próprios ―eus‖ soterrados nos recessos mais profundos da subjetividade; por conta dos possíveis riscos decorrentes de se ―brincar‖ com temas tão delicados, a proposta dos jogos da storyteller é direcionada ao público adulto. Com efeito, a confrontação com tais arquétipos do temor exige um grau maior de maturidade por parte dos jogadores tanto com fins de manter o jogo na esfera segura do lúdico quanto para favorecer o divertimento. Tal ―maturidade‖, no caso dos jogos da linha Storyteller, parece ter como resultado o incentivo a um maior papel da atuação e desenvolvimento das histórias. A série Storyteller coloca constantemente em relevo que o ato de conferir profundidade tanto às personagens quanto às tramas nas quais essas tomam parte oferece garantias de um entretenimento mais significativo, de modo que o jogo possa assumir novas conotações. Como o próprio nome da série supõe (Storyteller, vocábulo que em português significa ―contador de história‖, esses jogos seriam como motes e sugestões para a invenção de narrativas interativas, criação de universos virtuais e de simulacros de mundos que, inevitavelmente, esbarrariam em fantasmagorias oriundas do imaginário humano. Trata-se, portanto, de um passatempo complexo e, como se pode notar, evocador de ritos aparentemente esquecidos em épocas mais recentes. Storyteller, apesar de se destinar a um público adulto, tem grande difusão entre adolescentes e acaba surgindo como uma proposta na contra-corrente dos entretenimentos imediatistas contemporâneos; trata-se de um convite para que jovens sentem-se ao redor de si e contem histórias. O jogo inaugural da série Vampiro: a máscara (Vampire: the masquerede), de autoria de Mark Rein-Hagen, já lança as diretrizes que seriam seguidas pela série – favorecimento do desenvolvimento psicológico de personagens, utilização dos leitmotivs do horror sobrenatural, reflexões sobre a natureza humana e criação de uma modalidade de entretenimento cujo cerne encontra-se na construção de narrativas. Embasado em uma tradição cultural que remete tanto à literatura do século XIX quanto às linguagens mais recentes, como os romances de fantasia, o cinema fantástico e a música de 15 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 contra-cultura, Vampiro: a máscara cria uma mitologia própria de vampiros muito semelhante àquela encontrada nos romances de Anne Rice e em filmes como The Hunger – nele os vampiros deixam de ser os monstros misteriosos das catacumbas e cemitérios dos confins da Europa e das narrativas ambientadas na Idade Média e são transpostos para o meio urbano de nossa época. Os vampiros do jogo são também indivíduos às voltas com conflitos psicológicos complexos, como a tentativa de adequação da natureza humana à condição de cadáver trazido da morte e legado a uma eternidade assombrada pela violência e pelos impulsos da vontade que os converte em predadores de sua própria espécie. Eternidade versus transitoriedade, monstruosidade versus humanidade, vida versus morte, vontade indômita versus racionalidade, esses parecem ser os conflitos paradigmáticos de Vampiro; eles exprimem a tentativa de fazer a radiografia anímica de um monstro, tarefa análoga à da literatura do século XIX que expressava a inadequação do homem a si próprio em tempos modernos. Daí ser comum na leitura de Vampiro a evocação de romances tais quais The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hide (1886), de Stevenson, Frankenstein or the modern Prometheus (1818), de Mary Shelley, fantásticos de Hoffman e Poe), entre outras obras românticas que encontraram no monstruoso e fantástico alegorias das tramas profundas dos dilemas próprios da condição humana. A literatura fantástica sempre esteve às voltas com a materialização dos conflitos particulares do indivíduo na imagem do sobrenatural; com efeito, Tzvedan Todorov quando depreende a estrutura do gênero fantástico a considera sob a ótica da confrontação subjetiva, dividindo tais narrativas em dois temas fundamentais: os temas do ―eu‖ e os temas do ―tu‖ (TODOROV, 1992). Na esfera dos temas do ―eu‖ estariam principalmente as narrativas que têm como leitmotiv e perspectiva principal o topos do olhar. Tais histórias expressariam o confronto do eu consigo próprio através do contato com seus desdobramentos: o dopplegänger, os simulacros, os autômatos – formas de plasmação da subversão da unidade individual e do isolamento do sujeito em si 16 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 mesmo seriam as manifestações principais desse tipo de narrativa. O duplo obsessivo do William Wilson, de Poe, o retrato vivo, espelho da degeneração do Dorian Gray, de Wilde, a sombra furtada pelo diabo no Peter Schlemill, de Chamisso, o reflexo perdido por Erasmo Spikher nas aventuras de uma noite de São Silvestre, de Hoffmann, os duplos, reflexos, mecanismos diabólicos e as lentes tidas como acesso a um universo fora dos eixos, do Der Sandmann, também de Hoffmann, entre tantos outros exemplos, seriam materializações desse motivo que representa a perda da individualidade em meio aos múltiplos ―eus‖ com os quais o homem do século XIX se deparou. Ora, nessa época, a exploração da subjetividade pela arte, a resistência do indivíduo ao nascente fenômeno da massificação e a futura descoberta do inconsciente mostraram que a palavra ―eu‖ guardava em si uma polissemia inaceitável sem certo incômodo. Já os temas do ―tu‖, mais tradicionais desde os relatos maravilhosos de outras épocas, expressam a confrontação do eu com o exótico e com o desconhecido. Trata-se de um horror permeado pelo fascínio, de uma atração ambígua pelo que é funesto; o que justifica que sua expressão mais comum se dê por meio de experiências eróticas subversivas nas quais tabus são confrontados e o prazer se torna veículo de danação e vice-versa. Em torno desses temas, orbitam conceitos como necrofilia, incesto, sadismo, autoaniquilação e violação de interditos todos eles presos à vertigem erótica. Vampiros, demônios, fantasmas, seres encantados surgem nessas narrativas como objetos de atração sexual, como monstros sedutores; seriam eles figurações de um mundo ctônico e desconhecido que buscaria a integração com a vida comum. A forma de contato da realidade conhecida com esse outro mundo, o contrato diabólico pelo qual a fatalidade se deflagra, seria, justamente, o magnetismo erótico. O Drácula, de Bran Stocker, a bruxa Mathilda do The Monk, de Mattew Gregory Lewis, romance emblemático da literatura gótica inglesa do século XVIII, as insinuações satânico-orgiásticas da cena da Walpurgsnacht aos pés do Blocksberg, no Fausto, de Goethe, o Lovelace, de Richardson, o Maldoror, de Lautréamont, os vampiros, cortesãs e marginais da lírica baudelairiana, as femmes fatales das aquarelas de Gustave Moreau, enfim, uma miríade vasta de seres que dão corpo a motivos ligados a 17 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 uma sexualidade oblíqua e sinistra, que marcaram as épocas alentadas pelo espírito romântico, é enfeixada pelos temas do ―tu‖. Por seu turno, o leitmotiv da confrontação do eu com uma alteridade hostil por meio do fascínio erótico tem origens muito remotas. Em muitos mitos e lendas encontram-se suas manifestações: as tentações do diabo e a ambiguidade entre êxtase sagrado e prazer carnal na hagiografia dos santos, entidades sedutoras ctônicas, símbolos da sucessão entre vida e morte que nas farsas da Idade Média e Renascimento se transformariam em rainhas dos diabos, como a Perséfone dos gregos e a Lilith dos hebreus, as baladas medievais nas quais criaturas sobrenaturais surgem como sedutores que, quando preteridos destroem seus pretendentes, tais como as baladas de elfos que inspiraram posteriormente os poemas ―Erlekönig Tochter‖, de Herder, ―Der Erlkönig‖, de Goethe e ―La belle dame sans mercy‖, de Keats, as donzelas diabólicas célebres nos romances, lendas e relatos da Idade Média como as melusinas, a sibila de Cumas, a Vênus de Tannhäuser, a Belkiss com pés de asno do folclore muçulmana e tantos outros comprovam que o que Todorov designa como temas do ―tu‖ pertence às bases do imaginário humano, expressando a ambígua perplexidade, amálgama de terror e fascínio, que o homem demonstra face ao desconhecido e à alteridade. Comparando-se os temas do ―eu‖ com os temas do ―tu‖, nota-se que a dinâmica do horror está centrada na confrontação do eu com o imprevisível ou, remetendo ainda a Todorov, com ―a falha da causalidade‖ que levaria ao fantástico. Se outrora a alteridade hostil encontra-se precisamente no outro – no outro mundo do exótico e do sobrenatural, no outro indivíduo, nos estrangeiros, nas aberrações e nas mulheres (outro da cultura patriarcal), no lado oculto da existência (a morte), no outro exterior à ordem cósmica (o caos) – modernamente, contudo, o homem parece ter se deparado com o outro em si próprio, com o monstro interior; daí surgirem os complexos temas do ―eu‖ que apresentam correlações com a mitologia criada por Vampiro: a máscara. Como dito, a figura que mais perfeitamente encarna os chamados temas do ―eu‖ todoroviano é o duplo. Mesmo que a confrontação com um desdobramento de si própria seja comum ao imaginário humano de todas as 18 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 épocas, esse motivo se torna mais sofisticado na modernidade. Tal fenômeno se deve, como se pretendeu demonstrar, principalmente à descoberta do caráter poliédrico da individualidade, que recebe relevo na modernidade por conta do embate entre a urgência de afirmação do sujeito em uma época de incertezas e de fundamentos difusos, em oposição a um meio externo que se impõe como força opressora ao sujeito. Ora, o maior certame de Vampiro se dá entre o indivíduo e si próprio, daí a importância da perspectiva do duplo para se entender o jogo. Em múltiplas esferas o duplo se manifesta em Vampiro, desde as mais exteriores, nas instâncias em que se dão as relações sociais entre os cainitas (termo utilizados pelos vampiros do jogo para se autodefinirem) até as esferas mais particulares. A sociedade vampírica, conforme o jogo, é dividida em grupos que funcionam como espécies de sociedades secretas; atualmente, existiriam três desses grupos predominantes, sendo eles a Camarilla, o Sabá e o Inconnu. O Inconnu, dos três, é o mais singular e sua existência se justifica, sistematicamente, apenas pela intenção de conferir uma atmosfera de paranóia obsessiva ao jogo. O Inconnu (inspirado no vocábulo francês inconnu, ou seja, ―desconhecido‖) seria composto por vampiros muito velhos, distantes da sociedade dos mortos vivos, dedicados à observação dessa e a atividades absolutamente desconhecidas que, por sua natureza hermética, despertam o terror entre os mortos-vivos. Já os outros dois grupos atendem perfeitamente ao sistema temático do duplo. Camarilla e Sabá estabelecem-se em perspectiva especular. Ambos foram criados em decorrência da caçada aos vampiros que teria sido empreendida pela humanidade nos anos da inquisição. Como a violência teria deflagrado uma revolução entre os jovens vampiros, os anciãos dentre eles resolveram organizar a sociedade de sua espécie, reunindo seus clãs sob a égide de uma única sociedade que tinha como primado a proteção dos vampiros da agressão humana por meio de uma política de esconder a natureza vampírica da humanidade. Essa sociedade recebera o nome de Camarilla e sua lei principal estabelece que os vampiros vivam em meio aos 19 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 humanos de forma velada, manipulando os rumos da sociedade mortal ao seu proveito, sem que sejam descobertos. Essa existência discreta e segura se daria sob a sombra da lei da Máscara, tradição que determina que nenhum vampiro deve revelar a um mortal (ou permitir que outros o façam) sua real natureza. Criada no século XV, a Camarilla tornou-se a mais bem sucedida sociedade vampírica, e também a mais numerosa. Sua política discreta permitiu que os vampiros vivessem entre os humanos, possibilitando, mesmo sendo os não-vivos seres amaldiçoados e canibais, que seus membros se mantivessem, embora muitas vezes apenas virtualmente, próximos da natureza humana. Como a Camarilla foi fundada pelos vampiros mais velhos, sua estrutura possibilita que as tradições dos clãs (unidades básicas da sociedade dos mortos-vivos) sejam preservadas, desde que não afetem os interesses da seita (esse é o termo pelo qual os vampiros designam suas agremiações dominantes). Comparada com seu gêmeo antípoda, o Sabá, a Camarilla é uma sociedade mais harmônica e mesmo reacionária, já que busca a conciliação forçada entre opostos: nela a tradição convive com a urgência dos novos tempos, a besta vampírica com a humanidade, e assim por diante. Apesar da aparência plácida, não se pode dizer que a Camarilla seja composta por entidades protetoras da humanidade, pelo contrário; os membros da Camarilla são manipuladores e dissimulados, suseranos que exploram lentamente o gênero humano e usa-o como joguete de suas intrigas. Contudo, se comparada ao Sabá, nota-se que a hipocrisia que rege a relação da Camarilla com a humanidade torna seus membros menos explicitamente monstruosos. O Sabá seguiu uma diretriz oposta à da Camarilla. Formado pelos jovens rebeldes sobreviventes da revolta eclodida nos anos da inquisição e, atualmente, aberta a todos os refugos e desajustados da sociedade vampírica, o Sabá optou por explorar ao máximo a natureza morta-viva de seus membros. Enquanto a Camarilla usa os valores humanos como referência moral, o Sabá ressuscitou velhos códigos distanciando-se dos humanos. de moralidade tipicamente vampíricos, 20 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 A cúpula do Sabá é composta por dois clãs que desde sempre estiveram mais próximos do lado obscuro da natureza dos mortos-vivos; talvez essa característica ajude a determinar muitas das diferenças entre as duas seitas. Enquanto a Camarilla é formada por clãs como os Toreador, vampiros estetas e hedonistas que se julgam patronos do gênero humano pelo seu amor às artes e às sensações mortais, os Brujah, seres empreendidos em uma revolução constante que concebe os sistemas sociais humano e vampírico quase como o mesmo fenômeno, os Ventrue, acostumados desde sempre a conviver com a política mortal ou mesmo os Nosferatu, que a despeito de possuírem uma aparência inumana, tendem a conceber a maldição vampírica como uma espécie de purgatório para a corrupção1; o Sabá tem como espinha dorsal duas famílias de monstros. Uma delas, os conspiradores do Lasombra, por um lado, lançavam seus tentáculos de influência sobre a igreja católica e a política ibérica durante a Idade Média e, por outro, travavam pacto com as sombras em troca de poder. A outra, os Tzimisce, sempre assombraram a região balcânica como déspotas fantasmagóricos das regiões remotas do leste da Europa. Ambos os clãs viram-se obrigados a formar o Sabá por nunca poderem ser aceitos entre a nascente Camarilla, já que haviam derramado o sangue de seus próprios senhores; daí terem reunido todos os anátemas e criminosos (aos olhos dos anciões, é claro) da guerra dos vampiros para fundar a sua sociedade. Dissidentes dos demais clãs juntaram-se ao Sabá adotando a alcunha de anti-tribu, e desenvolvendo uma personalidade antípoda em relação à de seus clãs oficiais. O Sabá parece ser um duplo distorcido da Camarilla e a recíproca também procede. Enquanto a Camarilla é reacionária, discreta, equilibrada e tende a 1 A Camarilla ainda conta em suas fileiras com os selvagens Gangrel e os psicóticos Malkavianos. Com efeito, esses clãs não compartilham os traços “humanistas” dos demais, sendo mesmo corpos estranhos dentro da ideologia da seita. Provavelmente sua inclusão na Camarilla se deva a uma intenção do jogo de permitir a seus jogadores o acesso a uma gama variada de personagens que representem aspectos distintos da condição vampírica. Originalmente, apenas era permitido aos jogadores criarem personagens pertencentes a Camarilla; isso explicaria a inclusão desses excêntricos em seu meio. Em edições futuras do jogo, contudo, a contradição das características de tais clãs com as diretrizes da Camarilla parece ter sido reconhecida, ao menos no caso dos Gangrel que, segundo a ambientação do jogo, viriam a abandonar, paulatinamente, a seita. 21 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 tratar as lendas vampíricas pelo viés da objetividade ilustrada, o Sabá é agressivo, desarmônico, extremista e místico. Todo membro do Sabá vê a si como um cruzado empreendido em uma missão para o salvamento da raça vampírica, ao passo que, a Camarilla se coloca como um ponto de conciliação das relações travadas entre os vampiros com seus semelhantes e com o mundo. Enquanto os mais ufanos e ingênuos dentre os membros da Camarilla nutrem a pretensão de voltarem a ser humanos, dentre o Sabá, esses mesmos espíritos otimistas acreditam estar a um passo de se tornarem deuses mortosvivos. Em ambos os casos, busca-se a solução para o dilema do duplo, o remédio ao mal de se estar cindido, localizado na zona limítrofe entre o homem e o monstro. Esse dilema é por excelência a pulsão fundamental de Vampiro, já que cada um dos não-vivos se vê como uma criatura divida entre dois mundos. Seja sob a ótica da Camarilla ou a do Sabá, a condição vampírica é um grande desconforto, o que aproxima a ontologia do jogo do mal-estar românticomoderno que a arte celebrizou mediante o motivo do duplo. A epígrafe inicial de Vampiro já antecipa esse conflito que será explorado à exaustão pelo jogo; lê-se na folha de rosto do livro: ―By becoming a monster, one learns what it is to be a human‖ (REIN-HAGEN, 1994). Deve-se se tornar um monstro para se aprender a ser humano, frase que ecoa no conflito central de Vampiro, entre a sanidade e os ditames da fome canibalesca que os inclina a matar – vontade essa definida pelo jogo como Besta. A besta é justamente o Mr. Hyde que clama no interior de cada vampiro, o qual não pode ser reprimido, mas liberado em doses homeopáticas. Reprimir a besta, em termos mais práticos, não se alimentar de sangue humano, torna-a ainda mais faminta e agressiva; no entanto, libertá-la sem qualquer orientação pode corromper a alma de um vampiro, precipitando-o na insanidade e decretando sua derrota sobre si mesmo. Daí, os vampiros serem obrigados a se cercar por todos os lados de códigos de moralidade e se manter vigilantes quanto aos caprichos de parcela negra de suas almas. Eles se vêem obrigados a sustentar o equilíbrio entre seus dois lados; vampiros que queiram preservar sua sanidade devem se entregar a um convívio doloroso com seu duplo. Ao 22 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 fim, todavia, a derrota sempre se anuncia e a besta, cuja fome nunca cessa de crescer, acaba por consumir seu hospedeiro. Por mais dura que seja a convivência com a besta, Vampiro ainda lança as esperanças de resolução do dilema; essas, contudo, residem apenas nas esferas das lendas e das crenças. Uma delas é uma fonte de esperança e a outra é a consumação trágica da existência dos vampiros na Terra. A primeira, a Golgonda, consiste em um estado de espírito desenvolvido pelo jogo, possivelmente, a partir do sistema de crenças hindus e budistas, assim como influenciado pela filosofia schopenhauriana. Como a besta pode ser vista como uma espécie de hipérbole da faculdade definida por Schopenhauer como vontade (assim como o vampiro, em muitos aspectos, é uma hipérbole do humano), a solução para o mal-estar proporcionado pela besta é correlata aos postulados de Schopenhauer – para se vencer a vontade deve-se tentar conviver com ela para que se possa extinguí-la juntamente com a noção de individualidade. Com a besta dá-se o mesmo; deve-se domá-la, inclinando-se cada vez mais aos resquícios de humanidade preservados pelo vampiro, até que a voz da besta emudeça e, então, se alcance esse estado nirvânico para os mortos-vivos – a Golconda. O jogo frisa que não se têm registros precisos de alguém que tenha alcançado tal estado, mesmo assim, a crença na Golconda encaminha muitos vampiros por uma vereda de esperança e redenção. O duplo vampírico, a besta, seria portanto uma manifestação distorcida da vontade; nesse ponto, Vampiro mostra-se como um jogo alegórico, uma tentativa de representação da condição humana. Como a perspectiva do duplo rege Vampiro, a própria redenção possui o seu antípoda maldito; a outra saída para os vampiros seria a entrega total às intrigas da Jyhad. Segundo as lendas vampíricas, os fundadores de seus clãs, vampiros que de tão antigos são chamados de Antediluvianos, estariam aguardando em um sono sedento a noite em que retornariam ao mundo para extinguir todos os seus descendentes com o fim de saciar sua fome. No entanto, eles não aguardam quietos a noite fatídica, mas preparam terreno para tal desfecho por meio de uma guerra silenciosa, constituída por uma 23 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 corrente de intrigas que afetam toda a sociedade vampírica; qualquer conflito entre vampiros, por menor que seja, é tomado, de forma paranóica, como parte dessa guerra chamada de Jyhad (nome inspirado pela guerra sagrada islâmica). A Jyhad seria o prelúdio da noite final. Essa noite é conhecida como Gehenna (nome extraído de umas das definições hebraicas de inferno). Tanto Gehenna como a Golconda são encaradas como lendas pelos vampiros; no entanto, isso não impede que alguns grupos as tomem como crenças oficiais. A linhagem (um tipo de clã menor) dos Salubri, por exemplo, deposita sua única razão de existência na crença na Golconda e há os que digam que o real objetivo dos Inconnu seria alcançar esse estado. Quanto à Gehenna, enquanto a Camarilla desacredita lendas escatológicas, o Sabá coloca-se como o exército que há de livrar os vampiros de seus avós canibais nessa noite apocalíptica. Golconda e Gehenna são, de certo modo, o paraíso e o inferno dos vampiros; por mais que a Gehenna tenha um cunho histórico – ao passo que a Golconda é um estado metafísico – sua aceitação dentro do imaginário vampírico parece se constituir de maneira semelhante a do Juízo Final entre os cristãos; trata-se de um dia hipotético, além do tempo terreno, localizado, portanto, em uma instância transcendente. Indiretamente, a Gehenna seria uma espécie de fim dos tormentos impostos pela besta, já que traria a extinção dos vampiros, criaturas cujo único alento, único sopro que anima seus cadáveres, é, paradoxalmente, insuflado pela febre que os consome; ou seja, pela besta. Destruição e redenção, Gehenna e Golconda, são a dupla via de aniquilação do sofrimento dos mortos vivos. Ambos os conceitos ligam-se pelo nexo da diluição do sujeito em um esforço desesperado de conter seu duplo – tal qual se dá nas muitas mortes trágicas e auto-induzidas das histórias de duplo do romantismo. Como se pode notar, a despeito de não possuir pretensões além as de se estabelecer como jogo, Vampiro desenvolve-se em consonância com vários expedientes artístico-literários; de fato, o jogo não apenas presta tributo à tradição literária, como busca na literatura a chancela para a proposta de 24 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 diversão nele contida. De imediato, ao se percorrer o livro, depara-se com uma série de intertextos que não servem apenas à ambientação do jogo, como também à implementação de um estilo sofisticado ao livro. A leitura de Vampiro surpreende por não conter apenas um manual de regras e uma apresentação sistemática do pacto ficcional necessário às partidas do jogo; na verdade, tal pacto se dá de forma quase espontânea, já que a leitura do livro é envolvente, tragando o leitor para atmosfera de desolação, decadência e ânsia por redenção que envolve a obra. Ora, o primeiro contato com Vampiro se dá por uma epístola que pela forma e conteúdo faz referência direta àquele que pode ser considerado o maior clássico da literatura fantástica que explora o mito do vampiro e que, inquestionavelmente, serviu de paradigma para a visão que a cultura mais recente tem dessas criaturas – o romance vitoriano Drácula (1897), de Bran Stocker. A carta inicial presente em Vampiro dialoga com o romance já pelo próprio gênero a que pertence; como se sabe, Drácula é um romance epistolar, constituído por cartas, páginas de diário e registros fonográficos de autoria das personagens. A narrativa epistolar consiste em uma estratégia enunciativa bastante utilizada, principalmente, nos romances do final do século XVIII (que já antecipavam o romantismo), com a qual sua forma se adapta perfeitamente por, ao dar lugar às reflexões e impressões das personagens. Esse recurso não apenas dota as narrativas de veracidade (que favorece o pacto ficcional romanesco) e profundidade psicológica, como opera intimidade entre a narrativa e as impressões particulares de suas personagens. Trata-se de um gênero que, se por um lado, aproxima os eventos narrados da realidade vivenciável (já que é tutelado pelos juízos e experiências de indivíduos plenamente desenvolvidos psicologicamente), por outro, relativiza tais fatos ao submetê-los a impressões particulares. Através do gênero epistolar depara-se com versões, impressões, juízos e não se tem acesso a uma diegese próxima do inquestionável, como aconteceria em uma narrativa objetiva e analítica apresentada por um narrador onisciente. Romances precursores do romantismo como La novelle Éloise, de Rousseau e o Werther, de Goethe valem-se desse expediente narrativo para 25 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 imprimir pathos particular a suas personagens, contribuindo para o egotismo acentuado que se tornaria a tônica das narrativas românticas futuras. Se nos romances subjetivistas dos precursores do romantismo a epístola pode ser índice de egotismo, nas narrativas fantásticas o impressionismo favorecido pelo gênero conta ainda com outro efeito – a relativização das certezas, a promoção da hesitação entre o possível e o impossível que, segundo Todorov, resultam no efeito fantástico (TODOROV, 1992. p. 166) e a identificação do universo fictício com a realidade exterior ao texto que torna possível a cumplicidade da atmosfera de horror e sobrenatural, experimentada pelas personagens do romance, com a vida cotidiana do leitor. Tal expediente cria a ilusão de que, se um mundo ficcional tão semelhante ao real pode ser palco do anômalo, o mundo real também poderia vivenciar eventos de natureza semelhante. Nesse segundo caso, favorece-se o fenômeno definido por Wolfgang Kayser como grotesco, algo que, para o crítico alemão, definir-se-ia pela manifestação do anormal e hostil no cotidiano, a sensação do ―alheamento do mundo‖ conhecido (KAYSER, 2003). Tal efeito de fruição estética parece justificar a preferência que as narrativas de Poe nutrem pelo relato confessional em primeira pessoa, as correspondências de Nathanael no Der Sandmann (1815), de Hoffmann, o relato de Victor Frankenstein aos marinheiros, no romance de Mary Shelley e as já mencionadas epístolas de Drácula. A correspondência de Vampiro (REIN-HAGEN, 1994, p. 07-17), possivelmente, escrita por Vlad Tepes e destinada a Wilhimina Harcker – algo flagrante nas iniciais do remetente ―V.T‖ e do destinatário ―W.H‖ –, parece nutrir-se dessa dupla potencialidade do gênero epistolar; por um lado, torna o universo de Vampiro tridimensional, palpável, como se fosse possível nele viver e, em segundo – o que soa mais inovador na constituição da linguagem do jogo –, permite uma empatia entre o leitor e ―as crianças da noite‖, mostrando que o sulco que separa o monstro do homem não é um abismo, mas uma estreita vala. Na carta, Drácula, como voto de arrependimento e busca por redenção da humanidade perdida, dispõe-se a revelar a Mina todos os segredos da raça dos amaldiçoados, apresentado, desse modo, as premissas temáticas do jogo 26 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 em relato particular. Lá já estão presentes todas as singularidades da ambientação de Vampiro: a ancestralidade de Caim sobre a espécie dos mortos-vivos, lendas, costumes, particularidades anatômicas, a fisiologia dos não-vivos, a maneira como vêm ao mundo; enfim, toda a matéria que o jogo visava desenvolver, surge nessa carta no ritmo em adágio de uma confissão penitente. As particularidades psicológicas do jogo, a substância anímica de Vampiro, também se manifestam nessas páginas; arrependimento: embate entre o bestial e o humano, inadequação dos poderes oriundos das trevas aos resquícios de virtude mortal; em suma, o mal-estar do entre-lugar que separa o monstro do homem, da confrontação do indivíduo com o duplo maldito e a consciência do trágico. Pode-se entender Vampiro sob os parâmetros do herói trágico, sobretudo levando-se em conta as implicações que envolvem essa figura estética na modernidade. O texto introdutório de Vampiro, o prelúdio intitulado ―Monstros...monstros por toda parte‖, cava a grota que as potencialidades de Vampiro podem preencher. Nas palavras contidas nesse prelúdio, a dimensão trágica do jogo se apresenta de forma explícita como se pode notar pelo seguinte fragmento: Tal o herói da lenda, que desce ao poço do purgatório para enfrentar o algoz, derrotar as fraquezas pessoais e finalmente ser purificado, retornando para a casa com a dádiva do fogo, também nós precisamos descer às profundezas de nossas almas e renascer com os segredos conquistados. Essa é a verdadeira jornada de Prometeu, o significado do mito. Apenas embarcando nessa jornada podemos descobrir nossos eus verdadeiros e ver nossos reflexos no espelho. O fascínio desta promessa de conexão espiritual é práticamente irresistível. Mas trata-se de uma aventura por demais perturbadora. É preciso manter-se vigilante e caminhar com cautela – toda a jornada reserva seus perigos. Não olhe a própria alma, a menos que esteja preparado para enfrentar o que descobrir. E, neste momento, lembre-se: Monstros não existem [...] (REIN-HAGEN, 1994, p. 05). A percepção da influência do fatum sobre os indivíduos e o peso dos efeitos da violação de suas interdições são premissas de ação desde as 27 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 primeiras manifestações da tragédia grega de que se tem registro. Um dos textos mais antigos desse gênero, a tragédia de Ésquilo, Prometeu acorrentado, configura aquele que será o modelo do herói vítima da fatalidade e que, posteriormente, será adotado como símbolo da genialidade insubmissa do artista e, conseqüentemente, do indivíduo moderno – Prometeu. O titã que desafia a autoridade suprema recentemente instaurada de Zeus e que por hybris não se curva frente ao punho despótico do novo regente do Olimpo será adotado, principalmente, pelos poetas românticos como alegoria do artista demiurgo e rebelde que, em suas criações, rouba um pouco de divindade dos céus na forma do fogo para voar na mesma esfera dos deuses e iluminar a trajetória da humanidade rumo ao desconhecido. Como o ato de genialidade, ou seja, de afirmação de uma individualidade autônoma, constitui uma atividade subversiva, a punição sempre estará no cerne dessa temática. Prometeu é ressuscitado pelo ímpeto rebelde romântico, Shelley e Goethe prestaram-lhe tributos; no entanto o Prometeu moderno é diverso do da antiguidade, pois nele o signo da maldição é ainda mais acentuado, já que ao contrário do sistema mítico grego antigo, no qual o caráter cíclico do cosmo implicava a futura queda de Zeus e redenção de Prometeu quando eclodisse o retorno à Idade de Ouro. O ―sistema mítico moderno‖ do tempo moderno, por sua vez, não admite um recomeço. A época moderna crê em uma linha temporal progressiva ad infinitum, o que torna o cárcere de Prometeu tão duradouro quanto o tempo e sua punição e exílio mais amargos, portanto. John Milton em seu Paradise Lost (1665) já sugerira aos românticos uma analogia que tornava a trajetória do herói trágico mais dolorosa – ao aproximar o diabo precipitado no inferno de Prometeu, Milton torna o demônio medieval mais altivo e sugere a aproximação do futuro gênio (e, portanto, o homem) do diabo. Essa nova tônica confere-se ao herói trágico, somados os pesados estigmas do anátema, da derrota, do exílio eterno e do mal – eis a equação que configura o herói trágico moderno que os românticos cantaram e que inspirou, talvez, de forma menos indireta do que se possa supor, a base ontológica das personagens de Vampiro. 28 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 O fragmento destacado comprova o caráter voluntário da aproximação operada por Mark Rein-Hagen entre seu jogo e o topos do herói satânicoprometeico. Em vampiro, esse herói desce ao fundo da garganta do mal para extrair dessa jornada de precipitação a iluminação e o autoconhecimento. Vampiro sugere que sua proposta central de permitir aos jogadores interpretem monstros que alegorizam o mal em sua substância é, na verdade, um percurso de autodescoberta, de vislumbramento dos contornos e matizes do que definimos como mal, da forma daquela parcela negra e inconfessável da natureza humana. Um ensaio sobre o mal, essa seria uma forma de se resumir as pretensões de Vampiro, um jogo que se propõe a, após cada seção, insuflar em seus jogadores as descobertas inspiradas pelas flores nascidas do solo de cinzas e desolação semeado pelo jogo. Como toda tragédia, Vampiro é catártico; ele não pretende se limitar ao instante efêmero e irregistrável (exceto pela memória) das seções de jogo. Para que se torne mais claro o caráter trágico de Vampiro, pode-se tomar como modelo aquele que é, segundo a mitologia do jogo, o ancestral em comum dos mortos-vivos – Caim. A ambientação de Vampiro propaga a crença comum entre os membros (termo pelo qual os vampiros designam a si e seus semelhantes), ao menos os ocidentais, de que Caim, por ter se tornado o primeiro assassino teria recebido de Deus a maldição da vida eterna e da sede canibalesca por sangue humano. O Caim de Vampiro, ao menos pelas palavras contidas no Livro de Nod (narrativa fictícia criada para ambientação do jogo como texto mítico de formação da sociedade dos mortos-vivos), seria dotado de uma humanidade e de uma divinização ausentes nas sóbrias escrituras bíblicas. Como ao Satã de Milton, a maldição da precipitação no mal lhe atormenta, tendo manifestação máxima no exílio, não apenas determinado diretamente por Deus em sua expulsão, mas, principalmente, no anátema imposto pela vontade canibalesca e pela imortalidade contida na condição de morto insepulto. Tais elementos seriam signos do mal, que o impediriam de viver entre os que outrora foram seus semelhantes. O exílio de Caim o acompanha, e essa parece ser a maior maldição legada por ele a seus descendentes. 29 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Todos os vampiros trazem em si o signo de Caim e o Caim de Vampiro é muito semelhante ao Caim da peça de Byron; seu pecado é o amor excessivo e mal orientado que desafia as leis divinas, a revolta e a hybris comum aos espíritos altivos – o Caim de Byron, assim como o de Vampiro é um Satã miltoniano, um Prometeu gauche, um gênio moderno. E o Caim que há em cada vampiro, imortalizado pela maldição do sangue, traz consigo o signo do exílio. Ora, vampiros são impossibilitados de viver entre os homens de cujo seio surgiram, assim como são impossibilitados de repousar entre os mortos; não bastando isso, adaptam-se mal ao convívio entre seus confrades de maldição. A sociedade vampírica estabelece-se muito mais por uma dinâmica de necessidade e frágil tolerância, que por determinação inerente a suas naturezas. Vampiros não são seres sociais; são predadores, mal instalados na cadeia das relações naturais; sua única pulsão é consumir tudo que os cerca, o que os destina à solidão. Com efeito, vampiros, mesmo que desejem, não encontram boa acolhida entre seus pares simplesmente pelo fato de sua sociedade ter como base o princípio da desconfiança. A Jyhad, a guerra eterna e invisível, afeta todas as esferas das intrigas dos mortos-vivos, mesmo que sua existência nem chegue a ser confirmada. Vampiros não deveriam existir; Caim os teria gerado por temor à solidão e, ironicamente, acabou criando uma raça fadada ao ermo, mesmo em meio às metrópoles modernas. A condição de imortais torna os vampiros degredados em meio à sucessão cronológica e o status de mortos, estrangeiros em qualquer reino da vida. Não bastando isso, a sede da besta os exila da natureza humana. Contudo, como na trajetória do gênio trágico, há uma compensação para todo esse sofrimento; ora, o gênio moderno, como demonstra a arte, seria uma entidade dividida entre a majestade e a miséria, a exemplo do Satã de Milton. Os vampiros também possuem o seu fogo prometeico, esse, por sua vez, extraído das grotas do inferno e não roubado dos céus. Imortalidade e disciplinas (poderes sobrenaturais vampíricos) são, concretamente, as conquistas sorvidas da maldição do vampirismo; através deles, os cainitas inscrevem-se como senhores dos homens; no entanto, tais poderes nunca deixam de esconder sua natureza sinistra e sua relação íntima 30 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 com a maldição. Ora, cada clã de vampiros possui poderes que manifestam sua identidade particular, distinguindo-os dos demais. Paralelamente, cada clã possui uma leve fraqueza que surge como estigma da condição de amaldiçoado, que antes de servirem de meio para que as regras de Vampiro se equiparem, seriam lembranças constantes da idéia de danação que cerceia a condição de morto-vivo. São esses, precisamente, os vínculos de Caim com sua prole. A cumplicidade de sua maldição com a de seus filhos. Uma das características definidoras do tema do gênio moderno é precisamente a melancolia. Desde a medicina medieval e a astrologia árabe, a melancolia é tida como um tipo de benção diabólica; Constantinus Africanus, baseado na teoria dos humores de Hipócrates, professa que a melancolia tomava conta do caráter de um indivíduo quando houvesse maior produção de bile negra no baço, órgão que, posteriormente, entre os românticos servirá de designação do sentimento cabal do zeitgeist conhecido como mal do século; ora, spleen (baço, em inglês), será o termo designativo do tédio, do fastio criativo romântico. Sob influência do humor melancólico, segundo a medicina medieval, os indivíduos tornar-se-iam pusilâmines, anti-sociais e vis; semelhantes aos cães, buscariam a solidão e se bestializariam. No entanto, há um benefício trazido pela melancolia; os delírios por ela provocados poderiam resultar na vidência, no acesso a esferas de conhecimentos velados ou mesmo proibidos; nesse sentido, a proximidade entre o melancólico e o cão dar-se-ia pelos nexos analógicos fornecidos pelo faro do animal. A capacidade sensorial extraordinária do cão seria metáfora para a consciência superior do melancólico (BENJAMIN, 1984, p. 168-169). Talvez influenciado por essas associações, Aegidius Albertinus chegou a afirmar que o órgão mais influente sobre a fisiologia do cão fosse o baço. Com efeito, Albrecht Dürer, célebre pintor da renascença germânica, quando cunhou a sua gravura alegórica do gênio da melancolia, retrata uma musa, com um stylo nas mãos, cismando sobre algo que há de riscar em sua tábua de cera e tendo por companhia uma pilha de livros e um cão. Os livros fornecem outra associação imediata com o melancólico, visto que, segundo a sabedoria medieval, o melancólico nasceria da solidão, daí 31 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 serem fontes da melancolia o amor não correspondido e as atividades intelectuais. A ligação entre melancolia e saber também é sancionada pela astrologia árabe; o astrólogo muçulmano Âbu Ma dissera que o aumento de produção de bile negra no organismos seria provocado pela influência de Saturno sobre os indivíduos; planeta esse, desde os mais remotos tratados astrológicos, identificado com o mal e com o conhecimento subterrâneo (BENJAMIN, 1984, p. 170-171). Para a configuração da entidade nomeada Saturno, dois deuses amalgamam-se; o que torna clara essa associação entre o planeta e os conhecimentos secretos. O antigo deus ceifador dos latinos, Saturno, em contato com a cultura grega, foi associado a Cronos, divindade ctônica, símbolo do tempo. A ligação entre os subterrâneos e a sucessão das estações presentes no Saturno latino com a passagem do tempo, oriunda do Cronos grego, gerou a imagem do ceifador de vidas, do esqueleto portando foice e ampulheta das gravuras barrocas. Desse modo, imprimem-se na imagética do melancólico as ideias de morte e acesso aos saberes ocultados dos vivos. Daí o melancólico ser um vidente e o conhecimento portado por ele poder ser tratado como um saber proibido – o fogo de Prometeu que arrasta mais uma vez nossas reflexões ao topos do gênio maldito. As personagens de Vampiro parecem ecoar esse histórico de constituição do gênio; suas disciplinas mágicas e imortalidade são dons malditos, punições pela hybris de Caim que, por seu turno, encontra correspondente no orgulho individual de cada um de seus descendentes. De bom grado, poucos vampiros abrem mão de sua condição, alguns por apreço aos poderes das trevas, mas a grande parte por não ter mais nada a esperar além do vagar monótono de seus cadáveres pela vereda da eternidade. Vampiro se compromete a cotejar os motes da morte e do mal, parecendo serem essas as essências de seu elemento trágico. Todavia, dentro do jogo de simulacros apresentados pelo livro, esses dois temas surgem como reflexos exteriores do elemento mais angustiante suscitado pelo universo da obra – a consciência da fatalidade moderna que reside no sentimento de 32 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 degredo em si próprio e da convivência íntima com o inimigo supremo que reside dentro de nós. As personagens de vampiro são exiladas, exceto pela companhia de sua nemesis – essa parece ser a substância amarga de Vampiro, destilada outrora pela sensibilidade romântica e que vem orvalhar esse inquietante produto de época tão recente. Com Vampiro, os RPGs tornaram-se coisa séria, levando-nos mesmo a cogitar se os jogos limitam-se à esfera do entretenimento ou possuem também potencialidades catárticas. Não gratuitamente, o autor de Vampiro esclarece no epílogo de seu despretensioso ensaio sobre o mal: ―Vampiro é uma exploração do mal, e como tal, é arriscado. Quando jogamos Vampiro, cavamos fundo. Este jogo não foi criado para ser confortável, mas para provocar e inspirar. Foi planejado para fazer você sentir, sonhar e aspirar.‖ (REIN-HAGEN, 1994, p. 268). O jogador que lança os dados ou se entretém com cartas talvez não saiba que a dinâmica de sua diversão é regida pelas mesmas leis dos oráculos, assim como o atleta talvez não perceba claramente que há uma essência bélica nos treinamentos e regras adotadas por seu esporte – no entanto, não se pode negar que a natureza grave das origens da maioria dos jogos, eventualmente, ecoe sobre eles. Descendente, mesmo que distante, de várias correntes estéticas, Vampiro está para a sensibilidade romântica e para tragédia como um jogo de dados para a profecia e o esporte para a guerra. Um jogo nunca é apenas um jogo; isso justifica a nossa tentativa de analisar Vampiro sob uma perspectiva de fruição diferente da fornecida pelas disciplinas destinadas ao estudo dos entretenimentos de massa. Ora, como se pretendeu mostrar, Vampiro também pode ser visto como veículo de fruição estética. 33 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 REFERÊNCIAS BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Trad. Isabel Pascoal. 