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1 JÉFERSON RICARDO ISIDÓRIO ANÁLISE DA LEI MARIA DA PENHA E O PRÍNCIPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Processo Civil e Magistratura da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do título de Especialista em Processo Civil e Magistratura. Orientadora: Prof.a Patrícia Uliano Effting Zoch de Moura, Msc. Tubarão 2008 2 JÉFERSON RICARDO ISIDÓRIO ANÁLISE DA LEI MARIA DA PENHA E O PRÍNCIPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES Esta Monografia foi julgada adequada à obtenção do título de Especialista em Processo Civil e Magistratura e aprovada em sua forma final pelo Curso de Direito da Universidade do Sul de Santa Catarina. Tubarão/SC, 31 de dezembro de 2008. _________________________________________________________________ Prof.a e orientadora Patrícia Uliano Effting Zoch de Moura, Msc. Universidade do Sul de Santa Catarina 3 Dedico este trabalho a Grazieli Macedo Matos (Isidório), exemplo de superação e determinação! Que bom que estaremos juntos até o fim de nossos dias. Te amo! 4 AGRADECIMENTOS Agradeço muitíssimo à professora, “mestre”, orientadora e mulher Patrícia Uliano Effting Zoch de Moura, que apesar de todos os compromissos diários, resolveu compartilhar de seus conhecimentos e aceitou mais este desafio pela incessante busca da justiça social. Muito obrigado! Agradeço também à minha avó, Fausta Isidório Gomes, pelos ensinamentos do dia-a-dia e pela rica convivência. Símbolo de resistência e força, no auge dos seus 93 anos resolveu nos deixar... Quanta saudade! 5 “Nas favelas, no Senado/ Sujeira pra todo lado/ Ninguém respeita a constituição/ Mas todos acreditam no futuro da Nação/ Que país é este?” (RENATO RUSSO) 6 RESUMO O objeto deste trabalho trata da análise da Lei 11.340/06, que ficou conhecida como “Lei Maria da Penha”, cuja edição tem gerado intensa discussão. Tem por objetivo mostrar que a Lei afronta os princípios constitucionais da igualdade (isonomia) e da proporcionalidade, sendo, portanto, passível de vício de inconstitucionalidade, posto dar maior proteção à integridade física e moral da mulher no seio da relação conjugal, em detrimento da do homem. Trata, outrossim, de outros aspectos jurídicos adotados pela novel legislação, perpassando pela análise de seu conteúdo e aplicação, além dos resultados que tem gerado. Apresenta uma crítica ao vício do legislador brasileiro em usar demasiadamente o Direito Penal como subterfúgio ou medida paliativa para solucionar as questões polêmicas da sociedade. Define ações afirmativas, ou discriminações positivas, e sua aplicação com cautela. Este trabalho foi realizado com base na pesquisa bibliográfica, em especial de livros. Através de sua análise, observar-se-á os posicionamentos divergentes adotados pelos juízes e Tribunais pátrios quando da aplicação da Lei. Palavras-chave: Lei Maria da Penha. Princípio igualdade. Princípio proporcionalidade. (In)constitucionalidade. Discriminações positivas. Igualdade formal. Igualdade material. Ações afirmativas. 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................8 2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE......................................................................................10 2.1 CONCEITO........................................................................................................................12 2.2 IGUALDADE FORMAL E IGUALDADE MATERIAL..................................................15 2.2.1 Igualdade formal............................................................................................................15 2.2.2 Igualdade material.........................................................................................................16 2.3 FINALIDADE DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE: NIVELAÇÃO SOCIAL.................17 2.4 DISCRIMINAÇÕES POSITIVAS: ATOS DE IGUALAR...............................................18 3 A “LEI MARIA DA PENHA”............................................................................................21 3.1 A LEI 11.340/06.................................................................................................................23 3.1.1 Breve histórico................................................................................................................24 3.1.2 Conceitos operacionais..................................................................................................26 3.2 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE...................................................................................27 3.2.1 A infração aos princípios da igualdade e da proporcionalidade...............................27 3.2.2 Casos práticos.................................................................................................................37 3.3 A NÃO APLICAÇÃO DA LEI N. 9.099/05......................................................................42 3.4 A DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DO AGRESSOR.................................44 3.5 AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA...............................................................46 4 IGUALDADE MATERIAL E AÇÕES AFIRMATIVAS................................................48 4.1 HOMENS X MULHERES: A REALIDADE BRASILEIRA............................................48 4.1.1 Realidade política...........................................................................................................49 4.1.2 Realidade educacional...................................................................................................52 4.1.3 Realidade no mercado de trabalho...............................................................................53 4.1.4 A mulher e o novo Código Civil....................................................................................54 4.2 AÇÕES AFIRMATIVAS E IGUALDADE MATERIAL..................................................55 4.3 DA INTERPRETAÇÃO PARA AFERIÇÃO DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE......62 5 CONCLUSÃO......................................................................................................................64 REFERÊNCIAS......................................................................................................................66 ANEXOS..................................................................................................................................71 ANEXO A – Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006..............................................................72 ANEXO B – Poesia Desilusão ...............................................................................................82 8 1 INTRODUÇÃO O objetivo do presente trabalho é analisar a (in)constitucionalidade da Lei 11.340, editada em 7 de agosto de 2006, e que entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006. A “Lei Maria da Penha”, como ficou conhecida, cujo objetivo primordial é proteger as mulheres dos maus tratos sofridos no bojo da relação conjugal, originou-se, talvez, mais da pressão popular, decisivamente influenciada pelos meios de comunicação, do que pela real necessidade legiferante, sendo, por isso, alvo das mais autênticas incongruências legais. Diante de tantas polêmicas que têm cercado a lei, sobressai-se a que trata de sua (in)constitucionalidade, por proporcionar às pessoas do sexo feminino uma proteção especial, seja ela de natureza física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial, em detrimento da do sexo masculino. Diante do exposto, o princípio da isonomia, tão enfatizado pela Constituição Federal de 1988, parece ter sido golpeado. Cuida-se, inicialmente, de discorrer a respeito do princípio da igualdade, seu significado, finalidade e de sua observação obrigatória quando da edição de diplomas legislativos, sobretudo os de cunho “discriminatório”. Trata-se, também, ainda que de forma breve, sobre a distinção entre o princípio da igualdade formal e o princípio da igualdade material, este que conduz ao fundamento teórico constitucional das medidas de desequiparação. No momento seguinte, analisa-se a Lei 11.340/06 como um todo, iniciando pelos conceitos operacionais por ela apresentados, tratando a seguir das pressões/questões históricas que impulsionaram sua edição. Aborda-se, aqui, as questões que cercam a potencial inconstitucionalidade da “Lei Maria da Penha”, sobretudo por ter afrontado os princípios constitucionais da igualdade (art. 5º, caput e inciso I, da CF/88) e da proporcionalidade, ao dar tratamento desigual ao homem quando autor de violência doméstica e familiar, beneficiando a mulher vítima. Para fundamentar a celeuma, cita-se textualmente trechos de recentes julgados de juízes e Tribunais pátrios, uns tratando a Lei como inconstitucional e outros primando por sua aplicação também ao ser masculino. Trata-se, outrossim, de alguns aspectos polêmicos adotadas pela Lei em questão, como a proibição da aplicação da Lei 9.099/95, a prisão preventiva do agressor, as medidas protetivas de urgência, etc. 9 Por derradeiro, faz-se referência às ações afirmativas (discriminações positivas), bem como ao princípio da igualdade material, com conceitos operacionais e a possibilidade de implementação de políticas de discriminação positiva no direito brasileiro, tendo em vista as diretrizes constitucionais sobre o princípio da igualdade e sobre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Chama-se a atenção, neste ponto, para que a adoção de tais medidas, ao argumento de se reequilibrar o jogo e alcançar o bem-estar e a justiça social, não se transforme em instrumento político de novas discriminações, criando privilégios através de leis que estabeleçam tratamento diferenciado a favor de uns e em detrimento de outros. O tema é inquietante e suscita problemas de aplicabilidade prática. Não é tão fácil quanto parece, pois se fácil fosse, não teria o Presidente da República, via Advocacia-Geral da União, impetrado uma Ação Declaratória de Constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal para reconhecer a Lei 11.340/06 constitucional. 10 2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE Antes de se adentrar na discussão sobre alguns dos aspectos do princípio da igualdade, faz-se necessário conceituar “princípio” e “igualdade”, tomados isoladamente. A palavra “princípio” está associada à idéia de começo, início, origem. Pode ser empregada também no sentido de normas providas de alto grau de abstração. No entender de Mello, no âmbito jurídico, Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.1 Também neste sentido se posiciona Silva, para quem os princípios jurídicos, sem dúvida, “significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito.”2 (grifo do autor) Segundo Bonavides, “Os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo o sistema normativo”3. Esclarece, ainda, a distinção entre normas e princípios, “tendo norma como gênero do qual são espécies as regras e os princípios, sendo que aquelas têm grau de generalidade relativamente baixo, ao passo que estes são dotados de alto grau de generalidade.”4 Os princípios apresentam também função orientadora, norteando o intérprete na busca de soluções jurídicas, bem como complementando o direito quanto às suas lacunas. A violação a um princípio seria, portanto, por esse tom, muito mais grave do que transgredir uma norma qualquer, posto que implicaria em ofensa não apenas a um mandamento específico, mas a todo o sistema de comandos. Constituir-se-ia na mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme a escala do princípio atingido. Já o termo “igualdade” tem motivado uma série de discussões ao longo da História da humanidade, discussão esta que tem perpassado por todas as áreas do conhecimento. Tentar compreendê-la no âmbito do pensamento jurídico-filosófico, como algo pronto e acabado, é negar a dinâmica, haja vista estar seu conceito em constante mutação. 1 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 230. 2 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 639. 3 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 258. 4 Ibid., p. 148-150. 11 Fazendo-se uma incursão pelos pensamentos dos filósofos e juristas que marcaram época, a começar por Locke e seu “estado natural”, indo além das grandes Revoluções do século XVIII e do socialismo de Marx, e chegando ao direito constitucional ocidental5, perceber-se-á as várias nuanças que contornaram a idéia de “igualdade”. Há quem defenda, como Aristóteles, que ao lado da igualdade “a desigualdade parece ser vital para a existência da própria sociedade e condição precípua para que haja um equilíbrio na vida social”6. Trata da concessão de mecanismos de compensação de situações humanas de hipossuficiência numa sociedade de classes. Certo é que, para ser compreendido, o conceito de igualdade precisa estar situado dentro de um contexto histórico específico, tendo em vista tratar-se, como mencionado, de um conceito em constante construção. Bobbio, ao tratar do conceito político, afirma que, “é preciso que se especifique com que entes estamos tratando e com relação a que são iguais, ou seja, é preciso responder a duas perguntas: a) igualdade entre quem?; e b) igualdade em quê?”7 (grifos do autor) No contexto jurídico, portanto, a idéia de igualdade, segundo Comparato, ao fazer uma análise mais detalhada, significa uma medida de comparação, não podendo ser concebida a igualdade de um só. Segundo ele, Desta forma, aquela lei que viesse a ser confeccionada visando a um só caso, possuindo um destinatário ou destinatários predeterminados, vem a ser um caso de abuso do poder legislativo. Este, em razão da competência que lhe foi delegada pelo povo, a exerce não em conformidade com o interesse do povo, mas sim em razão de interesses pessoais. Trata-se, pois, de criação de uma desigualdade absoluta.8 Mas sabe-se que o ideal de igualdade entre os homens tem servido de sustentação, sobretudo político-jurídica, para fundamentar atitudes e impedir mudanças. A idéia de “igualdade de natureza” deu lugar à idéia de “igualdade legal”, como fundamento das fontes de Poder. Para Moura, Tratar os homens com igualdade é alocá-los ao mesmo nível, ou seja, tratá-los como seres humanos. Não se admite que um ser humano seja tratado com desrespeito ou como “coisa”, por apresentar uma diferença física, social, cultural, econômica ou qualquer outra.9 (grifo da autora) 5 Para ilustrar, nas eleições municipais de Imaruí (SC), no ano de 1992, a derrubada de um grupo político que comandou a cidade por mais de sessenta anos, foi impulsionada pela defesa veemente da igualdade, uma das bandeiras levantadas pela oposição. 6 VILAS-BÔAS, Renata Malta. Ações afirmativas e o princípio da igualdade. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003. p. 1. 7 BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 3. ed. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. p. 12. 8 COMPARATO, 1998 apud VILAS-BÔAS, op. cit., p. 3. 9 MOURA, Patrícia Uliano Effting Zoch de. A finalidade do princípio da igualdade: a nivelação social: interpretação dos atos de igualar. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2005. p. 23. 12 Galuppo, convergindo para os direitos sociais, ao ser citado por Moura, explica a igualdade de forma objetiva: “[...] a igualdade tem de ser concebida como um procedimento de inclusão formal e material nos discursos de justificação e aplicação das normas, e o direito só pode ter sido legítimo se garantir esta igualdade nos discursos que realiza.”10 2.1 CONCEITO O princípio da igualdade é considerado como um dos princípios estruturantes da ordem jurídico-constitucional, exprimindo, dentre outras coisas, a busca de inclusões. Para explicá-lo, Silva aponta três concepções distintas: A concepção nominalista reconhece entre os homens desigualdades naturais, concebendo ao princípio uma conotação apenas nominal, pois a desigualdade é o substrato da existência humana. Os adeptos da concepção idealista têm nos homens seres essencialmente iguais, sendo que as desigualdades surgem a partir do convívio social. Já a concepção realista prega a coexistência da igualdade e da desigualdade. Vê os homens iguais em essência, mas diferentes num contexto social.11 O princípio da igualdade, em âmbito nacional, está consagrado na Constituição Federal de 1988 dentre os direitos fundamentais. A ênfase a tal princípio vem enunciada já no Preâmbulo, espalhando-se por inúmeros outros dispositivos, ora reforçando a igualdade ora concedendo situações isonômicas aos desiguais. Para tanto, destaca-se o art. 3°, incisos III e IV, o art. 5º, caput e inciso I, e o art. 226, §§ 5º e 8º, que assim dispõem: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; [...] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] 10 11 GALUPPO, 2002 apud MOURA, 2005, p. 38. SILVA, Luis Renato Ferreira da. O princípio da igualdade e o código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 08, p. 146-151, out./dez. 1993. p. 147. 13 § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. [...] § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.12 No entender de Moura, “O Texto consagra a igualdade como um dos objetivos da República Brasileira, além de dispô-la ora como princípio ora como regra.”13 É de se lembrar, outrossim, que o direito estrangeiro tratou pela primeira vez do princípio da igualdade na Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776, que veio a ser o primeiro documento político que reconheceu a existência de direitos que são inerentes a todos os seres humanos, seja qual for o seu sexo, raça, religião, cultura ou posição social. Desta forma, surgiu a Federação dos Estados Unidos da América do Norte sob a bandeira da liberdade e da igualdade de todos perante a lei14. A ela, seguiu-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Nessa esteira, defende Moreira que este princípio constitucional “significa a proibição, para o legislador ordinário, de discriminações arbitrárias: impõe que a situações iguais corresponda um tratamento igual, do mesmo modo que a situações diferentes deve corresponder um tratamento diferenciado.”15 Mas se constituiria pura ingenuidade acreditar que realmente “todos são iguais perante a lei”, posto que a evolução dos tempos tende a criar, fortalecer e discriminar uns grupos em detrimento de outros. Uns passam a ser, diante das relações de domínio que formam a civilização humana – econômico, político ou religioso –, mais iguais que os outros. Ao se deparar com este tipo de situação, o Estado se vê pressionado a criar formas capazes de igualar os desiguais, objetivando, como exemplo, melhores condições de vida aos potencialmente mais fracos, e com isso reduzindo as ditas diferenças sociais. E é a via enviesada da redução das discriminações e desigualdades que o Estado usa, no mais das vezes, como fundamento para fragmentar o princípio da igualdade. Com sua indesejável voracidade legiferante, diz aproximar gêneros – idosos, homens, mulheres, crianças –, mas acaba os distanciando de forma flagrante. Neste diapasão, não são raros os momentos em que a lei serve de puro instrumento para garantir privilégios e perseguições, 12 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. p. 15 e 128-129. 13 MOURA, 2005, p. 19. 14 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 90. 15 MOREIRA, Rômulo de Andrade. A lei maria da penha e suas inconstitucionalidades. Atuação, Florianópolis, v. 5, n. 11, p. 203-226, jan./abr. 2007. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br/portal/site/conteudo/cao/ceaf/revista_juridica/revista11internet.pdf.>. Acesso em: 10 abr. 2008. p. 216. 