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Transcrição

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COMA DEVAGAR…
DEVAGARINHO
JÁ SÃO MUITOS OS QUE SE ASSOCIAM AO MOVIMENTO SLOW FOOD, QUE
DEFENDE O REGRESSO AO TEMPO EM QUE UM HOMEM PODIA MORRER
DE PÉ MAS COMIA SENTADO. RODEADO DE AMIGOS E DE PRODUTOS
SABOROSOS, SAUDÁVEIS E LOCAIS.
TEXTO: RITA PENEDOS DUARTE
FOTOS: FILIPE POMBO/AFFP
Devagar se vai ao longe, já dizia a
tartaruga à lebre. Neste caso é um
caracol o protagonista da história.
Símbolo do movimento Slow Food
pretende lembrar como sabe bem
cozinhar quando os produtos são bons
e a companhia melhor ainda. Sem
pressas e com bom tempero.
“Em determinado momento da minha
vida comecei a achar que era muito
importante saber o que comia, com
quem e como eram confeccionados
os alimentos”, diz Victor Lamberto,
engenheiro geólogo e responsável pelo
Convivium Alentejo, estrutura local do
Slow Food em Portugal. Estes são os
três vértices do triângulo do movimento. “Um alimento deve ser limpo,
justo e bom”, continua. E explica:
“Deve fazer bem, ser saboroso e não
prejudicar o ambiente”.
O Slow Food nasceu em Itália em
1986, pela mão de Carlo Petrini.
Se este jornalista italiano já sentia a
necessidade de criar um movimento que agregasse as pessoas que
queriam reagir ao sucesso da comida
fast-food, a abertura de uma loja da
cadeia McDonald’s em plena Praça
de Espanha, no coração da cidade de
Roma, deu-lhe a justificação perfeita.
Hoje são mais de 100 mil membros,
espalhados por 132 países. As suas
actividades vão desde a organização
do Salão do Gosto, onde produtores de todos os países mostram o
resultado das suas colheitas, trocam
ideias e fazem contactos, à organização de abaixo-assinados em nome da
redução de emissão de carbono, para
preservar a indústria vinícola. Mas
também acarinham projectos dirigidos a comunidades rurais na Bolívia
amazónica, que recuperam técnicas
agrícolas para impedir que percam as
culturas durante as cheias anuais.
Em Portugal foi Virgínia Kristensen,
cujo apelido dinamarquês ganho
por casamento esconde as origens
alentejanas, que iniciou o movimento, juntamente com o marido. Corria
o ano de 1997. Dava-se origem ao
Convivium Arrábida que, entretanto,
se juntou ao do Alentejo.
EM CÂMARA LENTA
O Slow Food não só defende um
modo de vida sem pressa, que se
estende à cozinha, mas também
a necessidade de conhecermos e
preservarmos os métodos rurais e
artesanais de cultivar e cozinhar, além
da defesa da biodiversidade vegetal e
animal. A educação é uma das suas
bandeiras. Paulina da Mata, do Centro
de Química Fina e Biotecnologia da
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SAÚDE E BEM-ESTAR
Juliene Victor, chef no
restaurante Magia dos
Sabores, preparou um
ratatouille com cuscus
e frutos secos para
aproveitar as ervas e
legumes da época
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SAÚDE E BEM-ESTAR
Universidade Nova de Lisboa, tem
participado em várias actividades deste movimento na óptica da formação.
“Desde sempre me interessei pela
cozinha, mas também pela educação.
Por isso, comecei por fazer acções
de formação que juntam a ciência e
a cozinha. Organizei, com a Virgínia
Kristensen, oficinas para a educação
do gosto das crianças, numa parceria
do Slow Food com o Pavilhão do
Conhecimento/Ciência Viva”, conta. E
confirma que a vontade de aprender
é proporcional ao número de convites
feitos pelas escolas e ao feedback dos
professores. A mesma dupla organizou ciclos de conferências, palestras
em escolas, e até refeições em que os
cozinheiros eram os próprios participantes. Hoje está mais afastada do
movimento, mas não deixa de seguir
a sua filosofia. “Slow Food é um
chapéu onde cabem muitas coisas.
