Veja por dentro

Transcrição

Veja por dentro
SEGUNDA-FEIRA ♥ ♥ ♥
Eu não devia estar a escrever isto.
Devia estar a estudar, porque os nossos exames
são daqui a três semanas, e a minha mãe trancou-me
no quarto e obrigou-me a estudar matemática e geografia durante uma hora. Bem, pronto, ela não me
trancou mesmo no quarto. Mas só porque, talvez, o
meu quarto não tenha uma tranca. Eu bem que gostaria que tivesse, pois assim poderia trancá-la do lado de
fora. Ela continua a espreitar cá para dentro e a certificar-se de que estou a estudar. Defende que ler livros
de ficção não conta, e mesmo que eu tente fazê-la ver
que toda a leitura é o estudo da literatura e que estou
a aprender coisas sobre a vida e a arte, ela não me liga.
Sabe que não há nenhuma possibilidade de eu estar
na Internet ou ao telemóvel, porque não tenho um
computador só para mim e ela tirou-me o telemóvel e
guardou-o no seu escritório! Não que este me servisse
de muito, uma vez que já não tenho saldo, diga-se de
passagem.
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Ainda assim, a Cass ou a Alice podem ligar-me.
Embora eventualmente não o façam; os pais dela também ficaram muito exigentes em relação ao estudo e
aos trabalhos de casa, portanto aposto que também
estão trancadas (não no sentido literal) nos seus quartos. Há pouco tempo, os nossos pais começaram a afirmar coisas irritantes como: «Vocês já fizeram muito
este ano letivo, mas a escola ainda tem de vir em primeiro lugar». A mãe da Cass até começou a dar a
entender que, se ela não tivesse boas notas nos exames, poderia ter de frequentar uma escola especial de
verão, onde teria exercícios de matemática para fazer
sem parar. Isto é uma perspetiva terrível para a pobre
Cass e, sendo egoísta, iria mesmo estragar todos os
nossos grandes planos para o verão.
No entanto, reconheço que os nossos pais têm razão a respeito de algumas questões. Não sobre a possibilidade de forçar a Cass a ter aulas de matemática no
verão, é claro, só que é verdade que fizemos uma data
de coisas este ano. Nada aconteceu realmente quando
estávamos no primeiro ano, além daquela vez em que
a Ellie caiu ao lago na visita de estudo a Glendalough,
é certo, mas o nosso segundo ano no St. Dominic’s
tem sido surpreendentemente dramático. Quero dizer,
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em primeiro lugar a minha mãe escreveu aquele livro
horrível e toda a gente pensava que era sobre mim, e
depois conheci o Rapaz dos Jornais, o rapaz mais fixe
do mundo, e depois eu, a Cass e a Alice começámos a
nossa banda, e foi aí que o Rapaz dos Jornais se mudou para o Canadá e eu senti-me muito infeliz durante
meses e meses a fio.
Tudo isso já teria sido agitação suficiente — muito
mais agitado do que todo o primeiro ano —, mas
depois tivemos de ir à mega festa de aniversário louca da Vanessa e a Alice teve um acidente, pelo que a
banda teve de fazer uma pausa. E DEPOIS entrámos no
musical da escola e conheci o John Kowalski e andei
temporariamente maluca durante algumas semanas
(que é a única explicação para o facto de eu pensar que
ele era boa pessoa). E, em seguida, fizemos o musical.
E desde então temos andado a ensaiar com a banda e
a planear o maior verão musical de sempre.
Tenho de admitir que, de fora, pode parecer que não
tivemos muito tempo para estudar. Mas isso seria muito
injusto. Os meus pais já se esqueceram com certeza
que, quando eu estava a ensaiar para a maior produção
da escola de Mary Poppins, eles andavam obcecados
com os meus trabalhos de casa e obrigavam-me a ficar
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em casa e a estudar praticamente todas as noites em
que não ensaiávamos, e aos fins de semana também.
E quando eu andava infeliz por causa da ida do Rapaz
dos Jornais para o Canadá, às vezes acabava por fazer
os trabalhos de casa acidentalmente, porque ao fim de
algum tempo qualquer coisa era melhor do que olhar
pela janela durante horas a perguntar-me porque não
me tinha ele escrito durante dez dias. Então, na verdade, todas as nossas atividades extracurriculares não
tiveram qualquer influência nas minhas notas.
Obviamente, não vale a pena explicar isto aos meus
pais, porque eles nunca me ouvem. E isso é porque
andam totalmente obcecados com o seu mais recente
plano para me humilhar diante do mundo inteiro.
Mas não consigo escrever nada sobre isso agora, é demasiado horrível.
Oh não, já ouço a minha mãe a subir as escadas
para ver DE NOVO o que estou a fazer. É melhor ir.
TERÇA-FEIRA B
Mal posso esperar que estes estúpidos exames acabem. Continuo a sonhar em poder simplesmente ficar
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deitada a ler e em não ter de pensar em matemática
ou irlandês. Na verdade, não me lembro de como era
não ter de estudar o tempo todo. É como ter aulas
vinte e quatro horas por dia. Por falar nisso, a escola
em si está pior do que nunca, porque todos os nossos
professores se comportam como se fôssemos fazer
os exames finais em vez dos nossos exames de verão
do 9.º ano, que, sejamos realistas, não vão fazer qualquer diferença na nossa vida. Acho que alguns deles
ainda estão chateados porque nós, pessoas musicais,
passámos tanto tempo com o musical Mary Poppins.
A Prof.ª Kelly não consegue parar de falar nisso na
aula de geografia (quando não está a falar-nos de
desastres ambientais, o seu tema preferido).
— Ora, algumas de vocês devem ter estado demasiado ocupadas a cantar e a dançar para repararem —
referiu ela esta tarde, depois de discursar durante o
que pareceram ser cerca de dez anos sobre a diminuição das colheitas relacionada com o clima —, mas nós
já falámos deste assunto há alguns meses.