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O Role Playing que debateremos aqui é encontrado comumente em dois seguimentos distintos no RPG - Role Playing game (jogo de representação de papéis), também conhecido como RPG de mesa, e no LARP - Live Action Role Playing (Representação ao vivo); mas, essa não é uma regra imutável, ambos apresentam similaridades e diferenças que serão debatidas no decorrer do texto. Sua viabilidade para atuação educacional prática tem relevância ao abordar tal temática. Estudar os RPGs é justificável por muitas razões, mas uma dela é que nele estamos confrontando um fenômeno que é ao mesmo tempo muito antigo e algo muito atual para a ruptura que está atravessando o nosso modo de vida atualmente. Nos últimos anos temos presenciado um aumento poderosos de Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 publicações, currículos e atividades de pesquisa relacionada a jogos, mas estes começaram do estudo e designers digitais. As pesquisas independentes de mídia sobre RPG de mesa e LARP em suas importantes formas multiplas ainda estao para trás no mundo acadêmico. (MAYARA, 2004, p. 9). Diante desse paradigma desafiador, para uma melhor compreensão, iremos definir morfologicamente alguns pontos-chave que sustentam a nossa compreensão do que vem a ser Role Playing. Acreditando que o ato de representar pode ser compreendido como uma das áreas de expressão humana, para comprovar e contestar esta afirmação, analisaremos atenciosamente a relação entre os conceitos de representação e expressão com criatividade e imaginação. Com a proximidade desses termos abordada por Abbagnano(2007), que descreve representação como ―imagem‖ ou ―idéia‖ ou ambas as coisas e nesse misto sugere-se pela similaridade o termo ―imaginação‖ que, segundo Carlos Ceia, pode ser compreendido como: Uma primeira definição de imaginação, restringida a sua referencialidade pode dizer respeito á capacidade mental para relacionar, criar, inventar ou construir imagens. Este processo criativo pode intervir tanto em fantasias como na criatividade artística e intelectual. O Termo é derivado do latim imaginatio que por sua vez substitui o grego phantasía. Aristóteles, em De Anima (428ª 1-4), deu-nos uma primeira reflexão teórica sobre o conceito de imaginação (phantasía) que se refere apenas ao processo mental através do qual concebemos uma imagem (phantasma). Amente humana, segundo Aristóteles, não é capaz de pensar sem imagens. Este procedimento mental faz parte da atividade de todas as formas de pensamento e não se confunde com o que se virá a designar por criatividade ou imaginação criativa. O conceito aristotélico dephantasía / imaginação está ligado ao sensuscommunis, isto é, aquela parte da mente (psyche) que é responsável pela representação inteligível das coisas. De forma simplificada, podemos dizer que o conceito de imaginação daqui decorrente consiste no processo mental de representação das coisas que não são imediatamente presentes aos sentidos. A imaginação é uma forma de representação do que sentimos não existir no nosso mundo próximo. (cadê o autor, ano da obra e a página de onde esta citação foi copiada?). Essa habilidade da imaginação de criar imagens mentais reais, irreais ou surreais se mantém interna e individual em cada sujeito como faculdade humana. Pode-se acreditar que a imaginação cria a partir de parâmetros 37 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 provenientes da inter-relação de saberes do sujeito, assim como a percepção e reinterpretação das informações que se fazem conscientes. Quando o autor descreve a mesma como uma ―forma de representação do que sentimos não existir no nosso mundo próximo‖ merece uma atenção à parte. Ao assumir, primeiro, que é uma forma de representação, nivela a imaginação como forma de expressão, porém, o caráter de sentir fica mais adequado quando se descreve o mundo concreto. Penso que a imaginação pertence, inicialmente, ao campo abstrato, mas a representação, ao plano do concreto, tornando essa afirmação contraditória. Para ir mais além, ao aprofundar em termos similares a imaginação e que nos remem a ela, como criar e criatividade, de acordo com a compreensão de Dinello (2009, p. ?), se pode conhecer ambas na distinção de que: Criatividade: substantivo de criar, do latim crier, creare. Dar existência, tirar do nada, conceber, imaginar, produzir, realizar o que ainda não existia. O grito de um novo existir. Criar: como distinto de reproduzir. Criar é engendrar, sucitar, inovar, dar à luz o novo. Dinello, além de retomar a imaginação, faz-nos compreender que devido à criatividade, o sujeito pode existir além do automatismo da reprodução tão combatido em sala de aula maquinal. Com a imaginação o sujeito pode se criar e se recriar quantas vezes quiser para um contínuo ―novo existir‖. De acordo com o mesmo autor ―Devemos consentir que tanto a expressão como a criatividade são formas de manifestar a existência do sujeito humano‖ (autor, ano da obra e página de onde se copiou a citação), sendo assim, essa relação ocorre em todo processo bio-psico-social do sujeito. Por outro ângulo, a ideia de representação apresentada por SANTOS (2011, p. ?) propõe uma construção que aprimora o conceito anterior: Representação pode ter vários sentidos em português. Trata-se de uma palavra de origem latina, oriunda do vocábulo repraesentare que significa ―tornar presente‖ ou ―apresentar de novo‖. (...) A língua alemã existe o termo ―vertreten‖, quesignifica ―atuar comoum agente para alguém‖ (...) Aexpansão da palavra ―repraesentare‖ começa nos séculos XIII e XIV, quando sediz que o papa e os cardeais representam a pessoa de Cristo e dos apóstolos. Um outroexemplo é o dos juristas medievais que começaram a usar o termo para 38 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 personificar avida coletiva. Desta forma, uma comunidade seria uma persona non vera sedrepraesentata. Assim, a partir deste momento, o termo representacao, passa a significartambém ―retratar‖, ―figurar‖ ou ―delinear‖.O termo passa a ser aplicado a objetosinanimados que ―ocupam o lugar de‖ ou correspondem a ―algo ou alguém‖. Assim, pode-se compreender que a ação de representar gera significado e uma aura de simbologia para objetos e sujeitos, incutindo uma importância além do visível, promovendo um valor subjetivo. De maneira que quando um sujeito representa há promoção da expressão de conhecimentos objetivos por meio de canais subjetivos sutis, estes podem se concretizar como a manifestação de arte desde a clássica tríade plástica, cênica e musical até estruturas não convencionais. Todavia, para que ocorra a representação existe a necessidade de um canal ou instrumento. No caso do Role Playing trata-se do corpo e suas atribuições expressão, fala e gestos. Diferente do teatro convencional, não existe falas prédefinidas ou roteiros 100% lineares, tampouco uma platéia, representa-se para si mesmo. Parafraseando Michel Ende em seu livro Historia sem fim, no qual o protagonista, o garoto Bastian, descreve sua condição representativa da seguinte maneira ―imagino histórias, invento nomes e palavras que ainda não existem e outras coisas assim ‖. Entretanto, mesmo com essa produção que poderia ficar dispersa, a criatividade se concentra em um único ponto, o personagem ou Role. De cuja terminologia Moreno desenvolve pesquisa histórica aprofundada: [...] o termo inglês role (= papel), originário de uma antiga palavra francesa que penetrou no Francês e Inglês medievais, deriva do latim rotula. Na Grécia e também na Roma Antiga, as diversas partes da representação teatral eram escritas em ―rolos‖ e lidas pelos pontos aos atores que procuravam decorar seus respectivos papéis; esta fixação da palavra role parece ter-se perdido nos períodos mais incultos dos séculos iniciais e intermediários da idade média. Só nos séculos XVI e XVII, com o surgimento do teatro moderno. É que as partes dos personagens teatrais foram lidas em ―rolos‖ ou fascículos de papel. Desta maneira, cada parte cênica passou a ser designada como um papel ou role (MORENO, 1993, p. 27). 39 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Por meio do personagem a representação se manifesta em um jogo entre o universo interno do sujeito e como ele se manifesta com multiplicidade no campo externo. O personagem propicia forma, meios, percepções, limitações e aberturas para que as imagens internas geradas pela imaginação se manifestem, ou seja, a partir do momento que esta manifestação não pertence apenas ao mundo das imagens mentais do sujeito eleva-se ao grau de uma representatividade social. Todo sujeito carrega uma imagem interna do que representa para si, e para o grupo social onde está inserido. A prática do Role Playing gera o exercício de múltiplas facetas do sujeito que lhe permite experimentar-se constantemente. Agregando ainda mais peso à representação, Dinello trás definições de expressão como: Expressão: voz do latim (1360) expressio-exprimere, de: ex e premere (pressar) que dão lugar nas línguas vivas atuais a expressão (substantivo de expressar e expressar-se). ‗Tirar para fora‘. Expressar: é o fato de manifestar emoções, os sentimentos, uma parecer pelo comportamento exterior. Expressar-se: é a aptidão para manifestar vivamente o que se pensa ou o que se sente. Expressar: é fazer sensível ou comunicável por sinais (da linguagem, do pensamento, do comportamento, do gesto, na arte, pelos gestos,...) que dão um sentido – próprio ou figurado – a algo de si mesmo. É crescer desde dentro. Expressar-se: é manifestar uma sensibilidade, um fazer conhecer; é por onde passa a afirmação do ser; do contrário, seria utilizar os sinais e a linguagem para repetir um conteúdo ensinado (colocado em sinais pelo outro). (DINELLO, 2009, p. 13). O Role Playing teria esse mecanismo articulado no qual parte da criatividade épara o processo interno da imaginação e a expressão e parte à representação. Em um comparativo, pode-se compreender que criatividade é o ato de criar em si, imaginar é criar para dentro, expressar é criar para fora. Representação é o como se dá a manifestação da expressão e Esta vem como um conhecimento representado. Visualizamos melhor o Role Playing como um resultado final, que o sujeito atravessa rapidamente em um processo no qual se identificam quatro estágios. 40 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 41 1° Estágio 2° Estágio 3° Estágio 4° Estágio Criatividade Imaginação Expressão Representação (Role Playing) Ato de criar Processo de Ato criação de exposição da (Processo) criação (externalização) Forma manifesta da expressão (interno) Quadro 01 – Acervo da pesquisa Para instigar um pouco mais a curiosidade sobre esse processo, pode-se dizer, segundo alguns autores, que existe um estagio zero que antecederia a criatividade. Dinello (2009) descreve que por meio do impulso lúdico a criatividade e a expressão são impulsionadas a se manifestar. Já Piaget (1967) descreve que somente um desconforto promove alterações de base biológica nos patrões mentais antigos na busca da construção de novas estruturas mentais. Não nos cabe apontar para um ―estagio zero‖ exato, pois cada sujeito desenvolve seus mecanismos internos e símbolos, que estimulam a produção da criatividade. É importante também delimitar que o Role Playing não se enquadra como teatro do invisível, teatro do oprimido, teatro fórum, ou qualquer nomenclatura articulada pelos profissionais das artes cênicas. Pois, mesmo na essência semântica, a palavra "teatro" (theastai) deriva do termo "ver, enxergar", ou seja, é algo a ser mostrado, para ser visto por alguém. Sugere-se nessa situação sempre a existência de um observador, sendo este passivo ou não. Em termos mais conceituais: O Teatro do Invisível é o teatro em que os atores encenam em um lugar público, diante de espectadores que não são espectadores e sim pessoas que ali estão por casualidade. Após um espetáculo de teatro invisível nunca se deve dizer que se tratava de uma peça, pois práticada diante de pessoas que não estão advertidas de que se trata de uma peça, a ação passa a ser realidade. Já no Teatro Fórum é apresentado um problema, através do espetáculo, e o espectador pode entrar em cena e mostrar alternativas, substituindo o ator em questão. É uma espécie de ensaio para a vida real. Portanto, o Teatro do Oprimido é o teatro dele mesmo. É o teatro em que o espectador deixa ser mero ouvinte e representa seu próprio papel, descobrindo formas de libertação de sua individualidade através do teatro. (Leite, SiteAcademia.edu, p 4.). Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 42 A representação aplicada no Role Playing se faz pelo e para o próprio participante, não existem espectadores agindo constantemente no mecanismo da interação. Sendo que, cada sujeito dá sua forma única para cada personagem, implicando que um mesmo personagem pode apresentar várias facetas quando interpretado por diversos sujeitos. O teatro em si seria a representação para o externo, enquanto o Role Playing se pauta pela representação para o interno, para o próprio sujeito e seu mundo interior subjetivo. Toda essa disposição promove uma experiência vivencial rica devido à simulação, atuação e imersão individual ou coletiva. Mas, para compreender um pouco mais a fundo essa questão, seguiremos por um outro caminho, qual seja, não o da experiência cênica, mas o da experiência histórica que interage com o aspecto cultural, que segundo Thompson propicia: Com a ‗experiência‘ e ‗cultura‘, estamos num ponto de junção de outro tipo. Pois as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como idéias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, ou (como supõem certos práticantes teóricos) como instinto proletário etc. Elas experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidade, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas. Essa metade da cultura (e é uma metade completa) pode ser descrita como consciência afetiva e moral. (Thompson, 1981, p. 189). Nota-se que a experiência nutre a consciência e é colocada em prática culturalmente nas relações humanas, o que situa o sujeito em seu contexto, assim como se torna o combustível de sua movimentação. Entretanto, quando no Role Playing pode-se exercer varias linhas de pensamento, provar sensações e emoções, resolver situações inusitadas e fora da rotina; portanto, o sujeito torna-se sujeitos, o coletivo lhe proporciona esse afrontamento e liberdade de tal forma que todas as resistências criadas são questionadas, analisadas e, se assim desejar o participante, superadas. Um dos principais pilares do Role Playing não é o vencer, mas o experimentar. A experiência seria a mais-valia produzida pelo sujeito; o valor do sujeito se produzir. E, ao continuar o caminho traçado por Thompson, encontramos: Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 43 Os homens e as mulheres retornam como sujeitos, dentro deste termo [experiência] – não como sujeitos autônomos, ‗indivíduos livres‘, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses como antagonismos, e em seguida ‗tratam‘essa experiência em sua consciência e sua cultura (...) das mais complexas maneiras (sim, ‗relativamente autônomas‘) e em seguida (muitas vezes mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada. (Thompson, 1981, p. 182). Retomamos a ideia na qual, por meio do Role Playing, vive-se uma experiência selecionada, consciente ou semiconsciente; questiona-se ainda a referida idéia e debate-se em grupo as percepções de cada sujeito sobre a experiência individual e coletiva. De tal forma que, não se sabe onde começa o debate sobre a experiência nem quando se chega a um debate sobre cultura. Para Thompson (ano e página?) ―a experiência é exatamente o que constitui a articulação entre o cultural e o não cultural, a metade dentro do ser social, a metade dentro da consciência social‖. ―Talvez pudéssemos chamá-las experiência I – a experiência vivida – e experiência II – a experiência percebida.‖ (Thompson, 1984, p. 314). O conceito de experiência apresentado pelo autor torna-se complexo e, ao mesmo tempo, mais completo. Vê-se que por meio da experiência nasce a cultura e o sujeito como produto dessa relação entre experiência e cultura na sociedade. Podese debater agora sobre a experiência vivenciada, como ela é percebida e interpretada pelos sujeitos históricos. Nesse ponto, de acordo com Thompson, a cultura deve ser aprendida por meio da experiência para que o sujeito seja consciente de quem ele é, e onde está. No Role Playing, o participante está conectado a uma estrutura de conceitos e sensações contextualizadas sobre um personagem. O personagem permite ao participante sensibilizar-se e se inserir em mundos sociais diversos, aproximando-o como uma linguagem sutil de interação humana, agregando elementos de sua formação como cidadão. Esse conjunto das experiências dos sujeitos proporciona: Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Os valores não são ‗pensados‘, nem ‗chamados‘; são vividos, e surgem dentro do mesmo vínculo com a vida material e as relações materiais em que surgem as nossas idéias. São as normas, as regras, expectativas etc. necessárias e aprendidas (e ‗aprendidas‘ no sentimento) no ‗habitus‘ de viver; e aprendidas, em primeiro lugar, no trabalho e na comunidade imediata. Sem esse aprendizado a vida social não poderia ser mantida e toda produção cessaria. (Thompson, 1981, p.194). Quando o autor define que os valores devem ser vividos busca internamente a idéia de exemplo-modelo, diretrizes, a forma em que se vive e se decide viver como elemento-chave a vida social. Este pensamento vai ao encontro de Campbell (1990) que em sua vasta obra sobre mitologia descreve que o mito situa o sujeito onde está no tempo e no espaço e, ao mesmo tempo, concede-lhe a identidade de quem é na sociedade, dando-lhe instrumentos simbólicos para compreender o mundo em que vive, assim como, fornecendo-lhe sentido às experiências. Os elementos cosmológicos, sociológicos, pedagógicos e sagrados que constituem o mito para Campbell tratam a experiência em contrapartida a Thompson, em uma leitura visual semelhante à figura abaixo: 44 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 45 Ou seja, a experiência é essencial ao sujeito, mas está longe de ser um conceito simples ou formado com certezas, ocorrem sugestões sobre como ela é absorvida e como seus valores são representados. Também se pode falar sobre a seleção das experiências que o Role Playing permite livremente, possibilitando existir experiências dentro de experiências. Exemplificando, em um cenário de guerra, um participante pode querer ter a experiência de vivenciar a perspectiva de um autista, de um homem pacifista, de um religioso ou, simplesmente, a de alguém alheio. Eles não são do universo da guerra, mas cria-se um sub-universo para vivenciar a experiência pela qual optaram. Estruturando, assim, seus valores, desejos e necessidades dentro de seu campo de atuação, que recorda o pensamento de Thompson: [...] os valores, tanto quanto as necessidades materiais, serão sempre terreno de contradição, de luta entre valores e visõesde-mundo alternativos. Se dizemos que os valores são aprendidos na experiência vivida e estão sujeitos às suas determinações, não precisamos, por isso, render-nos a um relativismo moral ou cultural. Nem precisamos supor alguma barreira instransponível entre valor e razão. Homens e mulheres discutem sobre valores, escolhem entre valores, e em suas escolhas alegam evidências racionais e interrogam seus próprios valores por meio racionais. (Thompson, 1981, p.194). Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Com riqueza de detalhes, Thompson descreve que esses valores representados são constantemente questionados e interrogados racionalmente, não obstante, necessitam antes de ser vivenciados, relacionados e compartilhados. Dessa forma, agregando as opiniões do filósofo e historiador Johan Huizinga (2007, p. ?) que defende uma análise mais visceral do processo de representação, em organizações mais primitivas na formação do sujeito, ao qual elege o jogo como canal chave, suas observações são validas para haver uma distinção clara entre o Role Playing e o jogo: Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda designar nossa espécie como Homo faber. Embora fabernão seja uma definição do ser humano tão inadequada como sapiens, ela é, contudo, ainda menos apropriada do que esta, visto poder servir para designar grande número de animais. Mas existe uma terceira função, que se verifica tanto na vida humana como na animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo fabere talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludensmerece um lugar em nossa nomenclatura.(...) o jogo se acha ligado a alguma coisa que não seja o próprio jogo, que nele deve haver alguma espécie de finalidade biológica (...) Nesta medida, situa-se numa esfera superior aos processos estritamente biológicos de alimentação, reprodução e autoconservação. O jogo como necessidade humana origina-se de uma finalidade biológica, todavia, não pode ser explicado por análises de cunho biológicas; Tornando-o uma prática intimamente ligada à função de cultura, assim como, à formação e ao exercício dela. Ao se comparar os elementos dos jogos de Huizinga com os do Role Playing, podemos compreender que ambos apresentam funções da 46 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 vida, sem uma definição ordenada nos campos da lógica, da biologia ou da estética. Com muita riqueza de detalhes que Huizinga (2007, p. ?) consegue em seu olhar sobre o jogo, exprime-se com exatidão uma questão-chave do Role Playing, qual seja, ―permanecer distinto de todas as outras formas de pensamento das quais exprimimos a estrutura da vida espiritual e social.‖ Pois quando se tenta compará-lo a algo, experimentado anteriormente ou conceitualmente formado, sem ter tido com ele vivência, se perde a essência de sua ação. Entrando na esfera do transcendente, na qual o autor supracitado descreve ―Em sua qualidade de atividade sagrada, o jogo naturalmente contribui para a prosperidade do grupo social.‖ (autor, ano da obra, página?) Essa sacralidade da aproximação dos sujeitos que carrega a prosperidade social e também do próprio sujeito com seu mundo interno, ocorre com sutileza e naturalidade, quando os mesmos se dispõem a ―encarar um processo espiritual que se inicia com uma experiência inexpressa dos fenômenos cósmicos e conduz a sua representação imaginária‖(HUIZINGA, 2007, p. 13). Essa relação entre a representação e a sutilização do ser, aparece por sua experiência transcendente aos dias cotidianos e a realidade concreta, como o mesmo autor analisa no trecho a seguir: A concepção deste processo espiritual defendida por Frobenius é mais ou menos a seguinte: a experiência,ainda inexpressa da natureza e da vida, manifesta-se no homem primitivo sob a forma de "arrebatamento". "Acapacidade criadora, tanto nos povos quanto nas crianças ou em qualquer indivíduo criador, deriva desse estado dearrebatamento. "Os homens são arrebatados pela revelação do destino". "A realidade do ritmo natural da gênese eda extinção arrebata sua consciência e este fato leva-o a representar sua emoção em um ato, inevitável e como quereflexo". Assim, segundo ele, trata-se aqui de um processo espiritual de transformação que é absolutamentenecessário. A emoção, o arrebatamento perante os fenômenos da vida e da natureza é condensado pela ação reflexae elevado à expressão poética e à arte. É esta a maneira mais aproximada para dar conta do processo de imaginação criadora, mas está longe de poder ser considerada uma verdadeira explicação. Continua tão obscuro como antes ocaminho que leva da percepção estética ou mística, ou pelo menos metalógica, da ordem cósmica até aos rituais sagrados. (autor, ano da obra, página?). 47 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Esse arrebatamento ocorre e é sentido com mais intensidade no processo de emersão do sujeito na representação do personagem, a expressão dessa imaginação criadora, assemelha-se ao pensamento de Huizinga o qual descreve ―o jogo serve explicitamente para representar.‖ E representar aproximando o sujeito de um estado diferenciado de consciência da realidade social e interna. A visão de uma figura mascarada, como pura experiência estética, nos transportapara além da vida quotidiana, para um mundo onde reina algo diferente da claridade do dia: o mundo do selvagem, da criança e do poeta, o mundo do jogo. (autor, ano da obra e página?). Façamos um contraponto. O Role Playing não pode ser descrito como apenas uma modalidade de jogo, mas o mundo do jogar pode ser compreendido em determinada instância como Role Playing, reforçando a certeza que habita esse mundo da criança-selvagem-poeta-jogadora, pois transporta os envolvidos para uma realidade paralela próxima, que sempre esteve presente sem poder ser acessada exclusivamente pelo plano concreto. 1.1 – ROLE PLAYING GAME A raiz do RPG, até onde se pode dizer com mais segurança, de acordo com ROCHA (2013), provém de 1824, da guerra Franco-prussiana, em que as forças militares tinham reuniões estratégicas nas quais utilizavam uma atividade de simulação bélica chamada Kriegspiel, inspirado no Xadrez. Sendo categorizado como jogo de estratégia ou jogo de guerra, essa atividade contava tanto com planejamento quanto probabilidade. O que deu vantagem e contribuiu para a vitória da Prússia, mesmo sendo esta militarmente inferior à França. Esse momento foi realmente importante, pois nele adicionou-se aos jogos de estratégia o elemento acaso, colocando a probabilidade como fator para a vitória. 48 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 No início do século XX, esse tipo de atividade já havia se propagado a Europa toda, gerando várias vertentes, chegando a popularizar-se comercialmente como reprodução de modelos miniaturizados de guerras históricas e ficcionais. Um bom exemplo disso é o jogo de War. Todavia, em 1974, ocorreu a convergência dessa modalidade de jogo com o Role Playing, realizada por David Anerson e Gary Gygax, constituindo-se o jogo DungeonsandDragons (dragões e calabouços). Assim, , é possível a visualização de que para a formação do RPG, o jogo de estratégia passou por três etapas históricas, a saber, o jogo simples, com igualdade e limitação de possibilidades, ou seja, um tabuleiro de xadrez fixo, com 32 peças, iniciando-se sempre com o primeiro movimento das peças claras em uma estrutura abstrata tão forte que era avessa a realidade do mundo, sendo a primeira era dos jogos de estratégia pré século XIX. Logo após, ocorre a adição dos objetos geradores de probabilidades que influenciam o resultado como a diferença no clima, território, armamentos, número de soldados entre outros, originando a segunda era dos jogos de estratégia. E por fim, na terceira era, surge o Role Playing que agrega os elementos anteriores e permite a representação dos mesmos como uma percepção do jogador. Pode-se notar que nesses estágios houve uma sutilização das percepções dos participantes no decorrer do tempo, saindo-se do abstrato- irreal - para o concreto e depois se passando à abstração hipotética de realidades co-criadas a fim de serem experienciadas. Se recordarmos o pensamento de Piaget (1967) podemos acreditar que a experiência desses jogos foi maturando o pensamento de seus jogadores-experimentadores no decorrer de seu tempo histórico. Nessa disposição, os jogadores de RPG ou Rpgistas atuam em uma média de seis participantes, que se sentam ao redor de uma mesa, cada um com fichas de seus personagens sistematizados por um código registrado em um livro de regras o qual descreve as disposições e limitações de suas respectivas atuações e que trás consigo uma temática de jogo ou cenário. Assim, realizam ambientações com projeções geográficas e historiográficas, bem como resolução de situações problemas, tendo acesso a ações 49 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 determinantes e a cálculo de probabilidades mediante o lançamento de dados que variam de formato, ostentando de quatro a cem faces. Toda a atividade é instruída por um coordenador, denominado narrador, pois é ele que contextualiza os personagens inicialmente, agindo como um mediador no decorrer do processo. O narrador age de maneira equivalente a um educador em sala de aula, orientando as atividades. Ao jogar RPG cabe ao narrador fazer uma pesquisa sobre a temática na qual irá inserir os jogadores e, consequentemente, isso faz com que os mesmos pesquisem para melhorar seus desempenhos no jogo. De acordo com Schmit (2008) o RPG também pode ser conceituado em sua mecânica e identidade como: São atividades cooperativas nas quais um grupo de jogadores, geralmente, em número de 4 a 10, cria uma história de forma oral, escrita ou animada e não-linear, utilizando-se como plano de jogo a imaginação, esboços, gestos, falas, textos e imagens. Cada um dos jogadores, com exceção de um deles, representa um personagem da história, com características próprias prédefinidas. O jogador restante assume o papel de narrador ou mestre do jogo entre outras nomeações, sendo responsável por descrever o cenário, além de representar todos os coadjuvantes, antagonistas e figurantes, denominados nonplayer caractersou mais comumente NPC. Não existe competição direta entre os jogadores (a não ser que faça parte da trama). É, portanto, um jogo de socialização de pequenos grupos. (SCHIMIT, 2008, p. 23). Essa atividade descrita por Schmit, com as devidas modificações para se adequar às necessidades de uma sala de aula ampla, viabiliza-se como uma proposta metodológica à interação entre sujeitos e à reavaliação da percepção do aluno sobre o conteúdo trabalhado, independendo da disciplina selecionada, podendo, inclusive, desenvolver um cunho multidisciplinar, propiciando a ciência de que cada processo será único, pois cada classe participa e desenvolve a história à sua maneira. Sua conexão com a educação existe desde sua chegada ao Brasil, quando os livros eram trazidos como material didático de professores de inglês, os quais eram Brasileiros em excursão nos EUA. Mas, oficialmente, o debate tomou um cunho mais profundo com a publicação da tese de doutorado de Sônia Rodrigues (2004), O Role Playing game e a pedagogia da imaginação no Brasil. 50 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 O RPG articula uma habilidade plástica de se construir e reconstruir, agregar elementos de vários jogos e conteúdos, tendo fundamentação na cooperação, podendo simular competição se assim for proposto. Seu maior elemento de atuação é a narrativa, que não depende de elementos externos para se desenvolver como multimídia e material de artes em sala de aula (mas, pode assimilá-los), dependendo, exclusivamente, da postura ativa do narrador (professor). 1.2 – LIVE ACTION ROLE PLAYING ―No caso do LARP, segundo a leitura do Núcleo de Pesquisa de Live action Role Playing em São Paulo, não é compreendido apenas como um jogo, mas como uma forma de arte participativa.‖ (FALCÃO, 2013, p. ?). Já sua origem é remota na historia humana, aparecendo em diversas práticas e finalidades como rituais, recreação, passatempos e aprendizagem, mesclando-se com as origens do teatro. Diferente do RPG, o LARP necessita de espaços diversos para expressão corporal como espaços teatrais, bares, casas, parques, restaurantes, salas galpões, bibliotecas entre outros, pois o número de participantes pode variar de no mínimo dois até mais de dois mil, cuja atuação diz respeito à representação de contextos históricos ficcionais ou de resgate socio-histórico. Também pode ser compreendida como uma experiência imersiva, que leva a uma experimentação de sensações psico-afetivas e sociais, que mudam o ângulo de percepções sobre determinados contextos e temas, mantendo o caráter do personagem. Não mantém a linearidade de um roteiro a ser seguido, parte apenas do conhecimento de alguns dados a ser interpretados e logo após representados, com a improvisação das ações dos participantes conforme vão se relacionando uns com os outros e também com o ambiente. ―Um larp é um encontro entre pessoas que, por meio de seus personagens, relacionam-se umas com as outras em um mundo ficcional.‖ (EIRIKFATLAND, (ano da obra) apud FALCÃO, (ano da obra), p. ?). Dessa forma nota-se que não existe uma narrativa no LARP, mas um desenrolar por meio das relações entre os participantes em sua linguagem, 51 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 aceitando os mais diversos temas que promovem experiências vividas. Exemplos de temáticas podem ser variadas com inspiração de filmes, livros, Histórias em quadrinhos, jogos de videogame e até questões de impacto social real, como câncer, aids, aborto, doença mental, bullying entre outros. Sendo uma atividade comum e bem conceituada em o norte da Europa, a saber, na República Tcheca, Nova Zelândia, Rússia, Taiwan, Portugal, França e na Itália. Existem muitos tipos e estilos de larp, alguns muito simples (que qualquer pessoa pode fazer em casa com alguns amigos) e outros mais complexos, chegando ate mesmo à superproduções. Então a principio qualquer pessoa pode fazer um LARP. No entanto existe uma grande comunidade espalhada pelo mundo que cria, compartilha e realiza larps. (FALCÃO, 2013, p. 18). O autor nos dá uma ideia de um movimento mundial, então, é procedente questionar a respeito de o porquê não ocorre uma divulgação e interação massiva. A resposta vem ao encontro da postura do Role Playing, a representação importa e é válida para quem representa, é um processo antes de tudo individual, pois se fosse outra situação condicionar-se-ia a um teatro do improviso, deixando de ser tão fluido. De maneira que a participação nessa atividade diferencia-se dos jogos convencionais ou esportes coletivos, nos quais o foco não está no corpo, mas na expressão que é transmitida pelo corpo. Falcão continua a esclarecer o tema ao descrever o movimento de atuação no LARP: O larp não é interativo como a maioria dos jogos: ele é participativo. Interatividade implicaria em fazer escolhas em sistemas que preveem quais respostas dar as escolhas. Participativo não. Não há um sistema definido para lidar com as escolhas, como num jogo de computador, por exemplo. As reações do sistema são completamenteorgânicas, afinal, você está lidando com outras pessoas. (FALCÃO, 2013, P. 20). Justamente por manter esta estrutura orgânica, o jogo se mantém natural a tal ponto que não é necessário saber jogar, ele se desenvolve junto com o sujeito, em uma pré disposição da própria constituição do individuo humano. O Role Playing promove um estado de bem-estar social, psicológico e emocional, além de estímulos para imaginação e raciocínio. 52 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Esta argumentação Reforça-se nos seguintes termos: Jogo, sonho, fantasia sempre estiveramassociados a coisas pouco sérias ou sem importância.Nossa sociedade insiste na divisão em dois mundosopostos onde, de um lado, estariam a brincadeira, ossonhos, a imaginação e, de outro, o mundo sério darazão, do trabalho.(...) Esta ideia justifica o descaso,tão frequente na cultura adulta, pelo ato de brincar, nãolevando em conta que adulto também brinca. (...)Podemos afirmar que, independente das diferençasindividuais, todo adulto precisa de brincadeira e dealguma forma de jogo para viver. (...) Por outro lado, ojogo e a brincadeira não devem ser entendidos apenascomo situações em que se envolvam as criançasmenores. Qualquer aula se torna mais interessante,quando se conhece através do jogo, quando se reúnemjogo e trabalho. (MULTIEDUCAÇÃO, (ano da obra ?) apud FREITAS, 2006, p. ?). Nesse campo de idas e vindas entre o trabalho e a brincadeira, encontra-se o Edularp ou LARP para fim educacional, que segundo Falcão (2013, p.?) ―Além de ser um método mais rápido e menos trabalhoso é mais fácil de ser aprovado pela Administração das escolas‖. ―Também existe um formato de LARP, curto, rápido e simples, em uma fórmula instantânea que cabe em uma hora aula, chamado Role Playing Poem ou poema de representação, originados na Escandinávia.‖ (FALCÃO, 2013, p.?). Normalmente, escrito em uma página, que atua desde a comédia até autoconhecimento, promovendo um leque de possibilidades no campo educacional para temas transversais e debates polêmicos. Conclusão Após esse processo de relação de conceitos e teorias, não se pode dizer que existe uma noção clara e definitiva sobre o que é o role playing devido ao seu grau elevado de abstração, porém, pode-se suscitar sugestões que vão ao encontro da experiência e do campo teórico por meio de uma alegoria. É possível considerar o role playing como uma agulha que costura o tecido da história dos sujeitos, sendo as linhas constituídas de experiências de valores, sensações, ideias e desejos de produção-expressão do individuo, sendo o tecido a realidade habitada e o sujeito a mão que executa a tarefa. 53 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Acentuando-se que para costurar existe a necessidade de um par de mãos, pois o role playing não se faz sozinho e sim pela presença do conjunto, pelo encontro, pelas relações psico-afetivas e sociais, conscientes e inconscientes, traçadas no tempo por sujeitos e espaços, podendo ser encarado como uma linguagem sociocultural que representa as necessidades humanas internas e latentes em suas respectivas experiências. 54 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Brasil: Martins Fontes, 2007. CEIA, C. IMAGINAÇÃO. Disponível em: <http://www.edtl.com.pt/?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=412&Itemid =2> Acesso em: 10 nov. 2013. DINELLO, Raimundo Angel. Pedagogia da expressão. Uberaba - MG: Uniube, 2009. 204 p. ______. Expressão ludocriativa. Uberaba - MG: Uniube, 2009. 182 p. FALCÃO, Luiz. LIVE! Live Action Role playing um guia prático para LARP. São Paulo: Núcleo de pesquisa em Live Action role playing (projeto Boi Voador), 2013. 87 p. HUIZINGA. Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. Tradde. João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2007. RODRIGUES, Sônia. Role playing game e a pedagogia da imaginação no Brasil. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 210 p. MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1993. ROCHA, R.F. NARRATIVA DA IMAGINAÇÃO: a proposta de uma metodologia role playing para qualificar a relação professor-aluno. Dissertação (Mestrado). Montevidéu: Universidad de La Empresa, 2013. SCHMIT, Wagner Luiz. RPG e Educação: alguns apontamentos teóricos. Londrina – PR: Universidade Estadual de Londrina, 2008. (Dissertação de Mestrado) FREITAS, Luiz Eduardo Ricon de. O Role Playing Game e a Escola: múltiplas linguagens e competências em jogo - um estudo de caso sobre a inserção dos jogos de RPG dentro do currículo escolar. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2006. (Dissertação de Mestrado) 55 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 POR UMA TEORIA LACANIANA DO ROLE PLAYING GAME Rafael Duarte Oliveira Venancio Doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) [email protected] Resumo O presente artigo deseja observar como a Psicanálise, notadamente, a vertente de Jacques Lacan, consegue engendrar um arcabouço teórico para a análise do role playing game (RPG), focado no Modelo Triplo [Threefold Model] baseado nos componentes do jogo, drama e simulação. Utilizando-se a interface entre Lacan e a Teoria dos Jogos, o objetivo aqui é produzir um conjunto de postulados que ajude em futuras concepções metodológicas e analíticas de trabalhos na área. Palavras-chave: Jacques Lacan. RPG. Teoria dos Jogos. Psicanálise. Identificação Abstract This article wants to observe how psychoanalysis, notably Jacques Lacan‘s view, can engender a theoretical framework for analyzing role playing game (RPG), focus on the Threefold Model, based on game, drama and simulation. Using the interface between Lacan and Game Theory, the main objective here is to produce a set of postulates that helps in methodological and analytical future conceptions used in papers. 56 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Keywords: Jacques Lacan. RPG. Game Theory. Psychoanalysis. Identification O lançar de alguns dados identifica se um orc cairá em um calabouço ou irá para a sala do tesouro. Algumas anotações em papel possuem um mapa intricado de calabouços e dragões. Apenas o consenso indica a proteção e a capacidade de ataque de um guerreiro. O parágrafo acima não descreve uma história maravilhosa de George R. R. Martin ou o incrível lirismo de Jorge Luis Borges. Acima, temos apenas uma ordinária sessão de RPG (role playing game) que pode estar sendo realizada logo no momento em que eu escrevo estas palavras ou que o leitor realiza a leitura deste trabalho. O RPG é um jogo de interpretação grupal desenvolvendo-se no plano da imaginação. É uma atividade oral que requer leituras diversas para fomentar a imaginação dos jogadores. Surgiu na década de [19]70 nos EUA e no Brasil por volta da década de [19]90. Um grupo de jovens se reúne para se divertirem sem os aparatos da atual tecnologia, como instrumentos têm livros, blocos de anotações, lápis, canetas e sobretudo imaginação. De uma sessão ou encontro de RPG participam o mestre (também chamado narrador, [GM]) e os jogadores. Aquele, mais experiente, tem a função de apresentar ao grupo uma história, uma aventura contendo enigmas, situações e conflitos que exigirão escolhas por partes dos jogadores. Os jogadores, geralmente em número de 4 ou 5, não são meros espectadores, mas participantes ativos, que como atores representam um papel e, como roteiristas, escolhem caminhos e tomam decisões nem sempre previstas pelo Mestre, contribuindo na recriação da aventura. Segundo Marcatto, o RPG ―é um exercício de diálogo, de decisão em grupo, de consenso‖, pois só através da interação de todos os jogadores é possível a construção da narrativa ficcional. (BRAGA, 2000, p. 1-2). Com isto, o RPG se consolida enquanto prática lúdica baseada na identificação. Tendo isso posto, o presente trabalho deseja especular acerca da possibilidade do desenvolvimento de uma reflexão teórica da prática do jogo baseada em Jacques Lacan e seu arcabouço psicanalítico. 