O patriotismo: entre a realidade e a patriotada

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O patriotismo: entre a realidade e a patriotada
O patriotismo: entre a realidade e a patriotada
Talvez a palavra patriotismo tenha vez quando seu significado não implique discriminações: a
ninguém é dado ser mais patriota por atender ao chamamento do clarim, ou ao apito de uma
"fábrica de tecidos"(como reclamava da amada operária os versos de Noel Rosa).
Enio Squeff
Em tempos não muito recentes, o Sete de Setembro, Dia da Independência do Brasil, era um
feriado de diversão pública, principalmente para as crianças: havia o desfile das tropas com
suas bandas reluzentes, os armamentos - tanques de guerra, carros blindados ou mesmo a
cavalaria - com cavalo e tudo, como nos filmes de bang-bang - e se imaginava, então, que o
Brasil só existia por sua pujança também militar. Era uma ilusão, mas, na época, os militares
do exército, da marinha e da aeronáutica andavam fardados pelas ruas. Não havia por que
estranhá-los em seus galões: faziam parte da sociedade civil. As coisas só viriam a mudar,
com o Golpe Militar que impôs a Ditadura. De um dia para o outro, instaurava-se a
desconfiança mútua. De um lado, os paisanos; de outro, os milicos. Numa música censurada,
de Chico Buarque de Holanda, o sentido de uma das frases definia a novidade: o regime
militar tinha, literalmente, inventado o pecado. E o "patriotismo", principalmente por parte
de alguns civis que aderiram ao golpe, passou realmente a cumprir o que dissera séculos
antes o inglês Samuel Johnson: seria o último reduto dos canalhas.
Talvez, nem tanto ao céu e nem tanto à terra. Millôr Fernandes parece ter definido bem as
coisas, já ao fim da Ditadura: não havia por que pensar que um militar fosse mais patriota
do que um civil, qualquer civil - o trabalhador, pai de família, cidadão simplesmente honesto.
O hábito, em suma, não faz o monge. Quase todos os intelectuais, artistas, cientistas,
professores ou simples operários nunca pensaram diferente. Quando o Barão do Rio Branco que era monarquista - perguntou a Dom Pedro II, recém destituído do poder, o que fazer
com a emergência da República, o Imperador, numa frase, legou o que se pode considerar
uma espécie de lição cívica para o futuro: o Barão que continuasse, com o seu talento, a
servir ao seu país ( já era diplomata). Sub-repticiamente, o que o antigo monarca queria
dizer era que, acima dos regimes ( e os militares que o depuseram não chegaram a instaurar
uma ditadura militar, como fariam depois de 64), o que importava era a "pátria", a pátria
brasileira. Mais importante do que o imperador, era o Brasil.
Há um certo pudor em se reivindicar o patriotismo hoje em dia, seja para o que for. Depois
de seu quase achincalhe pela Ditadura - que poucas vezes contrariou os Estados Unidos,
quando então o que era bom para os americanos, tinha, compulsoriamente de ser ótimo
para os brasileiros - o conceito como que passou a sofrer certa sanção pública. Ninguém
estranhava, a propósito, no século XVII, a definir o que fazer com o Brasil - que os
holandeses julgavam ter como se apoderar - que o Príncipe Maurício de Nassau se reportasse
à Holanda, não pelo nome, mas pela expressão "pátria". Era natural que fosse assim: a
Holanda lutava por sua independência contra a Espanha e ninguém relevou muito que,
séculos mais tarde, a palavra pátria assomasse, não apenas nas considerações de um
compositor, como o húngaro Franz Liszt; ou que, tempos depois, tanto Adolf Hitler, quanto
Winston Churchil, a invocasse, cada um a seu modo, para se justificar perante seus
respectivos países. Villa-Lobos, Cláudio Santoro, Camargo Guarnieri - para só citar alguns fizeram música autoproclamada "nacionalista".
Os mexicanos Diego Rivera e Frida Kalo ou os brasileiros Cândido Portinari e Alfredo Volpi,
nunca se incomodaram que os definissem a partir da identidade com seus respectivos países.