Até a Prof.ª Harrington começou a fazer pequenos
comentários mordazes na aula de inglês, e ela que se
mostrara muito entusiasmada com o musical quando
estávamos a fazê-lo.
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— Sei que algumas de vocês tiveram muita diversão este ano — afirmou ela —, mas precisamos de
começar a trabalhar agora e compensar todo aquele
tempo perdido!
Não sei do que estão elas a falar — continuámos a
ter aulas enquanto preparávamos o musical. Tirando
no dia do próprio musical, mas mesmo isso foi apenas durante algumas horas.
— Acho que entrar no musical devia contar como
um exame — disse a Cass quando íamos a pé para
casa. — Ou até dois exames. Quero dizer, esforçámo-nos muito para a peça e esta correu lindamente.
E aprendemos imenso. Tipo, eu aprendi a fazer cenários, e vocês aprenderam muitas canções e a interpretá-las, e todas aprendemos a produzir um grande
espetáculo. Penso que nos devíamos safar de, pelo
menos, um exame por termos feito tudo isso.
Creio que ela tem razão. Porém, infelizmente, nem
a nossa escola nem os nossos pais concordam com
a importância de todo esse trabalho árduo. O que é
bastante hipócrita da parte dos meus pais, porque
agora eles também andam a preparar um musical,
e fazem tanto barulho sobre o assunto que uma pessoa até acreditaria que estão a participar num grande
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espetáculo da Broadway em vez de numa peça que vai
ser exibida no salão da escola da nossa rua. Sim, as
minhas próprias aventuras musicais recordaram-lhes
a vez em que participaram numa louca produção da
faculdade de O Rei dos Piratas, e por isso foram à procura de uma sociedade musical local para participar
nela. Portanto, agora vão ambos entrar numa produção de Oliver!, que espero conseguir safar-me de ir ver,
porque a última coisa de que preciso, depois do ano
que tive, é de ser forçada a ver os meus pais vestidos
com roupa vitoriana a cantar sobre comida, gloriosa
comida. Mas aposto que vou acabar por ir, quer queira
quer não, e, conhecendo a minha sorte, alguém da
minha turma como a Karen Rodgers vai lá estar também, e irá chatear-me durante o resto da minha vida.
Isto pode parecer improvável, só que depois de todas as
situações embaraçosas que os meus pais me fizeram
passar este ano, não me surpreenderia se metade da
minha turma fosse assistir e os visse a desfilar no palco de cartola. É como se eles passassem a vida inteira
a arranjar novas maneiras de serem embaraçosos.
A única parte boa nesta coisa do musical é que,
daqui a poucos minutos, ambos sairão de casa para
ir a um ensaio, por isso vou fazer uma pausa no meu
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trabalho e ver televisão até que eles voltem a cantar
sobre roubar a carteira a alguém ou um tema absurdo
semelhante.
MAIS TARDE
Encontrava-me instalada em frente à televisão quando
a Rachel entrou.
— Não devias estar a estudar? — perguntou ela no
seu tom mais irritante de irmã mais velha.
— E tu, também não? — retorqui.
Ela olhou para mim.
— Os pais pediram-me para ficar de olho em ti.
— Bem, agora já me viste — respondi. — Ora, vá
lá, Rachel, estou autorizada a fazer pausas.
A Rachel suspirou e deixou de parecer tão crescida.
— Acho que sim — disse ela. — Chega-te para lá.
E então sentou-se ao meu lado no sofá e passámos
uma hora muito calma a assistir a Laurel Canyon até
ouvirmos o carro dos nossos pais.
— Depressa, desliga isso! — exclamou a Rachel,
e saltámos do sofá e corremos para a cozinha, onde a
Rachel pôs rapidamente a chaleira ao lume.
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— Olá, meninas — saudou a minha mãe quando
entrou. — O que estão a tramar? Não estiveram a
estudar?
Sinceramente! Ela não confia nada em nós.
— Não estamos a tramar nada — referiu a Rachel.
— Estou só a fazer um chá de ervas para acalmar
os nossos nervos depois de todo o nosso trabalho
árduo.
— Realmente — comentou a minha mãe. Não
parecia muito convencida.
— Como correu o ensaio? — perguntei. O que,
devo confessar, foi a melhor ideia do mundo, porque é
claro que eles se esqueceram imediatamente do nosso
estudo e começaram a falar sobre como tudo estava a
correr bem na sua produção ridícula, apesar de não
serem as estrelas do espetáculo. Ainda que já tenham
passado vinte e cinco anos desde que entraram num
musical e sejam os membros mais novos da sociedade
musical, acho que estão secretamente dececionados
por não terem conseguido papéis mais importantes.
Participam apenas no coro, embora o meu pai também
esteja a estudar para substituir o bedel Sr. Bumble, o
homem que dirige o reformatório onde o pobre Oliver
vive. A minha mãe não está sequer a estudar nenhum
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papel para a eventual substituição de alguém, mas,
como observei, não há realmente muitos papéis em
Oliver! para senhoras mais velhas. No entanto, ela não
pareceu muito consolada com essa constatação.
De qualquer modo, falaram acerca do musical
durante algum tempo e entusiasmaram-se tanto que
se esqueceram de nos dar um sermão sobre termos de
estudar. Até nos deixaram ver um pouco de televisão,
como se fôssemos miúdas normais e não escravas do
estudo. Portanto, acabou por ser uma noite bastante
agradável.
QUARTA-FEIRA l
Oh, céus. Tinha-me esquecido de que, num momento
que só posso descrever como loucura, eu contei à Prof.ª
Harrington que a minha mãe ia batizar uma personagem do seu próximo livro com o nome dela. Só fiz isso
por me sentir culpada, porque a Prof.ª Harrington
quisera realmente conhecer a minha mãe, e eu tinha
conseguido que os seus caminhos não se cruzassem,
portanto disse à stora uma grande mentira para a animar. Sei que foi estúpido, mas de alguma forma na
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altura pareceu boa ideia. Como já reconheci, foi um
momento de insanidade.