57 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Primeiramente, iremos analisar a relação de Lacan com a ideia de jogo, muito influenciada pela Teoria dos Jogos e pelo matemático Georges-Théodule Guilbaud. Depois disso, iremos proceder à interpretação lacaniana das práticas básicas do RPG, buscando um conjunto de postulados que ajude em futuras concepções metodológicas e analíticas de trabalhos na área. Lacan e o jogo Antes de entrarmos em Jacques Lacan, é necessário falarmos do arcabouço da Teoria dos Jogos. Arcabouço esse que fica concentrado na obra fundadora do campo – Theory of Games and Economic Behavior (1944), de Von Neumann e Morgenstern – e no principal popularizador fora do campo da Economia e da Matemática, Anatol Rapoport e os seus livros Fights, Games and Debates (1960) e Two-Person Game Theory (1966). No entanto, essa leitura fica em um nível muito mais normativo acerca do que é um jogo. Para entender a reflexão aqui proposta, precisamos sair do campo norte-americano de estudos da Teoria dos Jogos para observar como tal vertente foi introduzida na França. Estamos falando de Jean-Pierre Séris e, principalmente, de Georges-Théodule Guilbaud, matemático francês de grande influência no pensamento de Jacques Lacan. Considerado o pai da Cibernética de linha francesa, Guilbaud é uma figura-chave no pensamento lacaniano, especialmente, nas considerações préSeminário 11 que continuariam a influenciar mesmo após sua radicalização em seu retorno a Freud. No entanto, é sabido que não foi Guilbaud que apresentou a Teoria dos Jogos para Lacan. Lydia Liu (2011, p. 166) indica que, já nos anos 1940, Lacan demonstrou interesse na Teoria dos Jogos. Um de seus escritos, O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada: um novo sofisma, de 1945, parece ter recebido o impacto do fundante Theory of Games and Economic Behavior, lançado um ano antes. Nele, Lacan reflete sobre a questão de um jogo de n-pessoas [n-person game], inicialmente, apresentado com 3 jogadores, muito parecido com a famosa reflexão do Dilema do Prisioneiro, antecipando o famoso problema da 58 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Teoria dos Jogos descrito por Merril Flood e Melvin Dresher em 1950 e consolidado por Albert W. Tucker. Esse texto seria a base para o Seminário sobre A Carta Roubada (1956) onde a própria influência de Guilbaud se demarcaria melhor graças à constante citação lacaniana a certos interlocutores cibernéticos, no caso Guilbaud e Jacques Riguet, outro matemático amigo de Lacan. A influência de Guilbaud não se resume apenas a Lacan, mas também a, praticamente, todo núcleo duro da vertente mais diletante da Filosofia Continental de linha francesa, que ficaria conhecida como Estruturalismo. Desde 1950, Lacan se referira em seu ensino ao saber matemático. Sob esse aspecto, seu encontro com o matemático católico Georges Th. Guilbaud é essencial para compreender a utilização que ele fez progressivamente das figuras de topologia. Esses dois homens, que tinham uma semelhança física evidente, mantiveram durante trinta anos uma grande amizade. Em 1951, Lacan, Benveniste, Guilbaud e Lévi-Strauss começaram a se reunir para trabalhar sobre as estruturas e estabelecer pontes entre as ciências humanas e as matemáticas. Cada um utilizava a seu modo o ensinamento do outro sobre o modo de uma figura topológica. A partir desse trabalho coletivo, Lacan entregou-se cotidianamente a exercícios matemáticos. Às vezes, em viagem, quando encontrava um obstáculo, telefonava a Guilbaud para resolver com ele o problema. Este último jamais foi ao seminário e sua relação com Lacan permaneceu da ordem do jardim secreto. Na intimidade, os dois entregavam-se juntos à mesma paixão, brincando sem parar de atar pontas de barbante, de encher bóias de criança, de trançar, de recortar... Esse domínio já retinha portanto a atenção de Lacan, que ensinava a seu auditório a arte de transcrever sua doutrina em figuras topológicas (ROUDINESCO, 2008, p. 489-90). Além da utilização de figuras como a banda de Moebius, o estudo matemático levou Lacan a estudar o Tractatus em seu Seminário 17. Era um movimento do ―passar do dizer ao mostrar, ou seja, incitar cada sujeito do auditório – até mesmo o próprio Lacan – a fazer exercícios que não dependessem mais do discurso, mas da ‗mostração‘‖ (ROUDINESCO, 2008, p. 59 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 490). Eis a reformulação matemática da psicanálise onde o conceito de matema e os quadrípodes serão essenciais. A inserção da Matemática no núcleo duro do Estruturalismo através da figura de Guilbaud não se estendeu apenas a Lacan. É digno de nota o estudo de Benveniste acerca dos jogos, onde ―Jogo como Estrutura‖ (1947) se destaca. É bom esclarecer que o jogo analisado por Benveniste não é aquele da Teoria dos Jogos, mas sim aquele estudado por Johan Huizinga e Roger Caillois, com mais divulgação dentro do pensamento europeu do que as ideias de Von Neumann e seguidores. Explicaremos a diferença entre as duas correntes em um momento mais adiante do nosso texto. No entanto, é interessante já o leitor ter em mente essa diferenciação que, no limite, calca-se na distinção, em inglês, entre play e game, quando em francês, só é representado pela palavra jeu. Mas, voltando à relação entre Lacan e a Teoria dos Jogos, o relacionamento do psicanalista francês com Guilbaud nesse campo foi de uma admiração mútua. Quatro anos depois que Lacan escreveu O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada: um novo sofisma, Guilbaud resenhou o livro de Von Neumann e Morgenstern para a Economie Appliquée. Assim, nenhum dos dois pensadores induziu o outro a ter interesse na Teoria dos Jogos, mas sabemos que, após esses dois primeiros textos, ambos se identificaram com o texto do outro. Tanto é assim que uma das principais fontes de pensamento para Lacan escrever Seminário sobre A Carta Roubada fora a resenha de Guilbaud (LIU, 2011, p. 172). Lacan e Guilbaud, em seus textos, debruçam-se sobre do jogo de Par ou Ímpar apresentado por Edgar Allan Poe em A Carta Roubada. Escrita em 1844, o texto é um dos três contos do detetive C. Auguste Dupin que o autor norteamericano escreveu. Na história, Dupin é chamado pelo Chefe da Polícia parisiense para resolver um caso de chantagem envolvendo uma carta roubada, missão que o detetive realiza com facilidade, contrastando com o amplo esforço policial em vão. Após entregar a carta para o Chefe, Dupin explica para o narrador da história (sem nome e em 1ª pessoa) como conseguiu obtê-la. Ele afirmou que, apesar de esforçados, os policiais subestimavam o ladrão da carta – o ministro D– – por ser um poeta. Para exemplificar o perigo de tal atitude, Dupin conta a 60 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 história de um garoto de 8 anos que era imbatível ao disputar um jogo de Par ou Ímpar que é uma variação possível do jogo conhecido como Morra (Poe não utiliza essa terminologia) ou mesmo do Matching Pennies analisado por Von Neumann e Morgenstern (1953). Conta-nos Poe (1903, p. 19-21), começando com uma fala de Dupin: Um estudante raciocina melhor do que ele [Chefe de Polícia]. Eu conheci um que tinha uns oito anos de idade, cujo sucesso em adivinhar no jogo de ―par ou ímpar‖ atraiu admiração universal. Esse jogo [game] é simples e é jogado com bolas de gude. Um jogador segura na sua mão um determinado número desses brinquedos e pergunta ao outro se o número é par ou ímpar. Se a adivinhação é correta, o adivinhador ganha uma bola; se é errada, ele perde uma. O garoto o qual faço menção ganhou todas as bolas de gude da escola. Claro que ele tinha alguns princípios de adivinhação e estes residiam na mera observação e medição da astúcia de seus oponentes. Por exemplo, um total ignorante [arrant simpleton] é o seu oponente, e, levantando sua mão fechada, ele pergunta: 'par ou ímpar?' Nosso estudante responde, 'ímpar,' e perde; mas na segunda tentativa ele vence, já que ele diz para si mesmo, 'o ignorante colocou par na primeira tentativa e sua quantidade de esperteza é suficiente para fazê-lo mudar para ímpar na segunda tentativa, assim eu vou dizer ímpar'—e ele diz ímpar e vence. Agora, com um ignorante um grau acima do primeiro, ele teria raciocinado assim: 'Esse camarada viu que na primeira instância eu disse ímpar e, na segunda tentativa, ele vai se propor, em um primeiro impulso, um variação simples de par para ímpar, tal como fez o primeiro ignorante; mas, um segundo pensamento irá sugerir que uma variação é simples demais e que, assim, ele irá colocar par tal como antes. Assim, eu devo dizer par'— ele diz par e vence. Agora esse modo de raciocinar no estudantes, identificado enquanto ‗sortudo‘ pelos seus colegas — o que é, em uma última análise?" "É meramente, ―eu disse, "uma identificação do intelecto do raciocinador com aquele do seu oponente". "É isso", disse Dupin, "e, ao questionar o garoto por quais meios ele efetuou a identificação cuidadosa na qual seu sucesso se baseia, eu recebi esta resposta: 'Quando eu quero descobrir o quão sábio ou quão estúpido, ou quão bom ou quão sagaz é alguém ou quais são seus pensamentos no momento, eu monto a expressão da minha face, o mais preciso possível, de acordo com a expressão da face dele e, então, 61 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 espero para ver quais pensamentos ou sentimentos surgem na minha mente ou coração, tal como se fossem igualar ou corresponder com a expressão'‖. Para Lacan (2008, p. 60) nesse momento do conto de Poe está uma exemplificação possível do mecanismo de identificação conhecido, na letra lacaniana, como esquema L que reproduzimos abaixo: ● a’ outro (Es) S ● ¹ relação imaginária ² inconsciente ¹ ² (eu) a ● ● A Outro Resumidamente, podemos explicar o esquema acima com a seguinte citação de Lacan (2008, p. 59): o sujeito, ―em sua forma completa, se reproduz cada vez que o sujeito se dirige ao Outro como absoluto, isto é como o Outro que pode anulá-lo ele próprio, da mesma maneira pela qual pode agir com ele, isto é fazendo-se objeto para enganá-lo‖. Detalhadamente, podemos dizer que s é ―o sujeito, o sujeito analítico, ou seja, não é o sujeito em sua totalidade (...). É o sujeito, não em sua totalidade, porém em sua abertura. Como de costume, ele não sabe o que diz. Se ele soubesse o que diz, não estaria aí. Ele estaria ali, embaixo, à direita [A (Outro)]‖ (LACAN, 1987, p. 307). Só que S não se vê em S. ―Ele se vê em a, e é por isto que ele tem um eu. Pode acreditar que este eu (...). O que a análise nos ensina, por outro lado, é que o eu é uma forma absolutamente fundamental para a constituição dos objetos‖ (LACAN, 1987, p. 307). Só que a questão dos objetos não finaliza nesse ponto. Jacques Lacan (1987, p. 309) afirma que, ―em particular, é sob a forma do outro especular [A] que ele vê aquele que, por razões que são estruturais, 62 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 chamamos de seu semelhante. Esta forma do outro tem a mais estreita relação com o seu eu, ela lhe pode ser superposta, e nós a escrevemos a’ ‖. Marcamos assim, o plano do espelho (S e a’), o mundo simétrico do egoais (egos iguais, S e a) e dos outros homogêneos (A e a’). No entanto, há o que Lacan chama de ―muro da linguagem‖. Ora. ―é a partir da ordem definida pelo muro da linguagem que o imaginário toma sua falsa realidade, que é, contudo, uma realidade verificada. O eu, tal como entendemos, o outro, o semelhante, estes imaginários todos, são objetos‖ (LACAN, 1987, p. 307). ―Quando o sujeito fala com seus semelhantes, fala na linguagem comum, que considera os eus imaginários como coisas não unicamente exsistentes, porém reais‖ (LACAN, 1987, p. 308). Ora, a consequência disto, para Jacques Lacan (1987, p. 308), é que ―nós nos endereçamos de fato aos A1, A2, que é aquilo que não conhecemos, verdadeiros Outros, verdadeiros sujeitos. Eles estão do outro lado do muro da linguagem, lá onde, em princípio, jamais os alcanço‖. Isso posto, Lacan utiliza o exemplo do jogo do menino de 8 anos (e sua analogia com os jogos Dupin-Chefe de Polícia e Dupin-Ministro D–) como exemplo máximo da impossibilidade de se criar uma máquina-de-pensar graças à ausência nela de um inconsciente. Ou seja, por mais tecnológica que seja tal máquina jamais conseguiria completar o mecanismo de identificação que proporciona ao menino de 8 anos e a Dupin a ―vitória‖ em seus respectivos jogos de Par ou Ímpar. A raiz matemática da conclusão de Lacan está na resenha de Guilbaud. Com mais de 40 páginas, Guilbaud alterna comentários acerca de Theory of Games and Economic Behavior com considerações próprias. Uma delas é a análise do jogo de Par ou Ímpar descrito por Poe que não é encontrado no livro fundante da Teoria dos Jogos. Bem no final da resenha, Guilbaud analisa tal jogo em analogia a outro jogo literário analisado por Von Neumann e Morgenstern: a fuga de Sherlock Holmes para Dover no conto ―O Problema Final‖ (1893), de Arthur Conan Doyle. O matemático francês faz isso para analisar aquilo que ele chama de ―teoria do ardil‖ (GUILBAUD, 2000, p. 37). O ardil [ruse] – equivalente ao blefe em Theory of Games and Economic Behavior – nos mostra que, em muitos jogos, a ignorância das possibilidades 63 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 (ou dos movimentos do oponente) pode dar mais vantagem diante de um raciocínio mais elaborado, mais matemático. Guilbaud (2000, p. 38) mostra que o jogo do Par ou Ímpar é muito mais simples de ser analisado do que o jogo de ―O Problema Final‖. Enquanto Von Neumann e Morgenstern (1953, p. 178) mostram que a solução ideal seria, em 60% dos casos: Moriarty ir para Dover (bloqueando sua derrota fatal caso parasse em Canterbury e, ao mesmo tempo, Holmes chegasse em Dover onde poderia pegar um barco para sair da Inglaterra) e Holmes parar em Canterbury onde possui melhores chances de vencer (aqui no sentido de sobreviver); o jogo de Par ou Ímpar de Poe, quando jogado com dois players de intelecto equivalentes, não possui estratégia vencedora no âmbito matemático, sendo mais interessante a própria randomização de jogadas pautado por algum dispositivo (tal como um lançar de moedas buscando um cara-ou-coroa). Ninguém precisa entender todos os detalhes técnicos da Teoria dos Jogos para ver como o tratamento do jogo de Par ou Ímpar em ―A Carta Roubada‖ privilegia o ―jogar‖ e as ―escolhas‖ do que o ―jogo‖ e as ―jogadas‖ quando ele permite tanto o garoto esperto como Dupin ganhar todas as bolas de gude e a questão da carta. A preferência pela ordem imaginária (identificando com o seu oponente) impede um engajamento com os processos estocásticos. Isso pode ter sido a razão pela qual a história de Poe foi excluída dos exemplos literários usados por Von Neumann and Morgenstern para ilustrar a Teoria dos Jogos (LIU, 2011, p. 176). No entanto, apesar de tanto Lacan como Guilbaud se preocuparem com os elementos da Ordem Simbólica (os processos estocásticos, o desenho do Esquema L), o legado deles parece ficar mais nos efeitos proporcionados por esses elementos no Imaginário (a identificação, o amplo âmbito entre inconsciente e linguagem). Assim, não só ganha força o lado criticado de Poe, mas também a tradição europeia de leitura dos jogos instaurada por Huizinga e Caillois. A tradição europeia indistingue os jogos. Em francês, por exemplo, isso é bem representado pelas variações da palavra jeu que abarca tanto brincadeiras como jogos de estratégia. Assim, o jogo é visto bem à maneira do Homo Ludens de Huizinga (2010, p. 34), ou seja, como ―um dos elementos 64 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 espirituais básicos da vida‖. Além disso, Huizinga (2010, p. 221) faz a afirmação capital que ―no verdadeiro jogo é preciso que o homem jogue como uma criança. Poderá isto ser afirmado de um jogo tão complexo como o bridge? Caso contrário, esse jogo perdeu suas qualidades essenciais‖. Assim, a ludicidade – totalizante e naïve – apresentada pelos jogos seriam, nada mais nada menos, que índices do método de organização da realidade social. Tal como Caillois escreve, o jogo – tanto para Huizinga como para Piaget e Chateau – é crucial para a civilização. As disposições psicológicas que ele [o jogo] traduz e fomenta podem efetivamente constituir importantes fatores civilizacionais. Globalmente, estes diferentes sentidos implicam noções de totalidade, regra e liberdade (...). O jogo significa que dois pólos subsistem e que há uma relação que se mantém entre um e o outro. Propõe e difunde estruturas abstratas, imagens de locais fechados e reservados, onde podem ser levados a cabo concorrências ideais. Essas estruturas, essas concorrências são, igualmente, modelos para as instituições e para os comportamentos individuais. Não são segura e diretamente aplicáveis a um real sempre problemático, equívoco, emaranhado e variado onde os interesses e as paixões não se deixam facilmente dominar mas onde a violência e traição são moeda corrente. Contudo, os modelos sugeridos pelos jogos constituem também antecipações do universo regrado que deverá substituir a anarquia natural. Esta é, reduzida ao seu essencial, a argumentação de um Huizinga quando faz derivar do espírito do jogo a maioria das instituições que comandam as sociedades e das disciplinas que contribuem para sua glória (CAILLOIS, 1990, p. 12-3). É nesse espírito que faz, por exemplo, um Benveniste falar do jogo enquanto estrutura. Até mesmo quando vinculamos Lévi-Strauss (outro membro nas reuniões dos estruturalistas com Guilbaud) e Saussure à noção de jogo, é desta noção de que o jogo é fundante para a realidade social que estamos falando. Aliás, é isso que Derrida faz em sua crítica ao Estruturalismo em ―Estrutura, Signo e Jogo‖: [O jogo é] um campo de substituições infinitas só porque é finito, ou seja, porque ao invés de ser um campo inesgotável, 65 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 tal como na hipótese clássica, ao invés de ser tão largo, há algo faltando nele: um centro que aprisiona e acalma o jogo das substituições. Poderíamos dizer – rigorosamente usando a palavra cuja significação escandalosa é sempre obliterada em francês – que esse movimento de jogo, permitido pela falta ou ausência de centro, é o movimento de suplementaridade (DERRIDA, 1978, p. 289). O livre jogo da suplementaridade é análoga à direção conclusiva derridariana da beleza livre do Sens-Sans. Só que, se o Sens-Sans acaba valendo mais para análises extralinguísticas, essa visão coincidente entre um macroconceito de jogo e o modo de ordenação simbólica acaba por ressaltar mecanismos análogos ao Imaginário de Lacan. Logo, todo o pensamento francês acaba nesse registro de visão acerca do jogo incluindo no mesmo espírito teórico os chamados estruturalistas e pós-estruturalistas. Assim, toda a matemática utilizada por Guilbaud, enquanto representante e introdutor da Teoria dos Jogos no cenário francês, tem espaço bem definido. E ele é descrito por Caillois ao comentar em Os jogos e os homens acerca da relação entre a noção de jogo instaurada por Huizinga no pensamento da Filosofia Continental e o conceito de mesmo nome utilizado por Von Neumann e Morgenstern em um movimento que ele chama de ―das pedagogias às matemáticas‖. O que há aqui é uma crítica àquilo que Caillois chama de Teorias Matemáticas do Jogo que, segundo ele, acabam por automatizar o jogo e tirar, por exemplo, a impulsividade, o desejo e o imponderável. Elementos estes que são cruciais para um jogo à moda continental. É precisamente aí que reside e persiste o irredutível elemento de jogo que as matemáticas não alcançam, uma vez que nunca foram senão álgebra aplicada ao jogo. Supondo, o que não é muito impossível, que elas se tornem álgebra do jogo, o jogo fica imediatamente destruído. Não se joga quando se tem a certeza de ganhar. O prazer do jogo e o risco de perder são inseparáveis. Sempre que a reflexão combinatória (aquilo em que consiste a ciência dos jogos) formula a teoria para uma situação, o interesse de jogar desaparece juntamente com a incerteza dos resultados. O efeito de todas as variantes tornase conhecido (CAILLOIS, 1990, p. 199-200). 66 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Assim, essas matemáticas – tal como Caillois vê a Teoria dos Jogos – são apenas uma forma de análise acessória, consequência do jogo e não decodificadora dele. Tal ideia de uma essência ontológica do jogo, que é irredutível à lógica matemática, torna-se a característica de toda Filosofia Continental, ou seja, toda a cena francesa de análise filosófica do jogo. Lacan e o Modelo Triplo do RPG: Ontologias e Identificação no Jogo, Drama e Simulação Ora, se há em Lacan, tal como em Caillois e a tradição francesa dos estudos do jogo, uma essência ontológica do jogo, o nosso estudo psicanalítico acerca do RPG necessita de tais estruturas para se movimentar. Com isto, o chamado Modelo Triplo do RPG [Threefold Model] é o lugar teórico para tal empreitada psicanalítica. Sua origem remota no fórum da Usenet rec.games.frp.advocacy em 1997, tendo o nome e principais conceitos cunhados inicialmente por Mary Kuhner. Kuhner, basicamente, agregou uma série de discussões que buscavam debater a classificação de gêneros do RPG. Afinal, não poderia apenas classificar todos os tipos de jogos em uma única classificação: RPGs. Com isto, foi criado um tripé de enfoque dos jogos, considerando sua comunidade de gerentes e jogadores. Assim, haveriam jogos pelos jogos (compostos pelos gamistas), jogos pela simulação (compostos pelos simulacionistas) e jogos pelo drama (compostos pelos dramatistas). Tendo o tripé posto por Jogo-Drama-Simulação, o Modelo Triplo ficou conhecido enquanto Modelo GDS de construção de RPG, focando na sigla dos termos em inglês: Game-Drama-Simulation. A definição da distinção do tripé é bastante clara: "dramatista": é o estilo que avalia o quão bem o jogo cria, em sua ação dentro do jogo, uma linha narrativa [storyline] satisfatória. Diversos tipos de história podem ser vistas enquanto satisfatórias, dependendo em gostos pessoais, variando desde a ação pulp até um drama crível de personagem. É o resultado final da história que é o importante. "gamista": é o estilo que avalia quais valores são postos para construir um desafio justo para os jogadores (em oposição aos PCs). Os desafios podem ser combate tático, mistérios 67 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 intelectuais, políticas ou qualquer outro. Os jogadores deverão desenvolver os problemas que são apresentados a eles e, em retorno, o GM fará esses desafios serem resolvíveis se eles agirem inteligentemente dentro do contrato. "simulationista": é o estilo que avalia os eventos de jogo a serem resolvidos baseando-se apenas nas considerações internas ao mundo do jogo, sem permitir que qualquer consideração vinda do metajogo afete a consideração. Assim, um GM totalmente simulacionista não irá modificar resultados para salvar os PCs ou para salvar o enredo, ou mesmo mudar fatos desconhecidos aos jogadores. Um GM assim pode usar considerações do metajogo para decidir assuntos do metajogo, tal como quem está jogando com qual personagem, se deve uma conversa ser exibida na íntegra, entre outras, mas ele irá resolver os eventos do jogo baseado naquilo que ―realmente‖ acontece (KIM, 1998, p. 3). Pensando nesses três modelos e na forma que Lacan utiliza seu esquema L para descrever discursos, podemos elencar três interpretações do esquema lacaniano para cada um dos gêneros do Modelo Triplo. Esses esquemas são as bases metodológicas para a avaliação de qualquer RPG de acordo com um pensamento psicanalítico de vertente lacaniana. Tal como pode ser constatado, no modelo ―dramista‖, o enfoque é na própria relação imaginária que o sujeito do jogo (o jogador) possui com os elementos da história. Afinal, o drama em si é a base de tal relação. Com isto, a questão aqui é entender o próprio fluxo inconsciente e de identificação no ato de jogar RPG. Assim, as relações 1 (relação imaginária entre a‘ e o eu) e 2 (fluxo inconsciente entre A e o sujeito), representadas em linhas transversais, se amalgamam em uma corrente só, tal como uma Banda de Moebius, figura cara à teoria lacaniana. A investigação aqui é no relacional da identificação e não em seus pólos. Já no modelo ―gamista‘, o enfoque é nos parâmetros, nos lugares do jogo. Ou seja: qual é o lugar do Sujeito posto, qual é o lugar do Eu no jogo, quais são os Outros e seus objetos. Aqui há uma investigação tal como Lacan fez no exemplo de Edgar Allan Poe e, talvez seja, a forma mais tradicional de Teoria dos Jogos de cunho psicanalítica. É um enfoque clássico na Teoria da Identificação aplicada ao jogo. Aqui, onde a paixão pelo jogo está no jogo, reside basicamente a essência da virtualização posta pelo inconsciente. Afinal, se nossa realidade, tal como o 68 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 inconsciente, é estruturada tal como linguagem, a realidade do jogo não seria igual, sendo ele no limite, uma estrutura lógica. Por fim, há os ―simulacionistas‖. Nesta vertente de RPG, há claramente uma paixão pela diegese, pelo mundo narrativo. Assim, a paixão é pela arquitetônica da identificação. Ou seja, não é pelos mecanismos de fluxos ou lugares, mas sim pelo ―riscado‖ construído por esses elementos, o próprio esquema em si. Assim, o estudo aqui é pela quadratura feita pelas linhas horizontais entre Sujeito e a‘ e o Eu e o Outro, bem como a ausência posta pela verticalidade entre S e Eu e entre os Outros. É um estudo sob o risco do Real posto pelo jogo. Considerações Os três esquemas aqui formulados compõem um postulado importante para futuras pesquisas de cunho psicanalítico acerca do RPG. Todas elas acabam por considerar a dimensão posta por Lacan da identificação, base do mecanismo de construção da fantasia da realidade. Eis aqui um conceito que é fruto do processo de virada linguística da Filosofia do qual a Psicanálise faz parte. A partir daí, há a concepção de que a linguagem não é mais ação do pensamento, mas, ao contrário, é fator de fundação no pensamento daquilo a que chamamos realidade. A realidade, portanto, define-se como realidade discursiva, necessariamente, discursiva. Tal movimento pode ser melhor entendido no sistema RSI desenvolvido por Jacques Lacan. Ora, sabemos que nA Interpretação dos Sonhos, Sigmund Freud afirma ―que aquilo que o debate psicológico (…) nos leva a presumir não é a existência de dois sistemas próximos da extremidade motora do aparelho [cerebral], mas a existência de dois tipos de processos de excitação ou modos de sua descarga‖ (FREUD, 1998a, p. 216). Nisso consiste o jogo entre consciente e inconsciente, onde ―o inconsciente é a base geral da vida psíquica‖ (FREUD, 1998a, p. 216). Freud prossegue: ―O inconsciente é a esfera mais ampla, que inclui em si a esfera menor do consciente‖ (FREUD, 1998a, p. 218). 69 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Freud vai além quando afirma que, tudo o que é consciente tem um estágio preliminar inconsciente, ao passo que aquilo que é inconsciente pode permanecer nesse estágio e, não obstante, reclamar que lhe seja atribuído o valor pleno de um processo psíquico. O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica. (FREUD, 1998a, p. 218). Isso destrona o primado da Razão Humana e do próprio Pensamento dentro desse Projeto, normalmente referido como Moderno. As demandas não são mais conscientes, racionais, mas vêm de um lugar ingovernável e – de certa maneira, para o indivíduo – incognoscível. Para Freud, com essa descoberta, após Copérnico e Darwin, a megalomania humana terá sofrido seu terceiro golpe, o mais violento, a partir da pesquisa psicológica da época atual, que procura provar ao ego que ele não é senhor nem mesmo em sua própria casa, devendo, porém, contentar-se com escassas informações acerca do que acontece inconscientemente em sua mente. (FREUD, 1998b, s/n). O inconsciente se coloca como instituição primeira do homem e da própria realidade na qual o indivíduo se inscreve. No entanto, essas conclusões já não são rigorosamente freudianas – a bem da verdade, escapam do discurso freudiano e levam ao limite as conclusões de Freud, para florescer de modo mais desabrido na obra de Jacques Lacan. A constatação aqui é radical, pois ―é toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente‖ (LACAN, 2008, p. 225). E é experiência que, com o debate aqui posto, que queremos levar para os estudos de RPG, do jogo, do esporte e de outras tecnologias lúdicas. Referências BRAGA, J. M. Aventurando pelos caminhos da leitura e escrita de jogadores de Role Playing Game (RPG). Pesquisa RPG – UFPA. Belém: UFPA, 2000. Disponível em: <http://pesquisarpg.ufpa.br/material/rpg-artigoBRAGA-Jane.pdf>. Acesso em: 27/02/2014. 70 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 CAILLOIS, R. Os jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990. DERRIDA, J. Writing and Difference. Chicago - USA: University of Chicago Press, 1978. FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos – segunda parte. In. FREUD, S. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. V. Rio de Janeiro: Imago, 1998a. _____, S. Conferência XVIII. In. FREUD, S. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1998b. HUIZINGA, J. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2010. KIM, J. H. 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Eliane Bettocchi Doutora em Design pela PUC-Rio. Carlos Klimick Doutor em Letras pela PUC-Rio com pesquisa na Formação do Leitor [email protected] RESUMO O artigo propõe que o RPG é uma forma de narrativa interativa articulada sob a forma de um jogo cooperativo fazendo uma articulação com conceitos de narratividade e interatividade estabelecidos por autores consagrados como Janet Murray, Muniz Sodré, Paul Ricoeur, Roland Barthes, Júlio Plaza e Johan Huizinga. As possibilidades de uma criação poética que motive uma aprendizagem criativa a partir do que foi aprendido e não apenas sobre o que foi aprendido são propostas em relação a postulados teóricos desses autores e também de Paulo Freire e JRR Tolkien, tendo como possibilidade de concretização o Projeto Incorporais e a TNI (Técnicas para Narrativas Interativas). PALAVRAS-CHAVE: Role-Playing Game. Mímesis. TNI. Incorporais ABSTRACT The article proposes that RPG is a form of interactive narrative articulated in the framework of a cooperative game. It presents a dialogue between the concepts of narrative and interactivity as established by respected authors such as Janet Murray, Muniz Sodré, Paul Ricoeur, Roland Barthes, Julio Plaza and Johan Huizinga. The possibilities of a poetic creation that motivate creative learning from what was learned and not only about what was learned are proposed in relation with theoretical postulates of these authors and also from Paulo Freire and JRR Tolkien. The project Incorporais and TNI (Techniques for Interactive Narratives) are presented as options to materialize these possibilities. 72 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 KEYWORDS: Role-Playing Game. Mímesis. TNI. Incorporais ROLE-PLAYING GAME: O QUE É ISSO QUE ME FAZ DESEJAR CRIAR E APRENDER? ERA UMA VEZ uma Aluna que, assim como muitos outros alunos, se sentia sem luz quando ia para a escola. Isso era estranho, pois ela gostava muito de aprender, descobrir e inventar, tanto que, em vez de uma festa de quinze anos, preferiu ganhar uma bicicleta e o livro ilustrado Cosmos, de Carl Sagan, o qual lia e relia sem cansar. Naquele tempo não havia internet, e ela economizava sua mesada para comprar revistas sobre música, artes visuais, cinema e ciências, muitas em inglês, que eram vendidas nas bancas de jornal lá no centro da cidade, e para chegar lá tinha que pegar dois ônibus muito cheios e demorados. Por que tanto esforço se a escola era do lado de casa? Por mais que não gostasse do QUE e do COMO da escola, a Aluna passou no vestibular (naqueles tempos analógicos era assim que se entrava na universidade). Custou a se decidir sobre uma carreira - na escola não explicaram direito PARA QUE se estudava certos assuntos e outros não - e, finalmente, apesar de adorar desenhar e contar histórias com imagens, acabou optando por Biologia, pois seus pais se preocuparam com a hipótese de ela se tornar artista e não conseguir emprego. Na universidade ela encontrou o mesmo COMO da escola: aulas com cara de palestra, desconectadas, para as quais muitas vezes se viu forçada a decorar. A biblioteca era muito maior que a da escola, mas não tinha quase nada de interessante, só muita poeira e mofo e muitos colegas iam pra lá dormir, afinal, era silencioso. Pelo menos, agora, ela tinha uma bolsa de iniciação científica para gastar em revistas e livros que não eram usados no curso. Porém, na universidade a Aluna encontrou uma coisa que mudaria sua vida para sempre: RPG. 73 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 ERA OUTRA VEZ um Aluno que gostava de estudar e, tirando acordar cedo, gostava de ir à escola. História, Geografia e Literatura eram suas paixões, assim como a Física, mas, curiosamente, não tinha um bom desempenho em Matemática. Por quê? Porque na Física era muito claro para ele o que as fórmulas significavam: o movimento de um corpo no espaço; o aquecimento de um material; a refração na luz. Enquanto que na Matemática tudo era muito nebuloso, ele não entendia bem o PORQUÊ daquelas fórmulas e, muito menos, COMO aplicá-las em sua vida. Como não se apaixonou pela Matemática nem entendia muito bem por que era importante aprendê-la, ele não se empenhava. Qual não foi sua surpresa um belo dia quando descobriu que o gás metano que ele conhecia da Química Orgânica era o mesmo gás metano da Biologia. Então os conhecimentos não são estanques? Fascinante! Apesar de amar histórias, foi fazer faculdade de Administração em vez de Letras, Histórias ou Cinema. Por quê? Porque o pai tinha um negócio e precisava de um herdeiro, ora essa. Essa história teve um final triste com o fim do negócio. Porém, como cada ponto de chegada é ponto de partida, e quem entra por uma porta sai pela outra, é hora de contar outra história. Depois da faculdade, um dia com os amigos ele conheceu o RPG. Essas poderiam ser a histórias que fariam parte da descrição de duas personagens criadas, respectivamente, por uma jogadora e um jogador para iniciar uma campanha de Role-Playing Game ambientada em um cenário contemporâneo. Mas é, na verdade, a descrição de uma jogadora e um jogador que se preparavam para iniciar uma campanha de aprendizagem que culminaria em método poético-didático que eles atualmente utilizam tanto nas suas produções artísticas como nas suas práticas pedagógicas. O RPG, aproximadamente traduzido como "Jogo de Interpretação de Papéis", é uma forma de jogo narrativo surgido nos EUA em 1974, a partir dos jogos de guerra que simulavam batalhas em tabuleiros. O primeiro cenário usado e o mais popular é a chamada ―fantasia medieval‖, inspirada na obra ―Senhor dos Anéis‖, de J.R.R. Tolkien. Em sua fase atual, há uma grande diversidade de cenários (fantasia, ficção científica, terror, histórico etc.), que se aproximam dos cenários das narrativas ditas de ação e aventura do cinema, dos quadrinhos, das animações e dos videogames. Nos suportes se encontra, 74 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 parcialmente descrito, um cenário, no qual se passarão as histórias vividas pelas personagens criadas pelos jogadores e pelo/a Mestre ou Narrador/a: bandeirantes e índios num cenário de Brasil colonial; cavaleiros num cenário de Europa Medieval etc. A história começa a ser contada pelo Mestre, mas os jogadores são livres para decidir o que suas personagens falam e fazem na história. Assim, os rumos da história são freqüentemente alterados pelas ações das personagens, sendo na verdade uma história contada em conjunto pelo Narrador e jogadores. É papel do Narrador preparar o enredo, representar as demais personagens e coordenar as ações durante a prática de RPG. Narrador e jogadores representam as ações de suas personagens descrevendo-as e enunciam suas falas de modo direto ou indireto. As dúvidas sobre os resultados das ações das personagens dos jogadores, quando há possibilidade de falha ou sucesso parcial, são resolvidas pelo sistema de regras, daí o RPG ser considerado um JOGO: Jogo (lat. jocus: brincadeira) 1. Em seu sentido geral, o jogo é uma atividade física ou mental que, não possuindo um objetivo imediatamente útil ou definido, encontra sua razão de ser no prazer mesmo que proporciona. Esta atividade, começando na criança ou no pequeno animal como gasto de energia, tendo valor de treinamento ou de aprendizagem, muda de natureza com o desenvolvimento do subjetivo humano: jogos de imitação, nos quais a criança projeta seus desejos (bonecas etc.); jogos com regras ou socializados, nos quais o prazer se vincula ao respeito às regras, às dificuldades de vencer uma competição.2 (JAPIASSÚ & MARCONDES, 2001, p. 150). Então, o RPG é um jogo? Ao expor suas dificuldades de traduzir o termo jeu no texto Aula, de Roland Barthes, Leyla Perrone-Moisés (1977, p. 82-85)3esclarece o próprio conceito de ―jogo‖ que, dentro da teoria e prática barthesianas consiste de uma atividade ao mesmo tempo sem finalidade senão o próprio jogo e de uma tática de crítica às cristalizações da linguagem, característica que aproxima este 2 JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 3a. ed., 2001. 3 BARTHES, Roland. Aula. Tradução e Posfácio: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Cultrix, 1977. 75 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 ―jogo‖, então, do teatro, do ―faz-de-conta‖. O termo ―jogo‖, no contexto do RPG, não se refere à disputa, mas à interação, ao próprio ato de representar uma personagem. Os participantes de uma sessão de RPG, narrador e "jogadores" cooperam entre si em vez de competir, sendo este um dos principais motivos do termo "jogo" ser questionado por profissionais de RPG em relação à sua prática. Lembremos que, assim como jeu, o verbo play tem entre seus significados "jogar", "interpretar" e "brincar", permitindo um "jogo de sentido" de difícil tradução para o português. Podemos então entender o RPG como um ―jogo de construção de narrativas‖, entendendo narrativa no sentido proposto por Paul Ricoeur (1983)4 dentro da sua análise da Poética de Aristóteles: a narrativa é o ―o quê‖ da atividade mimética, da imitação criativa da ação. As histórias então vão acontecendo conforme os participantes vão jogando, interagindo, criando. Desse modo, é primordial que essa dinâmica seja fundamentada no prazer e na diversão que um jogo sempre deve proporcionar, independentemente de sua finalidade, pois, como define Johan Huizinga: O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da 'vida quotidiana. (HUIZINGA, 1938; 2001, p. 33).5 Nesse sentido, destacamos o potencial poético e didático residente na diversão de superar desafios que o RPG pode proporcionar. A construção coletiva de histórias dos RPGs demanda a cooperação e não a competição entre os jogadores, pois todos cooperam para superar os desafios da história propostos pelo Narrador. Este tem como papel movimentar e ajustar a trama e garantir que os objetivos da atividade sejam alcançados. Além disso, o RPG é calcado no discurso oral, no diálogo e troca de ideias, desenvolvendo habilidades de comunicação naturalmente; ser uma narrativa 4 5 RICOEUR, Paul. Temps et Récit, Tome I. Paris: Editions du Seuil, 1983. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Tradução João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2001. 76 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 coletiva e socializante faz do RPG um jogo interativo e aberto, em que um relato - uma aventura - não produz um único texto, mas vários, abrindo espaço para a criatividade dos jogadores que podem contribuir com textos de vários tipos, imagens, diários de personagens, etc., e realizar sessões individuais com os mestres de jogo. Podemos dizer que uma história construída por meio da dinâmica lúdica do RPG é, portanto, uma obra aberta, em eterno processo, que só existe se houver interatividade, aqui entendida como um tipo de interação em que é solicitada uma ação por parte dos sujeitos baseada na autonomia, na criatividade e na imprevisibilidade (MACHADO, 1997)6, resultando em cocriação e co-autoria. Então, o RPG é um jogo interativo? A relação entre interatividade e narrativa pode ser entendida fazendo-se uma analogia com os três níveis de abertura da obra de arte propostos por Júlio Plaza em seu artigo "Arte e Interatividade: Autor-Obra-Recepção" (PLAZA, 2003, p. ?)7. O primeiro nível de abertura da obra é aquele que permite diversas interpretações por parte do leitor ou receptor da narrativa. Por exemplo, no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, a personagem Capitu traiu ou não o seu marido Bentinho? A decisão fica por conta do leitor. Por vezes histórias são explicitamente trabalhadas nesse sentido pelos autores que propõe assim um jogo narrativo a seus leitores. No segundo nível de abertura proposto por Plaza, o público pode fazer intervenções na obra, mas sem alterar suas características estruturais, o que ele exemplifica com as esculturas de Lígia Clark e os parangolés de Hélio Oiticia. Nas histórias interativas, esse conceito pode ser exemplificado nas aventuras-solo ou livros-jogos, onde o leitor pode escolher dentre alternativas propostas para a trama, porém, já pré-definidas pelo autor. Conforme lê a 6 MACHADO, Arlindo. Formas Expressivas da Contemporaneidade. In: Pré-cinemas & Pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997. 7 PLAZA, Júlio. Arte e Interatividade: Autor-Obra-Recepção. In: Concinnitas - Revista do Instituto de Artes da UERJ, ano 4, n.4, p.7-34. Rio de Janeiro. Mar/2003. 77 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 história, o leitor-jogador, simultaneamente, joga-a, escolhendo opções para o desenrolar da mesma, mas sem poder criar opções. No terceiro nível de abertura proposto por Plaza, o receptor pode fazer alterações estruturais na obra, criando opções e alterando o enredo a seu critério. Um bom exemplo são os flash-mobs em que artistas convocam pelas redes sociais "simples mortais" para inventarem e executar suas ações em locais públicos. Plaza identifica esse nível de abertura principalmente para a mídia digital. "Nas artes da interatividade, portanto, o destinatário potencial torna-se co-autor e as obras tornam-se um campo aberto a múltiplas possibilidades e susceptíveis de desenvolvimentos imprevistos em uma coprodução de sentidos.‖ (PLAZA, 2003, p. 22). Nas histórias interativas, essa abertura pode ser identificada na prática das sessões de RPG, onde a ambientação trazida no suporte é retrabalhada pelo "mestre" e jogadores em histórias criadas coletivamente num jogo interativo entre os participantes, a obra e referências extratextuais. Então, o RPG é um jogo interativo narrativo? Muniz Sodré define narrativa como um ―discurso capaz de evocar, através da sucessão temporal e encadeada de fatos, um mundo dado como real ou imaginário, situado num tempo e num espaço determinados. [...] Como uma imagem, a narrativa põe diante de nossos olhos, nos apresenta, um mundo‖ (SODRÉ, 1988, p. 75).8 Roland Barthes (1977) observa que a literatura, por extensão as narrativas, tem os poderes de mathesis (vários saberes se entrelaçando) e mimesis (representação/recriação do real), destacando seu potencial na educação. As narrativas permitem o encontro lúdico de diversos saberes em sua fruição, facilitando a concretização de um trabalho multidisciplinar ou interdisciplinar. A mathesis torna possível saber, por exemplo, com quantas disciplinas se faz uma canoa ou se estuda o metano. Pela mimesis uma 8 SODRÉ, Muniz. Best-Seller: a Literatura de Mercado. Série Princípios. São Paulo, Editora Ática: 1988. 78 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 história pode mostrar onde, como e porque se usa uma equação do segundo grau na vida de uma pessoa. É importante ressaltar que a mimesis barthesiana visa uma representação criativa do real que vai além de reproduzi-lo. A mimesis de Barthes (1967)9 não se limita a tentar mostrar como a realidade é, objetivando mostrar como a realidade pode vir a ser, assumindo, portanto, um compromisso poético. O potencial de aprendizado das narrativas é conhecido há bastante tempo. Antoine Compagnon aponta que associar diversão ao aprender, tornando o saber prazeroso, é uma das características atribuídas à poética desde a Antiguidade. ―Aristóteles, além disso, colocava o prazer de aprender na origem da arte poética: instruir ou agradar, ou ainda instruir agradando, serão as duas finalidades, ou a dupla finalidade, que também Horácio reconhecerá na poesia, qualificada de dulce et utile" (Ars Poética in COMPAGNON, 2001:35).10 Janet Murray postula que as controvérsias sobre conteúdo e formato de videogames se devem a dois fatores: o poder da narrativa e a experiência singular das narrativas participativas. Para a autora, ―A narrativa é um de nossos mecanismos cognitivos primários para a compreensão do mundo. É também um dos modos fundamentais pelos quais construímos comunidades, desde a tribo agrupada em volta da fogueira até a comunidade global reunida diante do aparelho de televisão.‖ (MURRAY, 2003, p. 9)11. É através dessas histórias que compartilhamos valores, tradições, cultura, que nos compreendemos. Histórias que nos inspiram a ir além, que nos dão forças para viver e pelas quais muitas vezes somos capazes de morrer. Há certo consenso entre educadores que as pessoas aprendem quando gostam do assunto ou quando entendem sua aplicabilidade. A grande pergunta de muitos aprendizes seria "para que estou aprendendo isso?" Pergunta que 9 BARTHES, Roland. A Atividade Estruturalista. In: O método estruturalista. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, pp. 57-63. 10 COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. 11 MURRAY, Janet. Hamlet on the Holodeck. New York: Free Press, 2000. 