Estive em Itália, no Salão do Gosto,
onde se vê desde o Fernan Adriá,
um dos cozinheiros mais famosos do
mundo, até aos pequenos agricultores africanos que trazem meia dúzia
de sementes para mostrar”, diz. “O
objectivo é pensar no que se come
e na atitude com que o fazemos. As
refeições devem ser momentos de
partilha”, continua.
ARCA DO GOSTO
Se a educação é uma das vertentes do movimento, esta justifica-se
pela necessidade de preservação de
conhecimentos antigos. Para isso, à
semelhança de uma Arca de Noé, o
movimento procurou uma forma de
não perder os sabores tradicionais
no dilúvio que é esta vida moderna.
Foi criada, por isso, a Arca do Gosto,
onde especialistas internacionais
catalogam os alimentos relacionados
com comunidades específicas, com
qualidades de gosto extraordinárias e
cuja produção seja feita por pequenas estruturas, de forma artesanal e
segundo métodos agrícolas sustentáveis. Portugal já contribuiu com a
broa de milho de Arcos de Valdevez,
a laranja de Ermelo, o chouriço Mirandês, o queijo de Serpa e o feijão
tarrestre de Soajo e Peneda. “O
que é curioso é que estes produtos
HÁ MAIS DE 100
MIL MEMBROS
DO MOVIMENTO
SLOW FOOD
ESPALHADOS
POR 132 PAÍSES,
INCLUINDO
PORTUGAL
começam por ser desconhecidos ou
desconsiderados. Depois são descobertos pelos especialistas e passam
a ser de consumo gourmet. Só nesse
momento é que se desperta para eles
e, então, passam a ser consumidos”,
afirma Victor Lamberto. “As pessoas
vão à procura do que já conhecem.
Têm medo de arriscar. Ora, os nossos
antepassados andaram por esses
mares fora e trouxeram inúmeros
tesouros que enriquecerem a nossa
gastronomia. Não os merecemos”.
COZINHA DA MODA
Melhor ou pior, todos precisamos de
comer. Caso contrário, este conjunto de moléculas e átomos que nos
compõe cessa de existir. Talvez por
isso seja um assunto que atrai polémicas. Há tantas opiniões quantas
as pessoas na Terra. Hoje comemos
melhor ou pior do que há 50 anos?
“As pessoas hoje comem com algum
complexo de culpa. A pensar nas
calorias que os produtos têm. Nós
lembramo-nos do cheiro de determinados pratos da infância, mas os
miúdos de hoje não passam por essa
experiência. E a comida tem a ver
com toda essa vivência emocional,
que é mais importante que tudo o
resto”, diz Paulina da Mata.
Victor Lamberto concorda. “Não
tenho a certeza de que os portugueses estejam mais preocupados
com o que comem. Por exemplo, os
espanhóis convivem, não têm televisão nos restaurantes. E, no final da
refeição, se pergunto o que há como
digestivo, trazem licores da sua terra.
Cá, bebe-se uísque”, critica.
De acordo com estas opiniões, Portugal vai contra a corrente do resto
da Europa. Um estudo realizado pela
empresa espanhola Ipsos Marketing,
divulgado em Agosto deste ano,
concluiu que os consumidores dos
18 países inquiridos (onde Portugal
não se encontra) têm três exigências
para com a indústria alimentar: que
apresente ingredientes frescos, que
estes tragam benefícios para a saúde
e que as embalagens respeitem o
meio ambiente. O estudo revelou
ainda que há um crescente interesse
nos produtos frescos, na saúde e na
sustentabilidade do planeta.