Ainda assim, eu esperava que ela tivesse esquecido o assunto porque não o referiu durante semanas,
mas é evidente que não esqueceu, como ficou provado
quando se lançou sobre mim hoje. Felizmente, esperou até ao fim da nossa aula de inglês e estávamos
todas a sair para o almoço, pelo que nenhuma das
minhas colegas assistiu.
— Ora, Rebeca — chamou ela. — Sei que é um
pouco atrevido da minha parte, mas por acaso já sabes
a que tipo de personagem a tua mãezinha vai dar o
meu nome no seu novo livro? O Gerard e eu estamos
tão animados. Ele acha que provavelmente vai ser uma
professora, como eu, mas tenho o pressentimento de
que vai ser uma enfermeira. Ou a mãe da heroína.
Santo Deus. Ela andara a pensar demasiado naquilo.
Tal como o Gerard, aparentemente. Gerard é o marido,
que é tão fã da minha mãe como a sua mulher. Embora, para ser franca, ninguém que o conhecesse suspeitaria, dado que ele parece bastante normal.
Consegui desenvencilhar-me, desculpando-me:
— Oh, a minha mãe nunca nos conta pormenores
sobre os seus livros até os terminar — o que era uma
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grande mentira. Mas sei que estou apenas a adiar o
dia terrível em que ela finalmente irá pegar no novo
livro da minha mãe e perceber que não há nenhuma
senhora Harrington nele. Ou qualquer que seja o seu
primeiro nome. Ela disse-mo a certa altura, «para poderes dizer à tua mãezinha», só que esqueci-me. Seria
Eileen? Tenho a sensação de que era Eileen.
Então, contei tudo à Cass e à Alice ao almoço,
contudo elas não foram tão compreensivas como eu
esperava.
— Por que diabo lhe foste dizer isso? — perguntou
a Cass. — Ela nunca sugeriu que a tua mãe a incluísse
num livro! Foi tudo ideia tua!
— Não sei porquê! — respondi muito infeliz.
— Senti-me culpada porque ela ficou tão dececionada
quando a minha mãe não apareceu naquela noite.
Mas não sei porque me senti mal por ela, tendo em
conta o quanto ela me atormentou durante todo o ano
por causa de adorar os «livros encantadores da minha
mãezinha». — Acho que imitei muito bem a Prof.ª
Harrington nesta parte.
— Talvez consigas convencer a tua mãe a encaixar
realmente a Prof.ª Harrington no livro — sugeriu a
Alice.
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— Mas assim teria de lhe confessar que menti à
professora — retorqui. — Ela não vai ficar muito contente se pensar que andei por aí a anunciar às pessoas
que podem entrar no próximo livro da Rosie Carberry.
— Não te preocupes, hás de inventar alguma coisa
— comentou alegremente a Cass, o que foi um pouco
insensível da sua parte, pensei. Podia ter mostrado
alguma preocupação com o meu problema. — Bom,
falemos de um assunto mais importante: o futuro das
Hey Dollface. Temos de resolver os nossos planos para
o verão. Como fazer ensaios regulares.
— Quem me dera que pudéssemos ter ensaios
regulares — afirmou a Alice com um ar infeliz. — Se
ao menos eu vivesse mais perto da cidade.
Ensaiávamos em casa da Alice, porque ela tem
vários celeiros e estábulos velhos e outros sítios ao
lado da casa. O problema é que ela e os pais só têm
todo aquele espaço porque vivem no meio do campo,
perto de Kinsealy, e é difícil eu e a Cass chegarmos
lá. Há um autocarro que passa lá de duas em duas
semanas (bem, é o que sentimos quando o perdemos), e mesmo que o apanhemos, a paragem fica a
cerca de vinte minutos a pé da casa da Alice. Então,
basicamente, temos de contar com boleias, o que não
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dá jeito aos nossos pais, e dará ainda menos quando
as férias começarem e quisermos ir para lá durante
a semana quando eles estão todos no trabalho.
É certo que a minha mãe trabalha em casa, por isso,
tecnicamente, poderia muito bem fazer uma pausa e
dar-nos boleia, mas ela fica muito irritada se alguém
sugere que trabalhar em casa é diferente de trabalhar
num escritório. Durante as férias da Páscoa tentei
convencê-la a levar-nos a Kinsealy, e ela reagiu como
se eu a tivesse interrompido a meio de uma operação
ao cérebro.
— Estou a trabalhar, Rebeca! — ouvi quando bati
à porta do seu escritório. — Será que batias à porta se
o teu pai estivesse no trabalho a dar uma palestra para
lhe pedires boleia?
Eu estava prestes a responder, «Bem, o pai não
estaria de calças de pijama no trabalho e tu estás»,
mas não disse porque sabia que iria apenas aumentar
a sua fúria.
Deste modo, andamos a tentar pensar em maneiras de contornar o problema da boleia e/ou do autocarro, só que não está a ser fácil.
— Talvez conseguíssemos arranjar um espaço para
ensaiar algures na cidade — sugeriu a Cass. — A Liz
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diz que a banda da irmã mais velha dela alugou um
sítio em Parnell Square. É um pouco velho, e a casa
de banho não funciona muito bem, mas serve para
ensaiarem. — A Liz faz parte de uma banda chamada
Bad Monkey que conhecemos na Batalha das Bandas,
e ela e a Cass tornaram-se boas amigas.
— Mas isso custa dinheiro — respondi. — E a
irmã da Liz não anda na faculdade? Quero dizer, não
acho que os nossos pais nos dariam dinheiro para
ensaiarmos num velho estúdio imundo algures.