79 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 não existe quando a pessoa se apaixona pelo que busca aprender, História, Matemática, futebol, etc, porque a paixão lhe basta. A narratividade pode buscar trazer prazer à aprendizagem ou, se não lograr esse intento, pode ao menos pela mimesis mostrar a aplicabilidade daquele saber. Como o aluno que teve de aprender Matemática para poder usar as fórmulas da Física cruzou esse obstáculo para alcançar sua paixão. Como forma de narrativa interativa, o RPG pressupõe não uma produção sobre o que foi narrado, mas múltiplas produções A PARTIR do que foi narrado, ou seja, uma história plural construída por meio do jogo que permite diferentes escritas. Segundo Barthes (1992)12, o texto plural ideal se constituiria de redes múltiplas que se entrelaçam sem que uma possa dominar as outras; uma galáxia de significantes em vez de uma estrutura de significados. Reversível, sem início, pode ser penetrado por várias entradas sem que haja uma principal. No texto plural não há nada fora dele, mas também não há um todo do texto: ele está liberto simultaneamente da exterioridade e da totalidade. Por isso, não têm estrutura narrativa, gramática ou lógica da narrativa. Os textos plurais são ―multivalentes, reversíveis e francamente indedutíveis‖. Barthes afirma que "quanto mais plural é o texto, menos está escrito antes que o leia, onde a leitura é um trabalho de linguagem em que escrevo a minha leitura" (BARTHES, 1992, ´p. 43). Eliana Yunes sustenta a ―hipótese de que a leitura precede a escrita e de que não há escritor ou artista que produza sem antes ter vivido com densidade a condição de leitor‖ (YUNES, 2002, p. 33)13, hipótese que dialoga bem com a proposição de Barthes que todo ―euleitor‖ é constituído por um emaranhado de outros textos em que a leitura é uma escrita. O texto escrevivel, do qual é difícil dizer algo, está do lado do que é possível escrever, da prática do leitor, de que textos desejar fazer avançar no mundo. Podemos então ampliar o conceito de produtividade do texto, pois, se esta se refere a diferentes leituras possíveis e leituras são escritas, também 12 13 2002. BARTHES, Roland. S/Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. [1970] YUNES, Eliana (org.). Pensar a Leitura: complexidade. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio. 80 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 pode incluir o poder de mobilização do texto para diferentes escritas a partir dele. Fantasia e êxtase: potências lúdicas e narrativas do RPG no processo criativo Vamos nos deter sobre o que consideramos a grande potência do RPG: aquela fagulha que irrompe do encontro entre o prazer de jogar e o prazer de fantasiar capaz de disparar todo um desejo de busca - uma "quest" - por conhecimentos, ou seja, o DESEJO - prazer ou gozo - de aprender e de, nesse processo, se transformar. Para tecer essa potência lançamos mão de dois fios principais: o da trama fica por conta do conceito de prazer/gozo escritural de Roland Barthes; e o da urdidura por conta do conceito de Fantasia de J.R.R. Tolkien. Em artigo publicado anteriormente (BETTOCCHI & KLIMICK, 2005)14, construímos uma relação entre o conceito de jouissance como força resultante de um processo escritural, proposto por Roland Barthes (2002) capaz de promover um deslizamento poético no jogo de inovação e sedimentação da tradição postulado por Paul Ricoeur (1983). Como exemplo desse processo escritural, propusemos o conceito de Fantasia apresentado por Tolkien. Êxtase, Gozo: a fenda escritural Segundo Roland Barthes (1977), é no deslizamento entre significante e significado que o poder se infiltra, congelando o signo, é aí, também, que se pode - e se deve - trapacear a linguagem, jogar com ela e com os signos: não na mensagem, mas no uso de seus códigos formais - o visível. Nesse momento, Barthes (1977, 1999)15 ressalta a responsabilidade (não a 14 BETTOCCHI, Eliane & KLIMICK, Carlos. Fantasia e Êxtase: um exercício de resistência através da forma. In: Anais do IV Simpósio do Laboratório da Representação Sensível: O (In)Visível. Rio de Janeiro: Laboratório da Representação Sensível, Puc-Rio, 2005. Disponível em http://www.historias.interativas.nom.br/artigos/lars05.pdf. 15 BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, (1957) 1999, 10a. ed. 81 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 supremacia) da forma como promotora deste deslizamento: a escritura - toda manifestação de linguagem humana capaz de promover um "descongelamento" dos signos. Assim, a escritura não se define pelos conteúdos e nem mesmo pelos sentidos que cria, e sim pelo aspecto formal, que em Barthes não remete ao estilo, e sim a uma materialidade do texto. Desse modo, é definível apenas por um discurso ele mesmo escritural: "[...] a ciência dos gozos da linguagem, seu Kamasutra [...]" (BARTHES, 1983, p. 53)16. Daí a responsabilidade da forma escritural: abrir uma fenda para que se ouça a voz única de um corpo que se receba como um êxtase (gozo ou fruição segundo diferentes traduções de jouissanse), "sentido como intensidade, como perda do sujeito pensante e ganho de uma nova percepção das coisas." (PERRONE-MOISÉS, 1983, p. 56). Uma vez que o sujeito se modifica em contato com a escritura, podemos dizer que o êxtase ou gozo se completa numa dimensão ética de retorno ao campo prático. (PERRONE-MOISÉS (1983, p. 56) diz que "A escritura é poesia no sentido moderno do termo: aquele discurso que acha sua justificação na própria formulação, e não na representação de algo prévio e exterior [...]". O eterno jogo entre inovação e sedimentação O abismo poético que se abre como resultado do processo escritural convida a um salto no vazio para a inovação. Assim como Barthes, Paul Ricoeur (1983) fala desse ato poético ao analisar o processo de configuração da narrativa onde a constituição de uma tradição reside no jogo ou tensão entre inovação e sedimentação. A sedimentação consolida o repertório de paradigmas que constituem a tipologia da configuração: esquemas narrativos ocidentais que se combinam causalmente a partir de uma herança aristotélica, gerando um código paradigmático e uma tipificação de formas que se repete tradicionalmente. A tradição, entretanto, não se resume à repetição, mas desliza em dois sentidos: sedimentação e inovação. A sedimentação consolida 16 1983. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Roland Barthes: o saber com sabor. São Paulo: Brasiliense, 82 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 a linguagem, mas pode cristalizar-se; a inovação avança a linguagem, mas pode causar estranhamento e afastamento, como tem acontecido, em alguns casos, na arte contemporânea. Se a sedimentação universaliza, a inovação singulariza, pois cada poética produzida, cada maneira pessoal de operar os códigos de configuração, oferece desafios e transgressões às normas que acabam retroalimentando o repertório sedimentado. Isso pode soar como um ciclo vicioso, mas Ricoeur lança mão da estética da recepção de Wolfgang Iser da relação prazer/gozo do texto de Roland Barthes (2002)17 para demonstrar que o jogo entre transgressão e apropriação, que tem como um de seus grandes referentes o receptor que aceita ou rejeita a inovação, é vital para a constituição de um ciclo virtuoso da linguagem. Criação escritural e poética: configurar para refigurar O ato poético - como diria também Haroldo de Campos (1977) sobre o "poetar" - é o próprio ato de configurar, ou de formular a escritura. As obras poéticas, como qualquer discurso, acontecem na linguagem; entretanto, não se pode negar seu impacto sobre a experiência cotidiana devido ao seu poder de ataque subversivo contra a ordem moral e social. Essa interação do poético com o prático abre um leque de opções que vai da confirmação ideológica da ordem estabelecida (sedimentação, ou prazer) à crítica e problematização (inovação, ou êxtase), incluindo a alienação em relação ao real, uma interação de ordem ética. Voltamos a Paul Ricouer (1983) com seu processo de configuração de narrativas como um exemplo de processo criativo, entendendo o fazer poético como mimese no sentido aristotélico de recriação, assim como Roland Barthes (1967). Nesse processo mimético, Ricoeur propõe três estágios interligados: na Mímese 1 (M1) temos a prefiguração dos elementos, na M2 a configuração das relações entre esses elementos e na M3 uma fruição da linguagem que leva à refiguração do sujeito e da sua realidade seja via gozo, seja via prazer, promovendo, portanto, algum deslizamento no jogo inovação-sedimentação. 17 BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2002, 3a. ed. 83 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Fantasia e Imaginação de mundos: ato poético refigurador Robin Law, game designer dos EUA, observa que os RPGs costumam buscar referências em outros produtos da mídia de massa como filmes, seriados, histórias em quadrinhos, animações etc. Law responde a crítica sobre a forte presença de clichês e estereótipos em cenários e enredos de RPG com o conceito de fantasias pré-existentes: "Quanto mais o cenário se parecer com algo que eles (os jogadores) já conhecem do entretenimento popular, mais provável se torna que eles consigam se valer de uma fantasia pré-existente que sempre tenham querido exercer." (LAW, 2002, p. 9)18. Em um cenário de ficção científica um jogador que gosta muito da personagem Sr.Spock de Jornada nas Estrelas pode criar uma personagem similar para se divertir. Em um cenário medieval, uma jogadora pode interpretar uma personagem inspirada em Joana D'Arc ou Robin Hood. A atração também pode ser por um estilo de história, resolver um mistério ou um crime como num romance policial, desfrutar uma aventura emocionante como num thriller. Personagem, cenário ou enredo, tratam-se de fantasias que os jogadores já possuíam, fantasias préexistentes que, de alguma forma, agora podem vivenciar via RPG. Defendemos, assim, que a narrativa atua como o encontro lúdico de diversos saberes na medida em que este lúdico remete ao jogo do ―faz-deconta‖, acionando fantasias pré-existentes que geram interesse, identificação e afeto (no sentido geral de resposta emocional, não necessariamente prazerosa), e transformando tais fantasias na Fantasia, segundo J.R.R. Tolkien (1966), a atividade humana de representar, por meio da arte, aquilo que não existe no "mundo primário", cotidiano, criando "mundos secundários" tão narrativamente consistentes que se tornam críveis. J.R.R. Tolkien, lingüista britânico, foi autor de vários textos literários entre eles a série O Senhor dos Anéis (The Lord of the Rings, 1954/1988; Unwin Hyman Lt), principal fonte de inspiração para a ambientação do primeiro RPG publicado, Dungeons and Dragons (EUA, 1974). 18 2002. LAW, Robin. Robin´s Laws of Good Game Mastering. EUA: Steve Jackson Games Inc, 84 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Segundo Portinari (2003)19, Imaginário para Tolkien é a própria Imaginação: a atividade humana de ―representar‖ que alcança sua melhor expressão a serviço da Fantasia, por meio da criação de um ―Mundo Secundário‖. Para Tolkien (1966)20 a arte é o elo operativo entre Imaginação e o produto final, que ele chama de "sub-criação" em virtude da formação católica ("Criação" é um ato de Deus; o ser humano só pode "sub-criar"). O universo que envolve a criação do ―mundo secundário‖ apresentado por Tolkien em suas obras de ficção engloba ainda outros elementos da sua vida pessoal, como interesses em diferentes áreas de conhecimento, principalmente as línguas, a botânica, a caligrafia e os contos-de-fada. A palavra escolhida por Tolkien para abarcar tanto a arte criativa (entendamos daqui para diante que "criativo" para nós é "sub-criativo" para o autor), quanto o estranho e o maravilhoso derivados da faculdade de imaginar, é "Fantasia". Fantasia passa a ser, deste modo, a mais alta criação artística: a representação daquilo que não existe no "Mundo Primário" (por oposição a "Mundo Secundário", o mundo banal, rotineiro). O Mundo secundário é alcançado pela suspensão voluntária do descrédito (willing suspension of disbelief), exercício em geral mais fácil para crianças. Operação que no adulto moderno resvala, por força cultural, na confusão entre Fantasiar e Sonhar, mas enquanto no Sonhar normalmente não há arte no sentido de elo operativo aqui descrito, a Fantasia é uma atividade racional. Construir um Mundo Secundário capaz de evocar a crença literária (literary belief) é, para Tolkien, tarefa artística das mais difíceis e requer muito trabalho e pesquisa e uma busca quase heroica para conferir ao fantástico uma consistência de realidade. Fantasiar é ser bem sucedido em fazer ou vislumbrar outros mundos. Não mundos possíveis, mas mundos desejáveis. Tolkien não desejou viver as 19 PORTINARI, Denise B. A Construção do Cenário da Terra Média por J.J.R. Tolkien. Palestra conferida no I Histórias Abertas: Simpósio de RPG em Educação, Laboratório de Pedagogia do Design - Departamento de Artes e Design, Departamento de Letras e Coordenação Central de Educação a Distância, PUC-Rio, 2003. Disponível em http://www.historias.interativas.nom.br/artigos/tolkien.pdf. 20 TOLKIEN, J.R.R. The Tolkien Reader. New York: Ballantine Books, 1966. 85 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 aventuras de Alice, elas apenas o divertiram. Mas as antigas lendas do Rei Artur e as sagas nórdicas despertaram-lhe o desejo. O dragão tem, para ele, a marca de Faërie: "I desired dragons with a profound desire." (TOLKIEN, 1966, p. 64). Não, obviamente, na vizinhança da sua casa, ameaçando sua integridade, mas na Fantasia, a permissão de vislumbre de "Outros-Mundos", quaisquer mundos que dragões habitassem. O "drama feérico", para Tolkien, é aquele que pode produzir Fantasia com realismo, cujo resultado é a suspensão da descrença, permitindo a imersão "corporal" no Mundo Secundário. Para Tolkien essa é a arte élfica, melhor expressa pela palavra Encantamento. Tal processo não ganha força, entretanto, sem aquilo que o autor chama de recuperação histórica da fantasia: nem abandonar o passado nem o mitificar: "Recovery (which includes return and renewal of health) is a re-gaining - regaining of a clear view." (TOLKIEN, 1966, p. 77). Um processo que nos parece muito similar ao ato poético discutido anteriormente, sobretudo sob a ótica de Ricoeur: uma configuração que leva a uma refiguração do sujeito e da própria linguagem, deslizando uma tradição no sentido da inovação, abrindo uma fenda da qual o sujeito retorna marcado pelo êxtase, conferindo-lhe novas perspectivas, ou da sedimentação, na qual o sujeito, pelo prazer recupera origens que lhe conferem uma clareza de perspectiva. Fantasia e Transversalidade: potências criativas do RPG no processo de aprendizagem Podemos exemplificar esse processo de criação poética na entrevista veiculada no Youtube com o escritor norte-americano George R.R. Martin, autor da série de livros Songs of Fire and Ice, transposta para a série televisiva Game of Thrones, na qual menciona como suas fantasias se converteram em narrativas (In: BIENIA, 2012; http://bienia.wordpress.com/2012/07/23/what-isrole-playing-as-a-state-of-mind/) e mundo secundário, ou seja, em Fantasia, segundo Tolkien, criação que tem sido capaz de mobilizar vários sujeitos em suas próprias atividades fruidoras e criadoras. Em sendo uma forma de narrativa, o RPG possui os elementos levantados por Cardoso [(2001)] (tema, personagens, ação, tempo, espaço, ponto de vista, conflito), possuindo unidade de ação, tempo e lugar, e 86 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 desenvolvendo-se através da relação de causa e efeito, etc. Entretanto, devido às suas características interativas, o RPG difere do conceito tradicional de narrativa por se tratar de uma plataforma operacional não só para contar uma mesma história de diferentes maneiras, mas para contar diferentes histórias a partir de elementos comuns: regras e ambientação. Pensemos, então, o RPG como um meio de comunicação que, segundo Marshall McLuhan e a Teoria da Comunicação, dispõe de linguagem ou sistema simbólico (códigos e repertórios), tecnologia (veículo, canal e suporte material) e modos de recepção (condições de fruição). Qualquer mudança em um destes três elementos é suficiente para diferenciar um meio de comunicação de outro, em razão das diferenças identificadas no impacto no meio social. Se considerarmos as características de interatividade e hipertextualidade pressupostas na fruição do RPG, podemos pensar cada elemento narrativo desses como potencial link cujo propósito é abrir as possibilidades para a construção de significados e elementos próprios do receptor (BETTOCCHI & KLIMICK, 200321; BETTOCCHI, 2008, 201322). Os processos interativos e hipertextuais de fruição e de construção de um RPG se caracterizam pelas colagens, apropriações e reinterpretações (BETTOCCHI, 200223). Parece muito pertinente o termo ―pilhagem narrativa‖, aplicado por Sônia Mota ao RPG 21 BETTOCCHI, Eliane & KLIMICK, Carlos. O lugar do virtual no RPG, o lugar do RPG no Design. In: Anais do II Simpósio do Laboratório da Representação Sensível: Atopia. Rio de Janeiro: Laboratório da Representação Sensível, Puc-Rio, 2003. Disponível em http://www.historias.interativas.nom.br/artigos/lars03.pdf. 22 BETTOCCHI, Eliane. Incorporais RPG: Design Poético para um jogo de representação. Tese de Doutorado do Departamento de Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008. Disponível em http://www.historias.interativas.nom.br/tese/index.html________. Design Poético: um modo de fazer – arte – educação – design – tudo ao mesmo tempo. Blogue disponível em http://historias.interativas.nom.br/designpoetico/. Textos capturados em 29 de março de 2013. 23 BETTOCCHI, Eliane. Role-playing Game: um jogo de representação visual de gênero. Dissertação de Mestrado do Departamento de Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2002. Disponível em http://www.historias.interativas.nom.br/lilith/dissert/index.htm. 87 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 (199724), em que histórias e imagens são tecidas a partir de elementos de outras histórias e de outras imagens, apropriadas de autores que não são citados, aproximando essa narrativa da narrativa oral ―sem dono‖. O ato de configurar via pilhagem qualquer um desses elementos narrativos pode ser pensado sob a perspectiva mimética de Paul Ricoeur e levado, ou não, aos extremos da Fantasia tolkiniana e da escritura barthesiana. Assim como J.R.R. Tolkien, Gary Gygax & Dave Arneson (autores do RPG Dungeons&Dragons), George R.R. Martin, J.K. Rowlings, Machado de Assis, Guimarães Rosa e tantos outros criadores de mundos secundários, aquele que joga e/ou cria um RPG também faz uma recuperação histórica das suas fantasias pré-existentes, pilhando diversas fontes, para que estas venham a se converter em Fantasia, consistente e coerente, capaz de promover refigurações. Criar para aprender em vez de aprender para criar Pré-fantasiar, jogar, pilhar, recuperar, configurar, refigurar, Fantasiar, pré-fantasiar... Podemos, depois disso tudo, sugerir que o processo de jogar RPG implica um ciclo disparado pelo desejo/prazer/gozo, figura-se no lúdico, configura-se na narrativa e refigura-se novamente no desejo/prazer/gozo, que dispara novo processo. Esse processo criador pode ser comparado ao processo de aprender se entendermos aprender como entrelugar de fruição estética, de diversão e de construção de conhecimento, entendendo educação, em acordo com Paulo Freire (199625), como desenvolvimento de autonomia e senso crítico, onde o/a aprendiz é estimulado a sair do papel de receptor passivo de conhecimentos ―encaixotados‖ para o papel ativo de construtor/a de seus próprios significados, 24 MOTA, Sônia Rodrigues. Roleplaying Game: a Ficção enquanto Jogo. 1o. sem. 1997. Tese de Doutorado do Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1997. 25 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 88 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 protagonizando sua história de maneira holística e integrada, pois, como afirma Joseph Beuys, ―Todo ser humano é um artista" (198526). O ato criador-poético implica um aspecto multidisciplinar, referente à multiplicidade de disciplinas com seus conteúdos, conhecimentos e habilidades (NICOLESCU et all, 2001, p. 1427) e um aspecto interdisciplinar, referente ao uso de métodos de diferentes disciplinas para a mobilização de competências (NICOLESCU et all, 2001, p. 15). A demanda Multi- e Interdisciplinar das produções A PARTIR DO conteúdo requer mais esforço do usuário, promovendo a Transdisciplinaridade (NICOLESCU et all, 2001, p. 15), não significando somente que as disciplinas cooperam entre si por um projeto de conhecimento em comum, ―Mas, significa também que há um modo de pensar organizador que pode atravessar as disciplinas e que pode dar uma espécie de unidade. [...] A transversalidade ou transdisciplinaridade é qualquer coisa que é mais profundamente integradora. Agora, para que haja transversalidade é necessário um pensamento organizador. É o que chamo de pensamento complexo‖ (MORIN, 2006: vídeo28). Ou seja, podemos sugerir que jogar e/ou criar RPG mobiliza, a partir de fantasias pré-existentes dos participantes, a articulação de conhecimentos e competências para a produção da Fantasia, favorecendo a construção de novos conhecimentos e competências em um círculo virtuoso (NEVES, 2005, p. 29). Esse processo vem ao encontro de uma postura autônoma e crítica dos participantes, respeitando seus desejos e mobilizando-os para atitudes de transformação de suas realidades pessoal e social, visando criar as condições para a construção de conhecimentos e não sua simples transferência (FREIRE, 1996, p. ?). 26 BEUYS, Joseph. Falando sobre o próprio país: Alemanha III. Tradução Lia do Rio. Discurso proferido no Münchner Daucmerspiele. Munique, 1985. 27 NICOLESCU, Basarab, et all. Educação e Transdisciplinaridade. Tradução Judite Vero, Maria F. de Mello e Américo Sommemman. Brasília: UNESCO, 2001. 28 MORIN, Edgar. In: Coleção Grandes Educadores. Apresentação Edgard de Assis Carvalho e participação especial de Edgar Morin. São Paulo: Paulus, ATTA Mídia e Educação, 2006. 89 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Projeto Incorporais: nossas experiências com essas potências do RPG O Projeto Incorporais é uma plataforma lúdica, multidisciplinar e multimidiática que dá suporte à aplicação das Técnicas para Narrativas Interativas (TNI) como interface didática. As TNI compõem um método de utilização de histórias interativas e jogos de representação de papéis, à maneira do RPG para a construção de conhecimento e competências por meio da participação e co-autoria em narrativas nesse formato (KLIMICK, 2006, 2007, 201329). Os participantes atuam construindo coletivamente e de forma cooperativa a narrativa devendo incorporar produções de sua autoria aos suportes utilizados para as sessões de RPG. Essa produção, que pode ser expressa em diferentes linguagens e suportes, é feita durante e entre sessões de RPG. O objetivo é que os participantes apresentem mais do que uma produção sobre o que foi vivenciado, partindo para uma criação a partir do que foi construído durante as histórias. Para atingir esse propósito criativo, propomos, como método para nortear e estimular esse processo, o Design Poético, um método projetual que objetiva a configuração de objetos que promova uma refiguração dos sujeitos e de seus contextos (BETTOCCHI, 2008, 2013). A aplicação do RPG para fins educacionais foi para nós sistematizada na TNI (Técnicas para Narrativas Interativas) em profunda relação com o Design Poético, de forma que os alunos não apenas apreendam o conteúdo, transmissão e aprendizado sobre, como também partam para a construção de um raciocínio crítico e criação A PARTIR DE em uma poética da aprendizagem. Desde 2008 pesquisamos as potencialidades da plataforma 29 KLIMICK, Carlos. RPG & educação: metodologia para o uso paradidático dos role playing games. In: COELHO, Luiz Antônio L. (Org.). Design & Método. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Teresópolis: Novas Idéias, 2006. pp. 143-161.________. TNI (Técnicas para Narrativas Interativas). In: Boletim Técnico do Senac. Rio de Janeiro: Órgão Oficial do Senac/ Departamento Nacional. v. 33, n.3, set./dez. 2007, pp. 72-85. ________. Técnicas Narrativas Interativas (TNI). In: Design Didático & Jogos. Blogue disponível em http://historias.interativas.nom.br/klimick/?page_id=160. Texto capturado em 29 de março de 2013. 90 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Incorporais com estudantes e professores do Ensino Médio e estudantes de graduação e pós-graduação (BETTOCCHI, KLIMICK & REZENDE, 201230). O Projeto Incorporais vem sendo uma proposta de sistematização para aplicação do potencial educacional e estético do RPG na promissora interface da Arte com a Educação, sobretudo no que toca sua potência poética. Atualmente estamos conduzindo uma pesquisa com estudantes de graduação do Bacharelado Interdisciplinar em Artes e Design do Instituto de Artes e Design da UFJF sobre o uso de fantasias pré-existentes no desenvolvimento de um cenário de fantasia tolkiniana como forma de estímulo à criatividade, partindo da necessidade de experimentação de práticas pedagógicas que possam instrumentalizar uma formação interdisciplinar e integrada do graduando dos dois ciclos desse Bacharelado. Uma vez que estamos no contexto das Artes e do Design, lançamos mão dos Projetos de Trabalho de Fernando Hernández (199831), professor da Faculdade de Belas Artes de Barcelona, que se refere a ―projeto‖ no mesmo sentido que arquitetos, designers e artistas compreendem o ―procedimento de trabalho que diz respeito ao processo de dar forma a uma ideia que está no horizonte, mas que admite modificações, está em diálogo permanente com o contexto, com as circunstâncias e com os indivíduos que, de uma maneira ou outra, vão contribuir para esse processo.‖ (HERNÁNDEZ, 1998, p. 22), tomando como premissas o conceito de pilhagem narrativa e de antropofagia visual, segundo Oswald de Andrade, para disparar o processo de criação poética que deverá implicar a construção de conhecimentos e competências, ou seja, em aprendizagem crítica e transformadora. 30 ________ & REZENDE, Rian. Projeto Incorporais: método e material lúdico-didático para professores e estudantes do ensino médio. In: Tríades: Transversalidades, Design, Linguagens, vol. 2. Revista do Programa de Pós-graduação em Design da PUC-Rio, 2012. Disponível em http://www.revistatriades.com.br/blog/?page_id=962. Capturado em 29 de março de 2013.BIENIA, Rafael. What is … role-playing? A Comparison of Creative Playing and Writing. In Bienia on Games. Disponível em http://bienia.wordpress.com/2012/07/23/what-is-role-playing-as-a-state-of-mind/. Capturado em 23/07/2012. 31 HERNÁNDEZ, Fernando. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Trad. Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artmed, 1998. 91 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Referências BARTHES, Roland. A Atividade Estruturalista. In. O método estruturalista. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, pp. 57-63. ______, Roland. Aula. Tradução e Posfácio: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Cultrix, 1977. ______, Roland. S/Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. [1970] ______, Roland. Mitologias. 10. ed. 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E, mediante contínuos diálogos, pretendemos traduzir, se possível, todos os artigos por ela produzidos, ademais, dialogar frequentemente com os pesquisadores internacionais, visto que essa revista e a nossa possuem ideias convergentes. ―O objetivo do The International Journal of Role-Playing é atuar como uma rede de conhecimento híbrido, e reunir os diversos interesses nas redes de conhecimento associadas role-playing, e, por exemplo, pesquisa acadêmica, os jogos e as indústrias criativas, as artes e as fortes comunidades de RPG. O International Journal of Role-Playing é uma resposta a uma necessidade crescente de um lugar onde a existência dos vários campos de investigação role-playing e desenvolvimento, abrangendo as universidades, a indústria de jogos, as artes e as fortes comunidades de RPG não acadêmicos todo o mundo, podem trocar conhecimentos e investigação, redes de formulário e se comunicar.‖ (http://journalofroleplaying.org/) O fato é que algo ainda mais curioso se apresenta a seguir, qual seja, a tradução do artigo de um autor nacional publicado no exterior primeiramente, em uma revista relacionada ao evento itinerante Knutpunkt, que circula por quatro países em o norte da Europa: Finlândia, Suécia, Noruega e Dinamarca. Por fim, enfatizamos que foi um desafio ajustar normas as quais não destituíssem o referido artigo de sua forma original e, ao mesmo tempo, propiciassem a compreensão do leitor. Rafael Correia Rocha – Editor Chefe Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 96 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 LINGUAGEM CULTURAL DE ROLE-PLAYING Angelina Ilieva Academia de Ciências da Bulgária [email protected] Tradução: Giovanni Barbon de Oliveira Ideia geral A interação dos Role Playing Games em jogos "Live Action" também é uma interação de linguagem. A linguagem dos jogos de Role playing é diferente da linguagem do dia-a-dia, porque as palavras criadas nos RPGs não são só um reflexo ou extensão do dia-a-dia. Examinamos três exemplos de interação nos RPGs de Live-Action. Em todos os três, os jogadores confiaram nos conhecimentos culturais compartilhados. No primeiro caso, dois jogadores empregaram convenções culturais sobre o significado das cores, objetos e espaço tão bem quanto os materiais que pegaram emprestados dos mitos e folclores a fim de ordenar/decretar o encontro entre um mago e um dragão. No segundo, os organizadores prepararam cenas da literatura clássica para construir o enredo do jogo. No terceiro, os jogadores empregaram estereótipos culturais de personalidades e comportamentos para apresentar personagens de diversas idades e status sociais. Resumo O objetivo do trabalho é explorar a ligação entre RPGs Live Action como sistemas culturais e o contexto cultural em que eles existem, por meio de análise do material empregado no processo de interação do Role playing: as funções e os usos dos códigos culturais, memória cultural, e conceitos culturais 97 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 de identidade. Três casos de interações comunicativas em LARPs (Live Action Role playing) específicos, chamadas "cenas", são analisados de diferentes perspectivas. Na primeira cena, os jogadores usam códigos culturais e convenções na construção semiótica de um evento imaginário: um encontro com um Dragão. Os participantes chegam a diversos segmentos culturais que contém interpretações do tema para pegar emprestados materiais semióticos. Portanto, o Role playing se torna um mediador para a reprodução ativa e transformação de informação cultural, identificado como pertencente a diversos sistemas culturais. O LARP também é um meio de utilizar "formações estáveis" de memória cultural, como discutido na análise da segunda cena. Fragmentos de literatura clássica não são apenas relidos e reescritos no esforço de interpretação colaborativa, mas também são internalizados, e se tornam parte de uma experiência biográfica pessoal. As interações comunicativas nas seções de Role playing são baseadas nos estereótipos culturais de discurso e comportamento que projetam personalidades e papéis; este é o foco da análise na terceira cena. Considerados como sistemas abstratos, códigos culturais, memória cultural, e conceitos culturais de identidades constroem a linguagem cultural do Role Playing. 1.Introdução Estudos sobre jogos os examinam como ambientes interativos; jogos são interativos a um ponto em que é tautológico usar a expressão "jogos interativos". (Mayra 2008, p6). Jogos acontecem pela comunicação: nenhuma interação é possível sem a troca de informação, seja ela direta ou mediada por tecnologia, sincronizada ou não, e entre jogadores ou entre um jogador e uma interface. Dependendo do tipo ou design do jogo, a interação pode ser rica ou relativamente limitada (veja e.g. Manninen, 2003), respectivamente construindo sobre a comunicação que é complexa e multicanal ou simplificada. Enquanto tanto a natureza da interação e das particularidades da comunicação são baseadas em descrever as especificidades do conceito de "mestre", elas podem também definir as várias formas de jogar nos sistemas de RPGs. 98 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 A interação comunicativa em uma sessão de Role playing é baseada nos estereótipos culturais de discurso e comportamento que projetam personalidades e papéis LARPs (de mesa ou não) envolvem colaboração entre jogadores através de atividades sociais face a face, baseado numa comunicação sincronizada e direta. Nos jogos de mesa, essa interação é principalmente verbal, e a ferramenta de comunicação que prevalece é a nossa linguagem oral2. Foi Gary Alan Fine quem primeiro pontuou (1983), "porque a fantasia de jogar é baseada na experiência compartilhada, esta deve ser construída através da comunicação" (p. 3). No processo comunicativo do jogo, os participantes têm oportunidades de mobilizarem todas as ferramentas da vida real para uma expressão verbal dos pensamentos, emoções e imagens durante a coleção decretada de suas "fantasias compartilhadas". Sean Q.Hendricks (2006) argumenta que a linguagem é uma ferramenta para ambos criarem o imaginário do mundo do jogo e ser envolvidos nele. Ele explora várias "estratégias discursivas incorporativas": o uso do pronome de primeira pessoa por misturar a entidade jogador com a entidade personagem; o uso das referências da cultura popular como estratégias para fortalecimento da visão compartilhada do mundo do jogo estreitando as possíveis variações; e o uso de formas de línguas de um mundo específico como uma estratégia para assegurar o envolvimento dos jogadores por reivindicar a língua do mundo fantasiado como a sua própria. Um estudo comparativo de Tychsen et al. (2006) demonstra que é necessário visualizar o mundo ficcional através da comunicação de linguagem; encoraja os jogos Role playing de mesa (papéis e caneta), e eles aparentam ser mais engajados ou imersivos que jogos Role playing de computadores, onde os jogadores se distanciam no mundo virtual. Em mais um nível abstrato, Montola (2008) distingue entre um "mundo do jogo" como uma construção coletiva, e "diegese" como uma leitura e interpretação subjetiva do mundo do jogo, complementada pelos sentimentos e ideias internas que permanecem implícitos. Assim, ele introduz a sutil, mas, ainda importante, distinção entre aspecto intersubjetivo e intrasubjetivo no 99 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 processo criativo do Role playing. Ele então conceitualiza a interconexão entre os dois lados do sistema comunicativo, o interpessoal e o pessoal, como um laço das três atividades básicas: interpretação, ajuste, e comunicação. Assim, "o mundo ficcional ou a verdade sobre o que existe em um mundo ficcional" (Montola 2003, p. 82) não é uma entidade tão clara e estável, mas um (pelo menos parcialmente) entendimento compartilhado, alcançado em um desigual e complicado processo de negociação e (des) acordo. Assim como Kristian Bankov (2008) pontuou, verdade não é uma parte das coisas por si; a verdade requer afirmação, que é um discurso. O mundo do jogo e a diegese não são discursivamente construídos; eles são sujeitos a transformações devido à atividade discursiva dos jogadores. Este estudo se concentra nos aspectos interpessoais de, sem dúvida, a mais complicada e difícil de generalizar e analisar nas interações do jogo: aspectos de Live Action Role Playing Games (LARP). No LARP, a comunicação é heterogênea; a interação é multimidiática. Mensagens visuais constituídas em formas e cores que complementam a interação verbal e paralinguística (i. e. através da entonação, volume ou suspiro). Jogadores devem se comunicar somente com gestos ou se expressar através de sons ou danças (ver e.g. Fedoseev and Kurguzova 2012). O design dos espaços, cenários, e adereços e sua interpretação e utilização também fazem parte das trocas comunicativas. As mensagens geradas (ou textos) não são apenas verbais, são também para serem vistas no sentido mais amplo do termo semiótico: gestos e posturas corporais, exclamações, sons, músicas e danças, trajes, imagens, diferentes tipos de objetos e seu uso. Lotman (1980) diria que eles formam um conjunto semiótico. Nesse processo comunicativo, a linguagem não é meramente uma ferramenta de interação. A linguagem de Role playing não é uma camada externa no topo da essência do Role playing; toda interação no Role playing em sua forma comunicativa é interação de linguagem. Contudo, a linguagem de Role playing é diferente da linguagem cotidiana, porque as palavras criadas nos Role playing não são meramente uma reflexão ou extensão da vida cotidiana, elas são ficcionais. A essência do Role playing reside na tentativa de ser outra pessoa, e/ou em outro lugar, e/ou em outro tempo e, frequentemente, 100 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 necessita de uma simulação de um mundo muito diferente do cotidiano; o conhecimento de que esse mundo está fora do alcance da memória individual e indisponível na experiência biográfica dos indivíduos. Em um processo de construção discursiva de entidades de ficção, linguagem cotidiana não é suficiente. Se os LARPs são palavras temporárias no mundo cotidiano (Stenros 2010, p 300), sua manifestação discursiva deve empregar superestruturas semióticas construídas sobre a linguagem natural. 2. Enunciado do problema Vários pesquisadores que têm estudado Role playing games discutem a tendência dos jogadores incorporarem ao processo interativo elementos ou materiais emprestados de vários sistemas culturais. Em seu trabalho de seminário Shared Fantasy (Fantasia Compartilhada), Gary Alan Fine (1983, p. 2) anota, "cada grupo de jogos interpreta, define, e transforma elementos culturais em sua esfera de conhecimento no quadro cultural de uma sociedade imaginada." Jogadores não criam mundos fantasiados inteiramente de sua imaginação; em vez disso, eles moldam e adicionam um nível a mais de significado a materiais culturais derivados de seu conhecimento de mundo. Os membros de um grupo utilizam cultura para imbuir os acontecimentos em seu mundo com significado e para criar eventos recém significados; assim, cada grupo de jogo é um intérprete da cultura maior da sociedade no contexto em que o grupo existe (, Cadê o autor ?, p. 238-239) Daniel Mackay (2001) argumenta que tais elementos culturais são os blocos de construção do desempenho do Role playing. Tudo, da interação do dia-a-dia com outros que deixam impressões sobre os jogadores até imagens memoráveis coletadas a partir de experiência dos jogadores com a arte, pode ser usado para criar seus personagens. Linhas famosas, posturas apropriadas, traços vívidos de passagens literárias ou cenas de filmes são encontradas na memória dos jogadores como blocos fictícios descontextualizados. Todo o desempenho do jogador pode ser uma manipulação consciente de alegorias e convenções ou uma repetição inconsciente de blocos fictícios para os quais os jogadores 101 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 tenham sido expostos. Uma vez divorciada de seu contexto, blocos fictícios funcionam como tiras de comportamento imaginário - comportamento não real que ocorre em um ambiente de imaginário - e são a própria substância do jogo (Cadê o autor ?, p.76-79). Da mesma forma, Sarah Lynne Bowman (2010, p. 13) observa que o conteúdo das narrativas de jogos de Role playing "frequentemente emerge do fundo, símbolos arquétipos cultivados nas fontes da experiência humana coletiva." Este estudo discorre sobre a noção de uma ligação entre o jogo de Role playing como um sistema cultural e do contexto cultural em que ele existe através da análise dos materiais culturais empregados no processo de interação Role playing. Estudando exemplos concretos, vamos discutir a incorporação de diversos "elementos culturais" na comunicação do LARP. Vamos examiná-los como sistemas abstratos de elementos e regras para a sua utilização no processo de comunicação, ou seja, como linguagens. Nosso foco será não tanto sobre os próprios elementos ou a sua origem, mas em sua interpretação dentro da específica situação comunicativa, sua interligação semântica na criação de novos significados. As pantufagens32 inerentes a tal discussão decorrem do caráter da análise: examina não exclusivamente elementos verbais, mas toda a multimidialidade de interação Role playing. Pedindo emprestado de Frans Mayra (2008, p. 13): "No contexto dos estudos sobre jogos, é tão importante pensar sobre o significado que está relacionado às ações, ou imagens, como é para encontrar significados nas palavras." 3. Conceitos e métodos-chave Influenciados pelos trabalhos do linguista dinamarquês Louis Hjelmslev sobre o uso primário (literal, 'denotativa') e secundário (figurativo, metafórico, 'conotativo') de palavras e expressões, Roland Barthes (1972) e Juri Lotman 32 Original Slepperiness; slepper = pantufa/ um tipo de sapato confortável para se usar em casa (http://dictionary.cambridge.org/us/dictionary/british/slipper?q=slipper acesso em 1/3/2014 às 4:04bra) 102 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 (1970), sem dúvida, independentemente um do o outro, elaboraram a noção de sistemas semióticos secundários. De acordo com isso, no topo da linguagem natural - o sistema semiótico básico através do qual nos comunicamos - que construímos sistemas adicionais de significado, mais ou menos convencionais, servindo para organizar e expressar nossa experiência social. Em sua conclusão para Mitologias, Barthes define mito como um sistema de segunda ordem semiológica (em francês, systèm e sémiologique second), onde diferentes matérias primas (a própria linguagem, fotografia, pintura, cartazes, rituais, objetos, etc.) são utilizadas como um idioma secundário para a expressão de significados ideológicos adicionais. Essa noção também permeia os trabalhos de semiótica cultural de Juri Lotman. Ele vê toda a cultura como informação, coletada, armazenada e transferida, em toda sociedade humana, de uma geração para a seguinte. A cultura é um agregado de textos, na qual a memória coletiva é armazenada; a cultura é um sistema de comunicação onde os textos são trocados através de diversos canais; a cultura é um mecanismo de criação de textos e textos são a realização de cultura (Lotman e Uspensky 1978). Todos os textos da cultura podem ser lidos e compreendidos com a ajuda de códigos culturais, que são as bases de diferentes "línguas" culturais. Cada texto cultural pode ser considerado um único texto com um código único e, simultaneamente, um agregado de textos com um agregado de códigos correspondentes (Lotman, 1967). Lotman presta atenção especial à arte e as 'línguas' da literatura teatro, cinema, artes plásticas, música - como sistemas de comunicação de informações artísticas específicas, que são semelhantes à linguagem natural, mas muito mais complexas, uma vez que elas são construídas sobre ela e servem como sistemas de modelagem secundárias (Lotman 1970, 2002). No entanto, "linguagem" e "código" não são sinônimos: O termo 'código' traz consigo a ideia de uma estrutura recém-criada e artificial, introduzida pelo acordo instantâneo. Um código não implica história, isto é, psicologicamente nos orienta a linguagem artificial, que é também, em geral, considerado como um modelo ideal de linguagem. 'Língua', ainda que inconscientemente, desperta em nós uma imagem do alcance histórico de existência. Linguagem - é um código mais a sua história. (LOTMAN, 2009, p. 4). 