Talvez considerassem um exagero que os adjetivassem como "patriotas", por buscarem o
nacional. Mas certamente não julgavam descabido que alguém assacasse eventualmente o
termo para elogiá-los. Pelo que ficou de suas obras, eles não se refugiaram em nenhuma
consideração "patriótica" para fazerem o que fizeram. Assim também com outros artistas e
intelectuais que buscaram uma identidade nacional. No entanto, os militares de 64, no uso
constante da palavra "patriotismo" - justificaram muitos atos que eram exatamente o oposto
do que talvez se entenda como tal. Ao desmontarem núcleos de inteligência, de tecnologia e
de reflexão nas universidades, pela expulsão sistemática de professores e de intelectuais de
suas cátedras - muitos artistas, mas principalmente os mais conceituados cientistas - a
ditadura militar demonstrou o oposto: o impatriótico que está incutido no "entreguismo" uma palavra pouco usada hoje em dia, mas que diz bem quando um país se entrega ao
comando ( interesses) do outro. E que, até prova em contrário, quase nunca beneficia a
nação, o povo, e a comunidade devidamente "apropriada".
O Sete de Setembro já não anima muita gente. Olavo Bilac que se notabilizou por sua obra
poética, mas também por ter advogado o serviço militar obrigatório, talvez nunca cogitasse
de não ser chamado de patriota - mas quando imaginou que todo o brasileiro, ao atingir a
maioridade, devesse se alistar compulsoriamente nas Forças Armadas, tinha como esperança
- não de todo fraudada afinal - de que o capiau do interior pudesse sair de sua ignorância ou
mesmo de seu analfabetismo, ao se alistar fosse em que Arma fosse.
É estranho como as datas e as palavras evoluem ou se transformam. Na musiquinha infantil
que talvez já não se cante nas escolas primárias - aquela que proclama "marcha soldado,
cabeça de papel/ se não marchar direito, vai preso no quartel" - há uma estrofe que diz "O
quartel pegou fogo, vigia deu sinal/ acode, acode, acode a bandeira nacional"
A bandeira no lugar das vidas ou do próprio prédio do quartel? Exatamente. E assim na
canção infantil, como no famoso quadro de Pedro Américo sobre a batalha do Avaí, na
Guerra do Paraguai. Na tela imensa, que ocupa uma parede inteira do Museu Nacional de
Belas do Rio, os militares de ambos os países, em alguns trechos, lutam menos entre si, do
que em torno das respectivas bandeiras.
Nada de ilusões de que não fosse ou não seja assim, evidentemente. Há muito mais de
simbolismo nas guerras do que desconfiam nossos corações pacifistas: o soldado russo que
invadiu o Reichstag alemão, em Berlim, destruído pelas bombas e que fincou a bandeira
soviética no topo cai-não-cai do edifício, sabia que entrava para a história como herói, como
protagonista do último capítulo de uma tragédia imensa. O mesmo que aconteceu com a
famosa foto dos soldados americanos a erguerem a bandeira americana em Ivo Jima, na
guerra vitoriosa contra o Japão: a magnifica fotografia de Joe Rosenthal fez tanto sucesso,
que se transformou num dos monumentos mais cultuados dos Estados Unidos - um dos
primeiros países, a divulgar que a globalização implicava o fim das identidades nacionais. E
que o tal patriotismo não tinha sentido algum(?).
Em ambos os casos, as bandeiras são mais que simbólicas: elas tremulam como parte de
uma situação em que o patriotismo, na verdade, é o que mais conta e faz. E isso desde os
tempos imemoriais: as legiões romanas tinham seus estandartes - eram eles que os
soldados conduziam, como vanguarda simbólica de suas vitórias ( "acode, acode, acode a
bandeira nacional"). Caso emblemático, a propósito, se dará nos primórdios da revolução
francesa de 1789: acossado pelos monarquistas da Vendéia ( província da França que
resistiu à implantação da Primeira República), um menino, de nome Barra, com não mais de
13 anos, entre render-se e entregar a bandeira da República, preferiu defendê-la: morreu
trespassado, literalmente fincado ao pano que ele ousou resguardar, enrolando-o ao redor
do próprio corpo. Naturalmente, virou herói nacional, cantado em prosa e verso como o
primeiro patriota, digno do nome, a morrer como mártir da Primeira República francesa.