— Bom, se calhar tens razão — admitiu a Cass.
— Ah, bem. Vamos ter de decorar o horário dos autocarros.
Ela está certa, podemos fazer isso. Não é o fim do
mundo se tivermos de continuar a ensaiar em casa da
Alice. Só que seria bom podermos ensaiar mais vezes.
Imaginem se pudéssemos ensaiar todos os dias!
Seríamos artistas de grande qualidade no fim do verão.
QUINTA-FEIRA
Estou outra vez a estudar! Bem, claro que não estou,
estou a escrever isto, mas devia estar a estudar...
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O problema é que já li tanto sobre a Reforma que os
meus olhos estão a começar a ficar vidrados, portanto
preciso de fazer uma pausa nos meus estudos académicos. No entanto, ainda estarei tecnicamente a trabalhar, porque vou elaborar uma lista do que precisamos
de fazer para tornar as Hey Dollface a melhor banda
de Dublin.
1. Ensaiar muito.
Temos ensaiado o máximo possível nos últimos tempos, apesar da dificuldade em chegar a casa da Alice,
porque tivemos de recuperar o tempo perdido. Já passaram três meses desde que a Alice caiu de uma cadeira na ridícula festa de anos da Vanessa e fraturou
o pulso. O que, naturalmente, significou que ela não
pôde tocar guitarra e a banda teve de fazer um longo
intervalo.
É verdade que depois de a Alice partir o pulso, tivemos o musical da escola para nos ocupar, no entanto
participar na maior produção de sempre de Mary
Poppins não compensou o facto de estarmos a perder
semanas e semanas de ensaios. Há uns meses pensei
que íamos ser, tipo, umas especialistas em música no
verão. Mas a Cass às vezes ainda se engana nos ritmos
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no teclado, e eu ainda tenho momentos em que me
esqueço de como se toca bateria.
Por mais estranho que pareça, a Alice, a pessoa
que esteve fisicamente incapaz de tocar o seu instrumento durante semanas e semanas, comete menos
erros do que qualquer uma de nós. Talvez ela estivesse apenas a poupar a sua força musical durante
todas estas semanas com gesso. De qualquer forma,
a Alice é muito dedicada à causa das Hey Dollface e
tem arranjado muito tempo para ensaiar depois de
tirar o gesso, o que é ótimo, já que ela é a única que
tem namorado e não o vê durante a semana. Há algumas pessoas que dariam com os pés às velhas amigas durante os fins de semana quando surgisse um
novo amor, mas não a Alice. Ela é uma boa amiga.
E uma boa colega de banda. Obviamente, o namorado
dela, o Richard, também conhecido como o Rapaz da
Bicicleta, entende, visto que ele também faz parte de
uma banda. Respeitam o trabalho um do outro.
Às vezes desejo ter também um namorado, mas,
na verdade, é ótimo não ter um rapaz em que pensar. Durante imenso tempo pensei no belo Rapaz
dos Jornais, mas depois ele mudou-se para o Canadá
e pensei nele de uma forma triste, e a seguir andei
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a pensar no John Kowalski do musical, até que percebi que ele era um tolo malcheiroso e egoísta e que
não valia a pena pensar nele. E desde então não houve
mais rapazes. Estava com receio de que pudesse ser
um pouco chato não ter alguém em quem pensar e
desejar querer vê-lo. De facto, é um alívio. Posso pensar em muitas outras coisas, como livros, e na história que comecei a escrever, e em como vamos dar
imensos concertos este verão e tornarmo-nos a maior
banda de sempre. Bem, nunca se sabe. Como disse a
Alice, «é preciso termos ambição».
O que me leva ao número dois da nossa lista.
2. Dar concertos. De preferência, muitos.
Para ser sincera, julguei que por esta altura já teríamos
dado mais concertos, porque quando terminámos o
musical tínhamos a certeza de que íamos tocar com
as Bad Monkey. Mas quando o pulso da Alice melhorou já estávamos tão perto dos exames de verão que
nenhuma de nós teve tempo para organizar um concerto (ou melhor, os nossos cruéis pais não nos deixaram), portanto este ainda não aconteceu. O problema
é que, como todas temos menos de dezoito anos,
temos de organizar um concerto à tarde, e é mais fácil
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de dizer do que fazer. Acho que é muito injusto não
podermos dar concertos à noite. A minha mãe explicou-me que as salas de espetáculos não querem ter
concertos para menores de dezoito anos, porque isso
significa que têm de fechar o bar e que geralmente
fazem a maior parte dos lucros a vender bebidas, mas
creio que eles deviam ser nobres e sacrificar uns quantos euros pelo futuro da música.
Havemos de conseguir dar um concerto de alguma
forma. Sempre que me lembro do momento (muito
breve) na Batalha das Bandas, quando tudo pareceu
dar certo e o público aplaudia e dançava, sinto um
formigueiro de felicidade. Compensou todos os irritantes ensaios em que eu não conseguia tocar bateria
como deve ser.
E pronto, é isso. Suponho que não seja uma grande lista se tem apenas dois itens. Ainda assim, concretiza uma intenção: ensaiar muito e dar concertos.
E talvez arranjar um agente que possa tratar de tudo
por nós. Embora eu não ache que isso seja muito provável.
Certo, de volta ao estudo. Sei que daqui a algumas
semanas vou poder descansar à noite e ler tudo o que
quiser, no entanto parece ainda faltar imenso tempo.
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SEXTA-FEIRA ♥ ♥ ♥
Meu Deus, estou realmente desejosa de que a escola
acabe para não ter de ver ninguém daquele sítio ridículo (para além das minhas verdadeiras amigas, claro)
durante três meses.
Hoje a Prof.ª Kelly começou a perguntar-nos onde
íamos nestas férias.