14 quando, pela lógica, deveria sim, era regular a vida social de modo a tratar todos os cidadãos de forma eqüitativa, evitando os favoritismos. Para os dias atuais, algumas situações são até aceitáveis, mas outras, imperdoáveis. Pergunta-se, então: quais critérios devem ser adotados no seio social para separar uma discriminação permitida daquela indesejada pelo princípio da igualdade? De acordo com os ensinamentos de Mello, ao se analisar o princípio da igualdade, “[...] é insuficiente recorrer à notória afirmação de Aristóteles, assaz de vezes repetida, segundo cujos termos a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”16, indagando: [...] o que permite radicalizar alguns sob a rubrica de iguais e outros sob a rubrica de desiguais? Em suma: qual o critério legitimamente manipulável – sem agravos à isonomia – que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos? Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio da isonomia?17 (grifou-se) No entender de Arns, “a igualdade resulta da organização humana, pois as pessoas não nascem iguais e não são iguais em suas vidas. É a lei que torna ou deveria tornar os homens iguais, ou seja, as diferenças deveriam ser igualadas através das instituições.”18 Pois bem, é dentro desta discricionariedade desenfreada que o Estado tem cometido as maiores imperfeições jurídicas, suplantando o fundamento de todo o Ordenamento Jurídico, “o princípio informador”, confrontando-se com a máxima de que “Todos os atos com efeitos jurídicos e todas as ações humanas devem respeitar os princípios de um sistema”19. Tudo bem que, como afirmou Bobbio, “[...] não se podem deixar de levar em conta as diferenças específicas, que são relevantes para distinguir um indivíduo de outro, ou melhor, um grupo de indivíduos de outros grupos”20, não se reconhecendo a igualdade como um princípio absoluto; mas buscar um tratamento, seja igual ou desigual, que permita uma equiparação entre todos, que permita uma existência digna. Tem-se que direito fundamental é todo direito necessário para uma existência digna, estando o princípio da igualdade nele englobado. Segundo Contar, ao citar Campos no acórdão referente ao julgamento do Recurso em Sentido Estrito nº 2007.023422-4/0000-00, 16 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. atual. (15. tiragem). São Paulo: Malheiros, 2007. p. 10. 17 Ibid., p. 11. 18 ARNS, Paulo Evaristo. Discriminação: estudos. São Paulo: LTr, 2000. p. 19. 19 MOURA, 2005, p. 33. 20 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 13. tiragem. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 71. 15 A dignidade humana é o valor fonte para definir os direitos fundamentais, isto é, os direitos fundamentais são desdobramentos da dignidade da pessoa humana, [...] reconhece-se aos direitos fundamentais a natureza principiológica constitucional de justificação do Estado. Tais direitos são fundantes, ou seja, são fontes de legitimação de todo o direito, condicionam a produção e interpretação das normas jurídicas infraconstitucionais.21 E leciona, ainda, o Desembargador: A igualdade jurídica na democracia nivela todos os cidadãos no plano da titularidade dos conteúdos normativos dos direitos fundamentais. Não há que se falar em desigualdade jurídica de direitos fundamentais, porque, uma vez que são cumpridos os direitos fundamentais, o que se tem são desníveis patrimoniais e de personalidade (identidades), sem que tal diferencial pudesse quebrar a igualdade entre as partes a ponto de recuperar a velha máxima de justiça do Estado Liberal - tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais.22 O princípio da igualdade busca um tratamento, seja igual ou desigual, que permita uma equiparação entre todos. Segundo Moura, “[...] positivado e aceito pelo Ordenamento Jurídico, não interessa apenas ao aplicador e ao criador da lei, mas a todos os homens em suas relações com o Estado e com os particulares.”23 2.2 IGUALDADE FORMAL E IGUALDADE MATERIAL Na história do Estado de Direito, duas noções de princípio da igualdade têm sido recorrentes nos textos constitucionais: a igualdade formal e a igualdade material. 2.2.1 Igualdade formal Diz respeito ao princípio da igualdade perante a lei; considera que todos os homens são iguais perante a lei. Vista de outro ângulo, significa que a lei é igual para todos. É a regra da igualdade jurídica, criada na época da Revolução Francesa como forma de se superar as diferenciações arbitrárias existentes em favor da nobreza, da burguesia e do clero, em detrimento dos súditos. 21 MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Consulta processual. Disponível em: <http://www.tjms.jus.br>. Acesso em: 14 abr. 2008. 22 Ibid., p. 8. 23 MOURA, 2005, p. 43. 16 Quando se afirma serem todos iguais perante a lei, exige-se um tratamento sem discriminações em quaisquer grupos, particulares ou não, visando a uma igualização de todos os seres humanos. Canotilho argumenta que “Ser igual perante a lei não significa apenas aplicação igual da lei. A lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos. O princípio da igualdade dirige-se ao próprio legislador, vinculando-o à criação de um direito igual para todos os cidadãos.”24 Na sua essência, está o postulado de que sejam todos os indivíduos tratados como sujeitos iguais de direitos em virtude de serem dotados de humanidade e razão, sendo irrelevante sua classe social, religião, raça ou gênero. A Constituição Federal de 1988 consagra este princípio nos artigos 3º, IV, e 5º, caput. Por ele, o Poder Político Brasileiro não pode fazer distinções que não tenham sido autorizadas pelo Poder Constituinte e, conseqüentemente, pela legislação infraconstitucional. 2.2.2 Igualdade material Refere-se à igualdade real, de fato, substancial, que por sua vez refere-se às diferenças sociais, econômicas e culturais. Trata da redução das desigualdades criadas pelo homem, perpassando pela necessidade de tratamento diferenciado àqueles grupos ou pessoas carecedoras da igualdade em razão de circunstâncias específicas. Como exemplo, a Carta Política de 1988 apresenta os artigos 3º, III, 5º, XLI e XLII, e 7º, XXX e XXXI. Surgiu da célebre frase de Aristóteles segundo a qual se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade. Diante disso, havendo necessidade, a lei passa a ter como função primordial desigualar em determinados aspectos para ter como resultado um equilíbrio justo. No entender de Grinover, [...] a lei se configura como mera ficção, já que todos os seres humanos são desiguais por sua própria natureza, tendo o legislador se recusado a manifestar sobre essa desigualdade. No entanto, ao defendermos o princípio da igualdade material, por ser dinâmica, observa-se que compete ao Estado superar as desigualdades de forma a se atingir uma igualdade real.25 24 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 417. 25 GRINOVER, 1990 apud VILAS-BÔAS, 2003, p. 22. 17 A diferença está basicamente na postura do Estado em relação à igualdade, pois enquanto o Estado Liberal se contenta em não produzir institucionalmente a desequiparação, o Estado Social arroga para si a missão de produzir a equalização como compromisso constitucional. Ao arremate, a respeito da subdivisão tratada, cita-se a lição de Cademartori: De qualquer sorte, a igualdade jurídica, tanto formal como substancial, é definida como igualdade nos direitos fundamentais. As garantias dos direitos de liberdade (ou “direitos de”) asseguram a igualdade formal ou política, enquanto as garantias dos direitos sociais (ou “direitos a”) possibilitam a igualdade substancial ou social.26 2.3 FINALIDADE DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE: NIVELAÇÃO SOCIAL Pelo entendimento de que os seres humanos, embora iguais quanto sua espécie, mostram-se desiguais quanto aos aspectos sociais, surge a razão pela busca de igualá-los. Como percebido até aqui, um dos vértices do princípio da igualdade, se corretamente interpretado e aplicado, busca uma igualização entre grupos. Segundo Rui Portanova, “a razão de existir tal princípio é propiciar condições para que se busque realizar a igualização de condições desiguais”27. Essa igualização passa pelos direitos sociais, que proporcionam o nivelamento de diferenças sociais não alcançadas por outros direitos. Para Moura, “Igualdade e direitos sociais estão intimamente ligados, sendo permitido, inclusive, afirmar que os direitos sociais têm a igualdade como objetivo fundamental”28. E completa: “Percebe-se que, além de uma conotação individualista de igualdade de tratamento, o princípio da igualdade busca, como os direitos sociais, uma igualização dos homens num contexto social, pois se vive num mundo de diferenciações flagrantes: as discriminações.”29 Retrata, ainda, o sentido finalístico do princípio da igualdade no singelo, mas esclarecedor exemplo transcrito a seguir: Imaginem dois recipientes com capacidade de 1 (um) litro de líquido essencial para uma existência digna, reconhecido como ‘edd’. Cada um deles, representados pelos símbolos g1 e g2, representa toda a vida de um determinado grupo de homens, em seus diversos aspectos: físico, social, cultural, racial, econômico, entre outros. 26 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 166. 27 PORTANOVA, 1997 apud VILAS-BÔAS, loc. cit. 28 MOURA, 2005, p. 71. 29 Ibid., p. 72. 18 A cada hora, um conta-gotas, automaticamente, pinga uma gotinha do líquido ‘edd’ em cada recipiente. O recipiente g1 possui o líquido ‘edd’ até a marca de 70 mililitros, enquanto que o recipiente g2 está marcando apenas 40 mililitros de ‘edd’. Duas indagações surgem: por que a quantidade está tão diferente a ponto de se verificar um real desnivelamento? Como nivelá-los?30 (grifos da autora) Na seqüência, responde: A resposta da primeira pergunta é variável, dependendo das questões envolvidas, como por exemplo, pode ser uma econômica, uma social, uma cultural, uma física, ou outra qualquer. Fazendo uma analogia com a questão racial: o recipiente g1 é representante do grupo de homens brancos e o g2 representa os homens negros. Apenas em 1888 os negros foram considerados seres humanos e não mais ‘coisas’, como o eram até então. O recipiente g1 já estava com muitas décadas de anos recebendo as gotinhas do líquido ‘edd’, enquanto que o g2, sendo bastante otimista, passaram a receber as gotinhas há um pouco mais de cem anos. Este é um dos motivos do desnivelamento dos recipientes. Quanto à segunda pergunta, há quem, por diversas razões, diga que com o tempo, os recipientes estarão com o mesmo nível do líquido ‘edd’. Mas por uma questão de lógica, não há tempo que permita este nivelamento. Por isso, a resposta, com base na mesma lógica que impede o nivelamento natural, é programar o conta-gotas do recipiente que está com a menor quantidade de líquido ‘edd’ para que, durante um determinado tempo, calculado com a fórmula apropriada, pingue duas vezes de uma gotinha, permitindo que num dado momento os recipientes encontrem-se nivelados.31 (grifos da autora) Como visto, o princípio da igualdade, tão bem ilustrado no exemplo, socorre-se das discriminações positivas para se “materializar”, nivelando os desiguais. Aprofunda-se esta discussão na terceira parte deste trabalho. 2.4 DISCRIMINAÇÕES POSITIVAS: ATOS DE IGUALAR O vocábulo “discriminação” deriva do latim, discriminatione, que significa ato ou efeito de discriminar, separação, apartação, segregação.32 Nem sempre o ato de discriminar se mostra contrário às normas. No entanto, a afirmação de que os homens são iguais é que leva à conclusão de que não poderá haver discriminações quanto aos seus aspectos considerados iguais. O princípio da igualdade permite, numa análise conjunta com os demais princípios fundamentais, a diferenciação de alguns grupos, para que sejam não apenas formais, mas materialmente iguais. Todavia, o tratamento diferenciado sem a observância dos 30 MOURA, 2005, p. 76. Ibid., p. 77. 32 DISCRIMINAÇÃO. In: NOVO dicionário eletrônico aurélio. 3. ed. rev. e atual. Curitiba: Positivo, 2004. 31 19 preceitos constitucionais, passaria do justo ao injusto, e estabeleceria vantagens de forma arbitrária. Por essa razão, observa-se que não é possível interpretar o princípio isonômico de forma absoluta, de forma que todo e qualquer meio de discriminação tornar-se-ia constitucionalmente proibido. Bobbio define discriminação arbitrária como “aquela introduzida ou não eliminada sem uma justificação, ou, mais sumariamente, uma discriminação não justificada (e, neste sentido, injusta).”33 (grifo do autor) Miranda entende que [...] mesmo quando a igualdade social se traduz na concessão de certas vantagens especificamente a determinadas pessoas - as que se encontram em situações de inferioridade, de carência, de menor proteção - a diferenciação ou a discriminação (positiva) tem em vista alcançar a igualdade e tais direitos ou vantagens configuramse como instrumentais no rumo para esses fins.34 Mais uma vez invocando Moura, vislumbra-se a diferença existente entre discriminação e discriminação positiva: Aquela se dá quando não há nenhum princípio a ser respeitado e/ou alcançado. Esta, ao contrário, ocorre quando, ao verificar desigualdades, visando ao respeito do princípio da igualdade e a outros essencialmente interligados, estabeleça-se na lei ou noutros atos do Estado, diferenças que permitam uma inclusão ou igualização.35 Bobbio, então, questiona: Mas será suficiente aduzir razões para tornar uma discriminação justificada? Qualquer razão ou, ao contrário, determinadas razões mais do que outras? Mas com base em que critérios se distinguem as razões válidas das inválidas? Existem critérios objetivos, ou seja, critérios que se apóiam na chamada natureza das coisas?36 (grifo do autor) E ele mesmo responde: A única resposta que se pode dar a tais questões é que existem, entre os indivíduos humanos, diferenças relevantes e diferenças irrelevantes com relação à sua inserção nessa ou naquela categoria. Mas essa distinção não coincide com a distinção entre diferenças objetivas e não-objetivas: entre brancos e negros, entre homens e mulheres existem certamente diferenças objetivas, mas nem por isso relevantes.37 No artigo 5°, inciso LXXVI, da Constituição Brasileira de 1988, por exemplo, o legislador buscou estabelecer um nivelamento, ao conceder uma vantagem aos pobres. Não há dúvida quanto à discriminação positiva existente neste comando. Assim como neste, noutros há também diferenciações que garantem o nivelamento social entre alguns grupos: a defesa do consumidor, a proteção à maternidade e à infância, a assistência jurídica aos necessitados, ao 33 BOBBIO, 1997, p. 28. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. Tomo 4. p. 225. 35 MOURA, 2005, p. 78. 36 BOBBIO, 1997, p. 28. 37 Ibid., loc. cit. 34 20 trabalhador noturno, etc. Há também, possibilidade de discriminações infraconstitucionais. Com isso, promove-se a inclusão social de grupos até então marginalizados. Onde a regra é a igualdade, deve ser justificado o tratamento desigual, evitando as arbitrariedades e promovendo a igualização nas relações entre os indivíduos. Segundo Bobbio, “Desse modo, uma desigualdade torna-se um instrumento de igualdade pelo simples motivo de que corrige uma desigualdade anterior: a nova igualdade é o resultado da equiparação de duas desigualdades.”38 Portanto, tratam as ações afirmativas de medidas imprescindíveis em um Estado Democrático de Direito, para fazer mais curta a espera de milhões de pessoas que almejam sentir-se parte da sociedade, e nem mais nem menos valoradas que o resto. Só uma ação positiva que seja suficientemente proporcional e que não produza dano desproporcional a terceiros será constitucional e poderá implantar-se com êxito no seio social. 38 BOBBIO, 1997, p. 32. 21 3 A “LEI MARIA DA PENHA” O dia-a-dia jurídico demonstra que o legislador, o que menos tem observado, são os princípios informadores do Ordenamento Jurídico pátrio. Rotineiramente são editadas leis impulsionadas por interesses de toda ordem, embaladas que são pela convulsão popular. A pressão, sobretudo da mídia em geral, instrumento dos grupos poderosos e aparelho ideológico estatal, tem redobrado o trabalho dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que as ações propugnando pela inconstitucionalidade de diplomas legislativos contaminados têm alcançado um número considerável. As chamadas leis de ocasião, que maculam a figura do legislativo, dão voz ativa à população manipulada por inconseqüentes meios de comunicação responsáveis não pelo “clamor público”, mas pelo “clamor publicado”. Estaria correto inflacionar a Ordenamento Jurídico para satisfazer grupos e distanciar seres, ou a solução à discriminação, por exemplo, viria de medidas outras separadas do sistema puramente jurídico? Cabe destacar, por uma questão de justiça, que outros fatos, embora apresentando peculiaridades respeitáveis, também têm servido de subterfúgio a esse “inchaço” legislativo. Na prática, no entanto, a efetivação destes diplomas se faz de maneira lenta e gradual. Ora, o Estado cria as leis, quase que na unanimidade carentes de outros mecanismos garantidores de sua eficácia, e é ele, o próprio Estado, com toda sua estrutura entrevada, quem normalmente não cumpre a sua parte, contribuindo, portanto, à ineficácia legal39. Foi neste descompasso que no dia 7 de agosto de 2006 editou-se a Lei Federal nº 11.34040, batizada de “Lei Maria da Penha”, responsável por uma revolução, tanto positiva quanto negativa, no Ordenamento Jurídico brasileiro no que diz respeito à violência doméstica e familiar contra a mulher. Formada por imperfeições técnicas e jurídicas de toda ordem, atropelou importantes preceitos constitucionais e aguçou a ira de muitos estudiosos da área. Como bem disse Santin, “A pretexto de proteger a mulher, numa postura ‘politicamente 39 Basta ler a Lei n. 7.210/84 – Lei de Execução Penal, para se observar o quanto o Estado é relapso na efetivação de seus compromissos. No papel, a LEP revolucionou o sistema carcerário brasileiro, mas na prática, não passou de uma grande ilusão. 40 Entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006. 22 correta’, a nova legislação é visivelmente discriminatória no tratamento de homem e mulher.”41 (grifo do autor) Entre outras perplexidades, a nova lei alterou a forma de punição dos agressores, com as penas previstas hoje variando de três meses a três anos de prisão. Antes, eram de seis meses a um ano. Também passaram a ser consideradas formas de violência doméstica as agressões psicológica, moral e patrimonial, além da sexual e da física. Foi eliminada a possibilidade de pagamento de cestas básicas ou doações como forma de punição. A lei passou a permitir, também, a prisão em flagrante dos agressores. Pois é, quando a Carta Magna consagrou dentre os direitos fundamentais a igualdade entre homem e mulher, estabeleceu uma isonomia plena entre os gêneros masculino e feminino, de modo que a legislação infraconstitucional não pode, sob qualquer pretexto, promover discriminação entre os sexos. É inegável, bem se sabe, a violência física e psicológica sofrida pela mulher ao longo dos séculos, sobretudo no âmbito familiar. Constitui fato notório que a superioridade física do homem sobre a mulher, aliada à idéia de inferiorização feminina propugnada por outros setores da sociedade, fez com que ele se tornasse hegemônico na determinação dos rumos familiares: primeiramente em casa, a mulher era prisioneira do pai, que se dava ao direito de definir com quem a filha iria se casar, e ter com ela uma disciplina mais rígida do que a tida com o filho homem; contraído o casamento, a mulher passava a prisioneira do marido, visto legalmente como chefe da sociedade conjugal. Ousar desobedecer a vontade do pai ou do marido, no seio do ambiente familiar, rendia-lhe forte repressão. O que fazer, então, para transformar essa realidade cultural secular? Optou o legislador, novamente, pelo uso da lei, apostando em que o Direito, e somente ele, pudesse ser um instrumento de transformação da realidade repleta de desigualdades e injustiças. Tudo começou com o Estatuto da Mulher Casada – Lei nº 4.121/62, quando houve um abrandamento dessa questão. Mas foi a Constituição de 1988 quem mais atenuou esta injustificável desigualdade, sobretudo jurídica, sofrida pela mulher, ao trazer à literalidade normativa a obviedade segundo a qual “homens e mulheres são iguais perante a lei”. Concomitante a tudo isso, criaram força os movimentos feministas, que passaram a questionar e derrubar ideais machistas que relegavam a mulher a uma condição inferior à do homem. As conquistas foram e estão sendo muitas! Em muito já foi superado o modelo 41 SANTIN, Valter Foleto. Igualdade constitucional na violência doméstica. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 10 abr. 2008. 23 patriarcal que dava um despótico poder ao homem para dominar a mulher, amenizando o desequilíbrio até então existente. No entanto, tais fatos, repita-se, embora notórios e historicamente inegáveis, não justificam uma especial proteção à mulher, materializada com a edição de lei especial, tendo em vista a afronta ao princípio da igualdade, que por sua vez somente admite tratamentos diferenciados ou discriminações positivas, quando decorrentes de necessidades ou de justificativas lógico-racionais. Se é verdade que as mulheres sofrem forte violência doméstica, também é verdade que os homens são vítimas desse tipo de violência, ainda que em menor proporção. Então, por que privilegiar apenas um lado? Não parece admissível uma lei voltar-se somente à tutela do gênero feminino, proporcionando sua supervalorização. Assim, a “Lei Maria da Penha” se mostra com lacunas diante da diferença duvidosamente reconhecida, a ponto de gerar uma Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC impetrada pelo próprio Presidente da República42. Nela, o Advogado-Geral da União, José Antônio Dias Toffoli, afirmou que alguns juízes e Tribunais do País têm afastado a aplicação da lei por considerá-la inconstitucional. A ação da Advocacia-Geral da União – AGU pugnou pela concessão de liminar até seu julgamento final pelo Supremo Tribunal Federal – STF, o que foi negado pelo relator, Ministro Marco Aurélio, em 21.12.2007. Para fundamentar o pedido na ADC, Toffoli citou uma série de decisões que apresentam conclusões divergentes. Numa delas, a 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul declarou a inconstitucionalidade da lei ao argumento de que ela ofendia o princípio da igualdade entre homens e mulheres. Noutra, em sentido contrário, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais não só reconheceu a lei como também estendeu a sua aplicação para homens e crianças vítimas de violência doméstica. Ambas terão trechos citados na seqüência deste capítulo. Diante de toda essa celeuma jurídica, demonstra-se a importância da presente pesquisa. 3.1 A LEI 11.340/06 42 Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19-3 - Distrito Federal. 24 A Lei 11.340/06, embora apresente uma conotação informal de natureza penal, tem natureza jurídica fundamentada na Constituição Federal, conforme se extrai da leitura de seu artigo 1º, nestes termos: Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.43 (grifou-se) Depreende-se disso que este diploma legal reveste-se de natureza jurídica nitidamente constitucional, ainda que com repercussões nas esferas administrativa, civil, penal, processual penal e, inclusive, trabalhista. 3.1.1 Breve histórico O principal documento em nível mundial sobre o tema violência doméstica foi aprovado pelas Nações Unidas em 1967, tratando-se da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, ratificado atualmente por mais de 160 países, dentre eles o Brasil. A ratificação integral desse documento em nível interno em 20.12.1994 foi o primeiro passo na tentativa de frear a violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo cônjuge. Em 2001, o emblemático caso de Maria da Penha Maia Fernandes, cujo nome serviu à Lei 11.340/2006, foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cujas recomendações encaminhadas ao Governo Brasileiro, além daquelas relativas ao caso concreto, destacam-se: A Comissão Interamericana de Direitos Humanos reitera ao Estado Brasileiro as seguintes recomendações: [...] Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil.44 43 BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm>. Acesso em: 20 nov. 2007. 44 REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS. Relatórios. Disponível em: <http://www.social.org.br/relatorio2005/relatorio035.htm>. Acesso em: 7 jan. 2008. 25 Particularmente, a Comissão recomendou o seguinte: a) instituir medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica; b) simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido processo; c) estabelecer formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas, de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às conseqüências penais que gera; d) multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes judiciais; e) incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares.45 Seguindo essas determinações, veio a Lei nº 10.455/2002, que acrescentou ao parágrafo único do art. 69 da Lei nº 9.099/95 a previsão de uma medida cautelar, de natureza penal, consistente no afastamento do agressor do lar conjugal na hipótese de violência doméstica, a ser decretada pelo Juiz do Juizado Especial Criminal. Posteriormente, foi editada a Lei 10.886/2004, que criou, no art. 129 do Código Penal, um subtipo de lesão corporal leve, decorrente de violência doméstica, aumentando a pena mínima de 3 (três) para 6 (seis) meses. É nesse compasso, que surge a Lei 11.340/2006, cujo objetivo primordial vem estampado logo em seu art. 1º, acima transcrito. Atribuindo a edição da lei nova ao fracasso dos Juizados Especiais, sobretudo Criminais, afirma Bastos, Veio, então, a Lei em comento – a Lei "Maria da Penha" –, cuja origem, não se tem dúvidas em afirmar isto, está no fracasso dos Juizados Especiais Criminais, no grande fiasco que se tornou a operação dos institutos da Lei nº 9.099/95, não por culpa do legislador, ressalva-se, mas, sem dúvida, por culpa do operador do Juizado, leiam-se, Juízes e Promotores de Justiça – que, sem a menor cerimônia, colocaram em prática uma série de enunciados firmados sem o menor compromisso doutrinário e ao arrepio de qualquer norma jurídica vigente, transmitindo a impressão de que tudo se fez e se faz com um pragmatismo encomendado simplesmente e tão-somente para diminuir o volume de trabalho dos Juizados Especiais Criminais.46 (grifo do autor) E aqui, uma vez mais, chama-se a atenção para a ineficiência da estrutura estatal, que reconhece sua falha na efetivação das normas. 45 46 REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS, loc. cit. BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher: lei "maria da penha": alguns comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9006>. Acesso em: 17 nov. 2008. 26 3.1.2 Conceitos operacionais Com o intuito de tornar claro seu propósito, a “Lei Maria da Penha” apresenta no seu bojo alguns conceitos operacionais. De acordo com o art. 5º: Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.47 (grifou-se) Além da violência física, a Lei consagrou outras formas de violência, sendo elas, a psicológica, sexual, patrimonial e moral, praticadas no âmbito doméstico, familiar ou nas relações afetivas, tendo o legislador afastado, qualquer que seja a ofensa, o rito dos Juizados Especiais. O art. 7º, então, trata de definir cada uma delas, a saber: Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.48 (grifou-se) 47 48 BRASIL, 2006. Ibid. 27 Uma primeira observação que se deve fazer diz respeito a que mulher está sujeita à proteção legal. Conclui-se que qualquer mulher está por ela tutelada, independente da idade, seja jovem, idosa ou até mesmo criança ou adolescente. Nestes últimos casos, haverá superposição de normas protetivas, pela incidência simultânea dos Estatutos do Idoso e da Criança e do Adolescente. Estabelece-se, então, mais uma forma de sujeito passivo próprio. O sujeito ativo, por sua vez, pode ser pessoa de qualquer orientação sexual49, desde que coligada com a vítima por vínculo afetivo, familiar ou doméstico. Aplica-se a lei na agressão de filho contra a mãe, de marido contra a mulher, de neto contra avó, de travesti contra mulher, de companheiro contra companheira, etc. 3.2 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE A Lei 11.340, em vigor desde 22 de setembro de 2006, criou um verdadeiro microssistema visando coibir a violência doméstica e familiar praticada contra a mulher. Não se trata apenas de um diploma de caráter repressivo, mas, outrossim, preventivo e assistencial. Ao tratar com mais rigor as infrações cometidas contra a mulher no âmbito familiar, na unidade doméstica ou em qualquer relação íntima de afeto, coloca em ponto de ebulição a polêmica da afronta à isonomia. Para atender aos seus propósitos, foram introduzidas alterações nos Códigos Penal50 e de Processo Penal51, além da Lei de Execução Penal52. Fora admitida, também, mais uma hipótese de prisão preventiva. Como tais medidas vieram favorecer à mulher em detrimento do homem, há quem sustente a inconstitucionalidade da Lei, bem como de um punhado de seus dispositivos, com base na ofensa ao princípio da igualdade de gênero. 3.2.1 A infração aos princípios da igualdade e da proporcionalidade 49 Pela redação dada ao art. 5º, parágrafo único, da Lei 11.340/06, deduz-se que estão legitimadas no Ordenamento Jurídico brasileiro, indiretamente, as relações homoafetivas. 50 O art. 43 da Lei alterou a alínea f, inciso II, do art. 61, do CP, referente às circunstâncias agravantes. Já o art. 44 da mesma lei aumentou a pena do § 9º e incluiu o § 11, ambos do art. 129 do CP. 51 O art. 42 da Lei acrescentou o inciso IV ao art. 313 do Código de Processo Penal, criando uma nova possibilidade de prisão preventiva. 52 O art. 45 da Lei 11.340/06 alterou a redação do parágrafo único do art. 152 da Lei de Execução Penal. 28 A Constituição, como se sabe, é a “Lei Maior” de um País. É nela que o poder estatal é estruturado, a atividade política regulada e estabelecidos os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Aliás, os direitos e garantias fundamentais constituem os direitos de primeira geração, que surgiram com o constitucionalismo liberal do século XVIII. Segundo Mezzomo, Hoje, de acordo com a universalmente aceita teoria da pirâmide constitucional, criada pelo jurista austríaco Hans Kelsen, podemos visualizar a Constituição como sendo o pináculo, o ponto mais alto da pirâmide legislativa, servindo ela como fundamento de validade e eficácia de todas as outras normas. Abaixo dela, vem todas as outras espécies legislativas, como por exemplo, leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias, regulamentos etc... [sic]53 Como visto, todas as demais normas têm que necessariamente se conformar à Constituição para que possam ser constitucionais. Caso contrário, elas serão consideradas inconstitucionais, o que implicaria em sua nulidade. De duas formas essa conformação deve ocorrer: “formalmente”, ou seja, devem ser produzidas de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição para cada espécie; e “materialmente”, ou seja, devem ter conteúdos que não contrariem disposições constitucionais. Nesse contexto, Slaibi Filho assevera: Ao afirmar que todos são iguais perante a lei, quer dizer a Constituição que somente ela pode criar tratamento desigual para pessoas em igualdade de condições e, realmente, ela o faz, por exemplo, ao conferir prerrogativas a parlamentares, magistrados, militares.54 (grifou-se) No entender de Celso de Mello, no voto proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.797-2: [...] O ponto está em que às leis ordinárias não é dado impor uma dada interpretação da Constituição. De tudo resulta que a lei ordinária que se limite a pretender impor determinada inteligência da Constituição é, só por isso, formalmente inconstitucional. [...] Com efeito, uma lei ordinária interpretativa não tem força jurídica para impor um sentido ao texto constitucional, razão pela qual deve ser reconhecida como inconstitucional quando contiver uma interpretação que entre em testilha com este.55 (grifou-se) Criar mecanismos que privilegie a mulher em detrimento do homem, por exemplo, num dado momento da História humana, só atrapalhará, visto que caberá ao Poder Judiciário, já assoberbado, corrigir tal disparate. Como muito bem destacou Moura, A igualdade perante a lei obriga, necessariamente, o legislador e o aplicador da norma. Àquele cumpre não conceder vantagens ou desvantagens para uns em 53 MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Compreendendo a inconstitucionalidade da Lei de Violência Doméstica. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1869, 13 ago. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11598>. Acesso em: 17 nov. 2008. 54 SLAIBI FILHO, Nagib. Anotações à constituição de 1988. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 176. 55 MELLO, 2007 apud MOREIRA, 2007, p. 219-220. 29 detrimento de outros; a este cabe respeitá-la, por pressupor-se o respeito ao princípio da igualdade pela própria lei.56 E conclui, reverenciando o princípio da igualdade: Verificando a máxima de que a Constituição está no ápice da pirâmide do ordenamento jurídico e, portanto, todas as normas devem estar de acordo com ela para serem consideradas válidas, e que os princípios constitucionais são verdades fundantes, todos os atos devem respeitar o princípio da igualdade.57 Por sua vez, Leal, citado por Contar, explica: Não há direito à diferença no plano dos direitos fundamentais já acertados constitucionalmente para todos, sob pena de romper o princípio da igualdade jurídica. A possível existência de direitos diferentes só ocorre no sobrenível da normatividade fundamental. [...] As desigualdades possíveis seriam apenas física, psíquica, cultural, estética, ideológica ou econômica.58 (grifou-se) E completa: Portanto, o negro, o índio, o homossexual, a lésbica, o deficiente não são desiguais a ninguém quanto a direitos fundamentais na teoria da constitucionalidade democrática. Tanto eles quanto os brancos, os amarelos, as mulheres, os heterossexuais: “homem ou mulher, são iguais em direitos fundamentais e titulares de igualdade processual (simetria paridade - isonomia) no direito democrático.”59 (grifo do autor) O Texto Constitucional é permeado de vedações sobre discriminação, inclusive a de natureza sexual, expressa como um dos objetivos da Lei Maior, qual seja, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”60. Por sua vez, o art. 5º, inciso I, da Constituição, consagra, dentre os direitos fundamentais, o “princípio da igualdade”, ao dizer que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”, garantindo a todos direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Assim, na lição de José Afonso, “a igualdade constitui o signo fundamental da democracia”61 e é reforçada de maneira normatizada, como acima citado. Tanto a CF/88 como as outras Constituições, enfatizaram de forma expressa tão somente a igualdade perante a lei, no sentido de que as normas devem ser elaboradas e aplicadas indistintamente a todos os indivíduos. É a denominada isonomia formal. Por esta direção, não é preciso formação jurídica para se chegar claramente a duas conclusões, extraídas da interpretação do inciso I, do art. 5º: primeiro, que estabeleceu ele a 56 MOURA, 2005, p. 42. Ibid., p. 54. 58 MATO GROSSO DO SUL, 2008. 59 Ibid. 60 Art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988. 61 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 14. 57 30 regra da igualdade entre homens e mulheres; segundo, que afirmou ser esta igualdade regulada pela própria Constituição, e somente por ela. Destas duas conclusões, ainda, uma terceira se torna possível, qual seja a de que somente as desigualdades estipuladas no próprio Texto Constitucional podem existir validamente. Os desiguais devem ser tratados de forma desigual quando e na medida em que o permita a Constituição. Ora, demais disso, em toda a estrutura constitucional não há um só ponto que autorize seja dado tratamento diferenciado a homens ou a mulheres quando em voga a condição de partes processuais ou vítimas de crime. No entender de Mezzomo, É exatamente isso que a lei de violência doméstica faz: concede uma série de instrumentos de proteção à mulher somente tendo em vista o sexo. A violência doméstica cometida contra a mulher enseja medida protetiva, contra homens não. Há ainda, uma série de diferenças em relação ao processo criminal, até mesmo em questão de competência do órgão jurisdicional e espécies procedimentais.62 Bem explica ele que Se não há autorização na própria Constituição, e lembremos que a igualdade é "nos termos desta Constituição", a lei ordinária nº 11.340/06 afronta o artigo 5º, inciso I, da CF/88, sendo inconstitucional e, portanto, visceralmente nula. Diversamente, quando vemos, por exemplo, diferenças no tempo de serviço para aposentadoria menor para as mulheres, ou na existência de licença maternidade com prazo maior, estamos diante de situações que a própria Constituição estabeleceu, diferenças que são, por conseguinte, constitucionais e válidas.63 (grifo do autor) Em contraposição a esta interpretação, tem se invocado o fato de que os idosos, as crianças e os adolescentes também têm tratamento diferenciado, com a edição dos respectivos estatutos, os quais nunca teriam sido questionados. No entanto, esta premissa é inconsistente, uma vez que idosos, crianças e adolescentes têm previsão constitucional de tratamento diverso, circunstância inexistente para as situações da “Lei Maria da Penha”. Para corroborar os comentários até aqui efetuados, transcreve-se trecho da lavra do Desembargador Romero Osme Dias Lopes, no acórdão nº 2007.023422-4/0000-00, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul: Afirma o art. 5º. I, da Constituição Federal, que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. A correta interpretação desse dispositivo torna inaceitável a utilização do discrímen sexo, sempre que o mesmo seja eleito com o propósito de desnivelar materialmente o homem da mulher; aceitando-o, porém, quando a finalidade pretendida for atenuar os desníveis. Ou seja, o “princípio da igualdade” será violado sempre que a lei gerar desequilíbrio antes inexistente nas relações entre homem e mulher. Assim, de acordo com o art. 5º, caput, da Constituição Federal, todos os cidadãos possuem direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, ou seja, tanto ao homem quanto a [sic] mulher são garantidos os direitos fundamentais, 62 63 MEZZOMO, 2008. Ibid. 31 sendo estes, portanto, o parâmetro para a igualdade e, conseqüentemente, para as diferenças. Tal se dá porque: “A igualdade jurídica na democracia nivela todos os cidadãos no plano da titularidade dos conteúdos normativos dos direitos fundamentais. Não há que se falar em desigualdade jurídica de direitos fundamentais, porque, uma vez que são cumpridos os direitos fundamentais, o que se tem são desníveis patrimoniais e de personalidade (identidades), sem que tal diferencial pudesse quebrar a igualdade entre as partes a ponto de recuperar a velha máxima de justiça do Estado Liberal – tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais.” Nesse diapasão quando a Carta Magna, dentre o rol de direitos fundamentais, consagrou igualdade entre homem e mulher estabeleceu uma isonomia plena entre os gêneros masculino e feminino, de modo que a legislação infraconstitucional não pode – sob qualquer pretexto – promover discriminação entre os sexos em se tratando de direitos fundamentais, visto que estes já lhes são igualmente assegurados. 