LEONARDO DA VINCI (1452-1519)
Transcrição
LEONARDO DA VINCI (1452-1519)
VINCI, Leonardo da. Tratado de Pintura, “O verdadeiro mestre é universal”. (col. A pintura. Vol. 10 os gêneros pictóricos. Coord. Lichtenstein, Jaqueline) São Paulo: Ed 34, 2006. LEONARDO DA VINCI (1452-1519) TRATADO DA PINTURA (1490-1517) Como Alberti, cujo tratado seguramente conhecia,1 Leonardo da Vinci afirma o principio de universalidade da pintura contra toda especialização dos artistas. Essa afirmação dá ensejo a uma diatribe contra os retratistas, motivada, ao que parece, por reagirem contra as proposições de Alberti relativas aos “talentos particulares”.2 Leonardo reprova aos pintores de retratos, de um lado, não mostrarem seus temas em ação, quando a pintura do movimento é a condição e um dos meios da representação da istoria; mas também, acusação mais séria, dedicarem-se tão exclusivamente à restituição de um personagem, que negligenciam com isso todos os outros elementos que constituem a história. Esse reproche pode se aplicar não apenas aos retratistas mas também aos artistas que pintam naturezas-mortas ou paisagens — em verdade a todos os que continuam sendo sobretudo pintores especializados, mesmo quando empreendem uma pintura de história. Leonardo inaugura aqui um debate que se prolongará até o século XVIII, ou mesmo o XIX, e culmina com Diderot:3 o que envolve a questão de saber se o grande gênero pode e deve, a exemplo dos gêneros menores, desenvolver a representação do real até a reprodução dos mínimos detalhes, ou se a insistência nesses detalhes secundários traz o risco de se afastar do essencial e diminuir o efeito do quadro. As notas de Leonardo, em contrapartida, contêm elementos de um longo capítulo sobre a paisagem, com uma vigorosa defesa desse gênero. Esse capítulo, jamais organizado — como tampouco o restante das notas que constituem o projeto de tratado —, poderia ter começado com a famosa meditação (que Leonardo desenvolve a partir de uma prática que atribui a Botticelli) sobre a mancha, condição possível, mas não suficiente, para a elaboração de uma paisagem.4 Ele traz sobretudo considerações abundantes e detalhadas sobre a prática. Redigidas no momento preciso em que nasce verdadeiramente a paisagem — em Veneza, particularmente com Giovanni Bellini e depois com Giorgione., Estas notas, convém assinalar, são dedicadas principalmente a uma análise dos efeitos de atmosfera: folhagens tocadas ou atravessadas pela luz, efeitos de brumas ou fumaças que separam o olhar do motivo e modificam o aspecto e a nitidez dos contornos. Esses problemas têm a ver com a reflexão sobre os métodos da ‘perspectiva atmosférica’, um assunto caro a Leonardo.5 Além desses problemas de luz, Leonardo se apega particularmente a um motivo do paisagista, a montanha.6 Ele descreve as cores que variam segundo a vegetação em função da altitude, com uma atenção sem 1 Ver Anthony Blunt, Teoria artística na Itália, 1450-1 600, tradução de João Moura Jr., São Paulo, Cosac Naif, 2001. 2 Ver texto precedente. 3 ‘ Ver, neste volume, o texto de Beilori, sobre Poussin, e os Ensaios sobre a pintura, de Diderot; e, no volume 13, O ateliê do pintor, o texto de Charles Blanc, Gramática das artes do desenho. 4 Dürer também construía eventualmente paisagens a partir de uma mancha. Além dos comentários de Freud ou de Valéry (deste, ver Degas dança desenho, tradução de Christina Murachco e Célia Euvaldo, São Paulo, Cosac Naif,’, 2003) a propósito da mancha, ver o livro de J.-C. Lebenzteijn, Introduction à la “Nouvelle méthode d’Alexander Cozens”, Montelimar, Éditions du Limon, 1990. 5 Para desdobramentos dessa questão, ver a segunda parte, “Os elementos da pintura”, do volume 13 desta coleção. 6 No início do século XV, o tratado de Cennino Cennini aconselhava ainda a utilizar grandes pedras como modelos de desenho para as montanhas. Dessa montanha, Leonardo escreve noutra parte que ela é ideal para constituir um fundo. precedentes na literatura e na pintura anteriores. A última passagem de Leonardo que selecionamos aqui é dedicada à descrição de um dilúvio: ela evoca o desencadeamento das forças da natureza numa verdadeira batalha cósmica. No século XV e no XVI, o dilúvio é, paralelamente à representação do choque dos exércitos7 - e de modo mais duradouro do que esta - um dos assuntos favoritos da pintura de história. Para estarmos seguros disso, basta pensar no famoso afresco de Paolo Ucceilo no claustro verde da igreja de Santa Maria Novella, em Florença, ou nas pinturas de Michelangelo e de Rafael, na Capela Sistina e nas galerias