— Espero que nenhuma de vocês se vá enfiar num
avião, meninas — afirmou ela com firmeza. — Quanto
mais as pessoas voarem, mais depressa o petróleo se
acaba.
— Onde vai de férias, Prof.ª Kelly? — perguntou
a Cass, que sempre foi muito boa a distrair os professores. É um dos seus principais talentos. Já se interrogou muitas vezes se poderia usar esta habilidade em
algum tipo de carreira.
— Vou de bicicleta até ao Sul de França com um
grupo de amigos — respondeu a Prof.ª Kelly, orgulhosa. — Cem por cento movida a pedais!
Ficámos todas a olhar para ela.
— Mas, hum, e quanto ao bocado de mar? — perguntou a Cass.
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— Ah, temos de apanhar um ferry de Rosslare
para Cherbourg — admitiu a Prof.ª Kelly. — Mas isso
é muito menos prejudicial para o ambiente do que
andar de avião. E se eu não andasse nos ferries, nunca
poderia sair do país. Considero meu dever como geógrafa ver o mundo.
O que é justo, suponho. Ainda assim, acho que é demasiado a stora estar a queixar-se dos nossos destinos
de férias e a dar-nos exames de geografia horríveis.
Suponho que hoje nem tudo foi mau. Os meus
pais dignaram-se a deixar-me ir a casa da Cass depois
das aulas. Ainda estou com ciúmes do quarto dela; é
muito mais fixe do que o meu. Vou ter de convencer
os meus pais a deixarem-me redecorar o meu neste
verão; é ridículo ter um quarto tão infantil quando
tenho praticamente quinze anos. Eu própria posso
fazê-lo sozinha. Será assim tão difícil pintar sobre
papel de parede? Só preciso de um pouco de tinta e de
um escadote. E de um pincel, obviamente.
De qualquer forma, a Cass e eu estávamos deitadas na cama dela a comer Pringles e a ter conversas
profundas sobre a VIDA e o amor.
— Não tens tido notícias de tu-sabes-quem, pois
não? — perguntou a Cass.
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— Qual dos tu-sabes-quem? — retorqui. Porque
realmente não sabia.
— Do John.
— Oh, desse — respondi, irritada. Não que estivesse irritada com a Cass. Apenas com o facto de pensar no John. — Não, tinha-te contado se tivesse tido.
Pensei que o tinha visto na Griffith Avenue no outro
dia, mas era outra pessoa.
— Alguém menos malcheiroso, provavelmente —
comentou a Cass. — E quanto ao…
Eu sabia que ela se referia ao Rapaz dos Jornais.
Já não dói muito pensar nele, não como quando ele
foi para o Canadá e me senti como uma concha vazia.
Sei que ele não vai voltar, e sei que não voltaremos a
namorar, e realmente não me importo.
Mas há uma parte de mim que se sente triste sempre que penso nele. De vez em quando ouço uma
música que me faz lembrar a altura em que andávamos ou mesmo antes disso, quando eu gostava realmente dele e ficava toda animada quando ele vinha a
nossa casa recolher o dinheiro dos jornais. E é como
se algo me dominasse e eu estivesse de volta a esses
momentos por um segundo. Só que depois tenho de
regressar ao velho e chato presente. Não queria falar
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muito disto com a Cass. Lembro-me da altura em que
andei deprimida por causa do desaparecimento do
Rapaz dos Jornais e de quanto isso começou a enfurecer as minhas amigas, porque eu realmente não
prestava atenção a nada do que elas diziam. Então
contei-lhe que tivera notícias do Rapaz dos Jornais na
semana anterior e que ele estava bem.
— Mas ainda me sinto estranha quando recebo
um e-mail ou uma mensagem dele — acrescentei.
— E sempre que algo me faz lembrar dele sinto-me
um pouco triste. E não quero mesmo saber se ele
anda com outra pessoa. Isso significa que ainda estou
deprimida?
— Não me parece — respondeu a Cass. — Acho
que seria estranho se te tivesses esquecido completamente dele. E creio que uma pessoa se deve sentir
sempre um pouco estranha quando sabe que alguém
com quem andou namora agora com outra pessoa.
Isso não significa que ainda estás loucamente apaixonada por ele ou a chorar por ele ou algo do género.
É apenas normal.
A Cass pode não ter experiência pessoal no amor,
mas é certamente uma pessoa cheia de sabedoria.
Às vezes, pelo menos. E depois deixámos de falar sobre
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o amor e conversámos sobre formas de podermos ganhar dinheiro durante as férias, a fim de pagarmos um
espaço para ensaiar. A Cass sugeriu que podíamos fazer
doces como fudge e vendê-los em mercados de agricultores.
— Há um aos sábados no parque de Saint Anne,
em Raheny — disse ela. — Podíamos levar as nossas
mercadorias para lá e vendê-las entre os agricultores.
Isto parecia uma ótima ideia.
— O-oh, sim — respondi. — E iríamos dar nas vistas porque seríamos as pessoas mais jovens, e todos
ficariam impressionados. E podíamos chamar à nossa
empresa de doces Hey Dollface e vender os doces nos
nossos concertos!
— Sim! — exclamou a Cass. — E a despesa seria
muito pouca. Quero dizer, aposto que conseguimos
arranjar pequenos sacos ou caixas num supermercado por um ou dois euros. E os ingredientes também
não custariam muito. O que é preciso para confecionar fudge?
— Hum… não tenho a certeza. Açúcar, provavelmente.
— Essência de baunilha — disse a Cass com ar
sabedor. — E … hum … manteiga? Talvez ovos?
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E então percebemos que nenhuma de nós tinha
feito fudge antes. Ou quaisquer doces. Na verdade,
o único doce que eu fizera tinha sido um bolo de limão
durante as férias do Natal. Como eu disse à Cass,
ficou delicioso, embora tivesse sumo de limão a mais
(e apesar de eu ficar um pouco nervosa sempre que
ligava a batedeira elétrica não fosse dar-se o caso de
perder o controlo dela e decepar os dedos, ainda que
a minha mãe estivesse sempre a dizer que isso não ia
acontecer).