64 (grifos do autor) De outra banda, examinando-se o artigo 226, § 8º, da CF, dispositivo este utilizado para embasar a edição da Lei 11.340/06, tem-se que o Constituinte Originário impôs ao Estado o “dever de assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” Ora, como se pode observar com clareza, o dispositivo não privilegia quem quer que seja, ao permitir a adoção de mecanismos para banir a violência no seio familiar. Se a intenção do legislador fosse beneficiar um dos sexos, teria sido explícito, o que não ocorreu. Por sua vez, a Escola do Direito Penal Mínimo65 prega que o Estado deve criminalizar apenas as condutas que afrontem os valores sociais mais elevados, para que ele atue criminalmente quando indispensável for, no sentido de que a intervenção penal somente se justifica quando absolutamente necessária para a proteção dos cidadãos. Os defensores do minimalismo, numa concepção moderna, entendem o Direito Penal como a ultima ratio da atuação estatal, intervindo apenas quando os demais ramos do Direito se mostrarem incapazes de resolver satisfatoriamente o problema. Como a Lei 9.099/95 não mereceu a devida atenção e aplicação pelos operadores do Direito, a Lei 11.340/06 se contrapôs ao movimento mundial de ressocialização, de menor intervenção estatal e de conciliação, para impor, através do caminho mais fácil do Direito Penal, um “temor” para conter a violência doméstica e familiar. Para Pileggi, A escolha é lógica e comodista: o Direito Penal tem coação, seus custos são mínimos, pois toda a estrutura está montada, necessitando de pequenos ajustes. O correto seria a adoção do sistema que a lei preconiza, mas que dificilmente será 64 65 MATO GROSSO DO SUL, 2008. VOLPE FILHO, Clovis Alberto. Quanto mais comportamentos tipificados penalmente, menor o índice de criminalidade? Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 694, 30 maio 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6792>. Acesso em: 7 jan. 2008. 32 implantado a curto ou médio prazos. É evidente uma visão imediatista e até uso eleitoral da questão, tão grave e séria para a sociedade brasileira.66 Lopes não diverge: [...] a referida lei é um grande engano. Estabelece a obrigatoriedade do caminho penal quando se sabe que a mulher vítima de violência doméstica – exceto a sexual e de lesões graves – não quer que seu companheiro ou marido seja preso, muito menos condenado criminalmente. A solução não está no Direito Penal, mas na criação de políticas públicas com compromisso de recuperar o respeito mútuo que deve imperar no seio familiar. A condenação do agressor só piora a relação familiar. A vontade da mulher agredida é de que as agressões cessem, não porque o marido foi preso, mas porque de alguma forma o Estado interveio para apaziguar o problema familiar.67 (grifou-se) E complementa: Esta lei é inócua, injusta, anti-social e retrógrada, pois volta a ter a pena privativa de liberdade como principal sanção quando todo direito penal caminha para fuga da prisão com aplicação de penas alternativas. A pena privativa de liberdade data de 1814, o que nos faz refletir e constatar que, depois de quase 200 anos, é inaceitável continuar insistindo no encarceramento. Outros meios mais eficazes precisam ser aplicados para coibir a criminalidade; a pena alternativa, onde é efetivamente aplicada, tem se mostrado um sucesso [...]68 Pois é, uma vez mais a atitude do legislador brasileiro não encontrou ressonância constitucional e social, muito menos compreendeu ele o comentário de Moura, nestas palavras: “[...] uma norma fere o princípio da igualdade se tiver como objeto uma pessoa ou um grupo determinado, ou seja, se os destinatários forem determinados ou determináveis”69, pois “É possível ‘atos de igualar’ ou ‘discriminações positivas’, contudo, atenta-se para a necessidade de interpretação dessas questões para que os valores constitucionais abstraídos de suas normas não sejam invertidos.”70 (grifos da autora) Analisa-se, apenas para exemplificar a discrepância, um fato corriqueiro no campo penal: se a mulher pratica lesão corporal leve em seu esposo, resultante de discussão no seio familiar, infringirá o art. 129, caput, do Código Penal, respondendo, por isso, a um Termo Circunstanciado71 perante o Juizado Especial Criminal; de outra parte, se o esposo pratica dita lesão corporal leve em sua mulher, responderá a Inquérito Policial, será afastado de sua residência e correrá o risco, inclusive, de ser preso preventivamente! É essa a igualdade almejada, quando num mesmo contexto fático a agressão levada a efeito contra uma pessoa de determinado sexo gera conseqüências diversas às geradas ao outro? 66 PILEGGI, Camilo. Lei maria da penha: acertos e erros. Disponível em: <http://www.epm.sp.gov.br/NR/rdonlyres/535A268E-D6D0-48CA-BF8D88FC7E9E1BC4/2055/ArtigoLEIMARIADAPENHA.doc >. Acesso em: 22 out. 2008. 67 MATO GROSSO DO SUL, 2008. 68 Ibid. 69 MOURA, 2005, p. 112. 70 Ibid, p. 113. 71 Art. 69 da Lei Federal nº 9.099/95. 33 Na teoria e na prática, a proporção que teria um crime cometido pelo homem deveria ser a mesma tomada pelo crime cometido pela mulher. Ademais, a construção dos tipos penais leva em conta o bem ou interesse jurídico que a norma penal deve tutelar, como a vida, a integridade física, a honra, o patrimônio, etc.; mas nunca o sujeito a ser penalizado, haja vista que os bens jurídicos tutelados não são do interesse exclusivo de um indivíduo, mas de toda a coletividade, considerando que a prática do delito ofende todo o corpo social. No dizer de Luizi, citado por Gama, é matéria inquestionável o desprestígio do sistema penal; deve-se a uma série de causas; e uma delas, talvez a fundamental, é a existência de uma legislação onde são tipificados criminalmente milhares de fatos, em grande número sem autêntica relevância, gerando a hipertrofia do direito penal.72 Para Gomes, referindo-se às discriminações positivas, a igualdade Ordena ao legislador que preveja com as mesmas conseqüências jurídicas os fatos que em linha de princípio sejam comparáveis, e lhe permite realizar diferenciações apenas para as hipóteses em que exista uma causa objetiva – pois caso não se verifiquem motivos desta espécie, haverá diferenciações arbitrárias.73 No mesmo sentido, leciona Moraes: A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações [...]74 (grifo do autor) E complementa: Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionais protegidos.75 (grifou-se) É inadmissível o sofrimento vivido pela biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes76, resultante de atos bárbaros de seu marido, o professor universitário e economista Marco Antônio Herredia Viveros, que por duas oportunidades tentou matá-la. No entanto, se o Estado brasileiro não conseguiu puni-lo eficazmente, provocando a ira de vários 72 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A família no direito penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 132-133. 73 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 60. 74 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. atual. São Paulo: Atlas, 2006. p. 31. 75 Ibid., p. 32. 76 Maria da Penha tentou de todas as formas processar o marido na justiça brasileira, sem conseguir, contudo, que ele fosse punido. Em 1997 ela denunciou o caso à OEA. Em 2001 ele foi condenado a dois anos de prisão. Mesmo paraplégica em virtude da violência, depois de se recuperar Maria da Penha começou a atuar em movimentos sociais e se tornou o símbolo contra a violência e a impunidade cometidas contra as mulheres. 34 organismos internacionais, dentre eles a Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, é o Governo brasileiro quem terá que arcar com o ônus do emperramento de sua estrutura de Poder, não sua população, sobretudo a do sexo masculino. Não obstante vista como inadequada ao sistema jurídico brasileiro, a Lei 11.340/06 encontra defensores ferrenhos. Maria Berenice Dias é uma das que encabeça a ponta, tratando o tema da seguinte maneira: Apesar de todos os avanços, de equiparação entre homem e mulher levada a efeito de modo tão enfático pela Constituição, a ideologia patriarcal ainda subsiste. A desigualdade sociocultural é uma das razões da discriminação feminina, e, principalmente, de sua dominação pelos homens, que se vêem como superiores e mais fortes. O homem se tem como proprietário do corpo e da vontade da mulher e dos filhos. A sociedade protege a agressividade masculina, constrói a imagem da superioridade do sexo que é respeitado por sua virilidade. Afetividade e sensibilidade não são expressões da masculinidade.77 Diz ela que o homem Desde o nascimento é encorajado a ser forte, não chorar, não levar desaforo para casa, não ser “mulherzinha”. Os homens precisam ser super-homens, não lhes é permitido ser apenas humanos. Essa errônea consciência masculina de poder é que lhes assegura o suposto direito de fazer uso de sua força física e superioridade corporal sobre todos os membros da família.78 A relação de desigualdade entre o homem e a mulher, realidade milenar que sempre colocou esta em situação de inferioridade, impondo-lhe a obediência e a submissão, é algo inegável como dito alhures. Mas, para os dias atuais, a realidade é outra, onde a ascensão feminina, em todos os níveis sociais, autoriza questionar a edição de uma lei capaz de fortalecer o pensamento discriminatório. Luft, ao falar do assunto, leciona: Muito de verdadeiro ou de fantasioso se tem dito e escrito sobre a questão da mulher. Fora das culturas em que mulher vale menos do que um animal de tração, uma das lorotas é que ela foi sempre esmagada pelo troglodita brutal, traída pelo sem-vergonha, desprezada pela sociedade cruel. Nem todas. Nem sempre. Basta ler um pouco da história não a dos livros escolares, mas alguma coisa mais bem documentada para ver que em todas as épocas houve mulheres realizadas, influentes política e culturalmente. Talvez não tenha sido maioria, mas homens interessantes também não são a maioria. [...] Mas é folclore que fomos sempre submissas e sacrificadas: muitas de nossas doces avozinhas dirigiam a família com olho rápido, língua afiada e pulso firme. Mesmo em séculos passados, a mãe eventualmente detinha um poder invejável. O marido não raro a consultava no secreto do quarto sobre decisões importantes, nas propriedades rurais ela administrava a casa da cidade, fiscalizava o estudo dos filhos, negociava casamentos, cuidava do dinheiro, enquanto o marido e senhor corria com seus peões pelas vastidões do campo atrás do gado. 79 77 DIAS, Maria Berenice. A lei maria da penha na justiça: a efetividade da lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 16. 78 DIAS, loc. cit. 79 LUFT, Lya. Ponto de vista: mulheres & mulheres. Veja on-line, São Paulo, f. 18, 14 mar. 2007. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/140307/ponto_de_vista.shtml>. Acesso em: 24 nov. 2008. 35 Conclui afirmando que: Não, a mulher não foi sempre ou somente a coitadinha. Muitos homens sofrem com a silenciosa ou eloqüente chantagem emocional da mulher, de quem não conseguem se separar por culpa, sentimento de responsabilidade ou mesmo simples fraqueza. Mulher vitimal, se generalizado, é um conceito altamente hipócrita. Existem as maltratadas sem saída, as aviltadas sem socorro, as submetidas sem opção. Mas a maioria de nós nem é santa nem é boazinha e, em lugar de acusar e se queixar, pode lutar com determinação por uma vida mais plena. Isso dependerá de cada uma, de sua personalidade, suas marcas de vida, sua condição familiar, sua informação, sua neurose e sua frustração.80 (grifou-se) A mulher, fruto de sua luta incessante e de sua competência apurada, vem conquistando espaços e ocupando posições de destaque na sociedade a todo momento. Basta verificar que o mandatário do Poder Judiciário brasileiro até poucos meses era uma mulher, a Ministra Ellen Gracie Northfleet81. Licença à gestante, tratamento sob o ângulo do mercado de trabalho e o prazo menor para a aposentadoria por tempo de contribuição, entre outras conquistas constitucionais, são algumas das formas de tratamento preferencial visando corrigir desequilíbrios. É nesse diapasão que Paschoal adverte: O perigo que vislumbramos na nova lei é justamente o de, novamente, prevalecer o caminho mais fácil, qual seja o de simplesmente prender-se o agressor, tratando-se como uma ‘safada’ que gosta de apanhar que, depois de denunciar, se opõe a essa prisão. [...] A idéia de que a Mulher precisa se libertar, psicologicamente, de seu agressor é totalitária, e tão preconceituosa como a que deve se submeter às vontades do marido.82 (grifo da autora) Uma outra questão a ser pontuada refere-se ao poder que é posto à disposição das mulheres, vez que uma simples discussão familiar pode resultar, em apenas 48 horas, na adoção das medidas protetivas de urgência, além de toda a mobilização do aparato estatal, consoante artigos 11, 22 e 25 da Lei nova. Ato contínuo, dias depois, passada a raiva, perante o juiz a vítima pode se retratar e desistir do prosseguimento do processo, ou “renunciar”, como trata o art. 16 da lei, afirmando: “Foi só para dar um susto!”. E as privações e constrangimentos aos quais o suposto autor foi submetido, como ficam? Tanto é verdade isso que, a título de exemplo, cita-se os dados da Central de Inquéritos da Comarca de Belo Horizonte/MG83, onde foram ajuizados até o final de 2007 aproximadamente 6.800 procedimentos entre inquéritos e medidas protetivas, sendo que desse total apenas cerca de 3.200 inquéritos resultaram em ação penal, visto que nos demais casos a vítima, ao ser ouvida em audiência, não concordou com o prosseguimento da ação. 80 LUFT, 2007. Exerceu a Presidência do STF e do CNJ no biênio 2006/2008. 82 PASCHOAL, 2007 apud MOREIRA, 2007, p. 226. 83 MAMELUQUE, Leopoldo. Aspectos gerais da lei maria da penha. In: SEMINÁRIO JURÍDICO, 2007, Montes Claros. Tópico temático no núcleo da EJEF. Montes Claros, 2007. p. 4. 81 36 O princípio da proporcionalidade, implicitamente contido no art. 5º, XLVI, 2ª parte, da Constituição Federal, foi outro a sofrer um revés do legislador. Como bem observa Gomes, este princípio desempenha importante função dentro do ordenamento jurídico, não apenas penal, uma vez que orienta a construção dos tipos incriminadores por meio de uma criteriosa seleção daquelas condutas que merecem uma tutela diferenciada (penal) e das que não merecem, assim como fundamenta a diferenciação nos tratamentos penais dispensados às diversas modalidades delitivas; além disso, conforme enunciado, constitui importante limite à atividade do legislador penal (e também seu intérprete), posto que estabelece até que ponto é legítima a intervenção do Estado na liberdade individual dos cidadãos.84 (grifou-se) Citado por Gomes, Penalva entende que A proporcionalidade é, pois, algo mais que um critério, regra ou elemento técnico de juízo, utilizável para afirmar conseqüências jurídicas: constitui um princípio inerente ao Estado de Direito com plena e necessária operatividade, enquanto sua devida utilização se apresenta como uma das garantias básicas que devem ser observadas em todo caso em que possam ser lesionados direitos e liberdades fundamentais.85 Nas precisas palavras de Hungria, Com a prática do crime, estabelece-se entre o seu autor e o Estado indissimulável relação jurídica [...]: o Estado adquire o direito de punir o indivíduo e este, ao mesmo tempo que surge para ele a obrigação de sofrer a pena, adquire o direito de não sofrer pena mais grave do que a cominada pela lei então vigente.86 O art. 17 da lei em comento, veda a aplicação de penas alternativas aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. No entanto, a exclusão de tal benefício se deve fundamentar em razão da gravidade do delito, jamais tendo em vista o sujeito passivo dele. Por que proibir a aplicação de pena alternativa em substituição à pena privativa de liberdade em razão de o sujeito passivo ser mulher em situação de violência doméstica? É de se notar que a Constituição Federal, de forma razoável e proporcional, estabelece regimes penal e processual penal mais rigorosos para autores de crimes mais repugnantes, como os hediondos, o tráfico ilícito de entorpecentes, o terrorismo, etc.; ao passo que permite medidas despenalizadoras quando se tratar de infrações de menor potencial ofensivo87. A vedação da aplicação das medidas despenalizadoras previstas na Lei nº 9.099/95 – Termo Circunstanciado, composição civil dos danos, suspensão condicional do processo, transação penal –, viola o princípio da proporcionalidade, configurando-se, assim, em mais um vício de inconstitucionalidade. 84 GOMES, 2003. p. 59. PENALVA, apud GOMES, ibid., p. 60. 86 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. v. 7. p. 115. 87 Artigos 5º, XLII, XLIII, XLIV e 98, I, CF/88. 85 37 3.2.2 Casos práticos Por tudo que foi abordado até aqui, é que a Lei 11.340/06 tem provocado inquietações de toda ordem País afora. Não são poucos os processos que discutem a sua eficácia e a sua constitucionalidade. Juízes e Tribunais, diante das circunstâncias até aqui analisadas, têm afastado a sua aplicação. Um caso emblemático foi o protagonizado pelo juiz Edílson Rumbelsperger Rodrigues, da cidade mineira de Sete Lagoas. Rodrigues prolatou diversas decisões considerando a lei inconstitucional, além de defini-la como “um conjunto de regras diabólicas que poderiam fazer do homem um tolo”88. Para fundamentar seus posicionamentos, utilizou-se de frases fortes, tipo: “[...] a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (...)”, “O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!” e “[...] o mundo é e deve continuar sendo masculino ou de prevalência masculina.”89 O caso foi parar no Conselho Nacional de Justiça – CNJ, órgão de controle externo do Judiciário, que abriu processo disciplinar contra o juiz para apurar, não sua posição frente à inconstitucionalidade da Lei, mas para analisar se as expressões usadas por ele em suas decisões caracterizam excesso de linguagem e, conseqüentemente, infração disciplinar. Já o juiz Marcelo Colombelli Mezzomo, da 2ª vara Criminal de Erexim (RS), foi mais cauteloso e, em uma de suas recentes decisões, argumentou que: “a lei é inconstitucional na medida em que viola o artigo 5º, que estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.”90 Mezzomo alegou que o equívoco dessa lei foi pressupor uma condição de inferioridade da mulher, que não é a realidade da região Sul do Brasil, nem de todos os casos, seja onde for. Não podem ser criados privilégios generalizados. Isso afronta a Constituição, principalmente porque tolhe do aplicador da lei a possibilidade de analisar cada caso como uma realidade própria. Parte-se do pressuposto, muitas vezes não confirmado, de que o homem é o agressor e a mulher é sempre a vítima.91 88 JUIZ contrário à lei maria da penha nega machismo: em nota, juiz Edílson Rodrigues disse que não é contra punição do agressor: magistrado considera lei inconstitucional. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL158742-5601,00.html>. Acesso em: 27 out. 2007. 89 NUBLAT, Johana. Juiz considera lei maria da penha inconstitucional e "diabólica". Folha On Line. São Paulo, 21 out. 2007. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL158742-5601,00.html>. Acesso em: 27 out. 2007. 90 INCONSTITUCIONALIDADE: assim como a lei “seca”, a lei maria da penha. Disponível em: <http://www.jornalnc.com.br/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=5484>. Acesso em: 21 nov. 2008. 