103 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 104 Se uma linguagem consiste de um código e de sua história, a discussão de linguagens "culturais" deve envolver a ideia de cultura como memória. Em seu trabalho seminário Sobre o "Mecanismo Semiótica da Cultura", Lotman e Uspensky (1978, p. 213)definem a cultura como a memória não hereditária da comunidade. Cultura é um mecanismo para preservar a informação na consciência da comunidade. A longevidade dos textos forma uma hierarquia dentro da cultura, geralmente identificado com a hierarquia de valores. Os textos considerados mais valiosos são os de longevidade máxima: os textos pancrônicos33. Aleida Assmann (2008) posteriormente distingue entre duas formas de memória: uma mais ativa, as instituições que preservam o passado como presente; e uma mais passiva, que trata o passado como passado. Ela refere-se à memória ativamente circulada como o cânon e à memória passivamente armazenada como arquivo. Jan Assmann (1995, 2008) apresenta outra distinção em suas obras - entre duas formas diferentes de se lembrar: a memória comunicativa e a memória cultural, que ele ilustra com sua metáfora dos estados "líquido" e "sólidos" da memória coletiva. Memória comunicativa não é formalizada e estabilizada por quaisquer formas de material simbólico; é difusa e vive em interação cotidiana. Memória Cultural é caracterizada pela sua distância do cotidiano; é mediada através de textos, ícones, danças, rituais e performances de vários tipos; ela tem formações "estáveis" para garantir a objetivação ou cristalização de significados comunicados. LARPs constituem um sistema semiológico de segunda ordem devido à própria natureza do "brincar de faz de conta." Ele pega emprestado uma ampla gama de materiais semióticos crus (palavras e frases, posturas e gestos, ritmos 33 original "panchronic" pan = sufixo no sentido de pluralidade (http://dictionary.reference.com/browse/pan-) chronic = adjectivo de longa duração(http://dictionary.cambridge.org/us/dictionary/british/chronic_1?q=chronic)ambos visitados 1/3/2014 às 5:02 bra Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 e melodias, símbolos e imagens) e os modela, atribuindo um significado adicional, secundário a eles no ato de interpretar um papel. Esse sistema é caracterizado pela fusão de dois recursos: "teatralidade" e "interatividade‖. A teatralidade é uma característica semiótica fundamental das performances dramáticas, a sua definição é baseada na observação de que todos os signos teatrais funcionam como sinais de sinais. No palco, a coroa e o anel não são símbolos do poder real, eles são sinais dos símbolos do poder real, ao mesmo grau que os gestos régios do ator realizando o papel do rei. Signos teatrais apresentam a mobilidade (ou seja, são substituíveis entre si) e poli funcionalidade. Por exemplo, a chuva pode ser indicada por sons, acessórios ou palavras, ou seja: pelo barulho do cair de gotas de chuva, por um guardachuva aberto ou simplesmente dizendo: "Está chovendo"; uma cadeira pode ser usada não só como uma cadeira, mas como uma montanha, escada, carro, ou uma criança dormindo. Cada símbolo teatral pode executar várias funções para criar uma grande variedade de significados (ver Fisher-Lichte 1992, p. 129-141). Assim como em um espetáculo teatral, em um LARP, "todos os objetos no espaço físico e todo ato realizado é um símbolo" (Loponen e Montola 2004, p 42.); mas a diferença crucial aqui é que eles estão envolvidos em "um ciclo de criação e consumo" (Sandberg 2004, p. 276), ou seja, em um processo de geração de sentido de interação direta. Os participantes de um evento LARP, mais frequentemente assumem os papéis ativos de interlocutores do que as posições dos artistas / plateia. O significado de cada mensagem em LARP é produzido pela comunicação entre os participantes agindo juntos em uma situação particular. Todos os objetos no espaço físico e todo ato realizado é um símbolo Interpretando role-playing como um sistema de modelagem secundário, permite-nos evitar duas noções potencialmente redutoras. A primeira afirma que a inclusão de diversos materiais culturais no processo de comunicação é 105 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 uma mera referência, "citar", que preserva o seu significado original intacto. Visualizando role-playing como um sistema de modelagem nos permite considerar os elementos culturais nele como uma linguagem; um conjunto abstrato de signos cujo uso é, por vezes, em parte, não intencional, muitas vezes improvisado e estimulado pela situação concreta, e cujo significado não tenha sido pré-estabelecido mas é criado em conjunto pelos participantes do discurso role-playing. A segunda noção diz que a origem desses elementos deve ser procurada apenas em certos textos e gêneros da cultura popular, como Dungeons and Dragons, literatura de fantasia ou filmes de ficção científica. O empréstimo de elementos que podem servir como códigos na interação role-playing pode, de fato, acontecer através de uma grande variedade de sistemas de signos a que os jogadores têm acesso, então vamos discuti-los sob a proteção geral de códigos culturais, memória cultural e noções culturais de identidades. Os casos que examinaremos, chamados de Cenas, foram extraídos dos jogos LARP búlgaros. Eles foram documentados durante o trabalho de campo através de métodos etnográficos qualitativos, tais como a observação participante, gravação de áudio e vídeo. A abordagem é baseada na etnometodologia (Garfinkel 1967) e da etnografia da fala (Hymes 1974) e seu interesse em como as pessoas interagem e mantêm contatos sociais; como utilizam a linguagem para criar e sustentar realidades. Um aviso metodológico é necessário aqui: embora a interpretação tenha, geralmente, sido verificada nas discussões pós-jogo com os participantes do evento LARP relevante (particularmente em Cena 2) ela ainda se mantém em grande parte uma interpretação subjetiva do pesquisador. Outras interpretações são possíveis para qualquer um que seja falante nativo e esteja familiarizado com as peculiaridades da cultura LARP búlgara. A análise dos três casos escolhidos será realizada em diferentes níveis, a abordagem analítica é baseada em extensa pesquisa de Teun A. van Dijk em macroestruturas discursivas: as estruturas semânticas ou conceituais de nível superior que organizam as microestruturas locais de discurso, a interação, e o seu processamento cognitivo (ver por exemplo, Van Dijk, 1980). Na primeira cena, uma interação entre dois atores será discutida como uma sequência de 106 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 atos comunicativos, ou seja, como macroestrutura narrativa (Van Dijk, 1976). Na segunda cena, uma sessão de LARP inteira será vista como um evento comunicativo global, na medida em que os dois lados do processo comunicativo são dois grupos (macro participantes): o dos organizadores e o dos jogadores. Na terceira cena, desceremos ao nível de análise de conversação, mas traremos em consideração outro conceito: o de modelos de contexto como representações subjetivas de situações sociais (Van Dijk 2007): "Os modelos de contexto estrategicamente controlam o processamento do discurso, de tal forma que um discurso é produzido ou entendido como apropriado em uma dada situação comunicativa. Isso significa que qualquer coisa que pode variar no discurso pode, assim, tornar-se controlada pelo modelo de contexto, como expressões dêiticas, fórmulas de polidez, estilo, estruturas retóricas, atos de fala, e assim por diante." (Cadê o autor?, p. 7, grifo original). 4. Cena um: mago e dragão Na periferia da área de jogo, em uma seção arborizada úmida, um grupo de jogadores se depara com uma única NPC. O NPC usa um vestido vermelho-vivo, com miçangas e fitas, vermelho brilhante. Ela é hostil e tenta assustar o grupo; ela cospe e sibila. Somente quando confrontada por um membro do grupo, portando um cajado e usando pingentes de couro, madeira e conchas, que ela se acalma. O início do encontro funciona como uma introdução: os dois se apresentam como um mago e um dragão. O Dragão fala em cadências e com sintaxe ímpar, uma reminiscência de poesia. O Mago divulga seus objetivos: ele tem que cruzar as portas do Outro Mundo, mas para isso ele precisa de um pergaminho de runas34 mágicas. O Dragão admite ter o pergaminho, mas 34 Original “runes”um tipo de alfabeto antigo do norte da Europa, normalmente usado para se referir à segredos ou significados mágicos (http://dictionary.cambridge.org/us/dictionary/british/rune?q=runes acessado 1/3/2014 às 15:45) 2 O caso Asckolt 2008: ErtanMušov et al. A 28 de junho, Varna, Bulgária. Notas de campo. **original “singsong” (http://dictionary.cambridge.org/us/dictionary/british/singsong_1?q=singsong acesso 1/3/2014 ás 16:53) 107 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 somente o entregará se o Mago lhe contar mais sobre o mundo dos seres humanos ou se ele encontrar uma maneira de lhe distrair. O Mago aceita o desafio e decide cantar uma canção popular/folclórica para o Dragão. O Dragão aprova a música e a atuação, e dá o pergaminho para o Mago. O mago agradece lhe, o Dragão deseja lhe sucesso e cada um segue seu caminho2. Eirik Fatland (2006) escreve sobre "uma vasta gama de ideias culturais"; aprendidas com a experiência pessoal, a partir de livros, brincando ou assistindo a filmes, a qual serve como um conjunto de conhecimentos a partir do qual jogadores de role-playings extraem padrões de improvisação. Fatland define esses padrões como "códigos de interação" e sistematiza alguns deles em dois tipos: os códigos de convenções (convenções do gênero e referência, convenções de situação, convenções de cenas LARP), e códigos de enredo (língua falada, a linguagem corporal, personagens e histórias estereotipados, etiqueta e rituais sociais). Na cena descrita acima, podemos identificar alguns dos códigos citados de interação, por exemplo, a regra de que só os magos podem falar com os dragões, que é uma convenção de "alta" fantasia familiar a partir dos romances Earthsea de Ursula Le Guin; o encontro entre os participantes começa com uma introdução e termina com despedidas, duas características obrigatórias de etiqueta social; a insistência do grupo em se comunicar com o dragão é necessária em virtude de convenções dentro da cena LARP búlgaro em que NPCs são destinadas a servir os jogadores, como fonte de informações e itens. Antes de a interação verbal começar, os dois jogadores, através de códigos de cor, objetos e comportamento, sinalizaram para o outro o que cada um é. O texto visual recém- criado tem uma denotação totalmente ficcional: um jogador reconhece o outro apenas pela força da convenção cultural: o vermelho simboliza o fogo e dragões são criaturas de fogo, que são serpentes, daí o silvo e o cuspe; cajados e pingentes são os apetrechos de magos e assim por diante. Dentro da interação verbal dos jogadores, uma linguagem "cantada**" específica é estabelecida: de um lado, o discurso estranho do Dragão, ritmado, 108 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 e característico das criaturas mágicas em contos de fadas búlgaros (Parpoulova, 1978), do outro, o Mago escolhe a canção com a qual "conta o conto" sobre o mundo dos humanos. O texto que emerge dessa língua "cantada" é por si só um sinal complexo: um sinal para um tipo raro de comunicação, uma interação mágica. Baseia-se em concepções mitológicas compartilhadas; poderíamos dizer que o pressuposto dessa interação é o código mitológico, segundo o qual é preciso mágica para passar para o Além e criaturas como o Dragão habitam as margens do mundo humano. Neste espaço remoto, o Dragão guarda os portões para o Outro Mundo; ele é estranho para as pessoas e elas com ele, e isso é por que ela precisa ouvir um conto sobre eles, o que o Mago faz na sua qualidade de mediador, de intermediário entre o mundo dos seres humanos e seres míticos. A narrativa segue um enredo familiar. Ele está sujeito ao código narrativa do conto de fadas: o Dragão é um auxiliar mágico e concede um item mágico para o herói, mas primeiro ele deve testá-lo, o Mago tem que cumprir a tarefa e passar no teste para ganhar o item mágico: funções XII, XIII e XIV, de acordo com Morfologia do conto popular (1968) de Vladimir Propp. O role-playing game se transforma em um meio para a existência e recriação de informação cultural herdada Os participantes chegam a um acordo completo: a interação é bem sucedida. Elementos separados são combinados ecleticamente: material semiótico de procedência diversa é livremente emprestado e estruturado. O empréstimo não é arbitrário, mas segue o tema "encontro com um dragão": os interlocutores buscam todos os segmentos culturais que eles podem pensar que contenham interpretações no tema: literatura (fantasia), jogos de RPG mitologia e folclore. O RPG se transforma em um meio para a existência e recriação da informação cultural herdada, conhecida por suas diferentes origens culturais, mas compartilhada por todos os participantes desse evento comunicativo particular. A comunicação se dá em dois níveis: por um 109 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 específico, entre os interlocutores, e no abstrato, entre vários textos dentro de uma cultura e entre diferentes culturas - "diferentes", no sentido dado por Lotman sobre a tipologia de culturas: remota no tempo ou no espaço. O mosaico de todo e qualquer elemento é aceitável, do ponto de vista dos participantes tentando alcançar seus objetivos - se é compreensível para o interlocutor. Além disso, por causa da tensão em cada vínculo sintagmático criado, a comunicação é garantida a ter lugar aqui e agora, como um diálogo de forma espontânea e, juntamente, criando novos significado, e não como um conjunto de monólogos montados uns nos outros para criar significados de forma premeditada. A interação entre os dois jogadores é completamente improvisada, e suas participações são espontâneas, uma resposta direta às ações do parceiro. O gênero da narrativa criada em conjunto por eles pode ser facilmente reconhecido como fantasia, e isso é provavelmente o porquê dele conter os arquétipos colocados em primeiro plano por lendas e mitologia (ver também Bowman 2010, p. 143-154). Igualmente fácil, pode ser reconhecido como parte da cultura do LARP búlgaro, não só por causa da língua natural da interação, mas também por causa da inclusão de elementos do folclore local. Ao desenhar ativamente as informações culturais heterogêneas e vinculando-as em conjunto para produzir significados, os jogadores LARP situam sua microcultura ao longo das fronteiras da semiosfera cultural (como por Lotman 2005), uma área de maior geração de significativa. Um fenômeno global, que incorporou as tradições dos gêneros literários populares, como fantasia e também as características da cultura de jogos norte-americanos, encontra, absorve e é realizada através dos textos e códigos da cultura local, "formando uma espécie de crioulização das estruturas semióticas" (p. 211). Usando as bases estabelecidas por Lotman, estamos conscientes de que esta ligação não pode ocorrer mecanicamente, é sempre uma interpretação gerando novos significados. Construir mundos imaginários só é possível na interpretação, porque mesmo os mundos mais fantásticos sempre foram mediados através de línguas muito semelhantes às nossas. 110 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 5. Cena dois: Máscaras e enigmas O salão é festivamente iluminado, uma orquestra de cordas toca. No final do corredor, o anfitrião da vez, Dom Delgado, se senta. Duas de suas companhias misteriosas estavam ao seu lado: um homem alto, de cartola e uma garota bonita. O terceiro companheiro fica na porta do salão e pede a todos os convidados para apresentar os seus convites e dizer o seu nome e título. Depois disso, ele anuncia em voz alta a sua chegada. Os convidados entram na sala e esperam pacientemente pela sua vez para se apresentarem ao anfitrião. Todos estão vestidos a rigor, e mascarados. Don Delgado lhes dá as boas-vindas, beija as mãos das senhoras, mas não se levanta de sua cadeira por um momento sequer. Seu alto companheiro repete o mesmo elogio repetidamente: "Estamos muito satisfeitos", "O Dom está encantado", "Ela está encantada", "Estamos todos encantados."2 Para os fãs do romance de Bulgakov O Mestre e Margarita que participaram no jogo LARP "The Spring Ball of Don Delgado‖ (O Baile da Primavera de Don Delgado), o início do qual está descrito acima, esses elogios, juntamente com os nomes dos três companheiros misteriosos Azazelo, Korovieva e Behemoth35 - são suficientes para fazê-los agir com extrema cautela e evitar a interação com aqueles que interpretam os elementos acima referidos. Poucas coisas agradáveis acontecem aos outros. Cerca de duas horas após o início, o anfitrião Delgado anuncia uma pequena atuação - um show de marionetes - para o entretenimento de seus convidados, os quais amantes de Hamlet seguem com particular atenção. No verso, a interpretação dos bonecos fala sobre como era uma vez o pobre jovem Delgado, muito parecido com o personagem de Dumas, o Conde de Monte Cristo, foi acusado e condenado para que a noiva pudesse lhe ser tirada. O espetáculo provoca reações iradas dos convidados descritos nele. 35 3 “O Baile da Primavera de Don Delgado 2010”: Lyubomira Stoyanova et al. The 17 of April, Sofia, Bulgária. Notas de campo e gravação de vídeo 111 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Durante o jogo, a vida de todo mundo depende se eles vão ou não descobrir que seu anfitrião cordial vendeu sua alma para o Príncipe das Trevas – talvez eles consigam acompanhar o diálogo entre dois textos: o romance de Bulgakov e Fausto, de Goethe - e também se, com a ajuda de um código especial, eles podem encontrar e destruir o pacto de sangue. Para conseguir o código, composto de referências bíblicas, no entanto, eles têm de responder a um enigma: "O que é o que é tão alto, porém tão baixo?". O design do jogo LARP inclui elementos das obras do cânone literário europeu. Cada elemento é destinado a carregar um significado particular, incitando uma reação particular nos jogadores. Juntos, esses elementos formam um código literário específico, composto de sinais que, no espírito do jogo, vamos chamar máscaras. Neste caso, os criadores dependem principalmente da habilidade dos participantes em construir conexões associativas, para associar, que é a forma mais fraca de codificação. A decodificação segue definindo processos interpretativos que se movem em muitas direções diferentes, fazendo com que os jogadores tenham uma série de expectativas mutuamente contraditórias. O conflito sócio romântico, ou a máscara "O Conde de Monte Cristo", está associativamente ligado à expectativa de vingança, mas, ao mesmo tempo exclui a presença de personagens e eventos "sobrenaturais". Reconhecer que os três companheiros misteriosos são demônios, ou a máscara "The Master and Margarita", cria expectativas de um conflito do tipo ―bem contra o mal‖, o que implica em uma decisão ética (ou afiliação); mas a revelação pública de pecados passados, sendo expostos em verso, ou a máscara "Hamlet", introduz uma hesitação onde linhas divisórias no conflito são precisas. O código literário traz com ele uma teia de conexões (con) textuais: cada elemento é interpretado não apenas no contexto do jogo, mas também dentro do texto a partir do qual ele é retirado. A escolha dessas obras não é arbitrária: clássicos são superinterpretados e neles cada elemento é um sinal rico em conotações. Associações literárias são "os componentes do enigma", cuja solução torna-se o aspecto de jogo deste LARP, inicialmente anunciado para ser um ―encontro social‖. O jogo é uma das inteligências: para os criadores, é sobre 112 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 gerar "enigmas", e para os jogadores, é sobre encontrar todas as respostas, que são deliberadamente complexas, resistentes à interpretação simples e inequívoca. A multiplicidade de leituras, a maneira como elas se contradizem, a incerteza interpretativa provocam e mantém o suspense, até que as "máscaras caiam" e os lados se tornem claros. Em outras palavras, o fraco sistema de codificação e a fraca congruência garantem a tensão do jogo. O sentido das máscaras literárias torna-se uma base para a longa relação de escolhas entre os criadores e participantes. O que torna "O Baile da Primavera de Don Delgado" um jogo é o jogo de interpretação de código literário. A solução não segue uma lógica linear, ao contrário, diferentes interpretações das referências literárias minam, cancelam e, até mesmo, se contradizem. O resultado, no entanto, é um texto role-playing coerente (como por Stenros 2004). A reconstrução do texto deve incluir um mosaico intertextual de obras literárias, amalgamadas dentro da dinâmica de interação discursiva e (re) escrito em um esforço interpretativo colaborativo. Para as sessões de larp de duração limitada, partes destes clássicos deixam de existir como textos fossilizados e são trazidos à vida na pragmática da interação imediata. Experimentar obras clássicas em primeira mão destrói as aberturas verticais na cultura Se nos voltarmos para a terminologia de Jan Assmann, poderíamos dizer que estamos testemunhando uma transformação da memória cultural na memória comunicativa. Elementos textuais de estáveis, "objetivadas" formas de memória cultural, carregando significados "cristalizados", são trazidos e reconstruídos dentro de um contexto particular. Eles, no entanto, não são interpretados como cânone; após a sua liquefação, os jogadores são imersos neles, experimentando-os em primeira mão, como se fossem uma parte da realidade cotidiana mundana. Particularmente, vemos fragmentos de clássicos incorporados à experiência biográfica pessoal dos participantes. 113 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Tanto a noção de cânone de Aleida Assmann de (2008) quanto a definição descritiva da memória cultural de Jan Assmann de (2008), se referem predominantemente a textos, símbolos e práticas atribuídas a cultura "alta" ou elitista. A hierarquia dos valores estabelecidos através dos textos pancrônicos do cânone e da estrutura de participação da memória cultural, que nunca é estritamente igualitária, implicam modos um tanto distantes, cultivados e ritualizados, de recepção e interpretação. Experimentar obras clássicas em primeira mão destrói as aberturas verticais na cultura e, em um nível mais abstrato, vemos como durante esta sessão larp, a ―alta‖ cultura é assimilada à cultura popular. O cânone é articulado nas línguas formais de role-playing; seus personagens e encontros dramáticos são incluídos nas macroestruturas semânticas e pragmáticas de um evento de jogo, e, assim, (alta) memória cultural e a memória cultural popular (como por Kukkonen 2008) se misturam são utilizadas em uma experiência criada coletivamente. 6. Cena três: Aldeões e as Samodivas36 Jogador A: E v-v-você a-a-aprendeu sobre os animais? Jogador C: Perdão? Jogador A: Animais. Você aprendeu sobre eles? Jogador C: Eu aprendi sobre as pessoas, mas é o mesmo princípio... Jogador B: Então você sabe sobre sapos. Jogador C: Sobre sapos - não. Jogadores A e B (partilhando um olhar): Não? Nããão... Jogador C (Estudando um pedaço de papel): Eu sei sobre carneiros... sobre... 36 Segundo a Wikipédia “Samodiva” são fadas das florestas encontradas no folclore e mitologia sul-eslávicas acesso 12-03-2014 às 17:094 Legend of Taermonn 2010: A Ordem dos Oitos. A 17 de Julho, Sofia, Bulgária. Gravação de vídeo. 114 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Jogador A: Quem sabe sobre saaaapos? Jogador C (acariciando seu nariz e queixo): O mendigo da aldeia, talvez. Jogadores A e B (Compartilhando outro olhar): O mendigo? O meeeeendiiigo... Jogador C: O mendigo, muitas vezes come sapos, então eu acho que ele os conhece melhor. Jogadores A e B, em conjunto: Obrigado! Agradecemos! Jogadores A e B fogem. Jogador C: Não há de quê. (Senta-se à mesa, onde seus itens são organizados, e se vira para o jogador X, que se senta à sua frente.) Por favor, me dê sua mão. Abre uma jarra e com um par de alicates de madeira pega um objeto que ele coloca sobre o pulso de Jogador X. Jogador D se aproxima e diz algo que é incompreensível na gravação. Player C: Em um minuto, por favor, Eu estou com um paciente agora, como vós podeis ver. (To Player X.) De onde você é? Jogador X: Dos bosques locais. Jogador C: A única aldeia por aqui é esta, Taermonn, e eu tenho vivido aqui tempo suficiente para saber que você não é local. (Derrama uma parte do líquido do frasco para um pequeno copo). Jogador X: Eu não sou de uma aldeia. Quem gostaria de viver em suas aldeias? Em seus bosques há mais espaço para viver do que você pensa. Jogador C: Você não vai desaparecer de novo, vai, como você fez antes com o padre? (Usando o alicate de madeira, ele arranca o objeto fora do pulso do jogador X e mergulha no copo.) 115 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Jogador X: Aaai!4 Michael Silverstein (2004) argumenta que os conceitos culturais ou estereótipos de identidades informam eventos interacionais específicos com um esquema aparente de diferenciação social: "Como receptor, um sempre tem um ‗Aha!‘ de reconhecimento: ‗fala assim e assim, como um _______!‘ (Preencher a categoria de identidade). E a gente sempre se esforça para projetar uma auto identificação de alinhamentos categóricos para os outros descobrirem sobre si mesmos como remetentes." (p. 638) A interação comunicativa em uma sessão de RPG é baseada em estereótipos culturais de discurso e de comportamento que projetam personalidades e papéis. O objetivo final e essência da atuação é alcançar uma perspectiva compartilhada de "fulano de tal fala assim e assim." Isso não significa que RPG é estereotipado, isto significa que role-playing utiliza estereótipos culturais de "tipos de pessoas", como ferramentas na atuação. O jogador A faz a pergunta "E você aprendeu sobre os animais?" timidamente, gaguejando. O jogador A e o jogador B mudam constantemente de lugar como parceiros comunicativos do Jogador C, e suas ações atingem um nível de sincronização onde se falam e gesticulam simultaneamente e de forma idêntica. Estes atos coordenados incluem conexões estranhamente lógicas (você aprendeu sobre as pessoas, logo você sabe sobre sapos), uma série de reações afetivas (interesse, decepção, surpresa, alegria) e expressividade sem entraves. O conteúdo semântico daquela interação verbal desenvolve o tema da erudição do personagem do jogador C e sua competência no campo das espécies biológicas. Através da etiqueta nos gestos e na fala, jogador C apresenta seu personagem como um homem bem educado, muito ocupado, mas não menos sensível à persistência dos jogadores A e B. Jogador C até mesmo começa a ―falar" a língua deles, demonstrando uma espécie de lógica semelhante (o mendigo come sapos, logo, sabe sobre eles). 116 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Jogadores A e B executam as partes de duas crianças37 de 13 anos, Clara e sua melhor amiga Eleanor, respectivamente, e do Jogador C, a parte do médico, Alexandre Romualdo. Na cena em questão, podemos concluir que as noções de comportamento compartilhados dos jogadores A, B e C revelam a identidade "criança" identificando por atributos tipológicos como "tímido, respeitoso, expressivo, ilógico", e aqueles do "doutor", por atributos como "educado, bem-educado, condescendente, ocupado". Os participantes constroem essas noções em conjunto, observando-se o princípio da cooperação, e a expressão paralinguística e verbal não está necessariamente vinculado por um objetivo comum: por exemplo, na primeira linha do Jogador A, a forma de expressão codifica a sua própria identidade, e o seu conteúdo, a identidade do interlocutor. Na segunda parte da cena, durante a interação entre os jogadores C e X , o modelo contextual é estabelecido pelos participantes como uma determinada situação social: "uma visita ao médico." Os papéis sociais são estritamente definidos (um é explicitamente nomeado pelo jogador C: "paciente"); comportamento também é estritamente definido: Jogador C executa uma manipulação complexa na qual o jogador X perdura, até mesmo simulando dor; interação verbal procede dentro das restrições da etiqueta situacional, incluindo a forma polida de endereçamento5, que o jogador C falha ao observar em apenas uma de suas linhas (um lapso comportamental). A direção pragmática da conversa é inteiramente para revelar a identidade do personagem do jogador X. O tema é introduzido por Jogador C, e suas perguntas e comentários contém a seguinte implicação: você é um estranho ("Eu sei que você não é daqui", "você não vai desaparecer, vai"). O que fica subentendido na resposta do jogador X é: eu sou diferente ("Eu sou dos bosques locais", "quem gostaria de viver em suas aldeias"). O jogador a quem nós chamamos X 37 Original “children” que pode ser crianças ou filhos, mas sempre no sentido de filhos, é que no caso não se tem referencia de quem são os pais.5 Na Bulgária, o pronome singular segunda pessoa, junto com verbos no singular, é uma marca de estilo de interação informal entre as pessoas que estão perto. Interação formal impõe uma "forma educada de endereço", que é o uso da segunda pessoa do plural, juntamente com os verbos e particípios, no plural. No caso, em inglês não existe a tal diferenciação da segunda pessoa no plural/singular, então deixei como “você” e “vós” para que o texto se aproxime do original e não do inglês 117 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 de propósito realiza a parte de um dos enigmas personificados do jogo: a Samodiva, uma fada da floresta do folclore búlgaro. Ambos os parceiros de comunicação constroem juntos a identidade "diferente, estranha" do caráter do jogador X sem invocar diretamente sua essência imaginária. Quando pensamos em comunicação LARP, temos que ter em mente o seu personagem duplo, a combinação de objetivos pragmáticos e senso artístico e sua possível realização como jogo-de-linguagem (Ilieva 2010). Seguindo de perto as reações do jogador C, podemos descobrir certos atos característicos espalhados por todos os subentendimentos da interação, que não podem ser lidos e compreendidos exclusivamente através das convenções da identidade do "doutor". Por exemplo, na primeira parte da interação, ele nega enfaticamente saber sobre sapos, apesar da alegação de que ele "aprendeu sobre as pessoas" e "sabe sobre carneiros" e que "o princípio (seja ele qual for) é o mesmo." Então segue uma improvisada, se não segura, declaração sobre os hábitos alimentares do mendigo. Na segunda parte da interação, ele inadvertidamente quebra a etiqueta comportamental, passando da segunda pessoa plural formal para a segunda pessoa singular informal se dirige ao presumivelmente desconhecido "paciente". Se tivermos de apontar o assunto do pronunciamento nestes casos, seria a matéria de jogabilidade, o jogador se divertindo, e o objeto social, o participante conversando com um amigo e um parceiro de jogo. O reconhecimento destes papéis é novamente derivado de uma noção cultural que reúne "brincar" e "se divertir" ou a partir da convenção social que define a interação entre amigos íntimos como informal. Kristian Bankov (2004) é de opinião que a nossa identidade é a nossa "interface social" através da qual nós nos comunicamos com os outros, e por isso é em grande parte uma função da nossa rede social. Mas a rede de identidade em um evento larp é mais mediada através da teatralidade: ela é composta de signos de identidade. Noções culturais (ou estereótipos) são expressos nas estruturas discursivas como códigos comportamentais (incluindo a fala), que no processo de desempenho são identificados e reconhecidos, tanto pelos participantes quanto pelos observadores que partilham os mesmos conceitos. Identificar os temas de comunicação, respondendo às perguntas "Quem sou eu?" E "Quem é você?" ocorre simultaneamente com o processo de 118 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 comunicação em si, que é realizado em comunicação e é, por vezes, o seu objetivo final. Em RPGs de computador, os personagens dos jogadores são simulações simplificadas, modelos criados através de uma escolha cuidadosa dos recursos. As possibilidades limitadas acentuam gênero e raça como diferença, no entanto, há um número de diferentes modelos de gênero ou de raça (Corneliussen 2008). Os desenvolvedores de jogos usam estereótipos etnoculturais de familiaridade e alteridade para projetar identidades manualmente dirigidas38 (Langer 2008). Mas os mundos sociais de larps são mais resistentes ao projeto, as identidades apresentadas em suas estruturas discursivas são mais espontâneas, ainda muito mais complexas. A atuação improvisada de papéis em um ambiente socialmente regulado pressupõe uma mobilização do sujeito social, o objeto jogabilidade e o objeto ficcional** (o personagem), que coexistem ao mesmo tempo no processo interativo; eles estão sempre disponíveis como opções para o jogador. A escolha e o reconhecimento dos diferentes papéis dependem de esclarecimento mútuo e articulação por parte dos interlocutores. O RPG é uma figura de interação discursiva, uma imagem criada na comunicação, um sinal complexo destinado a ser percebido e interpretado de uma maneira particular. 7. Considerações Nas três cenas acima, observou-se a integração de diversos elementos culturais na interação role-playing. Em todos os três casos, os elementos não têm nenhuma observação oblíqua ou referências; eles formam a base da comunicação. Na primeira cena, os participantes empregaram as convenções culturais sobre os significados das cores, objetos e espaço, bem como materiais emprestados do folclore mítico, a fim de decretar um encontro entre um mago e um dragão. Na segunda cena, os organizadores fizeram uso de cenas e motivos tirados do cânone da memória cultural (clássicos da literatura 38 Original: “menu-drivers”** original: “Playing subject” and “fictional subject” 119 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 e da Bíblia), a fim de tecer uma teia de enigmas cuja solução constitui o aspecto do jogo larp. Os participantes da terceira cena, conscientemente ou não, empregaram estereótipos sociais de identidades na interpretação de seus personagens ficcionais. Considerados como sistemas abstratos de códigos e convenções, esses elementos e materiais constituem as linguagens culturais do role-playing. Role-playing é um tipo de bricolagem39 cultural Role-playing é um tipo de bricolagem cultural (como por Genette 1982). Todo texto - tanto como um modo de expressão e como um portador de sentido - é criado espontaneamente, num processo colaborativo de análise: extração de elementos de várias totalidades já constituídas, e síntese: a combinação desses elementos heterogêneos em um novo todo em que nenhum deles mantém o seu significado e função original. Os elementos-signos extraídos são reconfigurados em novas estruturas dinâmicas que são também estruturas (signos) convencionais: fala e os gestos do jogador representam a fala e os gestos do personagem; adereços e figurinos representam a aparência do personagem; fragmentos de espaço físico representam o espaço ficcional, etc. A diferença ou desvio de forma e sentido, as estruturas originais são figuras de interpretação. O estudo da interpretação é uma abordagem possível para o estudo da cultura LARP. Se adotarmos o ponto de vista da cultura como um sistema de significado (ver, por exemplo Mayra 2008, p. 13), então é precisamente interpretações e confecção de novos significados... 39 Bricolagem no original “bricolage” é um tipo de montagem feita com o material que se tem à mão (qualquer coisa) http://dictionary.reference.com/browse/bricolage?s=t pra que não seja entendida no português como “faça você mesmo” http://www.dicionarioinformal.com.br/bricolagem/ ambos os acessos em 17-03-2014 120 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 O estudo da interpretação é uma abordagem possível para o estudo da cultura larp ...que constituem as especificidades de cada cultura LARP. Mesmo se assumirmos que os significados explícitos comunicados são um caso particular de tomada de significado e grande parte do sentido ou significado permanece implícito ou apenas indiretamente aparente para um observador externo (ibid., p. 14), estudar os aspectos interpessoais do processo ainda compensa os esforços do pesquisador, uma vez que são eles que fazem a fantasia compartilhada. Examinando RPGs como sistemas culturais (conforme Fine 1983) implica que devemos sempre colocá-los nas teias de relações culturais, em que cada elemento do sistema leva a outros sistemas, outras culturas e outros discursos. Hoje em dia, ninguém assume a homogeneidade de uma cultura ou a existência de uma única língua em que ele é criado, mas a noção clássica de sistemas de Ferdinand de Saussure ainda é útil, para lembrar-nos que nada na cultura existe em separado, por si só. Quase um século após a publicação do Cours de linguistique générale (1916), linguistas ainda defendem a opinião que o sentido só pode existir dentro de um sistema, mas, enquanto isso, os pesquisadores têm chegado à conclusão de que um sistema pode existir apenas em relação a outros sistemas, e que cada discurso no mundo contemporâneo é sempre uma bricolagem de discursos (ver, por exemplo Collins 1989, p 65 - 89). No mundo da informação pós-moderna, a relação de um sistema cultural ou discurso para outros nunca é clara com antecedência ou mesmo previsível. Em um mundo mediado onde o acesso é um conceitochave, a noção de limites é muitas vezes reduzida a uma ferramenta analítica. Cultura LARP poderia destruir completamente as fronteiras e distâncias existentes entre os textos, gêneros e meios de comunicação, para se transformar em uma ponte entre ou um terreno comum para as diferentes culturas. As linguagens naturais provavelmente servem para distinguir culturas LARP de uma outra mais claramente. Culturas LARP, no entanto, são muito mais intimamente ligados por linguagens culturais. Ao estudar suas 121 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 semelhanças e diferenças, poderíamos descobrir se existem códigos universais de culturas LARP e onde originam: talvez da vida cotidiana moderna e das relações sociais, talvez a partir do sistema de jogo Dungeons and Dragons, talvez a partir de O Senhor dos Anéis ou clássicos da literatura ou mitologia ou contos de fadas. Não importa se eles funcionam como línguas perfeitas ou decompõem-se em dialetos regionais; se aprendermos a identificá-los, podemos perscrutar os horizontes da imaginação, compartilhada dentro e entre culturas. 8. Agradecimentos Eu gostaria de agradecer aos participantes do seminário de RPG por seus comentários úteis sobre o projeto do presente artigo. 9. Referências [1] ASSMANNN, A. Canon and Archive. In. 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Angelina Ilieva: PhD é Professora Assistente Sênior e pesquisadora do Instituto de Etnologia e Estudos Folclóricos com Museu Etnográfico - Bulgarian Academy of Sciences. Ela tem estudado LARPs desde 2008 e atualmente está escrevendo um livro sobre cultura Larp búlgaro. 126 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 AS REGRAS INVISÍVEIS DO RPG: O QUADRO SOCIAL DO PROCESSO DE RPG Markus Montola Universidade de Tampere Finlândia [email protected] Tradução: Reynaldo Allan Fulin e Giovanni Barbon de Oliveira Ideia geral Este artigo visualiza o processo do RPG que ocorre em vários jogos. O RPG é uma atividade social onde três elementos estão sempre presentes: Um mundo imaginário, uma estrutura de poder e personagens personificados dos jogadores. Em resumo, todas as atividades sobre pessoas imaginárias atuando num ambiente imaginário; a estrutura de poder é necessária para diferenciar essa atividades de uma brincadeira de faz de conta de criança. Após os elementos básicos, este artigo segue para a discussão dos vários componentes em detalhes, passando por como se desempenham as regras, objetivos, mundos, poder, informação e identidade no RPG. Apesar deste artigo não chegar a uma simples conclusão, ele procura apresentar uma base sólida para pesquisa. Resumo Este artigo apresenta um quadro1 estrutural para o RPG que pode ser usado como fundamento para desenvolver estudos teóricos sobre o assunto. Esse quadro está baseado na suposição que todos os jogos se baseiam em regras, e tenta fazer visíveis as regras invisíveis do RPG propondo três regras. Comparado com jogos tradicionais, o RPG será visto como um processo qualitativo ao invés de quantitativo, diferenciando-se da maioria dos jogos tradicionais. 127 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 128 1. Introdução [^note1] No estudo de jogos, uma diferença fundamental deve ser feita separando o estudo dos jogos como sistemas formais do estudo dos jogos como processos sociais. No sistema formal do Pôquer Texas hold'em o jogador2 tem um conjunto bem limitado de opções legais influenciando suas chance de ganhar uma rodada: além de cobrir a aposta, pode-se trocar algumas cartas ou fugir de cara. No processo social do jogo, as alternativas são muito mais amplas. Os jogadores podem influenciar cada um em milhões de maneiras, começando por um blefe ou ameaça, com ou sem a intenção de afetar o resultado do jogo. Claramente, olhar para o Pôquer como um sistema formal não conseguiria nunca alcançar toda essência do todo: o jogo como é jogado é bem diferente do jogo no papel. O RPG tem sido frequentemente definido como um sistema de jogo (ex: Mackay 2001), apesar de algumas tentativas de vê-lo como um processo de jogo (ex: Hakkarainem & Stenros 2002) terem sido feitas também. Baseado em Heliö (2004), pode-se argumentar que qualquer sistema formal de jogo pode ser utilizado como base para o processo de RPG, dado que os jogadores tenham esse entendimento, e que qualquer sistema formal de jogo não é propriamente necessário. Por outro lado, tem se notado que qualquer sistema de RPG — quer estejamos discutindo RPGs de mesa tradicionais, larps (RPG ao vivo)3 ou RPGs online — pode ser jogado sem a interpretação de papéis propriamente dita. Bartle (2004), por exemplo, julga que mundos online não são jogos, mas sim lugares, já que estes carecem de muitas características dos jogos enquanto dispõem de várias características de lugares. Em parte devido à essa confusão, a discussão ludológica tem sido confusa sobre role-playing ser um jogo ou não. Normalmente, as análises tem focado nos RPGs como um sistema de regras. RPG tem sido visto como caso limite dos jogos por várias razões. Devido à influência do mestre do jogo, falta no RPG regras fixas (Juul 2003), e muitos sistemas de RPG não permitem que Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 os jogadores classifiquem os sucessos ou falhas de seus personagens no jogo como algo "positivo" ou "negativo" (Montola 2005). Neste artigo eu vejo a mentalidade do RPG como um método de se jogar, que pode opcionalmente ser combinado com outros diferentes sistemas de jogos. Não é a única mentalidade distinta de jogo. Por exemplo, alguns jogos são para serem jogados supondo uma mentalidade de uma diplomacia conspiratória e falsidade nas relações, enquanto outros pressupõem jogo limpo ou priorizando um estilo ao invés do sucesso da ação. Hakkarainem and Stenros (2002) definem o jogo de RPG 4 como aquele que ―é criado na interação dos jogadores entre si ou com o mestre(s) dentro de um quadro diegético específico". Esta definição aborda o RPG pelo angulo da comunicação. Se os RPGs serão estudado como jogos, uma definição mais ludológica é necessária, uma que demonstre as características semelhantes do jogo e os atributos de todas as diferentes formas de RPG. Também há de entender que a noção de mundo persistente de Bartle como sendo lugares em vez de jogos é apropriado para todas as formas de RPG de certa forma. Para esse fim, precisamos fazer visível as regras implícitas do RPG. Normalmente, os contextos de RPG como mundos virtuais, regras de RPG de mesa e eventos de larp só provêem regras algorítmicas do sistema formal usado como plataforma do jogo, mas não explicam as regras da expressão do RPG propriamente. Neste artigo, eu observo o jogo como ele é jogado, e não o jogo apresentado nos livros de regras dos RPGs. A discussão seguinte inclui diversas formas de RPG, focando em RPG de mesa, larp e RPG virtual (veja Montola 2003). [^ref2] Outras formas também existem, incluindo RPG de forma livre (que combina elementos do larp e RPG de mesa) e RPG pervasivo (Montola 2007b), e vários outros podem ser inventados. Além disso, há um grupo de formas de expressão e jogos situados nas fronteiras da definição que podem constituir-se RPG na maneira que está definido neste artigo. Entre Happenings.