Diário Sonoro: Os Cantos da cidade

Transcrição

Diário Sonoro: Os Cantos da cidade
Diário Sonoro:
Os Cantos da cidade
Por Sebastian Wiedemann
Mais do que um diário, sinto que esta imersão no sentido da escuta, a partir de uma pratica
sistemática, é uma possível cartografia sensorial daquelas fontes que geralmente anulamos -que
ouvimos mas que certamente não escutamos-, sob o pretexto de ruído/barulho. Sendo esta
denominação, a de ruído/barulho, uma construção moral que não nos deixa verdadeiramente
escutar ou atingir outros níveis de escuta.
As cidades, vertiginosas, crescem sem parar. Mas no seu movimento de avance, vestígios de
arquiteturas passadas ficam. Cantos da cidade que albergam sonoridades que tentam fugir ao
imperativo dos sons maquinais e saturadores característicos de nosso tempo.
Na tentativa por experimentar estas sonoridades aparentemente isoladas, escolhi três lugares no
bairro de Botafogo: Uma pequena vila de casas antigas cercada por dois enormes prédios nas
laterais e uma congestionada avenida na frente; o jardim da Casa Rui Barbosa e o Cemitério São
João Batista.
Ao morar num dos prédios que cercam a vila (sexto andar) decidi fazer uma escuta consecutiva de
três momentos/eventos durante uma mesma jornada para perceber as variações e modulações
sonoras no final do dia/começo da noite.
Da janela do meu quarto ou de como a pequena vila resiste a não ser esmagada:
1. Evento: Domingo 9 de março, 17:30hs.
Um tapete, uma superfície sonora pouco porosa se impõe. Bastante rugosa e densa, deixa
pouco espaço para outros sons. Ônibus, carros e caminhões se fundem num pastoso
conjunto que se derrama e que tudo o invade. Desde bloco robusto, só se desprende
ocasionalmente o som de alguma moto que sobressai. O bloco-avenida se afirma como
base compacta, onde outros eventos sonoros ínfimos se manifestam. Dois aparecem com
uma frequência bastante constante e em curtos intervalos: o som de um conjunto de
pássaros, dois ou três; e o som metálico de uma porta que é aberta e bate agudamente
quando é fechada. O bloco-avenida como monocromo cinza é constante, enquanto que o
abrir e fechar da porta com os pássaros são pingos que pulam sobre ele. Por momentos
isto acontece de modo mais organizado e por momentos menos. Estes três elementos
compõe primordialmente a paisagem sonora deste espaço, no entanto certas irrupções
inesperadas acontecem. Às vezes elas são quase imperceptíveis ou mesmo pontuais. O
caminhar de algum pedestre, a fala de um garoto, o arrastrar de uma mala de rodinhas,
uma ambulância na avenida, o sutil sobro do vento...
Os dois seguintes eventos podem ser chamados de variações deste primeiro motivo.
Variações de “Monocromo-cinza-com-porta-que-abre-e-bate-com-pássaros”.
2. Evento: Domingo 9 de março, 19:30hs.
Não é desprezível o fato que já é de noite na pequena vila. A porta que abre e bate
espaceia a sua presença, até quase o ponto de se tornar um evento pontual. A frequência
dos pássaros também é menor, embora agora seu som seja um pouco mais legível. As
irrupções isoladas quase são extintas. E certamente já não se pode falar de um
monocromo cinza do bloco-avenida. O tapete já é um pouco poroso e de um cinza puro
começamos a passar para uma serie de degrades que se espalham, encinzando, antes que
ser mesmo cinza. Há uma certa ondulação no bloco-avenida, modulações se fazem
presentes. O fluxo cinza é mais expressivo e já não mais um uníssono. Deixa de ser
compacto, deixa de ser mancha e por momento tem algum contorno.
“Cinzas-com-porta-que-abre-e-bate-com-pássaros”