— Mas será que podemos realmente vender um
bolo encharcado? — perguntou a Cass. — Ou seja
qual for o equivalente fudge do bolo encharcado?
— Bem, aposto que apanharíamos o jeito com um
pouco de prática — declarei. Quero dizer, será assim
tão difícil?
MAIS TARDE
Falei dos planos de vendermos os nossos doces no
mercado dos agricultores artesanais à minha mãe,
e ela RIU-SE. Ela passa a vida a destruir os meus
sonhos.
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— Desculpa, querida — disse ela quando parou
de rir. — É que precisas de um pouco mais de prática antes de poderes vender doces naquele mercado.
E possivelmente de alguma licença de confeção de alimentos.
Sinceramente, pela forma como ela passa a vida
a queixar-se do quanto gasta em mim e na Rachel,
seria de pensar que veria com bons olhos os meus
planos para ganhar o meu próprio dinheiro, mas não!
O talento e a iniciativa não são incentivados nesta
DOMINGO
8
família.
O meu pai abandonou-nos! Mas apenas por alguns
dias. Foi a uma conferência em Oxford. O meu pai
é um académico, o que, no seu caso, significa que é,
basicamente, um professor de história, e que de vez
em quando vai a conferências a Inglaterra ou Nova
Jérsia ou a Istambul, onde conhece vários outros professores de história, e todos se entretêm a falar de
História da Europa Moderna, que é a «especialidade»
do meu pai. E aquilo a que chamam «História da
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Europa Moderna» não é nada moderno. É, tipo, de há
seiscentos anos, o que não faz sentido. Mas não devo
esperar algo que faça sentido se o meu pai, um homem que em tempos desempenhou o papel de um
pirata dançarino em palco, enquanto vestia calças largas douradas, tiver alguma coisa a ver com o assunto.
Ele foi a uma faculdade em Oxford chamada
Shrewsbury, que costumava ser uma faculdade só
para mulheres. Como estou numa escola só para raparigas e nunca conheço rapazes, não consigo imaginar
alguém a querer ir depois para uma faculdade só para
mulheres (a menos que goste de mulheres, obviamente), mas quando disse isto à minha mãe ela explicou que as faculdades para mulheres tinham uma
excelente tradição na educação de raparigas e que, na
verdade, elas, por vezes, se saem melhor quando não
há rapazes por perto, o que faz sentido. Continuo, porém, a achar que gostaria de ir para uma faculdade
com rapazes. Sei que disse que gosto bastante de não
ter um rapaz perturbador na minha vida agora, só
que tenho de admitir que às vezes receio nunca mais
sair com ninguém na vida. E a possibilidade de isso
acontecer seria maior se eu passasse de uma escola de
raparigas para uma faculdade só de mulheres.
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De qualquer forma, o meu pai vai passar alguns
dias em Shrewsbury a ouvir todos os seus companheiros de história a discursarem sobre guerras e outros
absurdos. Vai de avião até Londres, e a Rachel começou a dar-lhe uma lista de coisas para ele lhe comprar
no duty free, incluindo um substituto para o espetacular batom Chanel que fica bem a toda a gente e que
eu gosto de surripiar sem lhe dizer (que é, possivelmente, a razão porque este já se gastou e ela precisa
de um novo).
— E quem, diz-me, vai pagar isto tudo? — perguntou ele.
— É uma prenda de anos antecipada — respondeu a Rachel, esperançosa.
— Não pode ser — afirmou o pai. Mas levou a
lista na mesma, portanto aposto que ele vai acabar
por lhe comprar alguma coisa. Espero que seja o
batom, por motivos egoístas. Depois virou-se para
mim. — E tu, queres alguma coisa de Inglaterra,
Bex?
Talvez afinal o pai não seja assim tão mau. Neste
momento não posso deixar de pensar que ele está a
ser mais simpático do que a minha mãe destruidora
de sonhos.
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Mas, claro, assim que ele fez esta pergunta simpática não consegui pensar em nada que quisesse,
portanto respondi que lhe mandaria uma mensagem.
Tenho de aproveitar esta rara generosidade, por isso
vou ter de refletir bem.
SEGUNDA-FEIRA ♥ ♥ ♥
Não acredito nisto. Acho que a Vanessa e a Karen
podem ter resolvido os problemas da nossa banda!
Além de nos arranjarem um agente, claro. Mas ajudaram-nos também em relação aos ensaios e aos
concertos e a outras coisas. Na verdade, podem ter
solucionado todo o nosso verão. Em teoria, sinto que
devia agradecer-lhes, mas não consigo fazê-lo.
A situação deu-se hoje durante o intervalo da
manhã. Estávamos sentadas na sala de aula a falar dos
nossos planos para o verão, que para a maioria das
pessoas eram inexistentes, excetuando a Emma, que
vai para uma escola irlandesa com a melhor amiga.
A Vanessa estava sentada na mesa ao lado com aquele
que é agora o seu gangue — choca-me dizer isto: a sua
antiga subordinada Caroline, claro, e agora a
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Karen «Cara de Palerma» Rodgers, a minha arqui-inimiga. Ela e a Vanessa tornaram-se muito amigas
desde que tiveram os papéis principais no musical.
Felizmente, a Caroline e a amiga da Karen, a Alison,
também se tornaram amigas. São mais simpáticas do
que a Karen e a Vanessa e, de facto, não faria mal
nenhum se deixassem de andar com elas. Assim, esperávamos que elas se afastassem completamente e
formassem o seu próprio gangue. Mas, infelizmente,
isso ainda não aconteceu, e elas as quatro andam sempre juntas.