[^ref3] 2. As Regras Invisíveis eles estão improvisação, psicodrama e 129 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Björk e Holopainen (2003) divide as regras e objetivos do jogo nas categorias endógenas e exógenas — as regras e objetivos definidas na estrutura do jogo, e as regras e objetivos trazidas pelo jogadores ao jogo para dar-lhe sentido. Earlier, Fine (1983) propôs um estrutura para RPG em 3 camadas5, consistindo de um quadro primário (social) habitado pelas pessoas, um quadro secundário (jogo) habitado pelos jogadores e um quadro terciário (diegético) habitado pelos personagens. Combinando a abordagem de Fine com a de Björk e Holopainen, fica claro que as regras endógenas são parte da estrutura do jogo, enquanto as regras exógenas são parte da estrutura social. Entretanto, precisamos adicionar uma terceira categoria, a das regras e objetivos diegéticos, para regras e objetivos existentes dentro da ficção do jogo (veja Montola 2005). Ilustrando as 3 camadas de Fine com exemplos, eis como elas se parecem: "Não discuta assuntos fora do jogo durante o jogo" — exógena. "A espada causa d10 pontos de dano" — endógena. "Carregar uma espada dentro dos limites da cidade é punível com multa" — diegético. Nas suas várias formas, os processos de RPG parecem seguir certas regras endógenas e ainda implícitas, fazendo simultaneamente uma forma relativamente formal de expressão e uma forma relativamente informal de jogo. Essas regras não foram explicadas como tais nos jogos de RPG publicados, mas permeados nas seções dos livros que tentam explicar o que é RPG ou como um RPG deve ser conduzido. Para todos os RPGs em geral, eu proponho as seguintes três regras, que são a regra do mundo, a regra do poder e a regra do personagem: 1) RPG é um processo interativo de definir [^nt-definir] e redefinir o estado, propriedades e conteúdo de um mundo imaginário do jogo. 2) O poder de definir o mundo do jogo é alocado aos participantes do jogo. Os participantes reconhecem a existência dessa hierarquia de poder. 3) Os participantes do jogo definem o mundo do jogo através construção de personagens personificados, de acordo com o estado, propriedades e conteúdo do mundo do jogo. 130 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Dependendo da plataforma e metodologia usada, os possíveis papeis dos participantes incluem jogador, mestre do jogo, ator, músico ao vivo, administrador do sistema, etc. O papel do jogador é um caso especial entre esses, já que a presença de um participante no papel de jogador é requerimento lógico para um "jogo". RPG, como definido neste artigo, não é possível sem alguns dos jogadores personificando personagens. Esta distinção é feita de maneira a separar o RPG das várias formas colaborativas de contagem de história. As regras 1, 2, e 3 também definem o RPG: Todos os jogos conduzidos de acordo com elas são RPGs, enquanto todos os jogos não baseado nelas não são. Assim, pode se dizer que RPG é um jogo de faz de conta formal. Dessa forma, o mundo do jogo é fluido e passa por um constante processo de redefinição, as redefinições estão restritas pelo estado atual desse mundo. Assim, o processo de constante iteração não permite mudanças aleatórias ou completamente arbitrárias (veja também Kellomäki 2004). Essa natureza iterativa é necessária para as experiências lúdicas, semelhante aos jogos, e criadas no RPG, já que ela muda o foco de criar uma ficção externamente para atuar dentro dela. A ficção existente provê as restrições e oportunidades fazendo a experiência ter um sentido como jogo. O mestre do jogo e os personagens são estruturas usadas para estabelecer os limites do poder de definição do jogo. Como as restrições das regras dão sentido ao jogo ordinário, no RPG as restrições do poder definido dão sentido para a ação dentro do mundo do jogo. Essas restrições também diferenciam RPG de brincadeiras de faz de conta. Eu também apresento quatro regras adicionais e opcionais que frequentemente complementam as três primeiras regras. Estas não são critérios que definem o RPG, mas elas são usadas tão comumente que seu valor garante sua inclusão aqui. As possibilidades de regras adicionais são infinitas, mas essas são provavelmente as mais típicas e descritivas delas. * i) Normalmente o poder para definir as decisões feitas por um personagem com livre arbítrio é dada ao próprio jogador do personagem. * ii) O poder de decisão de definição que não é restrito pela construção do personagem é frequentemente dado para as pessoas que estão no papel de mestre do jogo. 131 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 * iii) O processo de definição é governado frequentemente por um conjunto de regras quantitativo. * iv) A informação relativa ao estado do mundo do jogo é frequentemente disseminada hierarquicamente, numa maneira correspondente à estrutura de poder do jogo. Há infinitas maneiras de dividir o poder de definição nos jogos de RPGs. As maneiras de fazer a divisão podem ser desde um mestre de jogo ditatorial e onipotente, à um sistema totalmente coletivo, sem nenhuma autoridade suprema (ver Svanevik 2005). Essas divisões são mudadas algumas vezes durante o jogo. Por exemplo, o papel de mestre do jogo pode mudar de um participante para outro, ou um certo participante pode receber o poder de definição para certas áreas ou acontecimentos no jogo. Os jogadores participantes também recebem, comumente, mais poderes do que os declarados na terceira regra. Adicionalmente, essas três regras endógenas (baseadas em Loponen & Montola 2004, Montola 2003) diferenciam certas formas de RPG uma das outras: m1) No RPG de mesa o mundo do jogo é definido predominantemente por comunicação verbal. l1) No larp, o jogo é sobreposto num mundo físico, o qual é usado como base para definição do mundo do jogo. v1) No RPG virtual, o jogo é sobreposto numa realidade virtual computacional, a qual é usado como base para a definição do mundo do jogo. Por essa definição, jogos de RPG conduzidos em salas de bate papo na internet, como por exemplo RPG no IRC, normalmente não é RPG virtual, mas uma forma mais próxima ao RPG de mesa. Se a conversa é parte do um larp encenado no mundo físico, a conversa é parte do larping, e se ela é parte de um mundo virtual, então é parte do RPG virtual. O RPG virtual requer uma representação virtual computadorizada da realidade (tipicamente textual ou gráfica). Deve ser notado que por conta disso, todos os jogos de RPG virtuais são governados por um conjunto de regras quantitativo (iii) em alguma extensão, já que todos os mundos virtuais são sistemas de regras matemáticos. 132 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Enquanto as regras 1, 2 e 3 definem o RPG, as regras i-iv proveem descrições aditivas típicas para as três primeiras regras. No entanto, as últimas regras não são poderosas suficientes para definir o RPG. As regras m1, l1 e v1 podem ser combinadas com as regras 1, 2 e 3 para se definir certas subformas de RPG, então elas também são definitivas em sua natureza. Apesar de as regras do jogo serem vistas comumente como matemáticas, lógicas ou algorítmicas, as estruturas de um jogo podem ser na verdade classificadas em estruturas quantitativas e qualitativas, dependendo se podem ser reduzidas à números ou não. Em esportes que aspiram por um valor estético — como no salto de esqui e patinação artística — as atividades qualitativas são quantificadas por um quadro de júri, as quais transformam as partes qualitativas do desempenho em pontos. As regras de RPG (1, 2, 3) são obviamente qualitativas e não algorítmicas, E, neste sentido, o RPG difere-se da maioria dos jogos. Algumas vezes, especialmente em RPGs de mesa, o mestre atua como entidade quantificadora, avaliando as ações dos personagens e determinando os dados que os jogadores devem rolar para determinar o sucesso das ações dos seus personagens. Discussões de personagem e ações não competitivas normalmente são lidadas dentro do sistema qualitativo, enquanto todas as ações de combate são frequentemente bem qualitativas, especialmente dentro das culturas de RPG de mesa fortemente orientado a regras. O RPG não precisa da parte quantitativa para funcionar, mas realizar ações qualitativas é necessário para o processo de definição do mundo do jogo. Salen e Zimmerman (2004) diferenciam as regras do jogo em três categorias: regras operacionais, regras constitutivas e regras implícitas. As regras operacionais dizem aos jogadores como o jogo supostamente deve ser jogado, enquanto as regras constitutivas definem o sistema lógico e matemático por detrás das regras operacionais. As regras implícitas são as regras sociais não escritas que governam o jogo. Assim como a jogabilidade social é importante para o processo do Pôquer, as regras do RPG trazem um problema para o sistema de classificação de Salen e Zimmerman, sendo constitutivo mas qualitativo, e implícito mas ainda operacional de alguma forma [^ref5]. Usando a divisão de Björk e Holopainen (2003) acima, o conjunto de 133 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 regras usado como base para o RPG são regras endógenas, assim como são essas regras do processo de RPG. 3. RPG e Objetivos Uma estrutura de camadas similar a das regras existe também para os objetivos [^ref6]. Entretanto, o RPG tipicamente não possui nenhum objetivo endógeno inerente à ele. As regras do RPG somente proveem a estrutura para a atividade, mas não fornecem finalidade ou meta. As regras dos RPGs de mesa clássicos ou mundos virtuais, às vezes, implicam em oferecer algumas ocupações para os jogadores seguirem, normalmente envolvendo sobrevivência ou desenvolvimento do poder do personagem. Essas são raramente verdadeiros objetivos endógenos também: como ninguém pode vencer ou perder num RPG, a ênfase da ação não está nem mesmo focado no sistema do jogo. Os objetivos mais centrais que proveem contentamento com o RPG são definidos e aceitos dentro do sistema diegético, pelos jogadores definindo o mundo e seus personagens. Essa distinção é uma das questões chaves na discussão sobre jogos de RPG serem considerados como jogos ou não. "Eu quero me divertir nesse jogo" — exógeno. "Eu quero explorar refugiados políticos Noruegueses neste jogo" — exógeno "Eu quero tornar-me o mago mais poderoso no reino" — diegético "Eu quero interpretar o homem caindo tragicamente na sua procura em se tornar o mago mais poderoso do reino." – exógeno. A contradição dos objetivos dos diferentes sistemas é um elemento comum gratificante no RPG. Assim como um espectador aprecia a experiência de um teatro de Tragédia trazida à ele pelos atores no palco, um jogador de RPG aprecia criar uma por ele mesmo. Os objetivos endógenos explícitos num sistema escrito somente tornamse uma parte importante do processo de RPG se os jogadores os interpretam no mundo como objetivos diegéticos. Os jogos de RPG mais tradicionais deixam intencionalmente os objetivos endógenos indefinidos ou vagos, e 134 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 mesmo quando eles são explicitados claramente, eles são normalmente ignorados inteiramente pelos grupos de jogadores. Em alguns jogos de RPG há objetivos endógenos explícitos que são críticos para o jogo como um todo. Exemplos incluem muitos jogos ao estilo de "Forge" como My Life with Master (Czege 2003) e larps estilos Circle of Death (Tan 2001), como por exemplo, Killer (Jackson 1981). Enquanto My Life with Master é feito para seguir um certo arco na história praticamente toda vez que é jogado, terminando na morte do mestre pelas mãos dos seus servos favoritos, Killer é um jogo de assassinato onde os jogadores realmente tentam ganhar o jogo [^ref7]. My Life with Master e Killer apresentam objetivos endógenos tais como os seguintes: "Quando o amor de um servo favorito pelos aldeões cresce e torna-se forte suficiente, assassinar o seu mestre torna-se seu objetivo" — endógeno. "O jogador cuja personagem matar mais inimigos é o vencedor" — endógeno. Como eu havia discutido anteriormente (Montola 2005), os objetivos endógenos dominam o design da cultura dos RPGs online contemporâneos. Os jogadores, às vezes, traduzem os objetivos endógenos em objetivos diegéticos. O seguinte exemplo é (da versão original) de Star Wars Galaxies: "Ao completar as tarefas e colecionar pontos de experiência suficientes, o personagem se torna um jedi" — endógeno. O valor dos objetivos endógenos derivam dos objetivos exógenos dos jogadores. Se a meta de um jogador é ter uma boa experiência de RPG, tal objetivo endógeno só é valioso se ele pode transformá-lo num objetivo diegético também. Caso contrário, ele pode ser simplesmente ignorado. Os objetivos em nível social variam imensamente de uma cultura dos jogadores para outra. Às vezes, a dissonância explícita do social e dos objetivos diegéticos é uma fonte de entretenimento, enquanto frequentemente o sucesso diegético do personagem é atrelado com o sucesso do que o grupo social busca. Como o RPG não toma lugar no domínio da vida normal, experiências trágicas podem ser altamente prazerosas. Os objetivos exógenos não se restringem ao entretenimento — a alegação normativa sobre diversão6 ser o único propósito de role-play (ex: Laws 2002, Duguid 1995) é simplesmente errônea. Numa abordagem mais 135 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 construtiva, Mäkelä & al (2005) propõe uma lista de seis gratificações que permitiriam um estudo mais aprofundado: entretenimento, aprendizado, sentido, apreciação estética e benefícios físicos e sociais. 4. O Enganoso mundo do jogo Ryan (2001, p. 91) resume o conceito de mundo com quatro características, definindo-o como um conjunto conectado de objetos e indivíduos, um ambiente habitável, uma totalidade razoavelmente inteligível para os observadores externos e um campo de atividade para seus membros. No role-playing a construção mundo pode ser vista como um processo textual[^ref9], onde os diferentes atores produzem elementos que estão combinados no processo em novos textos (Aarseth 1997 Kellomäki, 2004). A discussão anterior sobre o mundo do jogo de RPG, o discutiu tanto com uma ênfase coletiva (Hakkarainen & Stenros 2002 Pohjola 1999, Hélio de 2004) quanto subjetiva (Montola 2003, Andreasen 2003 Loponen & Montola 2004). Neste artigo, eu chamo a estrutura coletiva um "mundo de jogo", como é um termo ludologicamente adequado para descrever a arena onde o jogo é jogado, enquanto a estrutura subjetiva é "diegese", uma visão subjetiva criada pela interpretação colocada por outros participantes e meio ambientes, complementada pelas próprias adições criativas dos participantes. [^ref9] Percepções do jogador no mundo do jogo são construídas na interação textual interpessoal. Como Ryan (2001) explica, a base cultural e a imaginação são usadas na construção de um mundo baseado em dados textuais. "A ideia de mundo textual pressupõe que o leitor constrói na imaginação um conjunto de objetos independentes da linguagem, utilizando-o como um guia para as declarações textuais, mas construir esta sempre incompleta imagem em uma representação mais viva através da importação das informações fornecidas pelos conhecimentos culturais internalizados, incluindo o conhecimento derivado de outros textos. " Como já discuti anteriormente (Montola 2003 Loponen & Montola 2004) os problemas inerentes à comunicação significam que cada jogador tem uma leitura diferente do mundo do jogo fornecida por outros jogadores. Além da 136 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 leitura do mundo do jogo, cada jogador complementa sua percepção do mundo do jogo com ideias e sentimentos internos nunca expressos. Esse elemento combinado com a leitura constitui a diegese subjetiva do participante, que é o resultado final criado pelo jogador no processo de jogo: A diegese subjetiva é tanto o produto primário criado no role-play quanto o objeto transitório de valor estético[^ref10]. Nenhum participante do processo pode sempre entender o mundo do jogo completamente, pois partes dele são inacessíveis - criadas por outros jogadores, mas nunca expressas em voz alta. O processo interativo[^ref11] de arbitragem produzindo a diegese e o mundo do jogo é geralmente baseado em negociação e cooperação, em vez de luta ou competição.6 Normalmente, esse processo de arbitragem está implícito, mas a negociação explícita é usada para reconciliar as diferenças radicais na diegese do jogador. Talvez contra intuitivamente, a natureza imaginária e arbitrária do mundo do jogo é a força guia dos jogadores para cooperar na construção da diegese. Embora o conflito muitas vezes é simulado no quadro do jogo, ele se origina a partir do quadro diegético. O mestre do jogo[^ref12] e a mecânica de jogo são os dois métodos centrais criados especificamente para evitar a luta no nível da forma, a fim de mantê-lo no nível de conteúdo do jogo. Normalmente, o conflito começa a partir do mundo do jogo, potencialmente escalando para o quadro do jogo e, ocasionalmente, até mesmo para o quadro social. Isso acontece se os jogadores primeiro precisam de regras para resolver o conflito entre os personagens, e, em seguida, se os jogadores começam a discutir além das regras conforme o conflito se agrava. Se a construção do mundo do jogo é encarado como um sistema de comunicação, isso pode ser visto como um ciclo de interpretações de três atividades básicas: 1 Interpretando por fora da diegese subjetiva. 2 Fazendo mudanças na diegese 3 Comunicando as mudanças aos outros participantes Esse ciclo das três atividades é um modelo teórico; na prática, todas essas funções são realizadas simultaneamente. No LARP, por exemplo, o jogador andando em uma rua muda constantemente a diegese (por ela mesma em movimento), ao obter uma nova entrada (vê coisas novas) e comunicar a 137 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 mudança para outros jogadores (que veem seu movimento). No RPG de mesa esse modelo de tomada de decisão aparece mais claramente, elaborando o ciclo contínuo de reinterpretação iterativa do mundo no circuito de comunicação do jogo. Para manter-se o ciclo de interpretação os jogadores devem estar aptos a compreender o mundo que estão definindo e redefinindo. Eles têm de entender as leis diegéticas da natureza e do estado do mundo diegético, a fim de manter a lógica do mundo do jogo, construindo seu futuro com base em suas propriedades, estado e história. Para que o mundo do jogo funcione como um lugar ou um espaço, o mundo não precisa ser "realista", mas sensível; as leis da natureza podem ser muito diferentes das nossas. [^ref13] Na classificação de Juul (2003, p. 117) de mundos de jogos, isso significa que o mundo do jogo tem de ser coerente - o que significa que não deve haver nada que impeça uma pessoa de imaginar o mundo em detalhes. Só jogos extremamente experimentais podem ser feitos em mundos abstratos, icônicos ou incoerentes. É difícil ou mesmo impossível de atuar em mundos como os retratados em Super Mario Bros ou xadrez. [^ref14] Seria uma simplificação dizer que o uso de um artefato (tal como um espaço virtual ou realidade física) na base do mundo do jogo restringiria a utilização da imaginação do jogador, embora o artefato proporcione fortes definições iniciais para diversos elementos diegéticos. No entanto, como eu argumentei que o RPG é um processo de interação social que ocorre em um mundo de jogo imaginário, deve-se ressaltar que no processo de RPG elementos explícitos no artefato são muitas vezes redefinidos quando eles são interpretados em diegeses dos jogadores. Como Ryan (2001) colocou, as crianças brincando de faz de conta selecionaram um objeto real x₁ e concordam que representa um objeto virtual x₂. Uma ação é legal quando o comportamento que isso implica é apropriado para a classe de objetos representados por x₂. Uma ação legal gera uma verdade ficcional. Essa redefinição acontece em um processo de arbitragem regida pelas possíveis regras e instruções do jogo, e é baseada nas divisões que definem o poder usado no jogo. Em LARP, o jogador não precisa voar fisicamente para que o seu personagem o faça. Em comparação, nem precisa do avatar virtual 138 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 para voar no mundo virtual para que o personagem interpretado representado pelo avatar faça isso. Essas práticas de redefinição também são culturais. Muitas comunidades de RPG em mundos virtuais habitualmente fingem utilizar e manusear objetos relacionados à trama e faz-de-conta, que não podem ser representados como artefatos virtuais por arquiteturas de jogo limitados (Montola, 2005). Alguns LARPers preferem ter conexão direta entre a realidade física e diegética o quanto possível, enquanto outros não têm problemas em tratar espadas de látex como espadas de metal. (Veja Loponen & Montola 2004 para uma análise semiótica). Alegando que os mundos de RPG tem de ser coerentes não quer dizer que o mundo do jogo de role-playing precisa ser completo - na verdade, como mundos ficcionais são sempre incompletos, uma vez que não é possível definir todas as peças de informações imagináveis em um mundo coerente (Juul 2003, p. 111). Distinção é certamente teórica especialmente em relação LARPs, desde que o mundo físico é sempre infinitamente detalhado de qualquer maneira. McCloud (1993) discute o modo como as imagens sequenciais de quadrinhos são entendidas pelo processo de encerramento. Enquanto uma revista em quadrinhos é composta de imagens imóveis e justapostas, o leitor preenche os elementos que faltam no processo de leitura, criando as impressões de tempo e movimento, também preenchendo de elementos não mostrados nas imagens. Um sorriso está contido em uma cara sorridente na mesma forma que um espectador que assiste a um filme fecha a porta da sala em que os personagens estão discutindo. A imagem do filme não está fechada com as impressões dos cinegrafistas e equipamentos do estúdio, mas com paredes e paisagens extrapoladas a partir dos exibidos na tela. [^ref15] Mesmo sem qualquer evidência visual, um expectador usa sua experiência anterior para assumir que o âncora de um telejornal tem duas pernas, mesmo que elas não são mostradas na tela. No role-play, um processo de fechamento semiconsciente é fundamental, pois os jogadores estão constantemente lidando com uma representação incompleta do mundo do jogo. Na primeira fase do ciclo de 139 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 interpretação, os jogadores fazem suposições sobre o mundo, extrapolando e interpolando suas diegeses baseados no discurso do jogo explícito. A exigência de um mundo coerente pode ser vista na definição de roleplay por Björk e Holopainen (2005): "Os jogadores têm personagens com personalidades pelo menos um pouco desenvolvidas. A peça é centrada na tomada de decisões sobre como esses personagens tomariam medidas em situações imaginárias encenadas." [^ref16] Salvos os fechamentos muito significativos que são feitos pelos jogadores, o mundo do xadrez é muito incompleto para permitir que os jogadores façam ações significativas ou tomem decisões sensatas. Para a maioria dos jogadores, o mundo do xadrez é abstrato demais para sequer permitir fechamentos lógicos: Mesmo que nós sabemos que há bispos e reis, é difícil saber se os sacerdotes e príncipes existem também. Devido à sua natureza, que é baseado em arbitragem, imaginação e encerramento, os mundos de jogos de RPG podem ser muito livres e completos em relação a mundos criados em outros jogos ou em mídia estática. Cada elemento imaginável pode ser descrito por qualquer detalhe. Em um filme a quantidade de informações disponíveis sobre o mundo diegético é muito limitado em comparação. As possibilidades de os jogadores afetarem qualquer um dos recursos do mundo do jogo dos jogadores não é restringido por limitações artificiais, como o escopo do conjunto de regras ou a programação do espaço virtual, mas todas estas limitações são puramente diegéticas. Na regra iii propus que o processo de definição do mundo de jogo é muitas vezes governado por conjunto de regras quantitativas. Enquanto uma função do conjunto de regras é permitir que os jogadores a seguir alguns interesses no quadro do jogo, também é um método valioso de proporcionar aos participantes uma estrutura lógica para redefinição do mundo do jogo. Juul (2003) afirma que, enquanto as regras não são dependentes da ficção do jogo, a ficção é dependente das regras. Entre outros métodos, conjuntos de regras e convenções de gênero e estilo são frequentemente usados para fornecer estruturas tangíveis para simular a lógica alternativa do mundo do jogo (ver Montola 2003 Stenros 2004, Kim 2006). 140 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 5. Estruturas de poder 141 No alcance contínuo de Caillois "(1958, p. 13) que vai desde o jogo formal (ludus) para o jogo livre (paidos8), roleplaying reside em algum lugar no meio termo. Faz de conta espontâneo com pouco de moderação do mestre do jogo é altamente paidéico, enquanto os sistemas de regras complicadas permitem jogos ludus meticulosamente formais também. Esta é uma razão pela qual discutir RPG, às vezes, é difícil: Existem muitos estilos diferentes. Assim como as regras e estruturas de objetivos, as estruturas de poder de role-plays podem ser analisadas usando a divisão ampla para quadros exógenos, endógenos e diegéticos. Poder exógeno é o poder do participante para influenciar o jogo de fora do jogo; o mais importante, o poder exógeno não está definido dentro do sistema de jogo. Poder endógeno é o poder dado ao jogador pelas várias regras do jogo. Como todas as regras e objetivos endógenos e diegéticos estão subordinados a regras e objetivos exógenos, o poder endógeno e diegético é subordinado ao poder exógeno. A voluntariedade e obstinação dos participantes são necessárias para criar o círculo mágico do jogo (Huizinga 1938, Salen e Zimmerman 2003) onde existem as estruturas endógenas e diegéticas. Muitas vezes, a estrutura do poder para influenciar na diegese fica muito implícita e com base em convenções culturais. Iniciantes em role-plays, muitas vezes, não estão mesmo cientes do fato de que a estrutura de poder pode ser feita propositalmente diferente, tendo frequentemente derivada sua compreensão dessas convenções do discurso implícito de conjuntos de regras de RPG e comunidades de larp locais. Uma razão para isso é que a descrição do sistema de energia em detalhes é uma tarefa meticulosa, como tem sido demonstrado pelas tentativas de criar campanhas de RPG globais, onde os personagens podiam ser movidos sem problemas a partir do domínio de um mestre do jogo para outro. [^ref17] Esses exemplos ilustram as atividades exógenas, endógenas e diegéticas que podem exercer poder sobre a diegese: Propor uma alteração às regras do jogo - exógena. Mostrando aos outros jogadores um filme que influencie suas percepções do mundo do jogo - exógenos. Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Mover uma rainha dois quadrados na diagonal sobre o tabuleiro de jogo - endógena. Tomar uma ação de combate para atacar um inimigo com uma espada - endógena Atacar uma pessoa com uma espada - diegético Um personagem coronel emitindo uma ordem militar para suas tropas - diegético. Deve notar-se que a mesma ação pode ser uma exibição de poder diegético e endógena, dependendo de como ele é realizado no jogo. No quarto exemplo acima o poder de atacar um inimigo com uma espada é derivado das regras explícitas do sistema de jogo, enquanto o quinto exemplo é derivado dos fatos diegéticos que o personagem tem uma espada na mão e o alvo está dentro do alcance dele. Mesmo o último caso é, então, talvez resolvido no nível endógeno, mas a diferença tem relevância quando tentamos analisar os fatos que capacitam o participante a propor uma mudança na diegese. Ambos (os mestres do jogo e os jogadores) podem usar poder exógeno, endógeno e diegético para redefinir o mundo do jogo. Ambos interpretam personagens do mundo, ambos frequentemente têm privilégios sobre a diegese e ambos podem mudar o entendimento dos outros do mundo do jogo com os métodos extra lúdicos também. Endogenamente poderes concedidos podem ser classificados em dois grupos, poder concedido pelo sistema de regras do jogo e poder concedido pelas regras do processo de role-play. Um exemplo de comparação: Tomando uma ação de combate para atacar um inimigo com uma espada para d10 pontos de dano - endógena. Mestre do jogo declarando que começa a chover - endógena. Às vezes, o uso de energia nas três camadas é contraditório. O LARP dispõe de uma pobre esportividade por ser fisicamente mais rápido que outro personagem que deveria ser mais ágil no jogo e na diegese. No RPG de mesa o mesmo conflito é exibido se um jogador com personagem de baixa pontuação de inteligência engana outro jogador. As regras endógenas de um cassino de Pôquer são capazes de lidar com a situação em que um jogador sai da sala/mesa no meio do jogo (como ela é considerada ter uma pausa ou 142 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 desistido da mão), mas se ela trai, marcando os cartões, o jogo encontra uma crise que não é capaz de resolver dentro de seu próprio sistema formal. [^ref18] Os jogadores de RPG muitas vezes implicitamente concordam em dar ao mestre do jogo autoridade social e exógena de conciliar muitas crises potenciais (Brenne 2005, Fine 1983). A divisão reconhecida de poder para definir o mundo do jogo é um elemento-chave para dar o toque de jogo de role-play. Juul (2003) aponta que as regras não apenas restringem as opções que os jogadores têm em jogo, mas também dão um sentido às ações realizadas dentro dela. O mesmo se aplica às limitações da definição do poder: pode-se dizer que os limites das opções do jogador - se eles tomam a forma de conjunto de regras ou de maior autoridade do jogo - fazem as escolhas do jogador significativas. No RPG de mesa a divisão de poder entre os participantes raramente é exata. Normalmente os jogadores são mais restritos ao uso do poder diegético de seus personagens e um repertório limitado, explicitamente definido de opções endógenas -mas o alcance dessa restrição é ambíguo. Às vezes, os jogadores também estão autorizados a definir os familiares, amigos e propriedades de seus personagens, enquanto uma rigorosa cultura de jogos pode restringir seu poder de definição às decisões conscientes feitas por seus personagens (ver Boss 2006 e Kellomäki 2004). Até mesmo o poder de definir as atividades mentais dos personagens, às vezes, é limitada por regras discutindo as forças diegéticas como o medo ou telepatia. Uma divisão de poder endógeno muito típica concede ao jogador a autoridade final sobre os sentimentos de sua personagem e pensamentos, autoridade dependente de regras sobre os atributos quantitativos da personagem, e poder limitado para definir elementos estilísticos relativamente inconsequentes relacionados aos objetos físicos no mundo do jogo. Todos esses poderes são endógenos, já que eles são definidos no nível endógeno, explícita ou (geralmente) de forma implícita. Por outro lado, em RPGs online a interface do jogo normalmente dá ao jogador apenas o poder de mover o seu avatar e participar de ações como conversas, brigas, negociações e criações/elaborações (de objetos). No entanto, as comunidades de jogadores de role-play muitas vezes concedem 143 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 aos seus participantes poderes diegéticos -definidos avançados, como criar objetos não existentes no banco de dados do jogo. Como a diegese é um mundo imaginário construído no processo de arbitragem coletiva, o seu conteúdo pode estar em contradição explícita com o ambiente virtual ou real usado como base na sua construção. Isso significa que todos os elementos diegéticos não precisam ser representados com artefatos virtuais. Assim como um vampiro larp pode controlar sombras ou ficar invisível, o jogador de RPG virtual lida com itens inexistentes e ações intangíveis. Uma briga de bar ou uma cena de sexo podem ser encenadas com emoticons, deixando ontologicamente claro se alguma coisa realmente aconteceu na realidade virtual. Ou, uma personagem pode agir como se ela tivesse um cartão de identificação que nem existe dentro da arquitetura do jogo. (Montola 2005.) Definir e restringir o poder do jogador é uma característica onipresente[^ref19] no campo de jogos, mas não nas áreas de artes narrativas e performativas. No capítulo sobre regras e objetivos eu incluí a exigência de que, em RPG o jogador-participante do jogo define o mundo do jogo através de construções de personagens personificados, em conformidade com o estado, propriedades e conteúdo do mundo do jogo. Esta terceira regra é fundamental, uma vez que liberando o personagem personificada, constrói-se turnos de atividade no campo dos jogos regulares, e liberando as restrições na definição de poder mudaria a atividade para contagem colaborativa de história. 6. Poder e informação Como RPGs são vistos como construções de comunicação, a informação é o elemento básico do mundo imaginário do jogo. É trivial que um jogador não pode incorporar um elemento de jogo em sua diegese, se ele não tem conhecimento de sua existência. Como mencionado acima (em Loponen & Montola 2004 e Montola 2003), nenhum participante de um RPG pode ter acesso a todas as informações presentes no jogo. [^ref20] A divisão em três camadas de poder aborda o uso de poder com base em quadros sociais, o que é conscientemente feito na segunda fase do ciclo de 144 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 interpretação. Há ainda uma forma muito significativa do uso de poder no jogo: o encerramento. Como discutido acima, o encerramento do processo semiconsciente de adicionar detalhes a interpretação. Eu chamo isso de processo semiconsciente, uma vez que geralmente fazem isso inconscientemente - quando interpretamos figuras palito como pessoas (McCloud, 1993) - mas também se pode tomar decisões criativas ao fazer encerramentos. Entrada externa pode ser interpretada em uma diegese de maneiras muito diferentes, na medida em que os mestres do jogo de RPG, muitas vezes explicam as expectativas de gênero e recomendações de estilo de jogo para os jogadores, a fim de gerenciar os processos de preenchimento. Fazer interpretações leves/calmas em um[^ref21] jogo de terror é um exemplo perfeito desse tipo de uso do poder - que é muitas vezes usado de forma passiva, mas pode ser usado voluntariamente também. O uso contínuo do poder interpretativo ocasionalmente leva a um conflito, que ocorre quando os participantes descobrem que seus entendimentos sobre o mundo do jogo se contradizem. [^ref22] Nesses casos, é necessário uma negociação explícita conciliando as diferenças nas diegeses, geralmente levando a redefinições do passado e do presente diegético. (Veja Loponen & Montola 2004.) É claro que todas as diferenças de interpretação não forçam o jogo a ser interrompido, embora, às vezes, interrompem o gameplay seriamente. Como um exemplo desses problemas ocorrem geralmente quando os participantes do jogo não compartilham um nível comum de conhecimento histórico que seria necessário para jogar em um cenário histórico articular. O papel do processo de encerramento é especialmente crítico na mesa de RPG tradicional, onde os jogadores têm muita margem de manobra na interpretação dos sinais verbais sobre o estado e as propriedades do mundo do jogo. No entanto, este processo é constantemente significativo em todas as formas de RPG. Baseando o jogo no mundo real ou uma realidade virtual diminui a necessidade de inventar novos elementos de jogo. Ainda assim, mesmo elementos, tais como reações de personagens e acontecimentos sociais são criados em um processo de encerramento. Usar um mundo real (L1) ou (v1) virtual como a base da diegese restringe as escolhas do jogador poderosamente: para fazer espontaneamente 145 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 um "café"9 uma pessoa requer desconsiderar os artefatos físicos ou virtuais por processo de arbitragem (como discutido acima). No entanto, os elementos que não estão atualmente presentes - como a história diegética ou lugares distantes - são comumente improvisados e feitos durante o jogo. Muitas vezes esses tipos de elementos são definidos ou pelo menos aprovados pelo mestre do jogo, antes do jogo, mas durante o jogo, o jogador pode precisar de informações adicionais. Nesses casos, os jogadores muitas vezes definem (e redefinem) o mundo do jogo, inventando elementos diegéticos de uma forma muito semelhante ao jogo de mesa. Enquanto o processo de encerramento é uma estrutura democrática[^ref23] no sentido de que ele força a todos os participantes do jogo a uma arbitragem mútua da verdade diegética, a gestão da informação também é comumente empregada como uma ferramenta de alocação de poder. A distribuição de informação é apresentada na quarta regra opcional, uma vez que uma onipresença variável, que é implementada de forma muito diferente em diferentes jogos e culturas de role-play. Em um extremo da escala, é o estilo em que os jogadores são permitidos somente o conhecimento que seus personagens têm (ver Pettersson 2005), enquanto no outro extremo da escala, o mestre do jogo faz tudo praticamente possível para dotar os participantes de todas as informações possíveis (ver Fatland & Wingård 1999). Mesmo nos estilos de RPG onde o fluxo de informação é livre entre os jogadores, os personagens são apenas esperados para usar as informações que adquiriram diegeticamente. A distribuição da informação é uma estrutura que influencia consideravelmente o uso de energia por diferentes participantes no jogo. Especialmente no RPG de mesa de o mestre do jogo muitas vezes permite o privilégio de acessar todas as informações do jogo disponíveis. Isso não significa que o mestre do jogo é onisciente em relação ao estado do mundo do jogo, mas ele pode possuir o direito de até mesmo pedir aos jogadores para fornecer informações ocultas sobre as emoções de seus personagens, planos e raciocínios. Muito do poder social do mestre jogo nas arbitragens sobre o estado do mundo do jogo é derivado desse acesso à informação. À medida que os participantes tendem a agir da forma que mantém os diegeses semelhantes e a 146 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 ilusão de um mundo de jogo coletivo intacto, a informação é um requisito importante para o processo de definição. Se um jogador não pode ter a certeza sobre se alguém já tiver um elemento definido do mundo do jogo, definir corre o risco de uma contradição. Esta estrutura também é problemática em LARPs, onde os jogadores muitas vezes precisam fazer as coisas de modo a complementar as histórias ficcionais de seus personagens durante o jogo. 7. O personagem personificado Parece que a exigência de personagem é o menor denominador comum de várias definições de role-playing (por exemplo, Björk e Holopainen de 2005, Pohjola 2004, Mackay 2001 Fatland & Wingård 1999, Fine 1983); só Hakkarainen e Stenros (2002) deixam fora do núcleo de sua definição - e mesmo eles dependam pesadamente nas seções explicativas do seu modelo. No entanto, o termo tem muitos significados diferentes, por isso muitas vezes não é claro o que os autores querem significar realmente com ele. Um "personagem" pode indicar um grupo de atributos quantitativos dentro do conjunto de regras formal, uma representação do jogador no mundo do jogo ou uma pessoa fictícia no mundo do jogo. O primeiro significado é derivado da história jogos de guerra de RPG, onde os personagens heróis lutaram batalhas junto dos soldados de baixa patente e com personagens heroicos. Alegadamente a primeira versão de Dungeons & Dragons foi um jogo sobre como esses heróis se tornaram heróis, em primeiro lugar (Pettersson, 2005). O segundo, visão representacional é comum ao pensamento do mundo virtual, onde o personagem é usado às vezes como sinônimo de "avatar". Normalmente, o avatar não é percebido como tendo uma personalidade distinta da sua própria, mas é visto como uma extensão do jogador, o corpo do jogador dentro do mundo do jogo. Às vezes, o avatar é visto para incluir apenas os aspectos visuais e físicos do personagem, mas, ocasionalmente, a mecânica de jogo está ligada a isso também. Os significados acima não são essenciais para este trabalho; o primeiro deles deve ser refutado por esta discussão, porque eu anteriormente declarei 147 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 que a regra iii é opcional, e o último porque as construções de personagens especificamente personificados são fundamentais para a interpretação. Isto nos deixa com a palavra "personagem" que significa uma pessoa diegética; uma combinação de propriedades físicas, sociais e mentais, como por exemplo Lankoski (2004) discutiu (com base em Egri (1965)). Vejo o personagem como identidade diegético do jogador, ao longo das linhas traçadas por Hakkarainen e Stenros (2002). Sua definição baseia-se na teoria pós-moderna de identidade[^ref24], vendo o personagem como um conjunto de papéis ligados por ficção. Um papel[^ref25] é "qualquer posição do assunto dentro de um discurso conjunto, um fechamento artificial articulando o jogador dentro do quadro diegético do jogo ou em uma situação da vida real". O personagem é "um quadro de papéis por meio do qual o jogador interage dentro do jogo, e para o qual ele constrói a ilusão de uma identidade contínua e fixa, uma fictícia "história de si mesmo" ligando os desconectados, separados papéis, juntos." Na visão pós-moderna de Hakkarainen e Stenros, o personagem interpretado em funções é tanto fictício e não fictício quanto "identidade normal" do jogador. A única diferença do personagem para a pessoa é construída unicamente pelo fato de que um é construído dentro de um quadro de jogo, enquanto o outro não. Como Hakkarainen e Stenros rejeitam a ideia de identidade estável, abrangendo apenas as funções de mudança ligadas por ficção pessoal, eles concluem que as ações realizadas pelo personagem são ações executadas pelo próprio jogador, agindo no modo "ficção". A consequência lógica de endossar o pós-modernismo seria que, assim como personagem não é um personagem em relação a "verdadeira identidade", jogo também não é mais um jogo em comparação com não-jogo. Embora esse relativismo pode - e deve - ser questionada, uma interpretação um pouco mais moderna desse modelo de personagem é uma representação viável de como uma identidade diegética é construída. [^ref26] A identidade diegética aborda essencialmente o equivalente ao personagem com o jogador, com a alegação de que o jogador cria o personagem, fingindo ser outra pessoa. Daí Hakkarainen e Stenros refutarem a abordagem idealista de muitos idealistas imersionistas, [^ref27] que alegaram que o personagem é uma entidade separada e externa a ser adotada para a 148 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 duração do jogo. Para dizer que o personagem é o jogador também significa que todos os personagens apresentam o pensamento humano; mesmo quando o personagem é uma pedra, uma árvore ou um elfo antigo, é antropomorfizado para os efeitos do jogo. O homo sapiens não pode replicar a identidade ou o pensamento de um cão. Esta abordagem também refuta as afirmações de imersão completa ou perfeita no personagem, como a pretensão é a atividade autoconsciente pouco consciente de tanto a ficção fingida e a existência fora dela; tem-se argumentado que os jogadores essencialmente fingem acreditar que eles são os seus personagens (Pohjola 2004). Harviainen (2005) propôs um ponto de vista sobre o conceito de caráter que pode ser colocado entre o imersionista idealista e aquele apresentado por Hakkarainen & Stenros, escrevendo: "Um personagem de RPG é o senso de auto existência de seu jogador em um estado onde cada um é influenciado pelo outro. O personagem deriva novas informações do jogador e é, quando necessário, de forma espontânea expandido para novas direções por ele. Ao mesmo tempo, o jogador experimenta coisas novas com o personagem atuando como uma máscara que permite eventos normalmente impossíveis para o jogador e como um filtro através do qual o jogador experiencia apenas as partes dos eventos do jogo que julgar necessárias (ou apenas interessantes) "(Harviainen 2005). Em sua caracterização Harviainen mantém um pouco do idealismo imersionista, vendo que a máscara sociocultural que é um personagem fornece ao jogador com alguma agência genuína permitindo-lhe realizar ações ou acessar informações que não poderia ser feito sem ele. A abordagem de Harviainen não está em contradição com a visão pós-moderna sobre personagens de Hakkarainen e Stenros, exceto pelo fato de que ele é baseado no entendimento moderno de uma identidade. É importante compreender que uma identidade diegética e um personagem do filme são estruturas fundamentalmente diferentes. O personagem do filme é uma entidade externa interpretada pelo espectador, e, assim, ele pode ter propriedades que o observador não poderia ter-se inventado sozinho. A personagem do filme pode ter juízo mais rápido e vocabulário mais amplo do que o espectador tem. Jogadores de RPG precisam 149 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 usar sistemas de regras e estilos de jogos descritivos e distantes para retratar esses personagens. Ao invés de contar uma boa piada, um jogador de RPG de mesa só poderia descrever que sua personagem conta uma boa piada, e talvez até role um dado para justificar a bondade da piada no quadro jogo. Outra diferença é que enquanto os personagens de mídias são apresentados no contexto de um mundo de história, personagens de RPG são apresentados no contexto de um mundo de jogo. "Cachinhos Dourados" é definida pela sua aventura: É difícil imaginá-la em uma outra história. O contexto da narrativa fornece Cachinhos Dourados com suas qualidades típicas de Cachinhos Dourados. Para os jogadores de personagens de RPG, o mundo cheio de oportunidades e potencialidades é o contexto significativo e muito mais central do que a história. [^ref28] Somente em retrospectivas o contexto narrativo torna-se central. Quando os jogadores relembram as carreiras de seus personagens mais tarde, eles o fazem narrativizando as histórias jogadas. Na verdade, muitas vezes os mestres de jogo planejam intencionalmente a intriga[^ref29] de uma forma que é susceptível de produzir histórias atraentes (ver Hélio 2004). Assim como o conceito de identidade de um modo geral, o conceito de identidade diegéticas pode ser visto a partir de vários ângulos. As múltiplas faces da personagem têm funções diferentes no processo de role-play. Parecia com uma coleção de papéis ligados por ficção pessoal, o personagem age como um intermediário10 para o jogador, diferenciando o sucesso exógeno do jogador a partir do sucesso diegético do personagem (veja Montola 2005). Corpo físico não pode ser totalmente excluído desta ficção pessoal; muito opostamente, isso é uma base importante na construção da identidade. Mesmo que a história diegética de si pode ser uma tragédia, história exógena do jogador de si pode ser uma história de sucesso. Essa construção personificada serve como base de identificação dentro do jogo, permitindo a tomada de decisões diegéticas, que Björk e Holopainen (2005) caracterizam como o elemento essencial do role-play. Vendo o personagem como a presença do jogador no mundo do jogo implica que o personagem age como os olhos, ouvidos e mãos para o jogador no jogo: o personagem é o ponto focal da diegese do jogador e uma peça de jogo que ela usa para afetar seus arredores. 