Duarte Calvão, jornalista gastronómico
e coordenador do projecto de gastronomia da Associação de Turismo
de Lisboa, explica esta inversão dos
hábitos. “Estamos num ponto de viragem. Por um lado, a nossa esperança
de vida é maior, por outro começámos
a ter as doenças do desenvolvimento:
obesidade, cancro, doenças cardiovasculares”. Percebe-se, assim, que
o público esteja mais receptivo a hábitos saudáveis, apesar de Portugal
não colocar estas exigências no topo
das suas preferências. “Mas mesmo
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Para Victor Lamberto, do Slow
Food Portugal, os petiscos,
mesmo ao balcão, permitem
experienciar uma enorme
variedade de sabores
no nosso país observa-se uma
mudança. Já começa a perder-se o
fascínio exercido pela fast-food ou
pela comida padronizada”, garante.
E coloca os louros nos activistas
do Slow Food. “Apesar de ser um
movimento minoritário tem um lado
positivo: obriga a indústria alimentar
a preocupar-se com os seus produtos. Trabalhando, inclusivamente,
com cozinheiros conhecidos”.
DO PRODUTOR AO CONSUMIDOR
Adepto dos petiscos, Victor Lamberto
descreve com extremo pormenor as
pérolas da gastronomia alentejana
que vai encontrando nas suas tascas
de eleição. “Não são tabernas, são
mesmo tascas, com mesas corridas
de madeira, onde se canta quando
apetece e se partilha o vinho do
proprietário”. Não cozinha frequentemente, mas quando o faz procura
pratos menos comuns. “Vou em
busca de coisas que fazem parte da
arqueologia gastronómica”. E gosta de
fazê-lo a beber um copo de bom vinho
e à conversa com a família e amigos.
Duarte Calvão também não cozinha
com frequência. Por razões profissionais come normalmente o que outros
preparam. Mas quando se dedica
aos tachos, procura nos mercados
municipais ou biológicos os produtos
que lhe enchem as medidas. “Devíamos aproveitar a variedade existente
em Portugal. Há muitos anos que
não compro fruta ou vegetais que
não sejam portugueses, e sobretudo
de agricultura biológica. Não é uma
questão nacionalista, mas porque é
local. Além disso, devemos respeitar
a sazonalidade dos produtos. Não faz
sentido comprarmos fora de época”.
Acrescenta que se deve gastar algum
tempo nas compras, mas que “se
encontrarmos fornecedores de confiança, tudo se torna mais fácil”.
Para a chef Juliene Victor, do restaurante lisboeta A Magia dos Sabores,
torna-se mais fácil descobrir o que
usar na confecção dos seus pratos
– uma mistura de slow food e cozinha
de fusão. “A minha ementa é feita
de acordo com o que a horta tem de
mais bonito naquele dia”, explica.
Esta cozinheira, com raízes no Brasil
e o coração em Portugal, colhe os
legumes na quinta da proprietária
do restaurante, Manuela Lourenço.
“Considero que é uma delicadeza para
com o cliente apresentar alimentos
livres de produtos tóxicos”, refere.
Neste espaço lisboeta o que interes-
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SAÚDE E BEM-ESTAR
UMA AMERICANA EM “PARIS”
Louise Alice Waters é vice presidente do
Slow Food Internacional, e uma famosa
cozinheira americana cuja paixão pela
Meca da gastronomia a levou a abrir
sob o sol da Califórnia o Chez Panisse.
Ali servem-se apenas produtos vegetais
frescos e livres de químicos. Louise
Waters é também autora de sucesso
de diversos livros de culinária, onde
imperam pequenos segredos sobre como
manter uma alimentação saudável. Desenvolve igualmente um intenso trabalho
junto de infantários, para que as crianças
aprendam muito cedo a cultivar, colher e
alimentar-se de forma adequada. O seu
objectivo é que todas as escolas americanas venham a implantar este projecto,
que possibilita igualmente o acesso a três
refeições diárias.