BOM. A Emma estava a falar da escola irlandesa,
e a Ellie comentou:
— Quem me dera poder ir para uma espécie de
faculdade de belas-artes estival em vez da escola irlandesa.
E depois a Vanessa, que nunca se importa de interromper as conversas das outras pessoas (mas ainda
bem que o fez, neste caso), disse:
— Céus, não ouviste falar do Curso de Artes de
Dublin?
E todas olhámos para ela admiradas, porque não
tínhamos ouvido.
— O que é isso? — perguntou a Ellie.
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— Não posso acreditar que não sabes nada sobre
o assunto — retorquiu a Vanessa, cheia de presunção.
— Já reservei o meu lugar no grupo de teatro há semanas. Tal como a Karen. — E ambas pareceram tão
satisfeitas consigo próprias que achei que ia vomitar.
— Mas o que é isso? — perguntou a Cass com os
dentes cerrados.
— É, tipo, um curso de verão para, tipo, adolescentes atores e artistas e músicos e outras pessoas do
género — explicou a Vanessa. Referiu que ia acontecer
na grande faculdade ao fundo da rua, e que começava
em junho. — Não se dorme lá, mas vai-se todos os
dias e há workshops e preparam-se, tipo, espetáculos
e exposições.
— Eu e o Bernard, o meu namorado, vamos finalmente representar juntos — contou a Karen. — Ele
também está a estudar arte dramática.
Foi como se uma lâmpada se tivesse acendido
por cima da minha cabeça. Não por pensar no estúpido namorado da Karen, o Bernard, que ela conheceu quando ele foi contratado para fazer de príncipe
encantado na festa da Vanessa e do qual temos todas
ouvido falar imenso nos últimos meses, mas sim por
ter ouvido as palavras «músicos» e «espetáculos».
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— Então, que tipo de músicos podem frequentar
isso? — perguntei. — Músicos clássicos?
— Oh, não sei — respondeu a Karen. — Só me
interessa o teatro.
Logo, em seguida, a Vanessa interrompeu:
— Credo, Karen, não prestas atenção a nada. — Ela
tem cá uma lata! Ela que nunca ouviu qualquer outra
pessoa na sua vida. — Vão fazer alguma coisa para,
tipo, bandas — continuou. — Chamam-lhe escola do
rock. Vão organizar, tipo, pequenos concertos e outros
eventos.
A Cass, a Alice e eu olhámos umas para as outras.
Eu sabia que estávamos a pensar a mesma coisa. Hoje
tivemos meio dia livre (viva!) porque os professores
estavam numa espécie de reunião (provavelmente a
engendrar todos os exames horríveis que nos vão dar),
pelo que a Alice ia para casa da Cass esperar pela boleia
dos pais. Eu também fui para lá, então pudemos procurar o curso online. E era verdade, havia uma escola
de rock! Onde bandas a sério iam e, tipo, nos orientavam! E aprendíamos a gravar e a organizar concertos
e tudo! Era a resposta às nossas orações.
— Temos de ir! — exclamou a Cass. — Só espero
que não seja demasiado tarde.
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— Vamos ligar aos nossos pais e ver se eles nos
deixam ir — sugeriu a Alice, de forma sensata. — E a
seguir podemos reservar o nosso lugar.
Então foi o que fizemos. Felizmente, eu tinha
saldo suficiente no meu telemóvel (pela primeira vez).
Tinha a certeza de que a minha mãe iria armar um
escândalo, uma vez que normalmente faz tudo o que
pode para atrapalhar a minha felicidade, mas para
minha surpresa, isso não aconteceu.
— Bem, isso parece uma boa ideia — reconheceu
ela. — E também muito em conta. E vai poupar-me, e
à Brenda, de vos dar boleia. Mas vou ter de confirmar
com o teu pai.
— Obrigada, obrigada, obrigada! — exclamei. — És
a melhor mãe do mundo!
Não é o que eu penso a maior parte do tempo, no
entanto falava a sério quando o disse. Então, ela ligou
ao meu pai que ainda estava em Oxford, e, por sorte,
ele não estava a ouvir pessoas a tagarelar sobre história naquela altura e pôde atender o telefone. A seguir,
ela ligou-me logo.
— O teu pai diz que sim, que podes ir — anunciou
a minha mãe, por fim. — Agora não digas que nunca
fazemos nada por ti.
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Corri para a cozinha da Cass, e os pais dela e os
da Alice também tinham dito que sim (embora a mãe
da Cass avisasse que se ela tivesse má notas nos exames teria à mesma de ir para uma escola de matemática. Não creio que isso vá acontecer, pois a Cass tem
andado realmente a estudar muito e ela é bastante boa
a matemática quando se esforça).
— Agora só temos de esperar que ainda haja vagas
— afirmou a Cass. A seguir respirou fundo e marcou
o número do escritório do curso de artes.— Saiam
da sala! — sussurrou ela. — Vou ficar nervosa a falar
com as pessoas se vocês estiverem a assistir.
Assim, fomos para o corredor. Um minuto depois,
ouvimos a Cass dizer: «Estou a ligar para saber se ainda
há vagas para bandas no Curso de Artes de Dublin»
e «Sim» e «Não» e «Está bem» e «Muito obrigada».
— Isto pode ser bom ou mau — reconheceu a
Alice com nervosismo. Mas, pouco depois, a Cass veio
à nossa procura e estava radiante.
— Ainda há vagas! Parece que só acrescentaram
a cena das bandas no último minuto, por isso não
foi tão bem divulgada como as artes e o teatro. Então
inscrevi-nos, e os nossos pais têm de ligar e pagar na
próxima semana.
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— Ainda há vagas! — exclamou a Alice.— Talvez
o Richard e os Wicked Ways também queiram ir! —
Queria ligar-lhe imediatamente, mas depois lembrou-se de que ele não tinha meio dia livre.