150 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Finalmente, o personagem é uma medida de energia do jogador sendo uma combinação de atributos físicos e mentais, história pessoal e as relações sociais. Definindo o personagem como um arquimago ou um chefe da máfia coloca limites muito claros de ações permitidas para o jogador e que tipo de consequências que possam ter. 8. Considerações A multiplicidade de culturas de roleplay faz suas definições e descrições muito problemática. As diferenças de, por exemplo, jogadores performativos, competitivos e imersionistas são vastas. A visão apresentada aqui é centrada na cena nórdica de RPGs de mesa e LARPs, mas o meu objetivo tem sido o de acomodar uma ampla gama de atividades de RPG. Quando RPG é discutido a partir do ângulo ludológico, é relevante para contemplar a posição de atividades de RPGs como jogos. Juul (2003) oferece seis requisitos para o que ele chama de um jogo clássico. São regras fixas: resultado variável; valorização do resultado; o esforço do jogador; apego do jogador aos resultados e negociabilidade das consequências extra lúdicas. Com base nesses critérios, Juul argumenta que "role-play de papel e caneta não são jogos normais, porque, com um mestre de jogo humano, suas regras não são fixas e fora de discussão." Na verdade, as três regras apresentadas aqui são muito abertas, e não fazem um bom jogo em seu próprio conjunto de regras. Como já demonstrado anteriormente (Montola 2005), roleplays não inerentemente exigem valorização de resultados de qualquer um. Com valorização Juul (2003, p. 34) quer dizer que aos resultados do jogo são atribuídos valores positivos e negativos de acordo com sua conveniência. Em role-plays a prioridade geralmente é a importância diegética de resultados diegéticos, enquanto a valorização dos resultados do quadro de jogo é altamente ambígua, dependendo de objetivos exógenos dos jogadores. Na verdade, a mentalidade de roleplays geralmente significa que as atividades realizadas no quadro do jogo estão longe de ser o ideal, o que está em contradição tanto com a valorização do jogador quanto ao apego ao resultado do jogo. 151 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 A coisa mais importante para compreender como abordagens ludológicas podem ser usadas com sucesso para promover a compreensão dos RPGs. A intenção deste artigo é esclarecer que, se RPG é um jogo, que tipo de jogo é, e se ele é olhado ludologicamente, quais cuidados devem ser aplicados. Agradecimentos Durante a escrita deste artigo, recebi uma infinidade de críticas valiosas, ideias e comentários de várias pessoas, tais como J. Tuomas Harviainen, Simo Järvelä, Petri Lankoski e Jaakko Stenros. O trabalho feito para este artigo foi financiado pelo Projeto Integrado em Gaming Pervasive, bem como a Fundação Cultural finlandesa. A versão do projeto foi apresentada no seminário Desempenhando Papéis (20 de março de 2006, Tampere). NOTAS [^note1]: Este artigo foi originalmente escrito em 2005 e atualizado em 2008. Meus outros 2 artigos (Montola 2007a, 2007b) já lhe referenciaram. [^note2]: RPG de mesa algumas vezes é chamado de RPG de caneta e papel (pen’ n’ paper). Live-action RPG (RPG ao vivo) é muitas vezes chamado de larping, e RPG virtual inclui RPGs em mundos virtuais persistentes, como MUDs e MMORPGs. [^note3]: Veja por exemplo Kaprow 1966 e Boal 2002 para fontes diretas, e Morton 2007 e Harviainen 2008 para abordagens de RPG. [^note4]: Mackay (2001) propôs uma versão com cinco camadas, dividindo o quadro diegético em 3 camadas dependendo do estilo de parole usado. Kellomäki (2004) tem um modelo similar ao do Mackay's, com quatro camadas de interação: social, jogo, narração e personagens. [^note5]: O tácito conhecimento de como jogar Pôquer não é comunicado nas regras escritas do jogo, mas os jogadores continuam expressando que a tática social é uma parte legítima e importante do jogo. [^note6]: Eu tenho discutido os objetivos dos RPGs mais profundamente em Montola (2005), e em particular, o contexto do RPG dentro dos mundos virtuais. 152 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 [^note7]: Há muitas curiosidades semelhantes entre Killer e My Life with Master, além do fato de Killer poder ser considerado um RPG extremamente jogável, enquanto My Life with Master é um jogo explicitamente narrativista (veja Kim 1998 para discussão sobre gamismo, narrativismo e simulacionismo) [^note8]: Apesar de Aarseth (1997) diferenciar cybertextos de hipertextos por requerendo os cybertextos em ter um elemento computacional na sua criação, ele ainda trata atividades de RPG como "cybertexto oral". [^note9]: O que eu chamo de mundo do jogo também tem sido chamado de espaço imaginário compartilhado — shared imaginary space (SIS). De acordo com Mäkelä & al. (2005) os espaços imaginados — imagined spaces (IS) dos participantes se sobrepõem para criar o espaço imaginário compartilhado. Por consequente, o seu espaço imaginário seria equivalente a minha diegese. A ideia de um espaço compartilhado imaginário contém um paradoxo, já que algo imaginário nunca poderia ser verdadeiramente compartilhado. [^note10]: Sandberg (2004) discute a ideia de uma "audiência em primeira pessoa", com a ideia que somente o jogador pode compreender propriamente e apreciar sua própria criação subjetiva. [^note11]: Meu uso do termo "interação" denota que A pode afetar a maneira que B afeta A de forma não predeterminada e não trivial, e vice versa. De fato, essa decisão exclui jogos de computador simples: Este artigo discute RPG como um processo social, requerendo dois participantes sencientes. [^note12]: O papel do mestre de jogo originou-se do papel de árbitro em jogos de guerra (wargames). Nesses jogos de guerra, a disputa era supostamente para acontecer entre os jogadores no nível do jogo, e não pessoas brigando sobre regras num nível social. A inclusão de um árbitro facilitaria esse processo. [^note13]: Um exemplo inovador de regras retratando o gênero do mundo diegético assim como suas leis da natureza é Amber: Diceless Role-Playing (Ambar: RPG sem dados). O autor Erick Wujcik (2004) enfatiza que o jogo não é sem dados devidos a algumas "razões teóricas obscuras", mas mostra o jeito dos livros Amber de Roger Zelazny."Nos livros originais, nada nunca acontece por acaso; todo momento que alguma coisa parece acontecer ao acaso, é revelado que alguém estava manipulando os eventos por de trás das cenas. Em Amber o tema deve ser o mesmo, portanto os dados não são necessários". 153 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Em muitos casos como esse, a física do mundo do jogo estão misturadas com elementos do gênero: ler as regras é impossível dizer como a mecânica da probabilidade funciona dentro do mundo de Amber. [^note14]: Xadrez pode ser usado com RPG em diversas formas. Por exemplo, os jogadores podem construir uma diegese imaginando uma partida entre Kasparov e Karpov, ou eles podem usar algumas peças como construções de personagens personalizados. RPG dentro do mundo do xadrez se refere à última alternativa. [^note15]: Alguns filmes, é claro, quebram a quarta parede intencionalmente mostrando equipe de filmagem ou com os atores falando direto com o público. [^note16]: Ryan (2001) chama essencialmente a mesma coisa como estimulação mental. De acordo com ele, estimulação pode ser descrita como uma de pensamento contrassenso na qual o sujeito se coloca ele mesmo na mente de outra pessoa. Ela ilustra com o seguinte exemplo: "Se eu fosse tal e tal, acreditasse em p e q, faria eu x e y?" [^note17]: Organizações como Camarillha (White Wolf) e RPGA (Wizards of the Coast) criaram sistemas de regras extremamente detalhados para isso, utilizando através de regras endógenas e exógenas para determinar quem pode afetar a diegese e como. Eles também fornecem penalidades exógenas e endógenas para as infrações. [^note18]: Em vez disso, o problema é resolvido dentro do sistema social ou do sistema legal. [^note19]: Pode se argumentar que no Tetris o poder do jogador não é restrito, já que ao jogador é permitido manipular os blocos tão eficientemente quanto possível. Entretanto, o sistema computacional do Tetris inclui uma multidão de funções desabilitando os melhore métodos se se colocar os blocos em fileiras perfeitas. [^note20]: Fatland (2005) notou que antes do larp ser jogado, há um trabalho do mestre do jogo em estabelecer uma pré-diegese, um ponto inicial do larp. Este é o ponto final onde qualquer indivíduo poderia acessar todas as informações a respeito do jogo. Assim que a informação é dada para os jogadores, o mundo unificado é quebrado nas várias diegeses as quais tenham pessoas acessando-as. 154 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 [^note21]: Esse tipo de resistência interpretativa é comum em todo o consumo de mídia. Rir pode ser usado como uma estratégia para refutar o medo causado por um filme de terror. [^note22]: Afirmei mais cedo (Loponen & Montola 2004) que, enquanto diegeses subjetivas dos jogadores são equivalentes - ou seja, as diegeses produzem consequências indistinguíveis - a crise pode ser evitada. A equivalência é perdida quando os jogadores avisam sobre uma contradição, e as diferenças devem ser conciliadas. Muitas vezes essa reconciliação é liderado pelo mestre de jogo, com o poder exógeno e endógeno dado a ela pelos jogadores. [^note23]: Democrática, no sentido de que ela tende a dar quantidades semelhantes de poder para todos os participantes. Deve notar-se que a democracia não é necessariamente uma característica desejável na estética do role-play. (cf. Svanevik 2005 e Pohjolae 1999.) [^note24]: Esse tipo de abordagem tem sido incentivada dentro dos estudos de cinema e literatura anteriores. Citando Smith (1995, p. 20-21): "James Phelan apontou que qualquer 'conversa sobre personagens plausíveis como pessoas possíveis pressupõe que nós sabemos o que uma pessoa é. Mas a natureza do ser humano é, naturalmente, uma questão altamente contestada entre os pensadores contemporâneos.' Enquanto isso seria considerado como um truísmo pela maioria dos teóricos contemporâneos de cinema e literatura, apenas uma fração da volumosa literatura sobre identidade pessoal a que Phelan fala foi elaborado em cima." [^note25]: Alguns autores escandinavos (Fatland & Wingård 1999 Brenne 2005), ocasionalmente, usam a palavra "papel" como sinônimo de "personagem", devido às influências linguísticas das línguas locais [^note26]: " A visão de Fine (1983) é que os jogadores têm uma identidade real, que está entre colchetes durante o role-play. Se esta experiência é ilusória ou não, não é central para esta discussão, o ponto é que as identidades diegéticas e "reais" são construídas de forma semelhante. [^note27]: Tal como Pohjola (1999), que mais tarde (2004) mudou sua postura. [^note28]: Paul Czege (2003) Minha Vida com o Mestre é uma exceção a essa regra. 155 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 [^note29]: Aarseth (1997) usa a "intriga" para designar "um plano secreto em que o usuário é o inocente, mas voluntariamente, alvo (vítima é um termo muito forte), com um resultado que ainda não está decidido - ou melhor, com vários resultados possíveis que dependem de vários fatores, tais como a inteligência e a experiência do jogador ". Em outras palavras, a intriga é a estrutura planejada de possíveis parcelas que poderão ser realizadas durante o jogo. (2005) fábula LARP do Fatland praticamente igual a intriga de Aarseth. Notas de tradução 1 Não traduzimos a palavra do inglês quadro pois ela mostrou-se sem nenhum equivalente na língua portuguesa, além de ser razoavelmente disseminada em vários grupos. Quadro mais literalmente significaria quadro, moldura, suporte, estrutura. Nesse sentido, ele é usado em várias áreas como um sistema que estrutura vários elementos como num suporte para outros usos. Neste caso específico, de conceitos, definições e outros elementos base que dariam suporte à outros estudos da área. 2 No texto original em inglês o autor, que é Finlandês, usa pronomes femininos (she, her) onde normalmente se usaria pronomes neutros (it, its). Não conseguiu averiguar-se a razão de tal uso, se intencional (e qual intenção) ou não. 3 Larp (Live Action Role-Playing Game), é uma forma de RPG jogado ao vivo, normalmente encenado num cenário físico real, com uso de figurino e outros elementos cênicos. 4 Apesar de RPG incluir a palavra jogo no seu nome (jogo de role-playing), algumas vezes ela é repetida de forma redundante, como jogo de RPG para enfatizar ou realçar a natureza de jogo do RPG, que fica implícita na sigla mas é explícita no texto original. 5 Mackay (2001) propôs uma versão com cinco camadas, dividindo o quadro diegético em 3 camadas dependendo do estilo de parole usado. Kellomäki (2004) tem um modelo similar ao de Mackay's, com quatro camadas de interação: social, jogo, narração e personagens. 6 "ser divertido", do original "fun being" na mesma ideia de "ser humano"; "ser ..." 156 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 7 este trecho tem dois problemas na tradução, o primeiro é referente ao termo arbitrário, pois tem o sentido de arbitro, como alguém de fora que comanda e não arbitrário no sentido de probabilidade, como fica claro na frase seguinte; o segundo problema é que no original o verbo é o to be na terceira pessoa do singular ("is"), mas parece se referir aos três pontos da frase: "'o processo interativo...' 'a diegese' e o 'mundo do jogo'", na dúvida deixei como no original, "é". 8 paidos é o ideal de educação grego, como uma escola hoje que tivesse com qualidade o ensino não só das matérias regulares, mas também esportes, artes e etc. 9 café no sentido de um lugar tipo lanchonete ou padaria que sirva café da manhã ou no final da tarde muito comum nos EUA. 10 intermediário do original proxy que significa a autoridade dada a uma pessoa a agir por outra pessoa. REFERÊNCIAS -AARSETH, E., 1997, Cybertext. Perspectives on Ergodic Literature. Baltimore: John Hopkins University Press. -ANDREASEN, C., 2003. The Diegetic Rooms of Larp. In M. Gade, L. Thorup & M. Sander, eds. As Larp Grows Up. Theory and Methods in Larp. Copenhagen: Projektgruppen KP03.www.laivforum.dk/kp03_book -BARTLE, R., 2004, Designing Virtual Worlds. Indianapolis: New Riders. -BJÖRK, S. & HOLOPAINEN, J., 2003. Describing Games. An InteractionCentric Structural Quadro. In M. Copier & J. Raessens, eds. 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Ele é membro do Conselho Editorial principal do IJRP. www.iki.fi/montola 161 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 NOVOS SABORES NO LARP BRASILEIRO Da coca-cola à caipirinha com gelo nórdico Luiz Falcão Tradução: Luiz Falcão Resumo: O artigo reflete brevemente sobre a trajetória do larp no Brasil: desde sua chegada, juntamente com RPGs, e os longos anos de larps orientados a diversão sem grande aprofundamento, até 2011, com a crescente interação com as práticas e teorias do larp nórdico e mundial. Esta influência está construindo uma nova identidade do larp brasileiro, com base na ideia de que o larp é uma linguagem, uma mídia e um tipo de arte. Palavras-chave: Larp. Brasil. Live-Action Role Playing. Larp Nórdico Abstract: The article reflects briefly on the path of larp in Brazil: from its arrival along with RPGs and long years of ―for fun‖ larps without far reaching outcomes until 2011, with the growing interaction with practices and theories of Nordic and world larp. This influence is building a new identity of Brazilian larp, based on the idea that larp is a language, a medium and a kind of art. keywords: larp, Brazil, live-action role playing, Nordic Larp; 162 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 O larp no Brasil já tem mais de 20 anos, mas até recentemente muito pouco se sabia sobre ele — as primeiras tentativas de edificar uma memória coletiva ou historiografia do larp brasileiro começaram muito recentemente e esbarram, até hoje, na principal dificuldade de entusiastas e pesquisadores: a memória do larp no Brasil é privada. Associados aos jogos de RPG, os jogos, registros, histórias e materiais diversos sobre os larps circularam em grupos restritos, apenas entre aqueles que os realizaram, até muito recentemente, quando o larp passou a ser visto como uma atividade cultural de acesso público, para além de um hobby praticado a portas fechadas. Este artigo, portanto, não pretende dar conta da historiografia do larp brasileiro, mas ser o registro de um ponto de vista possível, construído a partir das trajetórias, diálogos, pesquisas e tradições nos quais estão inseridos o autor e seus colaboradores. O foco desse ponto de vista é a cidade de São Paulo, que tem tido certo protagonismo na construção desse cenário nacional do larp, mas inevitavelmente deixará de lado muitos episódios relevantes dessa história que começa a tomar forma. A Primeira Onda Ao que tudo indica, o larp chegou no Brasil de carona com o jogo de RPG Vampiro: a Máscara, na primeira metade dos anos 1990. Rapidamente, conquistou centenas e talvez milhares de adeptos pelo país. Alguns jogos eram ainda integrados ao projeto One World by Night, que pretendia unir todos os larps do cenário de Vampiro em uma única e coesa história oficial. Espalharamse pelo território nacional, não apenas entre as 27 capitais do país, mas também em muitas cidades do interior. Em São Paulo, contam até hoje, não eram raros eventos que ultrapassassem as duas ou três centenas de jogadores. Os enredos eram contínuos (que chamamos aqui de larp de campanha) e muitos deles com periodicidade mensal. O modelo "One World" foi enfraquecendo com o tempo, devido em parte a suas próprias contradições e obstáculos. A oficialidade das tramas gerava a necessidade de aprovação das histórias depois que elas já tinham acontecido 163 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 regionalmente, dessa maneira, sessões inteiras poderiam ser anuladas por não se encaixarem na cronologia oficial. A rígida hierarquia diegética (e nãodiegética) inflada e distribuída globalmente muitas vezes impedia ou desestimulava a progressão local de personagens e tramas. A necessidade de coerência e cumprimento de diretrizes — para aprovação e validação das tramas locais — coibia a liberdade e criatividade dos grupos, engessando-os em modelos muitas vezes alienantes. Aliados à característica regionalista e pessoal, íntima e privada (de grupos ou clubes de jogo), esses complicadores fizeram com que o ―modelão‖ fosse perdendo adeptos para jogos mais reservados. Pouco tempo depois, a popularização da internet trouxe ao Brasil também o boffer larp americano — tendo em sua maior representação até hoje o mítico grupo Graal, que teve origem em São Paulo em 2000, alugando sítios aos finais de semana para cerca de 50 pessoas. Larps medievais com espadas de espuma existem no Brasil até hoje (e estão se multiplicando). Essa primeira onda do larp no Brasil trouxe o que eram as duas principais vertentes do larp estadounidense, muito ligadas ainda ao RPG de mesa e seus títulos comerciais, seja prática ou tematicamente. Desde seu surgimento no Brasil, esse modelo coca-cola experimentou inúmeras variações — apesar da hegemonia do Vampire, sempre houve outras temáticas, estéticas e assuntos abordados — mas sempre dentro da lógica dos jogos de RPG, com abordagens aventurescas ou pulp, produções muito singelas, fichas de personagens, regras e pontuações para descrever ações e personagens e a duração de ―uma sessão de RPG‖. O larp era, afinal, visto no país como uma ―modalidade‖ de RPG. Sobre o modo de jogar, ainda que as fórmulas fossem norte americanas, a contaminação por sabores regionais é inevitável. O ―dogma‖ do larp americano ―não toque‖, por exemplo, parece ter se disseminado no Brasil de maneira atenuada — ao invés de aderir a ele, os jogadores pareceram adotar a regra do ―bom senso‖ que, sim, é absolutamente subjetivo, mas ilustra de forma bastante clara o tipo de apropriação comum à cultura brasileira. Em alguns casos, como é o exemplo da cidade de Londrina, por volta de 2000, (com larps de Matrix e X-Files, por exemplo), e da Confraria das Ideias em São Paulo, os jogos adquiriram uma característica quase freeform: a ficha 164 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 consistia de um nome, algumas informações e objetivos do personagem, e, em caso de conflito, o mestre decidia a ação ou eram usados sistemas pouco complexos de resolução. É o caso de Tempos de Chumbo [Fig. 1 ], primeiro larp da Confraria das Ideias, sobre a ditadura militar brasileira dos anos 60 e 70, que marcaria a identidade de toda a produção do grupo até meados de 2012. Os larps se tornaram muito comuns e difundidos também em eventos e convenções de RPGs e cardgames, na maioria das vezes em versões one shot (histórias com começo meio e fim na mesma sessão). Com o declínio da frequência e popularidade dos larps de Vampire e boffer larps (que de certa maneira entraram em hiato no Brasil alguns anos depois de seu surgimento, dando lugar a grupos de swordplay, sem larp, por um longo período), esses larps curtos e casuais realizados em eventos tornaram-se provavelmente o território de maior desenvolvimento e consolidação da prática no Brasil. Dos grupos que participaram desse movimento, que pode ter constituído uma marola em relação a primeira onda, são conhecidos e atuantes até hoje o grupo Megacorp e a Confraria das Ideias. A Segunda Onda Então o larp americano chegou no Brasil fazendo certo estardalhaço, dentro da comunidade de jogadores de RPG e fora dela também, mas logo se tornou menos visível, menos (re)conhecido e sem dúvida menos praticado. Como acontece com os jogos de RPG, a cultura do larp era pessoal, privada. Em sua grande maioria — excetuando os já mencionados larps em eventos — o larp era uma coisa para ser praticada entre amigos e amigos de amigos, de portas fechadas e não publicamente. O ponto de virada para uma segunda onda estava em fazer do larp uma atividade cultural, pública e reconhecida para além de um jogo entre amigos. E esse passo foi dado pelo grupo Confraria das Ideias em parceria com a Secretaria de Cultura da Prefeitura do Município de São Paulo. Em 2005 e 2006 com um curso especializado em larp promovido pela parceria; e a partir de 2007, com a entrada do larp para a programação cultural oficial da cidade. Realizado em bibliotecas públicas por toda a mancha urbana, essa 165 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 programação se estende até hoje. Além do reconhecimento como atividade cultural, tal passo concedeu ao larp brasileiro outro fator inédito: verba destinada a produção e realização dos larps. Isso se refletiu ao longo do tempo nos larps que se seguiram, em qualidade, alcance e registro documental, que passou a ser disponibilizado pulverizadamene em redes sociais, sites e blogs na internet. O exemplo da Prefeitura de São Paulo e da Confraria das Ideias alimentou e alicerçou outras iniciativas ao redor do país, dando novo fôlego à linguagem. Arraiá de Assumpção [Fig. 2], larp de temática mítica e regionalista, criado na ocasião do aniversário de um músico popular brasileiro, Luiz Gonzaga; O Maior Passo de Humanidade, larp de ficção científica criado para o contexto da comemoração da chegada do homem à Lua, ambos da Confraria das Ideias; e O Pomo de Ouro, do Grupo Megacorp, recriação do mito grego para o MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand), são bons exemplos que ilustram esse período. Até 2011, o larp no Brasil conheceu um processo tímido de amadurecimento e diversificação. A maior parte de sua memória e sua parca documentação permaneceu em caráter privado, mas iniciativas de publicização começaram a aparecer no horizonte. As formas rígidas dos larps baseados em RPGs de mesa começaram a dar ainda mais espaço a formas livres, e até mesmo a associação com os RPGs foi dando lugar a uma maior autonomia da linguagem. As temáticas, no entanto, embora não estivessem mais presas a cenários de RPG, continuaram girando em torno do mesmo eixo: histórias aventurescas, temas pulp, de mistério e horror. Ficção de gênero das mais caras ao público já familiarizado a outros jogos de representação. A Terceira Onda Se a segunda onda consiste em um momento de sedimentação e progressão sutil, a terceira onda é marcada pelo irrompimento vigoroso e efervescência produtiva que, mesmo que a princípio engendrados por um pequeno grupo, têm provocado discussões e quebras de paradigmas — e motivado cada vez mais pessoas a experimentarem com a linguagem. Marco desse momento do larp brasileiro pode ser identificado como o 166 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 projeto Boi Voador. Um pequeno grupo, saído de dentro da Confraria das Ideias inicia um novo projeto com foco diferenciado. Se a Confraria conseguiu, nos anos anteriores, reconhecer o larp como atividade cultural, o grupo entendeu que havia mais um passo adiante: reconhecer o larp como uma forma de arte. Foi na pesquisa de fundamentos para um projeto formal a ser apresentado para a prefeitura de São Paulo que o grupo descobriu o Larp Nórdico. Em 2011, esse grupo teve aprovados dois projetos irmãos por um pequeno edital de financiamento a arte e cultura da cidade de São Paulo. O Boi Voador, que consistia em um núcleo de produção de larps, tendo como referência o modelo de companhias teatrais e o trabalho que os membros já vinham realizando em anos anteriores dentro da Confraria das Ideias — mas com objetivos e metas de design muito claros. O objetivo era produzir larps que pudessem ser técnica e esteticamente comparados a peças de teatro ou performances profissionais e cujos designs fugissem da receita até então sedimentada no Brasil de larps para 15-40 pessoas com personagens bastante elaborados e relacionados entre si, ou criados pelos próprios jogadores como em uma campanha de RPG (modelo herdado dos larps de Vampire e boffer, mas até esse momento já desenvolvido à sua própria maneira no país). E o NpLarp — Núcleo de Pesquisa em Live-Action Role playing — que tinha por objetivo pesquisar, discutir e tornar público a maior quantidade de material relevante sobre a linguagem no Brasil, além de promover encontros do larp com outras linguagens (o teatro de máscaras, os RPGs indies e os jogos de tabuleiro foram alguns dos tópicos escolhidos para esses encontros) e entre os próprios criadores e jogadores de larp que, divididos em grupos, até aquele ano nunca tinham se encontrado para discutir a linguagem ou mesmo suas práticas e experiências. O Boi Voador e o NpLarp não foram o primeiro contato brasileiro com o Larp Nórdico. Antes disso, em 2009, o pesquisador Wagner Luiz Schmit chegou a visitar o Knutepunkt e publicar artigo no livro daquele ano e outro pesquisador, Renato Alves, apresentou um trabalho acadêmico a respeito da teoria nórdica. Mas nenhum desses casos, até então, tinha tido grande repercussão ou influência sobre a cultura de larp brasileira, nem mesmo 167 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 chegando a tornarem-se conhecidos. Tango para Dois, um chamber game de Even Tømte e Tor Kjetil Edland, foi o primeiro jogo nórdico a ser traduzido e aplicado publicamente no Brasil, em 2011, como o primeiro larp realizado pelo grupo Boi Voador. Também de origem nórdica, os role-playing poems foram bastante usados pelo grupo, nos mais diferentes contextos (a saber, especialmente os jogos Mystério ama Companhia e Boa Noite Queridinhas). As histórias, jogos e teorias do larp nórdico começaram a chamar a atenção de outros grupos, produtores e jogadores, mas a influência não se restringiu à aplicação de jogos traduzidos ou adaptados. Convivendo com a literatura nórdica, do Manifesto Dogma 99 ao livro Nordic Larp ou os artigos de Lizzie Stark, o Boi Voador desenvolveu também seus próprios jogos, Caleidoscópolis e A Clínica - Projeto Memento. Caleidoscópolis [Fig. 3], de Cauê Martins, foi uma experiência radical de criação improvisada de personagens e enredos in-game partindo apenas de alguns sorteios e maquetes dispostas pelo ambiente (em uma proposta de representação não mimética do espaço). A Clínica — Projeto Memento [Fig. 4 e 5], de Luiz Falcão, tentava integrar o experimentalismo pretendido pelo grupo aos gostos e preferências do público de larp de São Paulo na época. Nesse jogo, os personagens começavam sem memórias, trajados com roupas de internos de hospital, em uma sala fechada. Conforme interagiam uns com os outros e com os objetos dispostos no espaço, recuperavam aleatoriamente fragmentos de memória. Os jogadores deveriam então preencher as lacunas entre as memórias que coletassem, muitas vezes desconexas ou contraditórias. Bastante focado na experiência (com tempos de espera estendidos, início gradativo do larp, experiências cinestésicas), A Clínica não deixou de lado a elaboração de um enredo um pouco mais tradicional, com direito até mesmo a um mistério para ser resolvido pelos personagens. Ao final do projeto, o grupo publicou os resultados de seu trabalho em forma de uma retrospectiva comentada e um guia de 80 páginas, o livro LIVE! Live Action Role playing, Um Guia Prático para Larp [Fig. 6], feito a partir do trabalho de pesquisa do NpLarp, que aborda o larp enquanto linguagem, uma grande gama de formas e variantes existentes do larp (e atividades 168 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 semelhantes), links para cenários prontos para jogar, grupos no Brasil que praticam larp e um capítulo final dedicado à prática do larp pelo mundo. É o maior guia de referência do gênero em língua portuguesa, gratuito e em creative commons, e tem sido até hoje responsável por aproximar (e reaproximar) muitas pessoas da linguagem. A influência desse projeto no cenário brasileiro vai sendo percebida gradativamente, primeiro na Confraria das Ideias, posteriormente, em outros grupos, de outras partes do país. São grupos que se inspiraram, motivaram ou simplesmente estão em alinhamento com o trabalho do Boi Voador ou as pesquisas do NpLarp, como é o caso de Fronteiras de Akitan em Viçosa e da BCS (Batalha Cênica Salvador), em Salvador. No larp Macondo, da Confraria das Ideias, por exemplo, a mudança de luz provocava alterações na identidade dos personagens (inspirado na mecânica muito semelhante de Tango para Dois), um tipo de experimentação completamente inédita na tradição do grupo que criou e aplicou o jogo. No larp Funeral, houve também o uso de recursos imersivos e cinestésicos e da transição gradativa entre ambiente off-game e ingame, como em A Clínica. A influência dentro da Confraria das Ideias se aprofunda em 2012. O principal escritor do grupo naquele ano, Luiz Prado, integra também o NpLarp e, muito próximo às reflexões do Larp Nórdico, mas atento às características do público local, é um dos principais fomentadores de novas experiências estéticas e formais. O conceito do larp Funeral, a estrutura dramática e mecânica em Drácula — Um conto sobre poder e Monstros, ambos de 2012, ou os personagens escritos ―em nuvem de tags‖ de a.experiência.quimera, de 2013, inspirados pelo larp The Mothers, são alguns exemplos de apropriações formais e estéticas do período. Em 2013, o NpLarp publicou nova versão de seu guia e convidou o pesquisador Wagner Luiz Schmit [Fig. 7] para uma palestra em São Paulo na qual falou sobre larp em sua cidade, Londrina, sua pesquisa com jogos de representação e educação, sobre sua visita a Noruega em 2009, sobre o knutepunkt e o Larp Nórdico. No mesmo ano, Goshai Daian e Leonardo Ramos, organizadores do larp Fronteiras de Akitan, em Viçosa, publicaram um breve artigo no livro do Knutepunkt. Também em 2013, passamos a nos comunicar em São Paulo com um 169 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 grupo de larp de Salvador, Bahia — o grupo de swordplay e boffer larp Batalha Cênica Salvador (BCS) — que começou a utilizar Ars Amandi em seu larp de campanha Zalius. Em semelhança ao que acontece em Fronteiras de Akitan, os organizadores do larp em Salvador preocupam-se em dar forma a uma fantasia medieval que não fique completamente estranha às terras e sonoridades brasileiras, partindo da história nacional do país colônia e império e criando um cenário fantástico, inspirado pela idade média europeia mas valendo-se da cultura local — e com mais profundidade emocional do que apenas um ―larp de combate‖. Paralelamente, o boffer larp mais convencional também ressurge em São Paulo (onde ele esteve sumido desde o início dos anos 2000, ao contrário do que aconteceu no Rio de Janeiro e em Minas Gerais) e diversos grupos de vampire larp, independentes entre si, ganham força e relevo localmente — alguns novos, outros retomando as atividades. A fidelidade às regras e aos modelos do larp oficial dos jogos Vampire (seja sua versão mais atual, Requiem, como a mais antiga, Masquerade, ainda muitíssimo populares) varia muito de grupo para grupo. Em Belo Horizonte, o grupo Projeto Requiem BH usa muito pouco das regras e orientações presentes nos manuais, aproximando-se muito mais de um freeform. Enquanto aproveita a ambientação e cenário, recolhendo toda a influência possível de outras fontes, incluindo aqui o Larp Nórdico, seja em seu vocabulário e debates (como o termo bleed), seja realizando jogos pontuais em outras ambientações e cenários próprios ou experimentando formatos como role-playing poems em encontros especiais, voltados também para o debate e a reflexão das possibilidades do larp. Em 2013, aconteceu também em Belo Horizonte, Minas Gerais, a primeira edição do evento Laboratório de Jogos, dedicado a desenvolvedores de ―jogos narrativos‖. O labJogos, como ficou conhecido, foi promovido por pessoas ligadas ao cenário do RPG Indie brasileiro (que ganhou destaque internacional naquele ano com o jogo Pulse, de Vinicius Chagas, vencedor do concurso Game Chef de RPG e jogos analógicos) e atraiu também larpers de Minas Gerais e estados vizinhos. O encontro foi importante para o cenário do larp no Brasil, aproximando realizadores que ainda não se conheciam, promovendo o debate e a troca de experiências e resultando na criação de um grupo de discussão em rede social, provavelmente o primeiro ―fórum‖ nacional 170 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 de larp. E claro, houve larp no Laboratório de Jogos — os jogadores puderam conhecer os role-playing poems (com destaque especial para o Boa Noite Queridinhas, novamente), o protótipo do larp Jogo do Bicho, do grupo Boi Voador, e o larp Ouça no Volume Máximo, de Luiz Prado. O encontro deu origem, de volta a São Paulo, a uma nova iniciativa, o LabLarp, uma série de encontros que se estenderam durante todo o segundo semestre com o objetivo de experenciar e debater a linguagem do larp. O LabLarp acontecia em encontros noturnos às quartas feiras, duas vezes por mês, em um espaço privado mas aberto na medida do possível a qualquer um que estivesse interessado em participar. A experiência foi responsável tanto por trazer novos jogadores quanto por promover maior frequência e reflexão entre aqueles que já praticavam larp. Com uma programação focada em roleplaying poems, os encontros abrigaram também o larp Limbo, de Tor Kjetil Edland (em um sábado), e jogos brasileiros, inéditos, como Café Amargo, de Luiz Prado, Retalhos, de Tiago Braga e Cegos, de Jonny Garcia, entre outros. Cegos [Fig. 8] foi talvez o larp mais longo realizado no Brasil até então. Baseado no romance do escritor português José Saramago, Ensaio Sobre a Cegueira, o larp se estendia durante 28 horas em um fim de semana. Os jogadores eram cegados com vendas após criarem seus personagens (usando o conceito close to home, segundo o qual os personagens não devem ser muito diferentes dos jogadores que os representarão) e então viveriam durante esse tempo em quarentena, vigiados por militares e com recursos escassos. Com enredo minimalista, o objetivo do jogo era colocar os participantes em uma situação desagradável, de tensão física e psíquica. 2013 também foi o ano do surgimento dos larps leia-e-jogue brasileiros. Breves Encarnações, de Goshai Daian, Retalhos, de Tiago Braga, Três Homens de Terno, Café Amargo e Ouça no Volume Máximo, de Luiz Prado, são os grandes exemplos desse tipo de jogo surgindo no cenário nacional, todos disponíveis gratuitamente na internet. Se a segunda onda já representou um grande avanço em termos de identidade e diversidade no larp brasileiro, a terceira onda parece romper de vez com as barreiras formais e de eixo temático do larp no Brasil. Até 2011, era comum dizermos que um larp, ―Detetives — Mistérios e Mentes Criminosas‖, por exemplo, era ―sobre um circo sombrio e investigadores do desconhecido‖, 171 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 ou que ―Piratas — Muito Além dos Mares Conhecidos é um larp sobre, er… piratas‖. Hoje é mais comum encontrarmos coisas como ―RedHope é um larp sobre horror, medo, paranoia e claustrofobia.‖ (ainda que seja um live que tenha zumbis como parte do enredo), que ―Ouça no Volume Máximo é um jogo de representação sobre nostalgia, mágoas e recomeços‖ ou ―Café Amargo é sobre despedidas e a importância do outro em nossas vidas‖. Os exemplos demonstram um deslocamento da lógica aventuresca, ―de gênero‖ — a bem da verdade, derivada da tradição dos RPGs de mesa no Brasil — para um campo mais dramático, autônomo e pessoal, algumas vezes até mesmo cotidiano. Formalmente, o Brasil começa a conhecer, nos últimos anos, larps de estrutura diversificada — para além dos 20 ou 30 personagens criados previamente pela organização ou em conjunto com os jogadores —, seja motivado por experiências como Tango para Dois e outros chamber games, pelos role-playing poems, jeepforms e pela leitura da literatura nórdica sobre larp ou seja pelo resultado de experiências locais realizadas de lá para cá. Muitas das variações de estrutura dramática, narrativa, de fichas de personagem e o uso de metatécnicas que eram até então inéditas no país ou que encontravam grande resistência entre o público brasileiro, hoje estão se tornando cada vez mais comuns e procuradas por jogadores e criadores. Mais de dois anos depois de o projeto Boi Voador / NpLarp ter aproximado o larp nórdico do brasileiro, a ideia de que o larp é mais que um hobby, mas uma linguagem autônoma, uma mídia e uma forma de arte está se fortalecendo no país. O cenário vem se agitando de forma exponencial de 2011 para cá. Há novos autores e organizadores, uma comunidade crescente de jogadores cada vez mais ativa, participativa e interessada nos conteúdos e debates sobre os jogos. Há a aproximação de criadores e organizadores em nível nacional (e estamos falando de um grande país!) e o começo de uma crítica e debate nas redes sociais e blogs, além do surgimento de manuais gratuitos e abertos na internet. O Brasil entra em 2014 com um cenário agitado, diverso e em pleno desenvolvimento. Ainda há espaço para os modelos ―americanos‖, que sempre sofreram aqui suas adaptações e seus ―jeitinhos brasileiros‖, mas novas formas de larp chegaram para ficar e conquistaram seus públicos. A identidade de um larp brasileiro provavelmente começa a tomar forma nos próximos episódios 172 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 dessa história — ao que tudo indica com uma forte influência da tradição nórdica. Agradecimentos Tadeu Andrade, Wagner Luiz Schmit, Jon Back e Carina Carvalho, estiveram envolvidos na adaptação e revisão deste texto. Com a colaboração de Wagner Schmit, Ricardo Izumi, Luiz Prado, Goshai Daian, Krishna Farnese e Paulo Merlino. Salvador, 2010-2013. 173 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Referências 174 DAIAN, Goshai; & RAMOS, Leonardo. Looking Back to Move Foward. In. Crossing Physical Borders. Norway: Fantasiforbundet, 2013. FALCÃO, Luiz. LIVE! Live Action Role playing, um guia prático para larp. São Paulo: NpLarp, 2013. Disponível em: < http://nplarp.blogspot.com.br/p/guia.html > Acessado em: 18 jan. 2014. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Cia. das Letras. Ludografia A experiência. quimera. São Paulo: Confraria das Ideias, 2013. 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Salvador: Batalha Cênica. 176 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Imagens 177 [Fig. 1] Tempos de chumbo, 1999 (Foto: Confraria das Ideias) [Fig. 2] Recriação do larp Arraiá de Assumpção em 2010 (Foto: Luiz Falcão) Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 178 [Fig. 3] Caleidoscópolis, jogadores representando em torno das maquetes que compunham o expaço não-miméticopretendido pelo jogo (Foto: Luiz Falcão) Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 179 [Fig. 4] A Clínica, Projeto Memento - jogadores vendados durante o processo de imersão pré-game. (Foto: Leonardo França) Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 180 [Fig. 5] A Clínica, Projeto Memento - in-game, grupo de jogadores reunidos em torno de objetos encontrados na sala. (Foto: Leonardo França) Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 181 [Fig. 6] Iniciativa inédita no Brasil, LIVE! é um dos poucos materiais a disposição em língua portuguesa (Imagem: Luiz Falcão) [Fig. 7] O pesquisador Wagner Luiz Schmit, o primeiro à esquerda na foto, como ―João, o blogueiro‖ durante o larp ―13 à mesa‖, no evento A Week in Norway, que antecedeu o Knutepunkt em 2009 (Foto: Britta K. Bergensen) [Fig. 8] Cegos, livremente baseado no romance de José Saramago e Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 182 inspirado por larps como Kapo (Foto: Jonny Garcia) Texto original:FALCÃO, Luiz. New Tastes in Brazilian Larp, From Dark Coke to Caipirinha with Nordic Ice. In The Cutting Edge of Nordic Larp. Denmark: Toptryk Grafisk, 2014. Disponível em <http://nordiclarp.org/wiki/The_Cutting_Edge_of_Nordic_Larp> Acessado em 1 abr 2014. Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 183 ENTREVISTAS As entrevistas, a meu ver, são um dos pontos mais relevantes da revista, pois atendem diretamente a um problema geográfico que ocorre no Brasil, há muito debatido pelos pesquisadores, o espaço. Pesquisadores trabalhham em cidades muito distantes, o que faz o role playing florecer em diferentes contextos e atender a diversas demandas, mas, simultaneamente, é algo que dificulta a comunicação entre os mesmos. O olhar sobre o tema no sul se difere do do sudeste e centro oeste, uma vez que alguns problemas são similares enquanto outros divergentes. Devido a isso, as entrevistas permitem um olhar mais próximo diante das diferentes realidades vivenciadas no país, bem como em relação às múltiplas histórias que vão dando forma, gradativamente, às figuras do role playing regional. Neste volume, exploramos três casos interessantes: o projeto ―interpretar e aprender‖, que atua dentro de escolas particulares em São Paulo; a contextualização das práticas sociais, culturais e educativas do RPG em Uberlândia (MG); e a ação progressiva da cidade de Viçosa (MG), que já está em seu 19° encontro de RPG vinculado à Universidade Federal de Viçosa. Nessas entrevistas, três formas distintas de role playing com sua respectiva intervenção social surgem e se desenvolvem, sendo referências para futuras práticas e propostas em municípios que ainda buscam estabilizar determinada identidade com o role playing. Rafael Correia Rocha Editor chefe Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 184 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 GRUPO INTERPRETAR E APRENDER 185 Entrevistado: Thiago Oliveira - Grupo interpretar e aprender ( composto por Thiago Oliveira, Paulo Gallina e Daniel Aidar). Entrevistador: Lucas Eduardo de Freitas Entrevista realizada em: 07/09/2013 Um grupo que surgiu na Universidade de São Paulo, é formado por três estudantes do curso de História que tiveram o desejo de unir RPG e Educação. Além de poder se divertir jogando, se pode também educar crianças, jovens e adultos. Vamos então a entrevista! Como surgiu o projeto de vocês? Daniel: À época, nós três trabalhávamos ou já tínhamos trabalhado com educação de alguma forma. Tínhamos acabado de concluir nossas licenciaturas e já havíamos jogado RPG juntos, mas não éramos, à época, um grupo de fato. Foi quando o Thiago lançou a ideia para uma amiga dele que era educadora e ela bancou a aposta de que poderíamos apresentar o RPG como instrumento educativo na bienal da escola em que ela trabalhava. Nós adoramos a experiência e decidimos nos tornar, de fato, um grupo, produzindo conteúdo em nosso blog e aventuras para escolas interessadas. Thiago: Quando minha amiga propôs uma aventura para 80 crianças já vi que não conseguiria sozinho. Logo pensei no Daniel e no Paulo pois joguei aventuras divertidíssimas com ambos e sabia que levavam jeito pra coisa. Não deu outra, dez estafantes horas depois de começarmos sabíamos que não poderíamos mais parar por ali. Muito bom, e como vocês vêm a interação entre o RPG e a educação? Thiago: O RPG apresenta soluções para vários problemas da educação atual: Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 a autoridade falha de professores desmotivados, a falta de interesse de alunos desmotivados, a falta de escrita e leitura, a sistematização extrema e a desvinculação do conteúdo trabalhado com a vida em sociedade, e trabalho cooperativo, etc. Em si só ele traz, quando bem utilizado, benefícios que poucas ferramentas ou métodos conseguem suprir. Ainda assim, não pode ser tratado como uma solução única e definitiva. Daniel: Depois de nossas experiências em grupo e de algumas outras experiências particulares, bem como de algumas leituras, penso que o RPG é uma ferramenta extremamente poderosa, mas que não faz milagres e que ele pode atuar como complemento, mas não como um substituto às formas tradicionais de ensino de conteúdo. O RPG pode incentivar o aluno a querer aprender mais, a querer saber, mas é perigoso pensar nele como uma panaceia para os problemas educacionais. Dito isso, contudo, não se pode subestimar a ajuda que ele é capaz de empreender. Ele oferece uma plataforma interativa fantástica para a fixação de conteúdos e, sobretudo, oferece aos alunos a possibilidade de 'saírem de si', de considerarem outras perspectivas. Neste sentido, o RPG pode auxiliar a fomentar habilidades cognitivas difíceis de se trabalhar dentro dos limites da educação tradicional, como a empatia e a sensibilidade, ao mesmo tempo em que estimula a criatividade e a espontaneidade. Vocês acham que ainda existe um certo tipo de preconceito na nossa sociedade acerca do RPG? Daniel: Com certeza, existe. Já foi muito pior, contudo. Hoje, ele sofre algum desprezo por ser uma forma de entretenimento que está um pouco fora de moda, por não ser virtual nem envolver atividade física. É uma brincadeira que envolve um esforço mental que lida com habilidades importantes, mas que têm sido pouco estimuladas hoje em dia. É muito estranho pensar que, por exemplo, o League of Legends e o World of Warcraft, jogos conhecidos no mundo inteiro, extremamente populares entre jovens (e entre alguns dos alunos que tive), só são o que são porque foram construídos sob preceitos cunhados pelos jogos de RPG tradicionais, não-virtuais, tabletop, como dizem 186 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 os anglófonos, mas que muitos de seus jogadores não tenham qualquer interesse nesses RPGs tradicionais por não quererem trabalhar aquelas habilidades cognitivas de que falei na última resposta. Por outro lado, creio que setores mais tradicionais veem o RPG com ressalvas pelo mesmo motivo que enxergam problemas em jogos de videogame, por exemplo, por associarem tais atividades a um passatempo de crianças e não terem interesse em aprender sobre ela. A questão do RPG como 'coisa do demônio' ainda deve existir, mas não creio que ela paute a opinião da sociedade como à época da tragédia de Ouro Preto. Thiago: Eu vejo o preconceito acerca do RPG apenas no âmbito educacional. A geração que está formando os jovens adultos de nossa sociedade teve um contato muito grande com RPG´s ao longo da vida, principalmente com o vídeo games. A escola, entretanto, ainda vê o RPG como uma ferramenta de entretenimento, como disse o Daniel, e não acredita na potencialidade do novo. É inegável que as novas tecnologias revolucionarão o ensino nas próximas décadas e a escola deve abrir-se para o novo. O RPG deveria ser uma matéria escolar, ou mesmo um momento dentro das escolas de ensino fundamental visando estimular o aprendizado e leitura e a interação social? Daniel: Tenho algumas ressalvas quanto a torná-lo uma matéria ou algo assim. Acho que ele poderia ser uma oficina alternativa, um curso extracurricular, similar a um curso de teatro dentro de uma escola. Não questiono que ele possa estimular o aprendizado, a leitura e a interação social - ele pode e é eficaz neste sentido. Tenho dúvidas quanto a torná-lo algo obrigatório, sabe? Mas as experiências que tive foram quase todas positivas... Só que, ainda que seja uma forma muito mais estimulante de se passar conteúdo, não vejo como ela seria capaz de substituir totalmente uma aula expositiva, um trabalho, um exercício. Em uma escola adequada, com um número de alunos baixo e professores tanto bem motivados quanto bem assessorados pela direção escolar, esses métodos tradicionais ainda são mais eficientes. Por isso, tenho 187 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 fé no RPG como um excelente acessório, mas não como "solução" para os problemas da educação. Estes, creio, passam antes pela valorização do docente, tanto financeiramente quanto funcionalmente. Thiago: Também tenho minhas dúvidas quanto à obrigatoriedade do RPG em sala de aula. Em nossas experiências, nunca houve um caso de recusa de participação. Claro que um aluno empolga-se mais que outro, mas todos sempre receberam bem a atividade. Não é difícil encontrar casos de sucesso quando o RPG é jogado no contra-turno como um curso extra-curricular. Mesmo sem inserir conteúdos escolares, há benefícios socio-cognitivos riquíssimos na prática do jogo de interpretação. Não acredito, entretanto, que deva tornar-se uma matéria. Há, cada vez mais, escolas democráticas extinguindo matérias. Acredito que o conhecimento se dá de forma transdisciplinar, e o RPG pode ser uma poderosa ferramenta nessa direção. É bastante claro, nas aventuras que criamos, a potencialidade de trabalhar-se conteúdos Qual é de o maior várias objetivo áreas do do trabalho conhecimento. de vocês hoje? Daniel: Em minha opinião, difundirmos o RPG como ferramenta educacional, explicarmos suas possibilidades e oferecermos nossos serviços às escolas interessadas. Thiago: E me divertir enquanto faço tudo isso Qual é o RPG preferido de vocês e por que? Daniel: Entre os sistemas que joguei, meus favoritos são o Sistema Daemon e o Unisystem, que são mecanicamente simples e eficientes, mas que também incentivam a interpretação por parte dos jogadores, mas tenho lido sobre outros sistemas e estou muito curioso para experimentar um chamado Burning Wheels - vou me presentear ano que vem com ele, creio. Já quanto a ambientação, gosto muito de criar as minhas próprias, mas, dentre as 'estabelecidas' a do oWoD é a minha favorita, de longe. Eu sempre volto para 188 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 ela, em algum momento. O nWoD parece muito legal, mas me é difícil abandonar os Tremere, os Presas de Prata, a Ordem de Hermes... Thiago: Meu preferido, sem dúvidas é o mundo das trevas. Foram as aventuras nas quais mais me diverti. O D&D também conseguiu me conquistar de alguma maneira. Mas o sistema ou o cenário de nada importam quando se está em um ambiente confortável e divertido. Comecei a jogar (e nem sabia que estava jogando) quando fizemos um simulador de Dungeon Keeper (aquele antigo mesmo) no papel no ensino fundamental II. Galera foi muito bom poder fazer essa entrevista com o pessoal do Interpretar e Aprender. Espero que você também tenha gostado e lembrado de como é bom vermos que além de ser extremamente divertido jogar RPG, ele pode ser uma ferramenta na área da educação, desenvolvendo no indivíduo a criatividade e estimulando a interação social. Parabéns ao pessoal do Interpretar e Aprender, muito sucesso com a iniciativa de vocês, e mais uma vez aqui vai o blog do grupo e a página no facebook. Visita lá e dê aquela curtida! http://grupointerpretareaprender.blogspot.com.br/ https://www.facebook.com/InterpretarEAprender?fref=ts http://grupointerpretareaprender.blogspot.com.br/ 189 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 ARTICULAÇÕES SOBRE PROJETOS DE RPG E EDUCAÇÃO EM UBERLÂNDIA (MG) Entrevistador: Vinícius Rennó - google.com/+ViníciusRennó Entrevistado: Rafael Correia Rocha - [email protected] Entrevista realizada em 26/02/2013 Como foi o processo de reconhecimento do uso do RPG na educação pela Prefeitura de Uberlândia? Bom, na época do reconhecimento, eu fazia parte do conselho municipal de educação, então levei a proposta que já era testada na universidade para lá, o conselho gostou, e de lá fui apresentar para a secretaria da educação, que me pediu para mostrar para um centro de projetos pedagógicos, cujos membros ficaram um pouco divididos, mas ao final de um mês de análise, deram o aval final favorável, demorou cerca de três meses. O reconhecimento pela prefeitura foi muito importante, todavia ainda existem muitas barreiras a ser rompidas por conta da mentalidade provinciana da cidade. Como se sente a esse respeito? Foi algo inesperado? Por quê? Acredito que o eixo universidade-educação-cultura-sociedade seja familiar ao RPG, por isso, não vejo como uma surpresa. E quando o mesmo é bem embasado e articulado, não existe um real motivo para barrar. As barreiras são de preconceito e não sobre resultados. Sinto-me bem, porém incompleto, pois a cidade não quer enxergar além da própria fronteira. Patos de Minas tem 10 vezes menos habitantes do que Uberlândia e já está com uma confraria lúdica e entrando no quinto evento regional de RPG e quadragésimo primeiro live. Quantas e quais premiações ou menções o projeto recebeu? 190 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Houve o prêmio projeto destaque no 1° simpósio de educação de Uberlândia, e o reconhecimento, pois somos chamados por empresas e universidades para algumas atividades, mas na maioria das vezes é bater na porta para tentar mostrar os resultados e propor intervenções. Estamos tentando gerar uma ONG, para poder efetivar e legitimar com mais propriedade as ações do projeto. Quais as perspectivas futuras para o projeto? Ele continuará? Há outros projetos similares? Por quê? Então, como estava comentando acima, o foco este ano é formatá-lo como ONG, dando liberdade para atuação em todo território nacional, focando na qualidade das relações humanas, sustentados pela tríade educação/promover prazer em aprender e ensinar-cultura para fazer arte; no campo social, interação do jovem, família e comunidade com reforço filantrópico. O Encontro de RPG de Uberlândia pode ser considerado um dos resultados/consequências do projeto? Por quê? Consequência com certeza. Ele surgiu porque queríamos que a comunidade olhasse para as possibilidades do RPG e conhecesse o projeto também. Simplesmente um 'olhe para nós, fazemos parte de vocês e vocês de nós'. A partir dele conseguimos conversar com famílias e o jogo pode ser usado para melhor interação de jovens e adultos, o jogo cria uma linguagem comum. No 1° encontro, um pai me disse; eu vim para melhorar minha convivência com meu filho . O garoto nunca havia jogado RPG, entrou na mesa e eu perguntei para o pai dele; olhe seu filho, como você o vê agora? - ele me disse: feliz! -. Então falei: vá jogar com ele; faça parte da vida dele e da felicidade dele... O pai não quis ir, mas notou a importância. 191 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 No 2° encontro a entrada será 2 kg de alimento e teremos um bazar de roupas usadas de uma ONG de proteção à mulher e à família, amostra de uma oficina de padaria, junto com um xadrez de 8 metros quadrados, cards, games e muito RPG, fora sorteios e palestras. Você ainda é membro do Conselho Municipal de Educação de Uberlândia? Se não, o que está fazendo/trabalhando agora? Não mais sou, por problemas de saúde em família e mudança de gestão no município sai do conselho; atualmente, trabalho em uma escola preparatória para concurso público, trabalho com os projetos da Narrativa da Imaginação isoladamente. Em 2012, devido à greve na universidade federal, não foi possível fazer muita coisa. Estamos atuando no auxílio a projetos acadêmicos sobre RPG ou narrativa, pequenos eventos, atividades em empresas, ainda estamos engatinhando. Qual seria o nome dessa ONG que vocês estão tentando criar? Não seria melhor uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público)? Ótima pergunta, pois uma OSCIP está dentro da categoria ONG. E você acertou em cheio; é uma OSCIP. No caso, o projeto Narrativa da Imaginação é regulamentado nesses padrões. Poderia explicar melhor essa "tríade educação/promover prazer em aprender e ensinar-cultura/fazer arte - sociedade/ interação do jovem, família e comunidade com reforço filantrópico", por favor? Não compreendi muito bem. 192 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Claro. Vamos por partes. Na educação, promover o prazer em aprender e ensinar. Nesta a narrativa da imaginação tem como uma viga de fundação melhorar a qualidade das relações entre professor-aluno, pois alguém só aprende se está predisposto a isso e escolhe aprender, se permite aprender, fato esse complicado quando existem atritos sócios afetivos entre educador e educando. Prazer de aprender é o aprender divertido que buscamos na ludicidade da narrativa. Cultura/fazer arte; a narrativa e a formação de histórias são uma forma de arte, que deve ser destacada em toda produção cultural de criação coletiva. Sempre damos destaque e relevância, valorizando as produções e dessa forma valorizamos os sujeitos. Sociedade, interação do jovem, família e comunidade com reforço filantrópico: existe um distanciamento do jovem de uma devolutiva produtiva para a sociedade, então, a nossa intenção de aproximá-los das atividades de jogos, no caso RPG, e mostrar à família e à sociedade ao mesmo tempo em que mostramos aos jovens os trabalhos sociais promovidos no município é para que ambas as partes se olhem e conheçam-se sem medo. A família e a sociedade têm medo do que não conhecem e o jovem não se mostra para não ser subjugado. Quando temos momentos de diálogos e convivência isso pode ser amenizado e esclarecido gradativamente. Começamos, inclusive, a gerar diálogos com ONGs para estarmos cada vez mais próximos e atualizados sobre as demandas sociais. Você ainda faz mestrado em educação pela Universidad de la Empresa? Quando defende ou defendeu sua dissertação? (No seu Currículo Lattes diz que ainda está em andamento, mas parece desatualizado.) Já tem vistas para algum doutorado na área? Sim. No Uruguai, a estrutura do mestrado é um pouco diferente da do Brasil, um pouco mais demorada por causa da burocracia. Irei defender agora em 193 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 julho (2013), deveria ter defendido antes, mas como disse tive problemas de saúde em família e isso atrasou minha defesa. Estou de olho no doutorado em História da UFU pela qual fui convidado, queria desenvolver aqui em Minas, porque em São Paulo as coisas já estão indo bem; precisamos desenvolver o país como um todo. 194 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 ASSOCIAÇÃO DE RPG DE VIÇOSA Entrevistado: Alexandre Saraiva Soares, Presidente da Associação de RPGístas de Viçosa Entrevistador: Rafael Correia Rocha - [email protected] Entrevista realizada em 01/04/2014 Como é composta a associação de RPG de Viçosa? Como ela se desenvolveu durante esses 19 anos? A Associação de RPGístas de Viçosa, ARV, é uma associação sem fins lucrativos, composta por pessoas físicas de qualquer lugar do Brasil que, seja por terem criado algum vinculo com a cidade em algum momento de suas vidas e conhecido a Associação ou por convite e indicação de membros já associados, decidiram preencher o requerimento de associação e foram aprovados pela Diretoria Executiva vigente. Inicialmente, e por muito tempo, tratou-se de algo que existia apenas no imaginário coletivo. As poucas decisões e ações requeridas de uma diretoria eram realizadas por um pequeno grupo de fundadores e amigos próximos mais engajados, tidos como membros. Eventualmente, à medida que essa ideia se fazia conhecer, novos membros iam surgindo, pedindo associação e recebendo aprovação, mas, até então, sem nenhuma formalidade ou registro oficial de controle dos associados. Recentemente, em 2013, após mais de dois fracassos em tentativas de registro da ARV em cartório, sempre por falta de documentação ou detalhes legais, conseguiu-se fazer oficial um sonho de anos e, finalmente, a Associação de RPGístas de Viçosa oficializou-se em 2014, cerca de dezenove anos após sua primeira idealização. Quantos membros a ARV tem atualmente? 195 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 196 Como reflexo do recente registro em cartório da Associação, no momento ela conta oficialmente apenas com seus trinta e cinco membros fundadores para fins oficiais, mas dispõe paralelamente de outros vinte indivíduos que já requereram associação e estão aguardando deferimento do pedido, além de outros tantos colaboradores que ainda não se manifestaram ou preferiram não se associar, mas que estão sempre dispostos a ajudá-la em seus eventos e desafios diários. Como teve início o Encontro de RPG de Viçosa? Os Encontros de RPG de Viçosa tiveram suas primeiras edições bem humildes e simples, onde pequenos grupos de amigos RPGístas se reuniam em locais públicos como o espaço de convivência do DCE para jogarem juntos em um dia pré-marcado. Mal podiam ser chamados de eventos, até que começaram aos poucos a chamar atenção e arrecadar seguidores e aficionados pelo hobby, de modo que tais espaços começaram a ficar pequenos e a necessidade de infra-estrutura e pré-organização foram surgindo, chegando aos moldes do que temos hoje. Eventos programados para durarem dois dias, com média de público esperado de mais de 600 pessoas por dia, para o 19º, e perspectivas reais de crescimento para os Encontros vindouros. Qual é a relação entre a Associação e a Federal de Viçosa? A partir do momento em que o cenário RPGístico da cidade começou a crescer significativamente, e sua maior parte era composta por estudantes da Universidade Federal de Viçosa, foi natural para a Associação procurar ajuda e apoio cultural junto aos órgãos competentes da instituição para a realização de seus eventos. Seja Live Actions na Biblioteca Central, Encontros de RPG no Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 Pavilhão de Aulas II ou no Centro de Vivência, um dos nobres espaços de eventos do campus, até como liberação de espaços para as Mostras de Animação Japonesa, organizadas anualmente pela ARV. Ao contrário do que se esperaria em outras cidades, em Viçosa não sofremos preconceito por parte da UFV, e atualmente temos o Encontro de RPG de Viçosa reconhecido como uma das atividades oficiais de recepção de calouros, integrando o programa Trote Solidário desenvolvido pela Universidade. Quais os principais problemas do RPG na cidade? Certamente a falta de interesse do comércio local pelo mercado RPGísta deixa uma lacuna frustrante para quem passa a depender de internet ou encontros anuais de RPG para abastecer seus estoques de dados, livros e demais produtos do gênero. No mais, a falta de espaços públicos onde os jogadores podem se encontrar e montar uma mesa sem incomodar transeuntes, sem ser incomodados por estes, e onde não haja cobrança de consumação para permanência no local é um problema recorrente enfrentado em Viçosa. Como se estruturam os lives? A cultura de Live Actions na cidade é quase tão antiga quanto a ARV em si, senão mais, e foi retomada no XV ERPGV como uma das atrações do evento. Desde então, ocorreu mensalmente durante quase três anos ininterruptos, sempre retomando suas forças junto aos Encontros anuais, onde participantes veteranos e iniciantes eram introduzidos ao cenário, fomentando a história com novos personagens e enredos. Divulgado para leigos como um ―evento de teatro improvisado onde há interação ativa e construtiva por parte dos participantes na construção da história‖, os Live Actions viçosenses organizados pela Associação possuem 197 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 apoio da Divisão de Assuntos Culturais da Universidade, e registro como uma atividade de extensão da UFV. Como os RPGistas se dispõem na cidade? Onde e quando jogam com maior frequência? Infelizmente, em sua grande maioria, reclusos dentro de suas próprias casas. Por um lado há certas vantagens de conforto, mas nem sempre é o ideal quando o resto da família está em casa ou o colega de república quer estudar para uma prova. O único evento que os reúne todos em um só lugar é mesmo o Encontro de RPG de Viçosa, e, quando em outras épocas do ano, raramente há o encontro de dois grupos (nunca mais) no restaurante de um shopping que deixa suas mesas e cadeiras em um hall ou em algum espaço do Campus da Universidade. Quais são as atividades promovidas pela ARV? Atualmente, três principais: encontros anuais de RPG (ERPGV), Mostra de Animações Japonesas (MAJ) e os Live Actions. Em segundo plano, a Associação de RPGístas de Viçosa também já promoveu pequenas versões do Encontro em finais de semana, com duração de apenas uma tarde, desprovidos de verba e compromisso com divulgação em massa, nos moldes de suas primeiras edições, onde espalhava-se informalmente a intenção de reunir grupos de RPG em um só local e todos combinavam um dia para comparecerem. Em adição, apoiou a execução de LARPS Medievais e trabalha atualmente em um novo projeto de torneio envolvendo RPG (e atividades relacionadas), sobre o qual divulgaremos informações assim que a viabilidade de execução se tornar uma realidade. 198 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 A ARV atua junto a outros campos como educação e cultura? 199 Dentro da Universidade Federal de Viçosa, a ARV já recebeu apoio de vários setores como a Divisão de Assuntos Culturais (DAC), a Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PEC) e a Biblioteca Central da UFV (BBT), além da UFV em si e a Fundação Arthur Bernardes, tendo suas atividades reconhecidas como eventos culturais e atividades de extensão com apoio institucional. Sobre RPG na Educação, é algo que vem sendo explorado e pelo qual a Associação e associados têm buscado obter mais conhecimento, mas que ainda não dispõe de nenhum projeto ou evento em planejamento. Como é a estrutura das lojas especializadas em jogos em Viçosa? Inexistente. Como comentado anteriormente, Viçosa é defasada comercialmente no setor de RPG e lojas de jogos no geral. O único ponto de vendas de dados e livros de RPG não faz pedidos desse tipo de material há mais de cinco anos, tendo ficado sem estoque e vários exemplares encalhados de suplementos sem livros base ou sequências sem precursores, por não se manterem atualizados ou interessados no nicho. Fato curioso, pois definitivamente há interesse por parte dos consumidores de adquirirem artigos do gênero, fato comprovado periodicamente em eventos promovidos pela ARV. Como está representada a estrutura do Card game e Board game na cidade? Ascendente seria a palavra mais adequada. Com o crescimento dos Encontros de RPG de Viçosa, nós da ARV estamos descobrindo outros setores com defasagem de atenção da sociedade viçosense e, através de sugestões de associados interessados em diversificar, atrair cada vez mais público e Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 desmistificar o RPG, temos acolhido setores órfãos como K-Pop, cultura Japonesa (animes, origami, culinária), jogos de cartas colecionáveis e nãocolecionáveis, assim como jogos de tabuleiro e softcombat. Com isso, temos descoberto interessados em desenvolver e estruturar esses setores para fortalecê-los de forma independente, mas tendo o RPG como um elo em comum, sempre com o apoio da Associação e seus voluntários, compartilhando interesses de forma construtiva. 200 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 201 JOGOS A proposta de publicar jogos nesta revista quebra um pouco o modelo convencional da academia, mas, ao mesmo tempo, atende aos pesquisadores e curiosos que buscam compreender a mecânica e tendências dos jogos de representação, além de servir como registro para resguardar autores. Uma das principais reclamações que chegou até a revista foi o fato de pedirmos uma bibliografia ou ludografia do jogo; esclareço que, qualquer jogo atual tem inspiração de jogos anteriores que proporcionaram mecânica e estrutura necessárias para seu desenvolvimento. Nesse caso, buscamos aqui a valorização dos jogos de base, mantendo o rigor científico, ao mesmo tempo que valorizamos as produções nacionais. Com preferência para os jogos que promovam discussões mais profundas no campo social, cultural e educacional com a descrição clara de sua função. É possível publicar um breve manual de regras (RPG ou LARP) com contexto de cenários, disposições A4 de print & play para boardgame e cardgame o qual permita uma análise profunda e crítica no campo da ludicidade, originalidade, competências, saberes, literatura, estética e mecânica. Rafael Correia Rocha Editor Chefe Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 202 ÁLCOOL Autor: Luiz Prado Resumo Álcool é um jogo de representação, para 2-5 pessoas, sobre o significado do álcool em nossas vidas. Palavras-chave: Larp. Álcool. Memórias. Freeform. Live action roleplay ABSTRACT Álcool is roleplay game, for 2-5 people, about the meaning of alcohol in our lives. KEYWORDS: Larp. Álcohol. Memories. Freeform. Live action roleplay Este é um jogo de representação sobre o significado do álcool em nossas vidas. Participam de duas a cinco pessoas e você precisa de uma mesa, uma cadeira e um copo com a bebida alcoólica que desejar. Evite problemas legais e jogue apenas com maiores de idade. Um dos participantes senta-se à mesa, diante do copo. Ele representará um personagem que reflete se deve ou não tomar aquela dose. Por motivos que serão construídos ao longo do larp, bebê-la significa a continuidade de certo modo de vida que ele estuda abandonar. Por isso, hesita e as memórias da relação com o álcool vêm a sua mente. Os demais formam um círculo amplo ao redor da mesa e são responsáveis por propôr essas memórias, que serão representadas durante o jogo. Sem decidir previamente uma ordem, algum participante anuncia uma dessas cenas do passado, indicando o ambiente onde se passa, as pessoas Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 envolvidas e o nível alcoólico do primeiro personagem (que pode variar amplamente da sobriedade ao coma alcoólico). Esses elementos começarão a definir sua biografia. Por exemplo: happy hour da empresa. Jorge e Renato - colegas de setor. Marcela - secretária. Pacheco - supervisor. Levemente embriagado. Não tenha medo de errar: o personagem será mesmo montado aos poucos e você pode adicionar os elementos que julgar mais significativos para a experiência. Lembre-se apenas de manter-se próximo da realidade - lidar com situações possíveis é a proposta desse larp. Quando anunciar os personagens, indique também quais jogadores irão representá-los, apontando-os. A pessoa à mesa, contudo, desempenha o mesmo papel em todas as memórias. Não é preciso que todos participem - se quiser, você pode propor um monólogo ao primeiro personagem. Contudo, não coloque mais papéis que jogadores em cena. Após ambiente, personagens e nível alcoólico terem sido definidos, o participante sentado à mesa se levanta e a cena começa. O proponente da recordação é também o responsável pela primeira fala, que fornecerá o início da interação. Por exemplo: Douglas, conta pro pessoal aquela história do novo estagiário com o cara do rh. Os personagens e suas relações são revelados pelo improviso, à medida que a cena se desenrola, e os participantes adicionam elementos aos papéis uns dos outros, construindo-os coletivamente. Nome, idade, hábitos, temperamento e qualquer outra característica podem ser sugeridos e devem ser incorporados ao personagem. Se alguém afirmar que sua esposa é insuportável, assuma que você é casado. Por outro lado, torne pública qualquer ideia que tiver sobre seu papel, não a guarde para si. Só assim ela fará parte do jogo. Se você definiu que seu personagem tem três filhos, diga isso em algum momento da representação. Cada memória transcorre até o jogador no papel de quem está relembrando dizer em voz alta e clara VOLTAR. Isso indica que o personagem se afastou da recordação. Ele então retorna à mesa e ao copo, enquanto os outros re-organizam em silêncio o círculo. É a vez de outro participante anunciar uma cena. As lembranças sugeridas podem estar separadas por 203 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 décadas ou pertencer a um espaço tão curto quanto a mesma noite. Além disso, os personagens podem mudar a cada cena ou se repetir por todo o jogo, os participantes conservando os mesmos papéis ou revezando-se entre eles. Lembre apenas de não pré-definir a ordem de quem indica a cena: expectativa e incerteza são partes do jogo. Se duas pessoas falarem ao mesmo tempo, parem e decidam com o olhar de quem será a vez. Quando todos tiverem proposto uma memória, o jogador volta mais uma vez a sentar-se. Após encarar o copo pelo tempo que julgar necessário, deve tomar a bebida ou levantar-se, abandonando o espaço do jogo. É o fim do larp. Conversem sobre a experiência. JOGOS DE REFERENCIA: Good Night Darlings, de Matthijs Holter; When Our Destinies Meet, de Morgan Jarl e Petter Karlsson; New Voices in Art de Tor Kjetil Edland, Arvid Falch e Erling Rognli; 13 at the table de Kristin Hammerås e Solveig Malvik; The Mothers de Frederik Berg Olsen; e Ouça no Volume Máximo de Luiz Prado. 204 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 CAFÉ AMARGO Autor: Luiz Prado Resumo Café Amargo é um jogo de representação, para 2-6 pessoas, sobre despedidas e a importância do outro em nossas vidas. PALAVRAS-CHAVE: Larp. Despedidas. Freeform. Live action roleplay ABSTRACT Café Amargo is a roleplay game, for 2-6 people, about goodbyes and the meaning of the others in our lives. KEYWORDS: Larp. Despedidas. Freeform. Live action Introdução Cedo ou tarde, as pessoas queridas nos dizem adeus. Café Amargo é um jogo de representação sobre despedidas e a importância do outro em nossas vidas. Neste jogo vocês precisam de: 205 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 - 2 a 6 pessoas - 1 a 3 horas (dependendo do número de participantes) - rolo de barbante ou lã - café forte, sem açúcar (ou outra bebida amarga, como chá verde bem forte) - garrafa térmica - 2 xícaras - 3 cadeiras (opcionais) Café Amargo acontece em cenas dramáticas sucessivas, executadas em duplas, que apresentam momentos de separação entre pessoas com fortes laços afetivos. Um dos participantes está indo embora e decide comunicar sua partida ao outro. A relação entre os dois pode ser de qualquer natureza familiar, amorosa, amizade, trabalho - mas é certo que o vínculo emocional é forte o bastante para que a separação seja dolorosa para ambos. O que é a partida também está em aberto: um filho saindo de casa, uma esposa que comunica uma doença terminal, um amante anunciando sua mudança para outro país. Sabe-se apenas que a separação põe fim ao relacionamento e que não há perspectivas de vocês voltarem a se encontrar. O jogo começa com os participantes sentados em círculo, passando uns aos outros um rolo de barbante ou lã para estabelecer quais serão os pares em cada cena. Quando todos tiverem recebido o rolo, cada pessoa estará ligada pelo fio a outras duas, com as quais representará duas cenas distintas, ora no papel de quem vai embora, ora como quem recebe a notícia da partida. Lembre-se que cada cena é diferente da anterior, com novos papéis, relações, local e motivos para a separação. Todas as cenas acontecem no meio do círculo, com os participantes em pé ou sentados em cadeiras. As cenas têm início com o personagem que partirá enchendo duas xícaras de café, ficando com uma e entregando a outra para sua dupla. Feito isso, ele então anuncia o motivo da conversa para o outro, estabelecendo ao mesmo tempo qual é a relação entre eles e qual é a natureza da separação. Por exemplo: Carlos, estamos casados há 10 anos e jamais te escondi nada, 206 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 por isso, em nome desse respeito que sinto por você, preciso dizer que não te amo mais e preciso ir embora. A construção de cada personagem e da relação existente entre eles acontece durante a própria cena, através da interação com o outro e do desenvolvimento dos elementos propostos pelo parceiro. Usando o exemplo acima, a pessoa que recebe a notícia, agora sabendo que é um homem casado chamado Carlos, poderia responder evocando momentos dos 10 anos de casamento, que deverão ser assimilados pelo outro participante. Uma cena termina quando o personagem que vai embora beber todo seu café, que deverá estar frio, e anunciar algo como - já disse tudo o que tinha para dizer. Ele então senta-se de volta no círculo e deixa o outro sozinho com sua bebida. O personagem abandonado pode levar o tempo que quiser para tomar seu café, refletindo sobre a cena. Quando terminar, é hora de encher novamente as xícaras, enquanto a próxima pessoa assume seu lugar no centro do círculo. Assim que a bebida for entregue, a nova cena começa. Quando a última pessoa abandonada terminar seu café, o jogo acaba. Com todos de volta ao círculo, é então o momento de conversar sobre as sensações e reflexões vividas durante o jogo. Recomenda-se reservar entre meia e uma hora para esse momento. JOGOS DE REFERENCIA: Good Night Darlings, de Matthijs Holter; When Our Destinies Meet, de Morgan Jarl e Petter Karlsson; New Voices in Art de Tor Kjetil Edland, Arvid Falch e Erling Rognli; 13 at the table de Kristin Hammerås e Solveig Malvik; The Mothers de Frederik Berg Olsen; Ouça no Volume Máximo de Luiz Prado, Violentina, de Eduardo Caetano. 207 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 AOS COLABORADORES NORMAS DE PUBLICAÇÃO DA REVISTA MAIS DADOS 1. A Revista MAIS DADOS aceita apenas artigos inéditos para publicação. 2. Os artigos poderão ser enviados por meio eletrônico para o e-mail da revista: [email protected] 3. Os textos encaminhados para publicação deverão ter de 15 a 30 laudas, aproximadamente com 30 linhas cada uma, excetuando-se as resenhas, que deverão ter de 5 a 8 laudas e jogos de uma á 30 laudas 3.1. Os artigos deverão ser acompanhados de resumos, em português e inglês ou espanhol, com extensão entre 5 e 10 linhas, acompanhados por 3 á 5 palavras-chave nos dois idiomas. 3.2. A formatação da primeira página deverá seguir os seguintes parâmetros: título em caixa alta, centralizado, em negrito, fonte Arial tamanho 14; subtítulo centralizado, em negrito, fonte Arial 12, com primeira letra maiúscula e o restante em caixa baixa; nome do autor, alinhado à margem direita, em negrito e em fonte Arial tamanho 12; seguido de RESUMO, PALAVRAS CHAVE, ABSTRACT e KEYWORDS, todos em fonte Arial tamanho 12. Em nota de pé de página, deverão exercer, a instituição em que trabalha e a titulação acadêmica. 3.3. O texto deve ser formatado em: a) fonte: Arial tamanho 12; b) espaçamento entre linhas: 1,5; c) margens: 3 cm superior e esquerda, 2 cm inferior e direita; d) Alinhamento: justificado e) parágrafo: recuo de 1,25 cm na primeira linha e espaçamento de 0 ponto, antes e depois. 3.4. As citações constituem-se de transcrições de materiais com mais de três linhas. Devem aparecer abaixo do texto, em fonte Arial tamanho 10, sem aspas, com recuo de 4 cm da margem esquerda, sem recuo da margem direita, que permanece alinhada ao resto do texto, e com menção ao trabalho consultado em nota de rodapé. 208 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 3.5. As ilustrações (fotos, tabelas e gráficos) quando forem absolutamente indispensáveis, deverão ser apresentadas no corpo do texto, acompanhadas da respectiva legenda (de acordo com a respectiva legenda) na sua forma definitiva. 3.6. As notas de rodapé deverão ser indicadas no corpo do texto por algarismo arábico em ordem crescente e listadas no rodapé da página, em fonte Arial tamanho 10, com alinhamento justificado e espaçamento entre linhas simples; 3.7. A publicação de jogos devem manter os seguintes elementos: titulo, nome do autor, justificativa, objetivos, estrutura de funcionamento e referência bibliográfica ou ludografia. 3.8. Fazer citação bibliográfica completa quando o autor e a obra estiverem sendo indicados pela primeira vez; em caso de repetição, utilizar: a) SOBRENOME, Nome. Op. cit., p. b) Id., data, p. c) Ibid., p.. 4. A bibliografia é dispensável, se não incorpora outras citações às ja listadas nas notas. Em caso de necessidade, a bibliografia deve ser relacionada ao final do texto em alfabética, obedecendo os seguintes modelos: 4.1. Livro: SOBRENOME, Nome. Título em negrito. Local de publicação: Editora, data. Ex.: PORTELLI, Alessandro. República dos Sciuscia. São Paulo: Salesiana, 2004. 4.2. texto em coletânea: SOBRENOME, Nome. Título. In: SOBRENOME, Nome (Org.). Título do livro em negrito. Local de publicação: Editora, data. p. inicial-final. Ex.: KHOURY, Yara Aun. Muitas memórias, outras histórias: cultura e o sujeito de história. In: ALMEIDA, Paulo Roberto de; FENELON, Déa Rirbeiro; KHOURY, Yara Aun; MACIEL, Laura Antunes (Orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d‘Água, 2004. p. 116-138. 209 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 4.3. artigo em periódico: SOBRENOME, Nome. Título. Título do periódico em negrito, Local de publicação, volume, número, página inicial-página final, mês e ano da publicação. Ex.: SOBRENOME, Nome. Titulo. Titulo do periódico em negrito. Local de publicação, volume, número, página inicial- página final, mês e ano da publicação. EX: MARTINS, Estevão. Historiografia: o sentido da escrita e a escrita do sentido.Historia & Perspectivas, Uberlândia, n. 40, p. 55-80, jan.-jun. 2009. 4.4. Trabalho acadêmico: SOBRENOME, Nome. Título em negrito: subtítulo. Ano de Depósito. Folhas. Teses/Dissertação/Monografia/Trabalho de conclusão de curso (Nome do Curso)–Unidade onde foi defendida, Universidade, Local, ano de defesa. Ex.: FREITAS, Sheille Soares. Por falar em cultura: história que marcam a cidade. 2009. 209 f. Tese (Doutorado em História Social)–Instituto de História, Universidade Federal 4.5. Artigo e/ou matéria de jornal: SOBRENOME, Nome. Título. Título do jornal, Local, data. Caderno, p. Ex.: HOFLING, E. Livro descreve os 134 tipos de aves no campus da USP. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 out. 1993. Cidades, Caderno 7, p. 15. Depoimento a Luiz Roberto de Souza Queiroz. 4.6. Imagens em movimento: TÍTULO: subtítulo. Diretor, produtor. Local: Produtora, Data. Especificação do suporte em unidades físicas. Notas complementares. Ex.: BAGDA Café. Direção: Percy Adlon. Alemanha: Paris Vídeo Filmes, 1988. 1 filme (96 min) 4.7. Documento iconográfico ( fotografias, cartões postais, gravuras e outros): 210 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 SOBRENOME, Nome. Título. Data. Características físicas (especificações do suporte, indicação de cor, dimensões). Se o documento estiver em forma impressa ou meio eletrônico, acrescentamse os dados da publicação (local, editora, data) ou endereço eletrônico. Ex.: COMETA de Harley, 1986. 1 fotografia, p&b., 12cm x 8 cm. NORMANDIA: Lago Caracaranã. Normandia: Desenho Letra e Música, 1986. 1 cartão-postal, color., 11cm x 15cm. RAUSCHER, B. B. da S. Dublê de Corpo. 1985. 10 gravuras, xirograv., p&b., 61cm x 92cm. Coleção Particular. 4.8. Documento eletrônico: Para documentos em suporte eletrônico, são necessárias, ainda, as informações sobre o endereço eletrônico, apresentado entre os sinais < >, precedidos da expressão ―Disponível em:‖ e a data de acesso ao documento, precedida da expressão ―Acesso em:‖. Ex.: AUTONOMIA universitária: anteprojeto da Andifes. Disponível em: <http://www.ufba.br/autonomia-andifes.html >. Acesso em: 30 abr. 1989. 4.9. Jogo Desenvolvedor. Titulo. Categoria. Local: ano. Ex: Grow. Perfil 5. Tabuleiro. São Paulo: 1997 5. Ao final do texto, em página anexa, informar o endereço anexo completo para correspondência e telefone de contato. 6. A simples remessa dos originais implica em autorização para publicação, que fica condicionada a provação de pelo menos 2 pareceristas do conselho executivo. Todos os trabalhos serão previamente apreciados pelo Conselho Executivo da Revista e enviados, para análise, aos pareceristas indicados por ele. 211 Revista Mais Dados – Volume 01 - 2014 7. Os originais submetidos à apreciação do Conselho Executivo não serão devolvidos. A Revista compromete-se a informar os autores sobre a publicação ou não de seus artigos. Revista MAIS DADOS Endereço: Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) Narrativa da Imaginação Revista MAIS DADOS Av. Estrela do Sul, 1946 – Bairro: Martins CEP.: 38400-399 – Uberlândia – MG (34) 3239-4068; Fax: (34) 3239-4396 Home page: http://www.narrativadaimaginacao.com/p/revista-mais-dados.html E-mail: [email protected] 212
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