91 Ibid. 38 O magistrado também argumentou sobre a questão do machismo, ao afirmar que “[...] perpetuar esse tipo de perspectiva é fomentar uma visão preconceituosa, que desconhece que as mulheres hoje são chefes de muitos lares e metade da força de trabalho do país.”92 Para ele, a lei deveria ser de proteção familiar, para homens e mulheres em situação de risco por fatos ocorridos no âmbito familiar. Questiona ele: “Quem protege um homem de 55 anos enfermo que sofre violência em sua casa de esposa, companheira ou mesmo dos filhos? O Estatuto do Idoso não o abarca, porque não tem 60 anos. Vivemos situações assim no dia-a-dia forense.”93 O magistrado avaliou ainda que a lei tem sido utilizada para outros fins, até mesmo para burlar a lei civil, cortar caminho processual ou servir de pressão. Segundo ele, “Os expedientes nos chegam, em regra, sem provas e, às vezes, a pretensa vítima sequer representa contra o agressor. Por que registra ocorrência? Não raro, na audiência, chegam, vítima e agressor, abraçados.”94 O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul95, em recente acórdão já parcialmente transcrito neste trabalho, por unanimidade ratificou decisão de primeira instância que reconheceu, incidentalmente, a inconstitucionalidade da Lei nº 11.340/06. Além de declarar a incompetência da Justiça Comum para julgar o feito, determinou a distribuição ao Juizado Especial da Comarca de origem. Eis a ementa do acórdão: EMENTA – RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER – DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI N. 11.340/06 – RECURSO MINISTERIAL – PEDIDO DE MODIFICAÇÃO DA DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI N. 11.340/06 – VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE – VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E PROPORCIONALIDADE – DECISÃO MANTIDA – COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL – IMPROVIDO.96 Segundo os Desembargadores sul-mato-grossenses, a tese do Ministério Público, seguida pela Procuradoria, consistiu em dizer que essa discriminação estaria amparada pela chamada “ação afirmativa” ou “discriminação positiva”. No entanto, para eles, é de longa data as críticas lançadas a esse desdobramento que deram ao princípio da igualdade, uma vez que tal instituto caracteriza discriminação na contramão ou no atacado. Conforme estudos realizados por sociólogos da USP, as ações afirmativas são, na verdade, incentivo à discriminação.97 (grifou-se) 92 INCONSTITUCIONALIDADE: assim como a lei “seca”, a lei maria da penha, 2008. Ibid. 94 Ibid. 95 Registre-se o pioneirismo do Estado de Mato Grosso do Sul, através da Lei Estadual nº 1.071, de 1990, e do Estado de Mato Grosso, pela Lei nº 6176, de 1993, que regulamentaram o artigo 98 da Constituição Federal. 96 MATO GROSSO DO SUL, 2008. 97 Ibid. 93 39 O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por sua vez, em decisão de 07.08.2007, num ato de sensatez sinalizou a necessidade de proteger também os homens vítimas de violência doméstica e familiar, com a conseqüente aplicação da “Lei Maria da Penha” a eles. Segue a ementa do acórdão n º 1.0672.07.244893-5/001, relatado pelo Desembargador Judimar Biber: EMENTA: LEI MARIA DA PENHA (LEI 11.340/06) INCONSTITUCIONALIDADE SUSCITADA PELO JUÍZO DE 1º GRAU COMO ÓBICE À ANÁLISE DE MEDIDAS ASSECURATÓRIAS REQUERIDAS DISCRIMINAÇÃO INCONSTITUCIONAL QUE SE RESOLVE A FAVOR DA MANUTENÇÃO DA NORMA AFASTANDO-SE A DISCRIMINAÇÃO AFASTAMENTO DO ÓBICE PARA A ANÁLISE DO PEDIDO. A inconstitucionalidade por discriminação propiciada pela Lei Federal 11.340/06 (Lei Maria da Penha) suscita a outorga de benefício legítimo de medidas assecuratórias apenas às mulheres em situação de violência doméstica, quando o art. 5º, II, c/c art. 226, §8º, da Constituição Federal, não possibilitaria discriminação aos homens em igual situação, de modo a incidir em inconstitucionalidade relativa, em face do princípio da isonomia. Tal inconstitucionalidade, no entanto, não autoriza a conclusão de afastamento da lei do ordenamento jurídico, mas tão-somente a extensão dos seus efeitos aos discriminados que a solicitarem perante o Poder Judiciário, caso por caso, não sendo, portanto, possível a simples eliminação da norma produzida como elemento para afastar a análise do pedido de quaisquer das medidas nela previstas, porque o art. 5º, II, c/c art. 21, I e art. 226, §8º, todos da Constituição Federal, compatibilizam-se e harmonizam-se, propiciando a aplicação indistinta da lei em comento tanto para mulheres como para homens em situação de risco ou de violência decorrentes da relação familiar. Inviável, por isto mesmo, a solução jurisdicional que afastou a análise de pedido de imposição de medidas assecuratórias em face da só inconstitucionalidade da legislação em comento, mormente porque o art. 33 da referida norma de contenção acomete a análise ao Juízo Criminal com prioridade, sendo-lhe lícito determinar as provas que entender pertinentes e necessárias para a completa solução dos pedidos. Recurso provido para afastar o óbice.98 (grifou-se) Tal entendimento inovador foi seguido pelo juiz Mário Roberto Kono de Oliveira, do Juizado Especial Criminal Unificado de Cuiabá (MT), que em recente decisão estendeu a aplicação da Lei nova para proteger também os homens. O beneficiado alegou estar sofrendo agressões físicas, psicológicas e financeiras por parte de sua ex-mulher. Na decisão escreveu o magistrado o seguinte: [...]Embora em número consideravelmente menor, existem casos em que o homem é quem vem a ser vítima da mulher tomada por sentimentos de posse e de fúria que levam a todos os tipos de violência, diga-se: física, psicológica, moral e financeira. No entanto, como bem destacado pelo douto causídico, para estes casos não existe previsão legal de prevenção à violência, pelo que requer a aplicação da lei em comento por analogia. Tal aplicação é possível? A resposta me parece positiva. Vejamos: É certo que não podemos aplicar a lei penal por analogia quando se trata de norma incriminadora, porquanto fere o princípio da reserva legal, firmemente encabeçando os artigos de nosso Código Penal: “Art. 1º. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.” 98 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Consulta processual. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em: 3 dez. 2008. 40 Se não podemos aplicar a analogia in malam partem, não quer dizer que não podemos aplicá-la in bonam partem, ou seja, em favor do réu quando não se trata de norma incriminadora, como prega a boa doutrina: “Entre nós, são favoráveis ao emprego da analogia in bonam partem: José Frederico Marques, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Costa e Silva, Oscar Stevenson e Narcélio de Queiróz” (DAMÁSIO DE JESUS – Direito Penal - Parte Geral – 10ª Ed. pag. 48) Ora, se podemos aplicar a analogia para favorecer o réu, é óbvio que tal aplicação é perfeitamente válida quando o favorecido é a própria vítima de um crime. Por algumas vezes me deparei com casos em que o homem era vítima do descontrole emocional de uma mulher que não media esforços em praticar todo o tipo de agressão possível contra o homem. Já fui obrigado a decretar a custódia preventiva de mulheres “à beira de um ataque de nervos”, que chegaram a tentar contra a vida de seu ex-consorte, por pura e simplesmente não concordar com o fim de um relacionamento amoroso. Não é vergonha nenhuma o homem se socorrer ao Pode Judiciário para fazer cessar as agressões da qual vem sendo vítima. Também não é ato de covardia. É sim, ato de sensatez, já que não procura o homem/vítima se utilizar de atos também violentos como demonstração de força ou de vingança. E compete à Justiça fazer o seu papel de envidar todos os esforços em busca de uma solução de conflitos, em busca de uma paz social. No presente caso, há elementos probantes mais do que suficientes para demonstrar a necessidade de se deferir a medidas protetivas de urgência requeridas, pelo que defiro o pedido e determino à autora do fato o seguinte: 1. que se abstenha de se aproximar da vítima, a uma distância inferior a 500 metros, incluindo sua moradia e local de trabalho; 2. que se abstenha de manter qualquer contato com a vítima, seja por telefonema, e-mail, ou qualquer outro meio direto ou indireto. Expeça-se o competente mandado e consigne-se no mesmo a advertência de que o descumprimento desta decisão poderá importar em crime de desobediência e até em prisão. I.C.99 Ainda nesse sentido, a lúcida lição de Silva, Há duas formas de se cometer essa inconstitucionalidade. Uma consiste em outorgar benefício legítimo a pessoas ou grupos, discriminando-os favoravelmente em detrimento de outras pessoas ou grupos em igual situação. Neste caso, não se estendeu às pessoas ou grupos discriminados os mesmos tratamento dado aos outros. O ato é inconstitucional, sem dúvida, porque feriu o princípio da isonomia. Contudo, o ato é constitucional, é legítimo ao outorgar o benefício a quem o fez. Decretá-lo inconstitucional, eliminando-o da ordem jurídica, seria retirar direitos legitimamente conferidos, o que não é função dos tribunais. Como, então, resolver a inconstitucionalidade da discriminação? Precisamente estendendo o benefício aos discriminados que solicitarem perante o Poder Judiciário, caso por caso.100 Ao intérprete basta afastar a condição pessoal de mulher em situação de risco doméstico, para que não haja qualquer inconstitucionalidade possível, estendendo-se os efeitos da norma em questão a quaisquer indivíduos que estejam em idêntica situação de violência familiar ou doméstica, sejam eles homens, mulheres ou crianças. A leitura da Lei Federal 11.340/06, sem a discriminação criada, não apresenta qualquer mácula de inconstitucionalidade, bastando afastar as disposições qualificadoras de 99 CONSULTOR JURÍDICO. Por analogia: lei maria da penha é aplicada para proteger homem. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/static/text/71290,1>. Acesso em: 30 out. 2008. 100 SILVA, 1999, p. 208. 41 violência doméstica à mulher, para violência doméstica a qualquer indivíduo da relação familiar, para que sejam plenamente lícitas suas disposições. Ao arremate, crê-se que tal normativo legal deve ser interpretado à luz da Lei Maior e não o contrário. Afinal de contas, como já escreveu Frederico Marques, a Constituição Federal não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico. A conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todos.101 (grifou-se) Pimenta Bueno, por seu turno, averbou que “A lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania.”102 O certo é que a “Lei Maria da Penha” criou a desigualdade na entidade familiar, direcionando exclusividade à mulher. Tal discriminação é vista como descabida, pois os homens também podem ser vítimas de violência desta natureza. A rigidez da lei, como conseqüência, acaba destruindo a unidade familiar, em vez de tentar harmonizá-la. Não fosse assim, o Código Penal não criaria as escusas absolutórias dos artigos 181 e 182 c/c art. 183, cujo propósito é a preponderância da família frente ao patrimônio e à administração da justiça. O que se deve evitar é uma norma fundada na vingança social, com sérias conseqüências no cotidiano de milhares de outras pessoas. A harmonia familiar depende da regulação das fragilidades de ambos, homem e mulher, sob pena de apenas inverter-se o papel histórico: antes o machismo repugnante, hoje o feminismo exagerado; ambos socialmente perigosos. 3.3 A NÃO APLICAÇÃO DA LEI N. 9.099/95 Dispõe textualmente o art. 41 da lei em comento, que fica afastada a incidência da Lei n. 9.099/95 nos crimes cometidos contra a mulher no ambiente doméstico ou familiar. Desse modo, conclui-se que não se admite os institutos despenalizadores inerentes às condutas que traduzem crimes considerados de menor potencial ofensivo, a saber: 101 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1998. v. I. p. 79. 102 BUENO, 1857 apud MELLO, 2007, p. 18. 42 composição civil extintiva da punibilidade (nos crimes de ação penal privada ou pública condicionada), transação penal e suspensão condicional do processo. Eis o teor do dispositivo: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”103 (grifei). Note-se que o artigo faz referência apenas aos crimes, excluindo as contravenções penais! Ao ficar constatado, portanto, que a mulher foi vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da “Lei Maria da Penha”, independentemente do crime ser ou não de menor potencial ofensivo, será lavrado Auto de Prisão em Flagrante e, se for o caso, arbitrada fiança; deve ser instaurado inquérito policial, com a medida paralela prevista no art. 12, III, e §§ 1º e 2º da Lei. O procedimento será o previsto no Código de Processo Penal. Desse modo, não será lavrado Termo Circunstanciado. Nas Varas Criminais, segundo o art. 33, parágrafo único, as causas que envolvem violência doméstica ou familiar contra a mulher contarão com direito de preferência, não excluindo, entretanto, outras já definidas em lei. Para esquentar mais ainda o debate, invoca-se o Encontro de Juízes dos Juizados Especiais Criminais e de Turmas Recursais do Rio de Janeiro, onde foram aprovados os Enunciados nºs 82, 83, 84, 88 e 89, cujos teores se transcreve abaixo: Enunciado nº 82 – É inconstitucional o art. 41 da Lei nº 11.340/2006 ao afastar os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 para crimes que se enquadram na definição de menor potencial ofensivo, na forma do art. 98, I e 5º, I, da Constituição Federal. Enunciado nº 83 – São aplicáveis os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 aos crimes abrangidos pela Lei nº 11.340/2006 quando o limite máximo da pena privativa de liberdade cominada em abstrato se confinar com os limites previstos no art. 61 da Lei nº 9.099/95, com a redação que lhe deu a Lei nº 11.313/2006. Enunciado nº 84 – É cabível, em tese, a suspensão condicional do processo para o crime previsto no art. 129, § 9º, do Código Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.340/2006. Enunciado nº 88 – É cabível a audiência prévia de conciliação aos crimes abrangidos pela Lei nº 11.340/2006 quando o limite máximo de pena privativa de liberdade cominada em abstrato se confinar com os limites previstos no art. 61 da Lei nº 9.099/95, com a redação que lhe deu a Lei nº 11.313/2006. Enunciado nº 89 – É cabível a audiência prévia de conciliação para o crime previsto no art. 129, § 9º, do Código Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.340/2006.104 A prevalecer a tese pela constitucionalidade do artigo 41, a título exemplificativo, uma injúria praticada contra a mulher em circunstâncias doméstica e familiar, não seria infração penal de menor potencial ofensivo. Já uma lesão corporal leve, cuja pena é o dobro 103 104 BRASIL, 2006. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Corregedoria. Disponível em: <http://www.tj.rj.gov.br/scripts/weblink.mgw?MGWLPN=DIGITAL1A&PGM=WEBBCLE66&LAB=BIBx WEB&AMB=INTER&TRIPA=198^2006^43&PAL=&JUR=ESTADUAL&ANOX=2006&TIPO=&ATO=4 3&START=>. Acesso em: 25 nov. 2008. 43 da injúria, praticada contra uma criança ou um idoso – que também mereceram tratamento diferenciado nos termos das Leis nº 8.069/90 e 10.741/03, respectivamente – é um crime de menor potencial ofensivo. No primeiro caso, o autor será autuado em flagrante, responderá a Inquérito Policial, haverá queixa-crime, etc. No segundo, o agressor não será autuado em flagrante, pois será lavrado um simples Termo Circunstanciado, além de ter a oportunidade da composição civil dos danos, da transação penal e da suspensão condicional do processo105. Resta evidente, uma vez mais, a inobservância ao princípio da proporcionalidade. Outro drama que cerca a edição da lei refere-se à natureza jurídica da ação penal decorrente da lesão corporal leve, capitulada no art. 129, § 9º, do CP. Para alguns, na redação dada pela Lei, quando praticada no âmbito da unidade doméstica ou familiar e sendo a mulher a vítima da agressão, a lesão leve voltou a ser de ação penal pública incondicionada, “repristinando” com isso a antiga regra do art. 129 do CP que, antes da promulgação da Lei dos Juizados106, tinha a ação pública incondicionada como instrumento adequado à persecutio criminis em desfavor do agressor. Para os defensores dessa corrente, a ação penal, a partir da Lei 11.340/06, independe de autorização da vítima. A prevalecer este entendimento, tanto a autoridade policial quanto o Ministério Público, podem, de oficio, adotar as providências arroladas na “Lei Maria da Penha” sem necessidade de representação107. Aos defensores da constitucionalidade da Lei, na verdade, pretendeu o art. 41 afastar a Lei 9.099/95 tão somente no que diz respeito à composição civil dos danos, à transação penal e à suspensão condicional do processo, sem com isso retirar o poder da mulher de autorizar ou não a persecução penal contra seu agressor. Assim, subtraindo a competência dos Juizados Especiais Criminais, a Lei 11.340/06 incidiu em mais um propenso flagrante de inconstitucionalidade, posto que a competência determinada expressamente pelo mandamento constitucional instituído no art. 98, I, não poderia ter sido reduzido por lei infraconstitucional. Se a própria Constituição estabeleceu a competência dos Juizados Especiais Criminais para o processo, julgamento e execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, visando à celeridade e à economia processual, não soa possível a exclusão desta 105 Arts. 69, 74, 76 e 89, da Lei nº. 9.099/95. Com a edição da Lei 9.099/05, art. 88, a natureza jurídica da ação penal decorrente da lesão corporal leve passou a ser pública condicionada à representação. 107 Em sentido contrário, na sessão realizada no dia 1º de junho de 2007 a 1ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal concluiu que o crime de lesão corporal leve, praticado contra a mulher, independe de representação da vítima. A conclusão, por maioria de votos, foi uma resposta a recurso do Ministério Público (Processo nº. 20060910173057). 106 44 competência em razão do sujeito passivo atingido – mulher – e pela circunstância de se tratar de violência doméstica e familiar. Esta solução tem merecido críticas, pois o fato de os juizados optarem pelo consenso e aplicarem normalmente penas alternativas, não significa serem eles tribunais tolerantes. Certo é que nem a Polícia, nem o Judiciário dispõem de meios para instaurar tantos inquéritos e processos. Agora, retomados os instrumentos burocráticos do inquérito e do processo criminal comum, as deficiências institucionais, emanadas das carências estruturais do sistema de Justiça, levarão fatalmente a uma diminuição da ação punitiva em tais casos. 3.4 A DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DO AGRESSOR Antes de se adentrar na discussão, cabe lembrar o comentário de Beccaria, que há mais de dois séculos já preconizava: “O tempo de recolhimento ao cárcere só pode ser o estritamente indispensável quer para impedir a fuga, quer para que não sejam escondidas as provas do delito.”108 Pois bem, o art. 20 da “Lei Maria da Penha” dispõe que “Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.”109 O art. 42, inserido nas disposições transitórias, por sua vez incluiu no art. 313 do Código de Processo Penal, que trata da prisão preventiva, o inciso IV, estabelecendo nova modalidade para a prisão processual, nos seguintes termos: “se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.” Da interpretação sistemática dos dispositivos destacados, deduz-se que caberá a prisão preventiva, nas hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher, para assegurar a eficácia das medidas protetivas de urgência, se as mesmas, por si só, revelarem-se ineficazes. 108 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. rev. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 71. 109 BRASIL, 2006. 