Talvez, enfim, a palavra patriotismo tenha vez, quando seu significado não implique
discriminações: a ninguém é dado ser mais patriota por atender ao chamamento do clarim,
ou ao apito de uma "fábrica de tecidos"(como reclamava da amada operária os versos de
Noel Rosa). Mesmo assim, a expressão é repleta de ambigüidades: para muitos, que julgam
ter sido lamentável que os holandeses não nos tivessem dominado a partir das invasões de
Pernambuco no século XVII- Calabar não foi um traidor. Aliás, ao se ler os relatos da sua
execução, por ter sido colaborador dos holandeses, surpreende a sua altivez. Não morreu a
implorar perdão. Comportou-se como um valente, ou antes, como um patriota às avessas.
Já, para os holandeses, foi mesmo um patriota, um colaborador de imensa valia.
Deve haver muito para se celebrar no Sete de Setembro. Quanto menos que a data não
pertence a grupo algum da sociedade civil: constituímo-nos, como país, a partir do chamado
"Grito do Ipiranga" no tal dia de 1822. Celebrá-lo, não deixa mesmo de ser uma questão de
patriotismo. Que pode, entretanto, a seu turno, ser uma simples patriotada, a depender do
lado em que se está. Nos anos 60, houve um jogo, em Porto Alegre, entre o Grêmio e uma
seleção da então União Soviética. Como se tratava de um evento entre equipes de duas
nações, natural que se tocassem os dois hinos, e a Banda da Aeronáutica - um bom conjunto
musical para a época - foi contratado para a tarefa. Executado o hino nacional brasileiro,
partiu-se, então, para o hino da URSS. Surpresa: os jogadores russos, até então respeitosos,
compungidos, começam a rir, sem saírem de forma, em posição de sentido, mas
extremamente divertidos. Como se tratava de uma partida com ampla cobertura da TV e do
rádio, houve a curiosidade dos jornalistas: quais os motivo das risadas? Teria o conjunto
tocado tão mal? Ou algum acorde fora do lugar havia estragado tudo?
Não, sob o ponto de vista musical não acontecera nada demais. É que, a banda, à falta da
partitura da União Soviética, tocou o hino anterior à Revolução Bolchevique, ou seja, a
"canção patriótica" que saudava o Czar. E que era conhecido da Banda da Aeronáutica; ela
se juntava, amiúde, à Orquestra Sinfônica da Porto Alegre na execução da abertura "1812",
de Tchaykovsky, quando o referido hino se sobrepunha à "Marselhesa", justamente para
celebrar o ano de 1812, na vitória dos russos sobre o franceses de Napoleão Bonaparte.
No mesmo Rio Grande do Sul, aliás, deu-se algo semelhante no jogo recente entre o
Internacional e o Chivas, do México. A TV e a imprensa em geral, não deram muita
importância ao fato - mas a Banda da Brigada Militar (PM) gaúcha - seguramente o mais
hediondo conjunto que toca o Hino Nacional nos jogos do Campeonato Brasileiro - foi
responsável por uma das maiores vaias que permeou o jogo inteiro. E se deu justamente
durante a execução do hino brasileiro. Uma vez que a banda da PM não tocou nem direito,
nem de forma completa o hino mexicano, deu-se que os jogadores do Chivas, resolveram
agir conforme o seu patriotismo lhes ditava: abandonaram a posição de sentido e
começaram a se exercitar antes que o hino brasileiro fosse literalmente "executado" pela
banda da PM gaúcha. O resultado não podia ser outro - entre compungidos, e furiosos - os
gaúchos julgaram-se desrespeitados em seu patriotismo de brasileiros. Alguns cantavam,
emocionados - patrioticamente; outros, furiosos, também patrioticamente, esganiçavam-se a
xingar os mexicanos, que, igualmente, de forma patriótica, acharam de dar o troco que eles
julgavam que a Banda gaúcha merecia por desrespeitar o hino de seu país.
Onde o patriotismo? Pensemos no Sete de Setembro: ele merece outras reflexões.
FONTE: Carta Maior

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