3. Evento: Domingo 9 de março, 22:00hs.
Provavelmente os pássaros já estão dormindo, deixaram de fazer parte da paleta sonora.
A porta finalmente se instala como um evento pontual e isolado e a porosidade da avenida
chegou ao ponto de desmembrar o bloco. Temos cinzas separados que se repetem numa
frequência variável. Quedas a negro entre os cinzas aparecem. O vento sutil é tímido
parece que começa a encontrar um lugar...
“Cinzas-sobre-negro-porta-que-abriu-e-bateu-com-sutil-sobro-de-vento”
A casa Rui Barbosa e o jardim escondido ou não tão escondido:
(Antes de começar a descrição deste evento esclareço que o jardim se encontra na parte posterior
da casa, isto é, entre o jardim e a rua encontra-se a casa.)
4. Evento: Segunda-feira 10 de março, 13:30hs.
Em primeiro plano temos o som constante de agua que cai, mas este se funde com um
som maquinal de motor bastante parecido. Uma pequena queda de agua artificial, agua
que se faz motor, motor que se faz agua. Como no caso anterior da pequena vila, este som
constante e denso se impõe como base e tela para os demais. Pássaros aparecem, mas
nunca ficam sozinhos, convivem com pisadas sobre terra das pessoas que passam ou com
a voz de alguém conversando ao lado ou ao longe. Uma paisagem sonora rica, de varias
camadas, nos fundos se escuta um motor pequeno, possivelmente de uma maquina
cortadora de grama, que compartilha este plano posterior com a voz de crianças, uma
creche talvez. Na frente, mas também como plano de fundo sonoro, escutamos o bloco de
carros e ônibus que passam. A tela-queda-de-agua-motor é de algum modo fulgurante a
nível sonoro e sobre ela espalham-se multiplicidades de sons, como o de uma pomba
pisando a grama, um avião que passa ou um cachorro que late ao longe. As camadas e os
planos sonoros geram e determinam uma sensação de espacialidade, se esta no meio, há
uma noção de proximidades e distâncias, sensação que não era -por exemplo- tão clara na
vila. Casa Rui Barbosa virou “No-meio-entre-a-queda-de-agua-e-o-resto”.
No cemitério ou de como os mortos viram vento:
(Escuta feita no centro do cemitério São João Batista)
5. Evento: Segunda-feira 10 de março, 15:00hs.
Um sutil tecido composto pelos sons distantes da cidade faz com que o som do vento nas
árvores não caia no vazio. Distantes mas claros, também há alguns pássaros. Um galo
canta e o som de uma mosca é nítido. Um avião passa. Alguns outros insetos são notórios,
enquanto que nos fundos alguém trabalha com uma pá. O vento sopra e brinca com as
folhas secas no chão, as move com delicadeza, com pequenos empurrões. Cachorros ao
longe, o vento continua brincando com as folhas no chão. Os sons são bem contornados e
delimitados, são pontuações no espaço. Varias folhas são movidas pelo vento ao mesmo
tempo, o vento não deixa que as árvores fiquem quietas. Os pássaros voltam, o vento
escolhe só uma folha, passa entre as arvores, passa o vento...
“Com-o-vento-entre-folhas-e-arvores”
Depois desta serie de escutas, posso dizer que a notação de canto é só uma possibilidade visual. A
cidade sempre esteve presente nas escutas, mas o que para os olhos eram cantos, para os ouvidos
viraram:
“Monocromo-cinza-com-porta-que-abre-e-bate-com-pássaros”
“Cinzas-com-porta-que-abre-e-bate-com-pássaros”
“Cinzas-sobre-negro-porta-que-abriu-e-bateu-com-sutil-sobro-de-vento”
“No-meio-entre-a-queda-de-agua-e-o-resto”
“Com-o-vento-entre-folhas-e-arvores”
Os olhos veem cantos, os ouvidos fazem cantar os cantos.

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