45 Tal restrição, contudo, transforma-se em “letra morta” na hipótese do caso se enquadrar nas demais situações estabelecidas nos incisos I, II e III, do art. 313110, que tratam dos pressupostos clássicos da prisão preventiva. Presente algum deles, ainda que o crime seja resultado de violência doméstica e familiar contra a mulher, não se precisará recorrer ao inciso IV, cabendo a prisão preventiva independentemente da eficácia ou não das outras medidas protetivas de urgência. O inciso IV do art. 313 do CPP, como visto, alarga as hipóteses de cabimento de prisão preventiva, passando a comportá-la, em tese, qualquer crime doloso, independente da pena cominada – injúria, ameaça, lesão corporal, etc. –, desde que resultado de violência doméstica e familiar cuja vítima seja a mulher. É preciso, portanto, principalmente nos crimes ditos de menor potencial ofensivo, como os acima mencionados, em virtude da pequena quantidade de pena privativa de liberdade cominada, que o juiz aja com bastante prudência na hora de decidir pela prisão do agressor, não podendo esta, em nenhuma hipótese, exceder o tempo de duração da pena privativa de liberdade cominada, em caso de condenação. Mais uma vez não se observou o princípio da proporcionalidade, perfeitamente exigível quando se trata de estabelecer requisitos e pressupostos para a prisão provisória. Incoerentemente, prende-se preventivamente quando, muito provavelmente, não haverá aplicação de uma pena privativa de liberdade. Como ensina Bovino, não é possível “que a situação do indivíduo ainda inocente seja pior do que a da pessoa já condenada, é dizer, de proibir que a coerção meramente processual resulte mais gravosa que a própria pena. Em conseqüência, não se autoriza o encarceramento processual, quando, no caso concreto, não se espera a imposição de uma pena privativa de liberdade de cumprimento efetivo. Ademais, nos casos que admitem a privação antecipada da liberdade, esta não pode resultar mais prolongada que a pena eventualmente aplicável. Se não fosse assim, o inocente se acharia, claramente, em pior situação do que o condenado.”111 (grifo no original) Como se bem observa, em tese, esta medida restritiva de liberdade foi adotada para garantir a execução das medidas protetivas de urgência. Como as medidas protetivas são de natureza civil e cautelar, seria, portanto, uma prisão de natureza civil e não penal, em que pese estar inserida no Código de Processo Penal. 110 Id., Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso em: 20 nov. 2007. 111 BOVINO apud MOREIRA, 2007, p. 18. 46 3.5 AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA A título de esclarecimento, lembra-se que as medidas protetivas correspondem a um dos desdobramentos que um fato envolvendo violência doméstica e familiar, e tendo a mulher como vítima, pode ter. Os outros passam pelas esferas penal e processual penal. As medidas protetivas, que ostentam natureza eminentemente civil, são processadas de acordo com o que determina o Capítulo II, da Lei nº 11.340/06, subsidiada pelo Código de Processo Civil. No entanto, a competência para o devido processamento das medidas protetivas, que vão desde a prestação de alimentos até o afastamento do agressor do lar ou determinação de distância mínima em relação à parte ofendida, é do juiz criminal. De acordo com o art. 22, constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, dentre outras: suspensão da posse ou restrição do porte de armas; afastamento do lar ou do local de convivência com a ofendida; proibição de determinadas condutas, destacando a aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; proibição de contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores; prestação de alimentos provisionais ou provisórios. Em relação à ofendida, o juiz poderá: encaminhá-la a programa oficial; determinar sua recondução e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; determinar o afastamento dela do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; determinar a separação de corpos; determinar a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor; determinar a suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor, etc. Todas as medidas são apreciadas sem ouvir o suposto agressor. Onde fica, cabe questionar, o direito ao contraditório e à ampla defesa, previsto no artigo 5º, incisos LIV e LV, do texto constitucional? Há casos, e não são poucos, em que a mulher solicita todas as medidas protetivas previstas na lei, mas resolve não representar criminalmente o agressor. Assim, deseja ela a adoção de todas as medidas protetivas de natureza civil, mas nenhuma de natureza penal. Alerta-se, porém, que a medida cautelar não tem a finalidade de resolver o conflito, apenas de evitar um mal maior ou o acontecimento de novos delitos. 47 4 IGUALDADE MATERIAL E AÇÕES AFIRMATIVAS Vive-se mundialmente sob a égide de uma cultura patriarcal consolidada pela civilização grega, berço da cultura masculina, difundida por toda Europa via Império Romano e, com o advento do mercantilismo, espalhada por todo o mundo. No Brasil, a chegada do colonizador inicia o grande defloramento étnico das índias e, posteriormente, os senhores de engenho passam a submeter as negras da senzala, criando-se, desde o início, uma permissividade para a violência e o tratamento desigual das mulheres. 4.1 HOMENS X MULHERES: A REALIDADE BRASILEIRA O Brasil sempre esteve inserido neste sistema patriarcal, em que a dominação masculina evidencia-se na organização da sociedade. Giordani112 acrescenta que este fenômeno histórico se deve ao fato de que as relações construídas pela sociedade são transmitidas de geração para geração, cristalizando papéis diferenciados para mulheres e homens e evidenciando a desigualdade entre os sexos. A visão de dominação masculina, dentre outros fatores, impediu que as mulheres avançassem em proporção semelhante à dos homens em diversos setores, sejam eles sociais ou profissionais. Tudo isso é fato, provado e comprovado, e negar fatos tão evidentes seria mergulhar na hipocrisia. Diante destas circunstâncias, o Estado passou a criar deliberadamente mecanismos legais na sociedade em tom de ações afirmativas, para favorecer exclusivamente a mulher em detrimento do homem. Isso fez com que, em algumas situações, tais mecanismos se transformassem no berço gerador da inversão das desigualdades. Outrossim, o Direito Penal, em que pese aparecer no movimento que envolve o debate, não pode ser utilizado como meio de pressão e terror para mudanças desta natureza. O problema está identificado, é só atacar, mas não apenas pelo singelo caminho repressor estatal. 112 GIORDANI, Annecy Tojeiro. Violências contra a Mulher. São Paulo: Yendis, 2006. 48 Wolkmer, ao tratar da passividade da nação brasileira, aliada ao tradicional intervencionismo estatal, leciona que [...] em razão de toda uma formação cultural de dependência, de alienação programada e não-participação popular democrática, a Sociedade brasileira é caótica, desorganizada e carnavalizada, movimenta-se timidamente, esperando sempre pela iniciativa e atuação “paternalista” do Estado. Esta situação da Sociedade desmobilizada, dividida, em constante instabilidade e que às vezes parece petrificada [...], não seria tão problemática se, pelo menos, houvesse um Estado mantido por administradores honestos, competentes e profundamente identificados com os fins da maioria da população.113 (grifo do autor) A quaestio central talvez resida na realidade cultural, aliada à desigualdade social que domina as relações entre homens, mulheres, brancos, índios e negros, todas geradoras de violência. E com isso se percebe que a solução buscada certamente não encontrará guarida na edição de tantas leis que visem à coibição destas violências. A trilhar esse caminho, cada parcela da população terá sua lei especial. Vale ressaltar que, de maneira geral, a população brasileira é preconceituosa, consoante pesquisa realizada pela agência “InformEstado”, publicada no jornal “O Estado de S. Paulo” de 7 de novembro de 1993. Pela ordem, homossexuais, negros, velhos, migrantes, deficientes físicos, mulheres e estrangeiros são alvos de preconceitos. 4.1.1 Realidade política A sociedade brasileira, com imensas diferenças regionais, sempre foi formada por um Poder central forte, dominador e intervencionista, com uma elite dirigente capaz de impedir sobremaneira a alteração da ordem vigente. Sobre essa realidade, vivenciada em um determinado momento da história nacional, escreveu Ribeiro: Nossa tipologia das classes sociais vê na cúpula dois corpos conflitantes, mas mutuamente complementares. O patronato de empresários, cujo poder vem da riqueza através da exploração econômica; e o patriciado, cujo mando decorre do desempenho de cargos, tal como o general, o deputado, o bispo, o líder sindical e tantíssimos outros. Naturalmente, cada patrício enriquecido quer ser patrão e cada patrão aspira às glórias de um mandato que lhe dê, além de riqueza, o poder de determinar o destino alheio. Nas últimas décadas surgiu e se expandiu um corpo estranho nessa cúpula. É o estamento gerencial das empresas estrangeiras, que passou a constituir o setor predominante das classes dominantes. Ele emprega os tecnocratas mais competentes 113 WOLKMER, Antônio Carlos. Elementos para uma crítica do estado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1990. p. 49. 49 e controla a mídia, conformando a opinião pública. Ele elege parlamentares e governantes. Ele manda, enfim, com desfaçatez cada vez mais desabrida.114 (grifouse) Wolkmer não discrepa, ao defender que A trajetória da formação social brasileira tem evidenciado, ao longo das diferentes formas assumidas pelo Estado [...], que este sempre tomou a dianteira em suas relações com a Sociedade, quer pela imaturidade e ineficiência desta, quer porque o próprio Estado, por meio de suas elites dirigentes e de suas classes dominantes, nunca possibilitou espaço de mobilização e sempre operou para manter um tipo de Sociedade marcadamente dividida, dependente e tutelada.115 Mais adiante complementa, afirmando que “[...] o próprio Estado não consegue ter autonomia sobre os grupos governantes que o manipulam, tornando-se o instrumento arbitrário e repressor na defesa das elites dominantes.”116 Considerando que a política partidária é um espaço social de poder, tradicionalmente liderado pelos homens, percebe-se que a mulher brasileira encontra-se quase que alijada de toda esta estrutura de disputa e mando, ao contrário do que acontece em países como Dinamarca, Finlândia e Suécia. Após quase cem anos de conquista do direito pelo voto117, as mulheres brasileiras são minoria em qualquer nível de representação política formal, seja nos Municípios, nos Estados federados ou na política nacional. Numa rápida análise do resultado das Eleições mais recentes realizadas no País, constata-se isso. Segundo os dados do Tribunal Superior Eleitoral – TSE118, nas Eleições Gerais de 2006, de um total de 2.498 candidatas – duas à Presidência, 26 aos Governos estaduais, 35 ao Senado, 652 à Câmara Federal e 1.783 às Assembléias e Câmara Legislativas –, foram eleitas apenas 176 mulheres, sendo 3 Governadoras, 4 Senadoras, 45 Deputadas Federais e 123 Deputadas Estaduais/Distritais. Estes resultados foram considerados péssimos, com a eleição de mulheres se revestindo de um acontecimento cada vez mais difícil, gerando frustração e desânimo. 114 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2. ed. 19. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 208. 115 WOLKMER, 1990, p. 45. 116 Ibid., p. 49. 117 No Brasil, as mulheres lutaram pelo voto por mais de vinte anos, começando com a criação do Partido Republicano Feminino em 1910, no Rio de Janeiro, obtendo a conquista somente em 1932 com Getúlio Vargas, quando fora reconhecido por Decreto-Lei o direito das mulheres votarem e serem votadas. Este fato somente se concretizou com a Constituição de 1934, quando foi instituído, então, o voto feminino, secreto e obrigatório. 118 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Eleições: estatísticas das eleições. Disponível em: <http://www.tse.gov.br/internet/eleicoes/2006/cargo_sexo_blank.htm>. Acesso em: 10 out. 2008. 50 Já os resultados das Eleições Municipais de 2008, organizados pelo TSE e que analisaram cargo, sexo e partido119, mostram que as mulheres tiveram uma maior presença em termos percentuais nos partidos menores: nas prefeituras, o PRTB alcançou o maior percentual de mulheres Prefeitas no Brasil, com 27,27%, sendo 3 mulheres entre os 11 vitoriosos. Em termos quantitativos, foi o PMDB quem elegeu o maior número de mulheres para prefeituras, totalizando 107. Nas Câmaras Municipais, os resultados são bem parecidos. O PSOL, que não elegeu prefeitas ou prefeitos, alcançou o maior percentual de mulheres eleitas vereadoras no País: 20%, sendo 5 mulheres e 20 homens. Em termos numéricos, assim como nas prefeituras, o PMDB elegeu o maior número de Vereadoras: 1.115. Almira Rodrigues120, socióloga e associada do Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA, destaca que o processo eleitoral brasileiro é tão excludente e desigual que mesmo nos partidos em que as mulheres têm uma participação mais ativa, o número de eleitas é tão pequeno que acaba perdendo o significado. A luta é intensa. Com o fortalecimento dos movimentos feministas em décadas passadas, os partidos políticos vislumbraram neles a possibilidade de expandir seus projetos político-ideológicos. Muitas mulheres militantes aderiram a essa estratégia, procurando difundir os movimentos. Com essa ação permanente de afirmação das plataformas feministas, nos anos noventa é conquistada uma legislação eleitoral que determina às instâncias políticas a observação de cotas nas eleições proporcionais. Influenciada pela experiência argentina, em 1995 foi editada a Lei nº 9.100 que, através de dispositivo específico, definiu um percentual de 20% a ser destinado às candidaturas femininas nas eleições proporcionais, em âmbito municipal. Referida lei acabou sendo revogada pela Lei 9.504/97, que preferiu a instituição de uma quota neutra, ou seja, 30% das candidaturas registradas às eleições proporcionais, seja em âmbito municipal, estadual ou federal, devem pertencer a um dos sexos. Na primeira experiência eleitoral após a instituição de referidas quotas, a Lei 9.100/95 deu mostras da sua eficácia prática, com o número de Vereadoras eleitas alcançando um crescimento de quase 100%, passando de 3.839 nas eleições de 1992 para 6.536 nas eleições de 1996. Nesse sentido, alguns partidos políticos passaram a adotar também em seus 119 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Eleições: eleições 2008. Disponível em: < http://www.tse.jus.br/internet/eleicoes/estatistica2008/index.htm>. Acesso em: 18 out. 2008. 120 RODRIGUES, Almira. Eleições de 2006 no Brasil: a difícil conquista de mandatos eletivos por mulheres. Disponível em: <http://www.cfemea.org.br/temasedados/detalhes.asp?IDTemasDados=166>. Acesso em: 10 out. 2008. 51 estatutos o sistema de cotas por sexo para a composição de suas instâncias de direção partidária. Essa medida expressa a preocupação com a democratização das esferas de poder. Merece destacar que a legislação de cotas por sexo na esfera do Poder Legislativo insere-se no rol das chamadas medidas afirmativas121. Mesmo representando a maioria do eleitorado brasileiro – cerca de 51%, as mulheres ainda têm baixa participação no cenário político nacional: apenas 21,33% dos candidatos às eleições de 2008 foram do sexo feminino. Os dados foram apresentados em um estudo feito pela Secretaria Especial de Política para as Mulheres122, que também revelou que nenhum partido cumpriu a cota mínima de 30% de mulheres do total de candidaturas para as Câmaras Municipais. 4.1.2 Realidade educacional As mulheres brasileiras vêm se destacando em relação aos homens no que se refere à escolaridade, especialmente nas áreas urbanas do País, onde apresentam, em média, um ano a mais de estudo do que os homens. O Distrito Federal é a Unidade da Federação em que elas apresentam a média de anos de estudo mais elevada, ou seja, 10,4 anos123. É interessante verificar que o diferencial entre homens e mulheres é mais favorável para elas, ocorrendo de forma mais intensa nos estados do Norte e do Nordeste. Vale a pena observar que mesmo nessas regiões onde os valores culturais são reconhecidamente mais tradicionais, as mulheres têm se destacado em termos de escolaridade e na condição de pessoa de referência das famílias124. Em relação ao nível superior, as mulheres brasileiras se sobressaem de maneira significativa. Em 2007, do conjunto de estudantes deste nível, 57,1% eram mulheres, o que 121 Existem discussões e proposições legislativas nesse mesmo sentido para o Poder Executivo e para o Poder Judiciário. 122 AMARAL, Michelle. Pesquisa mostra que mulheres têm pouco espaço no cenário eleitoral. Disponível em: <http://www.forumplp.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=683:pesquisa-mostraque-mulheres-tem-pouco-espaco-no-cenario-eleitoral-&catid=43:partidos&Itemid=161. Acesso em: 27 dez. 2008. 123 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro, 2008. p. 232. n° 23. 124 O aumento da qualificação das mulheres tem sido evidenciado pela análise dos dados das últimas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios - PNADs. 52 revela um aumento significativo em relação a 1997, quando o percentual era de 53,6%125. O percentual relativo aos homens, em 1997, era de 46,4%, caindo, em 2007, para 42,9%. Esses resultados estão mostrando que os homens estão perdendo espaço universitário para elas. Apesar dos dados apontados, é importante destacar que ainda existe um expressivo número de mulheres que não sabe ler e nem escrever. O Brasil apresenta, para os jovens de 15 a 24 anos de idade, segundo dados do IBGE126, uma taxa de 3,2% para os homens e de 1,6% para as mulheres, mostrando que o analfabetismo para esse contingente, apesar de não ter chegado aos níveis de países como Argentina, Chile e Uruguai, parece estar menos afeto à desigualdade de gênero. 4.1.3 Realidade no mercado de trabalho Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho – OIT127, as mulheres respondem por 2/3 das horas trabalhadas, recebendo apenas 10% dos salários e possuindo 1% dos bens. Elas ganham em média 60% dos salários dos homens e enfrentam a dupla jornada de trabalho, que inclui o tempo gasto nas tarefas domésticas. Em contrapartida, pesquisas mostram que uma das mais rápidas transformações na conjuntura do mercado de trabalho nos últimos trinta anos diz respeito ao aumento da participação da mulher. A situação da mulher negra é que se revela ainda mais precária, pois além de ter de carregar as dificuldades inerentes à condição feminina, tem de atravessar todas as barreiras decorrentes de sua origem social e do preconceito racial existente na sociedade brasileira. Deve-se levar em conta, por fim, que os aspectos sociais que cercam a questão atingem mulheres de todas as classes sociais, raças e credos. Na prática, assiste-se mulheres que não podem trabalhar por não terem onde deixar seus filhos, uma vez que faltam creches; outras que perdem o emprego ao levar o filho ao médico e ficar por horas em uma fila do serviço público de saúde; a falta de estudo destas mulheres acaba por desqualificá-las para pleitear um emprego melhor e assim melhorar as condições de vida sua e de toda a família. 125 BRASIL, 2008, p. 233. Ibid., p. 235. 127 AGUIAR, Regina. A mulher no próximo milênio: realidade e perspectivas. Disponível em: <http://www.pbh.gov.br/smsa/biblioteca/saudedigital/maio2002/mulhermilenio.html>. Acesso em: 1 dez. 2008. 126 53 4.1.4 A mulher e o novo Código Civil No mês de janeiro de 2008 o novo Código Civil – a Lei 10.406/02 – completou seis anos de sua edição e cinco da entrada em vigor. Desde então, a sociedade brasileira vem se adaptando às mudanças que ele estabelece. Dentre tantos artigos inovadores, alguns mudaram a rotina de uma realidade que há muito vinha se consolidando: o espaço da mulher na sociedade brasileira. Na contramão da evolução, o Código Civil de 1916 deixava a mulher em situação de inferioridade em relação ao homem, enfatizando a cultura machista da época. Destoante da realidade que se sedimenta por meio da luta pela igualdade de direitos, o antigo Código estabelecia, dentre outras desigualdades, que o homem era o chefe da sociedade conjugal. Alinhado com a Constituição Brasileira, logo no artigo 1º o novel Estatuto civilista substituiu a expressão “homem” por “ser humano” e determinou que a direção da sociedade conjugal compete igualmente a ambos os cônjuges, estabelecendo o que há quase 15 anos o Texto Constitucional já determinava. Neste diapasão, observa-se que o novo Código Civil acompanhou a estrutura familiar traçada pela Constituição, evoluindo em seus conceitos. Outrossim, deixou de se falar em “pátrio poder”, referindo-se agora ao “poder familiar”, igualando definitivamente a mulher ao homem na administração da família. Confirmando estas informações, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE demonstram que em Mato Grosso do Sul 22% dos lares são chefiados por mulheres, e, somente em Campo Grande, as mulheres são responsáveis por garantir o sustento de 16,3% dos lares128. Esse é o retrato de uma realidade que há muito já vem acontecendo. Com a nova legislação civil, desapareceu ainda a possibilidade de anulação do casamento em caso de “defloramento da mulher ignorado pelo marido”, bem como a perda da herança por “desonestidade da filha que vive na casa paterna”. A possibilidade de o marido acrescer ao seu nome o sobrenome da mulher é prova eloqüente do status de igualdade da mulher ao homem perante a lei. Como se vê, todas as alterações representam avanços significativos para a realidade até então vivenciada. 