Esta activista da alimentação saudável foi
uma das promotoras da implantação de
uma horta biológica na Casa Branca. Negada pela administração Clinton, tornouse realidade na era Obama. Em Março
deste ano, a primeira-dama Michelle
Obama garantiu que toda a família (e o
pessoal da Casa Branca) cuidará da horta
onde serão plantados 55 tipos diferentes
de vegetais, entre eles: brócolos, alfaces,
ervilhas, cebolas e espinafres. Haverá
ainda morangos, ervas aromáticas e duas
colmeias, sob supervisão do carpinteiro
da Casa Branca que também é apicultor.
Slow Food ao mais alto nível.
Uma curiosidade: foi Louise Waters que
cozinhou o sapato no pequeno documentário de Les Blank, de 1980, intitulado
Werner Herzog Eats His Shoes (Werner
Herzog come o seu sapato). O sujeito
em questão, um conceituado cineasta
alemão, jurou que comeria o seu sapato
se terminasse o seu filme Gates of Heaven. Efectivamente terminou. Les Blank
estava lá para testemunhar e Louise para
cozinhar… lentamente.„
PARA O SLOW
FOOD OS
ALIMENTOS
DEVEM SER BONS,
SABER BEM, E
NÃO PREJUDICAR
O AMBIENTE
-sa não é a rotatividade das mesas.
“Não quero stresse aqui dentro. O
que quero é tirar o stresse ao cliente.
Por isso, acho uma delícia ver que as
pessoas entram aqui às 20h30 e só
saem quando o restaurante fecha”.
O sentimento é mútuo já que são
muitos os que a interpelam na cozinha
a agradecer. “Há um grupo que vem
cá aos fins-de-semana, que se intitula
‘a malta do jardim’. São vários casais
amigos que se juntam aqui e jantam,
conversam, riem… É muito bom”.
Em Portugal não há uma onda de
restaurantes Slow Food, mas há cozinheiros que seguem a filosofia e integram, nos espaços onde trabalham
ou em pratos pontuais, os preceitos
do movimento. Bertílio Gomes é um
deles. Para Duarte Calvão ele faz, juntamente com a mulher, Maria Santos,
“dos melhores gelados que já provei”,
utilizando apenas produtos biológicos e regionais. Como não existe um
roteiro especializado no tema para
o nosso país, os interessados terão
de se munir de tempo e paciência e
procurar os locais onde os preceitos
do movimento sejam seguidos. Não
desanime. Ao fazê-lo já estará a iniciar-se no movimento Slow Food.
na educação do gosto. Que deve
começar no berço. “Os meus filhos
são homens do mundo. Aos seis
meses já provavam comida indiana.
Estão familiarizados com muitos
sabores”, diz Victor Lamberto. “As
minhas filhas estudaram em Inglaterra
e é como denuncia o programa do
cozinheiro inglês Jamie Oliver. Elas
não identificavam a comida servida ao
almoço”, lembra Paulina da Mata. O
programa em questão, revolucionou
as refeições das escolas do país.
Ensinou pais, professores, alunos e os
responsáveis pela confecção dos pratos
a usar com propriedade os legumes,
a carne e o peixe. E a apreciar o sabor
genuíno dos alimentos.
“Sem formação ou conhecimento
as pessoas serão menos exigentes”,
enfatiza Victor Lamberto. “Temos um
projecto em Évora onde os mais velhos
ensinam as crianças a conhecer as
ervas, assim como formas de cultivo e
de apanha ancestrais. Caso contrário
tudo será perdido”.
Mas esperança não falta ao movimento
Slow Food. “Lentos, não desatentos”,
brinca o responsável em Portugal. “A
parceria com o Convento do Espinheiro
permitiu recuperar a escorcioneira,
uma planta tradicional perdida desde
os anos 50. Agora vamos entregá-la
à comunidade, para que a plantem,
colham e a usem na gastronomia”.
Generosidade de quem sabe que tudo
pertence a todos. De quem conhece
e acarinha a terra. O Slow Food
acompanha o ritmo do planeta, que
nos ensina que também é necessário
cultivar a paciência quando se espera
pela qualidade.„
EDUCAR, EDUCAR
Em conversa com os especialistas,
conclui-se que a tónica é colocada
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