— Talvez as Bad Monkey queiram ir? — sugeri.
— Ná — respondeu a Cass, parecendo um pouco
desapontada. — A Liz e a Katie vão para a escola irlandesa nas duas primeiras semanas. — Mas depois
animou-se quando começámos a procurar saber mais
pormenores sobre o curso no site.
— Pensem só — disse ela. — É exatamente do que
precisamos. Um lugar para ensaiar. Mentores para
nos ensinarem os caminhos do rock!
É tudo muito excitante. Não pude ficar por muito
tempo, porque fiquei de ir diretamente para casa depois das aulas e a minha mãe ia fazer o jantar mais
cedo, mas a Alice mandou-me uma SMS mais tarde
a contar que o Richard e os Wicked Ways também
tinham conseguido um lugar. É uma pena as Bad
Monkey não poderem ir, no entanto. A Liz é muito
simpática e engraçada. Ela e a Cass veem-se muitas
vezes, e é prova do quanto gosto dela eu sentir ciúmes,
embora a Cass tenha encontrado uma nova amiga.
Bem, sinto alguns ciúmes só às vezes. Na verdade,
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todas fizemos amigos este ano. Como a Jane, que
conhecemos na festa terrível da Vanessa e que acabou
por nos salvar no musical.
O-oh. Talvez ela gostasse também de ir para o curso
de arte! Podia fazer arte dramática, pois está habituada
a aturar a Vanessa. Vou mandar-lhe uma SMS e fazer
figas.
TERÇA-FEIRA B
Meu Deus. Não sei o que se passa comigo. Fiquei
ainda mais presa na minha teia de mentiras à Prof.ª
Harrington. Depois da aula de inglês de hoje, ela chamou-me quando eu estava a tentar sair da sala e disse:
— Então, Rebeca! Já tiveste a oportunidade de perguntar à tua mãezinha sobre a minha personagem?
Não quero ser chata, mas adorava saber!
E percebi que tinha de lhe revelar a verdade. Ou,
bem, não a verdade inteira, que seria admitir que eu
lhe mentira desde o início, mas a verdade de que a
minha mãe não ia incluí-la num livro. Podia dizer-lhe
que a minha mãe — não, melhor ainda, a editora da
minha mãe — tinha decidido que nunca iria incluir
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pessoas reais nos livros, em caso de alguma delas a
processar por difamação, e que não podia mesmo
abrir uma exceção para a Prof.ª Harrington. Respirei
fundo.
— Há apenas uma questão… — comecei. Era isso.
Eu sabia que a stora ficaria desapontada, e que podia
até descarregar em mim nas aulas (embora eu achasse
que ela nunca o faria, ela é muito chata, mas não é má
de propósito). Só que não podia deixar que esta loucura continuasse por mais tempo.
— Sim? — perguntou a Prof.ª Harrington.
E assim que abri a boca, percebi que não conseguiria dizer-lhe. Sou mesmo medricas.
— Hum, a minha mãe queria ter a certeza de que
escreveu bem o seu nome — afirmei. — Como é
que se escreve mesmo?
— Como se costuma escrever Patrícia Alexandra
— respondeu a professora. — Então, bem, P-A-T-R-Í-C-I-A e, depois, A-L-E-X-A-N-D-R-A.
Bolas. Eu não esperava que ela tivesse um nome
assim. Pensei que seria muito mais… normal. E irlandês e antiquado.
— Patrícia Alexandra? — repeti sem pensar, numa
voz muito admirada. — A sério?
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A Prof.ª Harrington pareceu um pouco confusa,
como seria normal perante a minha questão de que
ela não sabia o seu próprio nome.
— Hum, sim — respondeu. — Queres que volte
a soletrá-lo?
— Oh, não, não é preciso — apressei-me a dizer.
— Bem, mal posso esperar para ler tudo sobre a
Patrícia Alexandra Harrington ficcional! — exclamou
a Prof.ª Harrington alegremente. — Vai-me informando de como está a correr!
Há apenas uma coisa a fazer. Tenho de me certificar de que a minha mãe inclui mesmo esta personagem no seu próximo livro e lhe chama Patrícia
Alexandra Harrington, sem lhe contar a minha teia
de mentiras. Vou ter de dar várias sugestões úteis.
O único problema é… bem, na verdade, há vários problemas, mas um deles é que a última vez que tentei
sugerir alguns enredos à minha mãe ela não os levou
a sério. Na verdade, até se riu de mim, como a ingrata
que é. Porém, tenho de tentar. Não posso fazer nada
neste momento, pois ela foi para o ensaio de Oliver!.
O meu pai deve estar um pouco preocupado por faltar ao ensaio, embora, como a Rachel lhe disse gentilmente, a ausência de um membro do coro não vai
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realmente fazer grande diferença (mesmo que esse
membro do coro estude para substituir o Sr. Bumble).
Ela tinha razão; quero dizer, eu própria estive no coro
do Mary Poppins. E até eu tenho de admitir que podia
ter falhado um ensaio sem que todo o espetáculo desmoronasse. De qualquer forma, a mãe pode contar-lhe o que perdeu.
QUARTA-FEIRA l
Ainda que nos obriguem a trabalhar o tempo todo,
estou a ficar muito animada com o curso de verão.
A Ellie vai fazer o curso de arte, para aprimorar as suas
capacidades de figurinista, e a Jane conseguiu arranjar
vaga em arte dramática! A sua melhor amiga da escola,
a Aoife, vai visitar a tia à Austrália durante junho, pelo
que ela esperara aborrecer-se muito durante todo o
mês e isto animou-a. Mesmo que a Vanessa e a Karen
também lá estejam.
— Acho que já devo ser imune à Vanessa nesta
fase — reconheceu ela ao telefone a noite passada.
— Afinal de contas, estivemos naquele curso de teatro
juntas e, depois, no musical.
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