128 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL/MS. Notícias. Disponível em: <http://www.oabms.org.br/noticias/lernoticia.php?noti_id=187>. Acesso em: 12 out. 2008. 54 4.2 AÇÕES AFIRMATIVAS E IGUALDADE MATERIAL No dizer de Piovezan, “A promoção da igualdade social, o fim da discriminação e a inclusão social devem ser buscados a partir de duas estratégias: a repressão a toda forma de discriminação e a adoção de políticas afirmativas que acelerem o processo”129. Defende ela que “O Brasil tem um quadro alarmante de exclusão social. Esta alimenta a discriminação, que por sua vez aumenta a exclusão. É um ciclo que se retroalimenta, e só medidas afirmativas podem quebrar esse processo.”130 Citando dados mundiais, Piovezan observou que o Brasil, embora seja a nona economia mundial, é o quarto país mais desigual do mundo e o terceiro mais violento, respondendo por 14% da taxa mundial de homicídios. “Essa situação é agravada pela adoção de políticas neoliberais, pela flexibilização e pela precariedade das relações de trabalho, culminando no desemprego e na informalidade”131, explicou. As ações afirmativas132 ou discriminações positivas133 são estratégias e intervenções criadas para agir dentro de um limite temporal determinado, visando à superação de profundas desigualdades, acumuladas historicamente, mediante políticas de cunho compensatório. Ocorrem quando se implementa uma política pública ou privada distributiva destinada a promover a igualdade material de grupos historicamente discriminados. Nesse sentido, leciona Gomes que as ações afirmativas Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade.134 No dizer de Vilas-Bôas, As ações afirmativas têm como fim precípuo combater os efeitos acumulados em virtude das discriminações ocorridas no passado, de tal forma que se possa falar em igualdade entre os brasileiros, independentemente de pertencer àquelas categorias 129 PIOVEZAN, Flávia. Flávia piovezan defende ações afirmativas contra discriminação. Disponível em: <http://www.direito2.com.br/tst/2004/mar/31/flavia_piovezan_defende_acoes_afirmativas_contra_discrimina cao>. Acesso em: 15 nov. 2008. 130 Ibid. 131 Ibid. 132 Terminologia do direito americano. 133 Terminologia do direito europeu. 134 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001. p. 6-7. 55 hoje denominadas “minoria”, possibilitando assim que se atinja plenamente a cidadania.135 (grifo da autora) Tratam de medidas imprescindíveis em um Estado Democrático de Direito para fazer mais curta a espera de milhões de pessoas que almejam sentir-se parte da sociedade. Só uma ação positiva que seja suficientemente proporcional, não produzindo assim dano a terceiros, será constitucional e poderá implantar-se com êxito no meio social. Para Silva, Essa modalidade de discriminação, concebida nos Estados Unidos e largamente desenvolvida no direito americano, funciona como um meio ativo de impedir que a mera garantia de igualdade formal perpetue desigualdades estruturalmente firmadas e compartilhadas inconscientemente pela cultura de uma sociedade.136 Com esse propósito, a incorporação em textos legais de dispositivos de proteção à mulher por meio de incentivos específicos, cujo propósito seja sanar situações de desigualdade, não seria considerada discriminatória. As ações afirmativas, no Brasil, encontram amparo legal nos incisos III e IV, do art. 3º, da Constituição Federal, que define os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, assim dispostos: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.137 O Texto Constitucional prevê normas que concedem tratamento diferenciado entre homens e mulheres, como a proteção ao mercado de trabalho feminino, mediante incentivos específicos (art. 7º, XX), bem como lhe é assegurada a aposentadoria aos 60 anos, enquanto que, aos homens, a idade limite é de 65 (art. 201, § 7º, II). Essas distinções não se prendem a diferenças fisiológicas, mas, como referido antes, são decorrência de um elemento cultural, pois face às responsabilidades familiares as mulheres prestam dupla jornada de trabalho. Outro ponto que merece destaque diz respeito aos mandamentos em favor de pessoas portadoras de deficiências físicas, a fim de garantir-lhes uma representatividade mínima no serviço público (art. 37, VIII). Outrossim, para as pequenas empresas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País, mais um tratamento diferenciado, consentâneo com a sua fragilidade no mercado competitivo (art. 170, IX). 135 VILAS-BÔAS, 2003, p. 30. SILVA, Alexandre Vitorino. O desafio das ações afirmativas no direito brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3479>. Acesso em: 15 out. 2008. 137 BRASIL, 1988, p. 15. 136 56 No ano de 1996, o Governo brasileiro, no lançamento do Programa Nacional dos Direitos da Mulher, elaborou o documento “Estratégias da Igualdade”, traçando diretrizes para seu atendimento e recomendando a necessidade do uso de ações afirmativas para garantir a paridade sem ferir o art. 5º da Lei Maior. A aparente incompatibilidade entre as normas jurídicas, com a adoção de ações afirmativas, explica-se ao se constatar que a igualdade formal – igualdade de todos perante a lei – não conflita com o princípio da igualdade material, que é o direito à equiparação através da redução das diferenças sociais. Para Dias, A obediência estrita ao preceito constitucional não pode levar a se ver como infringência ao princípio da isonomia a adoção de posturas que, atentando à realidade, gerem normas protetivas, visando a propiciar o equilíbrio para se assegurar o direito à igualdade.138 Ao lado das ações afirmativas, também como forma de combater os preconceitos profundamente enraizados nas culturas nacionais, surge o princípio da igualdade material, que além de vedar o tratamento discriminatório, preconiza a implementação de políticas públicas tendentes a exterminar as desigualdades de fato. Destina-se a suprir a situação de desvantagem imposta historicamente a indivíduos por causa de sua origem étnica, de sua religião, compleição física, nacionalidade ou gênero. No entender de Silva, o princípio da igualdade material se fortaleceu, em detrimento da igualdade formal, tendo em vista que [...] a experiência constitucional do século XX no mundo ocidental demonstrou que, na maioria dos Estados, certos grupos de indivíduos jamais conseguiram atingir padrões aceitáveis de igualdade material, de oportunidades, ou de ocupação de espaços públicos relevantes com base na simples premissa de que a lei não os discriminaria. Sistematicamente, seja em razão do gênero, da compleição física, do credo ou da etnia, dados empíricos demonstraram a utopia da isonomia jurídica como remédio para as desigualdades.139 No entanto, o cuidado que se deve tomar é para que o perfilhamento de discriminações positivas não se transforme na gênese de novas discriminações, agora sob o manto negativo. Segundo Verucci, As ações afirmativas devem emergir como a construção da igualdade posta em movimento, e têm por objetivo um equilíbrio que efetive a igualdade de oportunidades, nunca em desfavor das minorias, mas sempre com a preocupação de limites garantidores da participação das minorias, do rompimento de preconceitos, e não da criação de novos.140 138 DIAS, Maria Berenice. Ações afirmativas: uma solução para a desigualdade. Disponível em: <http://www.universia.com.br/materia/materia.jsp?id=8459>. Acesso em: 6 set. 2008. 139 140 Silva, 2002. VERUCCI, Florisa. Igualdade formal, igualdade material: ações afirmativas. Brasília: Editora Instituto Teotônio Vilela, 1998. p. 11. 57 De fato, o caminho das ações afirmativas ou da igualdade material consiste em uma via de mão-dupla, que determina, necessariamente, a exclusão de membros pertencentes a outros grupos, gerando, muitas vezes, efeitos de discriminação reversa. No caso da Lei 11.340/06, foi exatamente o que aconteceu. Que a maioria suporte algum ônus ou sacrifício para que a igualdade material seja implementada, e assim se corrija distorções, é lícito e aceitável. No entanto, não significa que qualquer ônus seja tolerável, sobretudo os que alcançarem o apogeu da abusividade jurídica. As ações afirmativas visam, sobretudo, a nivelação social, mas há situações em que se vive o risco natural da vida social, cuja tentativa de correção servirá de alicerce para uma nova discriminação. O legislador, no exímio exercício de sua função constitucional de edição normativa, conforme tratado na primeira parte deste trabalho, não poderá afastar-se de princípios como os da igualdade e da proporcionalidade, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Destarte, normas que criem diferenciações abusivas, arbitrárias e sem qualquer finalidade lícita, serão incompatíveis com o Texto Constitucional. Nesse sentido, doutrina Cretella Júnior, ao ser citado por Dantas: “Princípio é, antes de tudo, ponto de partida. Princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas que condicionam todas as estruturações subseqüentes. Princípio, neste sentido, são os alicerces, os fundamentos da ciência”141 (grifos do autor). E adiante Dantas conclui com a citação de Borges: A violação de um princípio constitucional importa em ruptura da própria Constituição, representando por isso mesmo uma inconstitucionalidade e conseqüências muito mais graves do que a violação de uma simples norma, mesmo constitucional. A doutrina vem insistindo na acentuação da importância dos princípios para iluminar a exegese dos mandamentos constitucionais. [...] impõe-se a conclusão pela eficácia eminente dos princípios na interpretação das normas constitucionais. É o princípio que iluminará a inteligência da simples norma [...].142 No entender de Silva, ao tratar da política de quotas, considerada como a forma mais radical e polêmica de implementação das ações afirmativas, A situação, de fato, contém um paradoxo, pois, para implementar-se o princípio da igualdade material e aplicar um critério de justiça distributiva capaz de reverter, no plano dos fatos, os efeitos presentes de uma discriminação pretérita, a solução aventada é a de reduzir as chances de acesso de integrantes da maioria, pelo simples fato de pertencerem a ela. Com isso, há no mínimo uma aparente violação ao princípio da igualdade formal, que precisa ser analisada no caso concreto segundo o mecanismo de ponderação de princípios para que se possa saber se a medida restritiva da igualdade formal é aprovada no teste constitucional da proporcionalidade. 141 CRETELLA JÚNIOR, J., 1972 apud DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995. p. 56. 142 BORGES, Souto Maior, 1975 apud ibid., p. 59. 58 Variante da indagação referida foi batizada pelo escritor americano FISCUS de argumento das pessoas inocentes (innocent persons argument, na sua terminologia). Tal argumento, radicalmente oposto a qualquer medida de quotas, traduz-se em que pessoas integrantes da maioria (racial, religiosa ou fundada em qualquer critério que indique uma discriminação historicamente relevante) não necessariamente culpadas pela discriminação sofrida no passado por grupos minoritários acabam, por um meio indireto, sendo responsabilizadas diretamente no presente e tendo oportunidades diminuídas em função da reserva minoritária.143 Segundo o texto da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificado pelo Brasil, a expressão “discriminação” significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência fundadas na raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por fim ou efeito anular ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos domínios político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública.144 A discriminação, em muitos casos, não assume um caráter facilmente identificável pelo agente que impõe a exclusão. Com isso, constituindo-se em um efeito legislativo colateral negativo, sujeitar-se-á ao crivo do controle de constitucionalidade. A denominada discriminação no direito, num primeiro momento, nem sempre apresentará um elemento discriminatório reconhecível, o que se revelará somente quando da aplicação da norma, apontando para o desfavorecimento desarrazoado de um grupo em favor de outro. Além das inovações adotadas pela “Lei Maria da Penha”, pôs-se em jogo a liberdade masculina, a mercê, variavelmente, do capricho feminino. Cabe destacar que a liberdade individual constitui-se em direito fundamental de primeira geração, o que implica dizer que toda a interpretação jurídica terá que levar em conta o seu conteúdo. Desde a Revolução Francesa de 1789 que a liberdade, ao lado da igualdade, transformou-se numa das bandeiras de luta contra a opressão imposta pela classe controladora do poder. Trata-se de um direito que não resulta de uma concessão da sociedade política, mas de um dever que ela, sociedade política, deve consagrar e garantir. Sendo assim, a liberdade, como bem jurídico dos mais relevantes, torna-se passível de restrição apenas em situações de extrema necessidade, consoante disposições justificáveis. No dizer de Bobbio, “[...] a liberdade é antiga mas seus problemas são sempre novos e se renovam continuamente, em resposta às formas sempre novas de opressão que aparecem no horizonte da história.”145 143 Silva, 2002. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Biblioteca digital. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/jspui/bitstream/2011/18650/1/A_Conven%c3%a7%c3%a3o_Internacional_sobre_Eli mina%c3%a7%c3%a3o_de_Todas_as_Formas_de_Discrimina%c3%a7%c3%a3o.pdf >. Acesso em: 14 dez. 2008. 145 BOBBIO, 1997, p. 81-82. 144 59 Para reforçar o entendimento de que se vive um momento de negação das medidas privativas de liberdade, que recentemente os Ministros do STF relaxaram a ordem de prisão contra acusado de depósito infiel146. Trilhou a “Lei Maria da Penha”, novamente, pela contramão da realidade jurídico-social. Não há dúvida de que o art. 226, § 8º, da Constituição Federal brasileira, autorizou a criação de mecanismos capazes de coibir a violência no âmbito das relações familiares, conferindo ao Poder Legislativo a possibilidade de criação de uma norma específica capaz de chancelar tal dispositivo. Para Gama, Em se tratando de célula mater da sociedade, a família sempre foi objeto de preocupação mundial, dada a sua imprescindibilidade para a sobrevivência da espécie humana, além de ser fundamental para a organização e manutenção dos Estados. A importância da família não é ressaltada apenas no Direito, já que em se tratando de organismo ético, religioso, moral e principalmente social, a instituição familiar envolve vários ramos do conhecimento humano. E, como reflexo das diversas formações culturais, religiosas, sociais, econômicas e políticas, a família tem forte conotação nacional nos seus contornos e aspectos.147 (grifo do autor) Neste contexto, teria a Lei Federal 11.340/06 outorgado, de forma legítima, os mecanismos capazes de coibir a violência no âmbito das relações familiares, restringindo, no entanto, tais benefícios apenas às mulheres, incidindo, destarte, em manifesta inconstitucionalidade, porquanto confrontou o princípio da isonomia. Ao comentar sobre o significado da proteção do Estado à família, Derzi, citada por Gama, observou que “[...] se deduz a dimensão da determinação do conceito de ‘proteção’; significa, segundo seu conteúdo literal, a promoção do bem a proteger, o rechaço de interferências ou prejuízos e, sobretudo, a renúncia do Estado a intervenções perturbadoras próprias.”148 (grifo do autor/grifou-se). É imprescindível citar, dentro desse conjunto, acórdão relatado pelo Ministro Celso de Mello no Mandado de Injunção nº 58-DF, tratando do processo de discriminação da igualdade: Princípio da igualdade e proibição da discriminação. Igualdade. Princípio. Proibição. “O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é – enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica – suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio – cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do poder público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir 146 A liminar foi concedida pelo Ministro-Presidente Gilmar Mendes no Habeas Corpus 97251, impetrado pela defesa contra decisão do Superior Tribunal de Justiça, que extinguiu este processo contendo pedido semelhante, sem examinar seu mérito. Anteriormente, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região havia mantido a decisão de primeiro grau. 147 GAMA, 2000, p. 16. 148 DERZI, 1996 apud GAMA, ibid, p. 63. 60 privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera numa fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejam tratamento seletivo ou discriminatório. A Eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade.149 Com efeito, é certo que a violência contra a mulher se transformou em uma endemia mundial, conforme demonstrado em outra parte deste trabalho, como é certo, também, que existem diversas outras medidas de promoção capazes de desempenhar o papel de instrumento de realização do princípio da igualdade material. Achar na lei repressivopunitiva, e somente nela, a forma de reduzir as desigualdades, é primar pela arbitrariedade, pelo disparate jurídico. Ademais, o próprio Código Penal, em sua Parte Especial, reservou o Título VII para colocar justamente a família150 sob proteção do Estado, além de outros artigos esparsos, seguindo ditame da Constituição Federal. Do mesmo modo, ação afirmativa não se confunde com ação de exclusividade estatal, posto que programas desenvolvidos por particulares podem partilhar, outrossim, o mesmo escopo de superação de desigualdades. Outras medidas também poderiam contribuir, e muito, com tais transformações, como aperfeiçoar e efetivar as previsões legais do ordenamento jurídico, modificar as estruturas sociais discrepantes construídas ao longo do tempo, promover o conhecimento das leis às mulheres e dos mecanismos jurídicos possíveis de viabilizar a proteção delas, enfim. Outras, ainda, perpassariam pela perspectiva crítica do direito tradicional e do combate ao funcionamento retrógrado e burocratizado das instituições. O movimento de mulheres, que discute e estuda a problemática buscando soluções através de pressão junto aos órgãos de poder e junto à sociedade, através de campanhas educacionais e de conscientização que visam desconstruir o modelo patriarcal, reveste-se de relevância ímpar na busca da superação das diferenças. A introdução dessas discussões já nas escolas, onde também se constrói o caráter do ser humano, aliada à articulação de mulheres na busca de fortalecer os espaços feministas de organização política, constitui-se no primeiro passo. A par destes fatos, o Estado Brasileiro tem ainda o dever de cumprir o disposto nas duas convenções internacionais de direitos humanos das mulheres por ele ratificadas, ou 149 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acompanhamento processual. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=58&classe=MI&origem=AP&rec urso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 10 out. 2008. 150 Dos Crimes Contra a Família, art. 235 ao art. 249. 61 seja, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, aprovada pela ONU em 1979 e ratificada no direito interno em 1984, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, editada no âmbito da OEA em 1994 e ratificada pelo Brasil em 1995. A responsabilização pela discriminação vivenciada pelas mulheres brasileiras, portanto, é menos uma questão de insuficiência legislativa, e mais uma construção histórica que acabou por ocasionar a exclusão delas e, portanto, de uma situação igualitária que preserve sua dignidade. 4.3 DA INTERPRETAÇÃO PARA AFERIÇÃO DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE Para interpretar uma discriminação, a ponto de verificar se ela se conforma ou não com o princípio da igualdade, Moura, em sua obra cujo tema trata exatamente da isonomia, aponta seis passos a serem rigorosamente seguidos. Segundo ela, “Qualquer exemplo dado, ao não passar por estes seis passos, poderia ser refutado, não sendo enquadrado nas discriminações positivas”151, mas alerta: Contudo, deve haver cautela em uma situação contrária, pois, mesmo passando pelos seis passos e estando de acordo com eles, para afirmar que se trata de discriminações positivas, deveriam haver outros trabalhos e pesquisas empíricas, inclusive, num número razoável, para testar os critérios apresentados nestas situações.152 Os seis passos são os apresentados a seguir153: 1º passo: precisa-se do auxílio da axiologia, pois os valores considerados como supremos devem estar bem claros, e serão escolhidos conforme a ordem constitucional vigente para a interpretação; 2º passo: identificação do elemento que é causa da desigualação, ou melhor, deve-se saber qual situação ou condição separa dois grupos, sendo que os destinatários da discriminação não podem ser determinados ou determináveis; 3º passo: saber se a discriminação visa a igualar os grupos diferentes; 4º passo: verificar as possibilidades jurídicas de fazer cessar a diferença estabelecida pela norma quando não houver mais qualquer diferença. Este momento da interpretação busca garantir que, quando as diferenças de fato não mais existam, a discriminação cesse; 151 MOURA, 2005, p. 96. Ibid., p. 96-97. 153 Ibid., p. 95-96. 152 62 5º passo: ocupa-se em estabelecer proporção de causa e efeito para o discrímen utilizado; 6º passo: verificação da correlação lógica entre o fator de discriminação e a desigualdade existente com os valores adotados como supremos. Apontados os seis passos, passa-se então ao enquadramento da Lei 11.340/06 para a devida constatação de sua conformidade ou não com o princípio da igualdade. 1º passo: a edição da “Lei Maria da Penha” fundamentou-se na dignidade da pessoa humana (art. 3º, IV, da CF/88), na igualdade de direitos e obrigações (art. 5º, I, da CF/88) e na unidade e harmonia familiar (art. 226, § 8º, da CF/88); 2º passo: o elemento causador da desigualação é o sexo. A Lei foi criada para proteger a mulher em estado de violência doméstica e familiar, haja vista a alegada fragilidade fisiológica feminina; 3º passo: a proteção/discriminação/orientação adotada pela Lei em questão pretende igualar os dois grupos – masculino e feminino – quando em estado de violência doméstica e familiar; 4º passo: a verificação da possibilidade jurídica de cessar a diferença proposta pela “Lei Maria da Penha”, consiste em não conceber caráter perpétuo à discriminação adotada. Deve-se entender que, quando a desigualdade de fato deixar de existir, a Lei deverá ser revogada; 5º passo: a causa que originou a edição da Lei 11.340/06 foi a realidade cultural de violência que domina o ambiente familiar, cuja maior vítima, em tese, é a mulher. O efeito ocasionado pela aplicação da Lei, visando à proteção feminina, é uma punição mais rigorosa ao homem, quando agente causador da violência. Ao verificar a proporção entre causa e efeito após a adoção da Lei, percebe-se que a motivação da ação discriminatória não encontra harmonia plena com o princípio da igualdade, qual seja a equiparação dos grupos. A comprovar isso, aponta-se as diversas interpretações até então dadas à Lei 11.340/06, como sua inconstitucionalidade, aplicação extensiva ao homem vítima de violência doméstica, etc. 6º passo: análise prejudicada em razão da conclusão obtida no passo anterior. 63 5 CONCLUSÃO A Lei 11.340/06 foi promulgada com o objetivo manifesto de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Finalidade louvável, sem dúvida, o que a transformou em motivo de aclamação praticamente unânime no meio jurídico nacional. Porém, em uma situação dessas, vem logo à mente a advertência de Nelson Rodrigues de que “a unanimidade é burra”, posto incitar o simples adesismo e coibir a reflexão crítica. A Lei contém diversos pontos polêmicos que merecem uma análise mais profunda da doutrina e da jurisprudência, destacando-se sua duvidosa constitucionalidade. A Constituição de 1988 é peremptória ao determinar que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (art. 5°, I), mas obviamente que também prevê exceções a favor da criança, da mulher, do idoso, enfim. Por serem excepcionais, é que as exceções devem ser interpretadas restritivamente, com a proibição da utilização da analogia para criar novas discriminações a favor de quem quer que seja. Esse é o raciocínio utilizado em diversas leis que visam proteger os “direitos das minorias”, como o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), a lei dos crimes de preconceito (Lei 7.716/89), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03). A pretexto de combater a discriminação, criam-se novas diferenciações, em flagrante desrespeito ao princípio da igualdade que, ressalte-se, só pode ser excepcionado pela própria Constituição. Uma outra ordem de questões levada em consideração à adoção da Lei, passa pelo pressuposto que vê as mulheres como pessoas fragilizadas e vitimizadas. Essa visão implica fortalecer uma visão machista, que apregoa exatamente isso, vale dizer, que as mulheres têm menos capacidade e tem que ser tratadas de forma diferenciada, quando a realidade é outra. Hoje elas são chefes de muitos lares, colaboram decisivamente na vida econômica das famílias e do País, correspondendo a mais da metade da força de trabalho do Brasil. As mulheres não são pessoas inaptas e indefesas que precisam de um protetor estatal. Não precisam de protecionismo, mas de reconhecimento da sua condição de igual ao homem, e igualdade deve ser em tudo, salvo naquilo que a própria Constituição ressalvar, e sempre levando em conta não o sexo em si, mas condições que podem ter relação com ele. Percebe-se que a “Lei Maria da Penha” não está plenamente compatível com o sentimento social, pois o espírito que a permeia é discriminatório, razão pela qual sua eficácia jurídica – aplicabilidade – e sua eficácia social – efetividade – restam duvidosamente 64 reconhecidas. Uma coisa é lei vigente, outra é lei válida. Nem toda lei vigente é válida, e só a lei válida, e que esteja em vigor, deve ser observada pelos cidadãos e operadores de Direito. O que a mulher deseja é ser amparada, orientada e respeitada. Não deseja que o marido seja preso, processado e condenado. Sentença condenatória repressiva, não lhe resolverá o problema. Ao contrário, agravará o relacionamento. A interferência benéfica e efetiva de equipe multidisciplinar para mostrar ao agressor que a mulher deve ser respeitada como ser humano e que ela não é um objeto que lhe pertence, talvez resolvesse muitos dos problemas que afligem as relações conjugais. Trata-se de uma questão cultural que uma lei mal aplicada ou uma sentença penal condenatória não resolverá. A mudança da mentalidade se fará paulatinamente. Ademais, pode-se concluir que a Lei 11.340/06 terá mais efeito simbólico do que resultados práticos a curto e médio prazos, posto que, atentando-se para os possíveis impactos de suas disposições sobre o sistema de justiça, é possível prever que as medidas mais importantes para implementação dos seus objetivos, quais sejam, a consecução de políticas sociais a cargo do poder público e de instituições privadas, serão relegadas a segundo plano, prevalecendo as ações de ordem jurídico-penal. Criar-se uma lei dispensando tratamento diferenciado a apenas um dos lados é agravar as diferenças, é um equívoco jurídico, porquanto “masculino” e “feminino” serem secundários à essência “ser humano”. Ignorar princípios constitucionais tão vigorosos como a igualdade e a proporcionalidade é, no mínimo, ilegítimo. Estender os benefícios aos discriminados que solicitarem perante o Poder Judiciário, caso a caso, fosse, talvez, a salvação da “Lei Maria da Penha”. Aliás, Direito é, antes de tudo, bom senso. 65 REFERÊNCIAS AGUIAR, Regina. A mulher no próximo milênio: realidade e perspectivas. Disponível em: <http://www.pbh.gov.br/smsa/biblioteca/saudedigital/maio2002/mulhermilenio.html>. Acesso em: 1 dez. 2008. AMARAL, Michelle. Pesquisa mostra que mulheres têm pouco espaço no cenário eleitoral. Disponível em: <http://www.forumplp.org.br/index.php?option=com_content&vie w=article&id=683:pesquisa-mostra- que-mulheres-tem-pouco-espaco-no-cenario-eleitoral&catid=43:partidos&Itemid=161>. 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Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1990. 70 ANEXOS 71 ANEXO A – Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.154 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: TÍTULO I DISPOSIÇÕES PRELIMINARES Art. 1o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. § 1o O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 2o Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput. Art. 4o Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. TÍTULO II DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER 154 BRASIL, 2006. 72 CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. Art. 6o A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos. CAPÍTULO II DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. TÍTULO III DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CAPÍTULO I 73 DAS MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações nãogovernamentais, tendo por diretrizes: I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação; II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas; III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal; IV - a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher; V - a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres; VI - a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher; VII - a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia; VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia; IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. CAPÍTULO II DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso. § 1o O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal. § 2o O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica: I - acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta; 74 II - manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses. § 3o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos necessários e cabíveis nos casos de violência sexual. CAPÍTULO III DO ATENDIMENTO PELA AUTORIDADE POLICIAL Art. 10. Na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as providências legais cabíveis. Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo ao descumprimento de medida protetiva de urgência deferida. Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências: I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário; II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar; V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis. Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal: I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada; II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias; III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência; IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários; V - ouvir o agressor e as testemunhas; VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele; VII - remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público. § 1o O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e deverá conter: 75 I - qualificação da ofendida e do agressor; II - nome e idade dos dependentes; III - descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida. § 2o A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1o o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da ofendida. § 3o Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde. TÍTULO IV DOS PROCEDIMENTOS CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei. Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Parágrafo único. Os atos processuais poderão realizar-se em horário noturno, conforme dispuserem as normas de organização judiciária. Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis regidos por esta Lei, o Juizado: I - do seu domicílio ou de sua residência; II - do lugar do fato em que se baseou a demanda; III - do domicílio do agressor. Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público. Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. CAPÍTULO II DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA Seção I Disposições Gerais 76 Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas: I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência; II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso; III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis. Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida. § 1o As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado. § 2o As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados. § 3o Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público. Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial. Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público. Parágrafo único. A ofendida não poderá entregar intimação ou notificação ao agressor. Seção II Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; 77 c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios. § 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público. § 2o Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso. § 3o Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial. § 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil). Seção III Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; IV - determinar a separação de corpos. Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras: I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo. 78 CAPÍTULO III DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO Art. 25. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher. Art. 26. Caberá ao Ministério Público, sem prejuízo de outras atribuições, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando necessário: I - requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança, entre outros; II - fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas; III - cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. CAPÍTULO IV DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei. Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado. TÍTULO V DA EQUIPE DE ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes. Art. 31. Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais aprofundada, o juiz poderá determinar a manifestação de profissional especializado, mediante a indicação da equipe de atendimento multidisciplinar. Art. 32. O Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, poderá prever recursos para a criação e manutenção da equipe de atendimento multidisciplinar, nos termos da Lei de Diretrizes Orçamentárias. TÍTULO VI DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da 79 prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente. Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput. TÍTULO VII DISPOSIÇÕES FINAIS Art. 34. A instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher poderá ser acompanhada pela implantação das curadorias necessárias e do serviço de assistência judiciária. Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências: I - centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar; II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar; III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar; IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar; V - centros de educação e de reabilitação para os agressores. Art. 36. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão a adaptação de seus órgãos e de seus programas às diretrizes e aos princípios desta Lei. Art. 37. A defesa dos interesses e direitos transindividuais previstos nesta Lei poderá ser exercida, concorrentemente, pelo Ministério Público e por associação de atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano, nos termos da legislação civil. Parágrafo único. O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz quando entender que não há outra entidade com representatividade adequada para o ajuizamento da demanda coletiva. Art. 38. As estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher serão incluídas nas bases de dados dos órgãos oficiais do Sistema de Justiça e Segurança a fim de subsidiar o sistema nacional de dados e informações relativo às mulheres. Parágrafo único. As Secretarias de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal poderão remeter suas informações criminais para a base de dados do Ministério da Justiça. Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no limite de suas competências e nos termos das respectivas leis de diretrizes orçamentárias, poderão estabelecer dotações orçamentárias específicas, em cada exercício financeiro, para a implementação das medidas estabelecidas nesta Lei. Art. 40. As obrigações previstas nesta Lei não excluem outras decorrentes dos princípios por ela adotados. Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995. 80 Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte inciso IV: “Art. 313. ................................................. IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.” (NR) Art. 43. A alínea f do inciso II do art. 61 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 61. .................................................. II - ............................................................ f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica; ” (NR) Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 129. .................................................. § 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. .................................................................. § 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência.” (NR) Art. 45. O art. 152 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 152. ................................................... Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.” (NR) Art. 46. Esta Lei entra em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua publicação. Brasília, 7 de agosto de 2006; 185o da Independência e 118o da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Dilma Rousseff Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 8.8.2006 81 ANEXO B – Poesia Desilusão DESILUSÃO Quando pensei estar tudo bem voltaste a gritar, pensaste que eram todos teus escravos, e esqueceste de nos respeitar. Tua família não agüenta mais, inveja os pais dos amigos, implora para que não nos faça chorar, pede para não nos magoar. Tua mulher pede um homem de verdade, homem que ama não apenas o corpo mas também o espírito, pois todos de tua família já sabem, que a dor de um bisturi nos cortando, dói menos que tuas palavras dirigidas à mãe que viveu nos poupando. Poupando-nos dos gritos de pavor, poupando-nos dos flagrantes que a machucavam, poupando-nos de saber da inexistência de teu amor, poupando-nos de toda dor e tristeza que no teu coração habitavam. Saiba que mesmo com amargura, da falta do amor paterno, consigo ser forte e até feliz, pela ternura e apoio do amor materno. Quando enxergares que os anos o consomem, você vai ter certeza que seria melhor, ao invés de macho, ter sido somente HOMEM. Patrícia Uliano Effting Zoch de Moura
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