do Vaticano. Que se trata aí de uma reverberação das angústias de uma época preocupada com o próximo fim do mundo, algumas passagens do Diário de Dürer e a fábula inventada pelo próprio Leonardo sobre a catástrofe do monte Taurus o mostram claramente.8 Mas o texto de Leonardo ainda justifica essa predileção em nome de razões estéticas. Ele revela seu ideal: tirar proveito de um gênero específico — no caso, a paisagem numa grandiosa pintura de história. As descrições de batalhas são igualmente impressionantes em Leonardo. Ver, na edição Chastel (Traité de la peinture, textos traduzidos e apresentados por A. Chastel, Paris, Berger-Levrault, 1987), pp. 132-5, e o texto da encomenda da célebre batalha de Anghiari, no Palazzo Vecchio de Florença, publicado nos Carnets, op. cit., II, pp. 385-6. O tema do dilúvio é abordado também em outro momento nas notas artísticas de Leonardo, pp. 138-9 da edição Chastel. 7 As descrições de batalhas são igualmente impressionantes em Leonardo. Ver, na edição Chastel (Traité de la peinture, textos traduzidos e apresentados por A. Chastel, Paris, Berger-Levrault, 1987), pp. 132-5, e o texto da encomenda da célebre batalha de Anghiari, no Palazzo Vecchio de Florença, publicado nos Carnets, op. cit., II, pp. 385-6. O tema do dilúvio é abordado também em outro momento nas notas artísticas de Leonardo, pp. 138-9 da edição Chastel. 8 Edição Chastel, p. 22 e nota 5, ss. Bibliografia: Les Carnets de Léonardde Vinci, introdução, classificação e notas por E. MacCurdy, traduzido do inglês e do italiano por E. Servien, prefácio de Paul Valéry, Paris, GaIlimard, 2 volumes, 1942 (reedição 1992); Leonardo da Vinci, Traité de la peinture, textos traduzidos e apresentados por A. Chastel, Paris, Berger-Levrault, 1987. “O VERDADEIRO MESTRE É UNIVERSAL” O pintor não é digno de louvor se não for universal. Pode-se dizer claramente que se enganam aqueles que chamam de bom mestre o pintor que executa bem apenas uma cabeça ou figura. Não é um grande feito, estudando uma única coisa durante toda a sua vida, alcançar alguma perfeição; mas nós, sabendo que a pintura abarca e contempla todas as coisas que a natureza produz e tudo o que criou a operação fortuita do homem, e por último o que se pode apreender com os olhos, parece-me bem pobre, o mestre que só sabe fazer bem uma figura. Ora, não vês quantos e quão variados são os atos realizados pelo homem? Não vês como os animais são diversos e também as árvores, as plantas, as flores e a variedade de sítios na montanha e na planície, nascentes, rios, cidades, edifícios públicos e privados, instrumentos de uso do homem, e diferentes vestimentas, ornamentos e artes? Todas essas coisas devem ser perfeitas e bem executadas por aquele que queres chamar de bom pintor. [...] Discurso dos preceitos do pintor. Eu sempre constatei que, entre todos os retratistas, aquele que obtém a melhor semelhança é pior pintor de istoria que qualquer outro. E isso ocorre por que quem faz melhor uma coisa, é que a natureza lhe dispôs a essa coisa e não a uma outra, por essa coisa ele teve mais amor e esse maior amor o fez mais diligente; e todo amor que é concentrado em uma parte faz falta ao todo, porque ele fez dessa única coisa seu único prazer, deixando o universal pelo particular. Com toda a potência desse espírito confinada em pouco espaço, não há potência na dilatação e esse espírito atua à semelhança do espelho côncavo: ao tomar os raios do Sol e refletir essa quantidade de raios numa área de maior dispersão, produz um calor tépido; mas quando os reflete num espaço menor, então esses raios são de calor imenso, fazendo uso de pouco espaço. Assim fazem os pintores que não amam outra coisa na pintura que não seja o rosto humano; e o que é pior, não sabem estimar e apreciar nenhum outro aspecto da arte; e suas obras são sem movimento, por serem eles mesmos preguiçosos e de pouco movimento, criticam aquelas coisas que têm movimentos maiores e mais livres que as suas e dizem que esses [personagens] parecem possuídos e mestres de [danças] mouriscas. [...] Preceitos do pintor. Não será universal aquele que não amar igualmente todas as coisas que pertencem à pintura; se um não gosta de paisagens, ele dirá que elas são coisas banais e de fácil compreensão; como disse nosso Botticelli, que tal estudo era vão por que bastava jogar uma esponja embebida de diversas cores sobre uma parede, para que ela deixasse sobre essa parede uma mancha onde se podia ver uma bela paisagem. É bem verdade que se pode ver em tal mancha diversas composições [dependendo] do que se quer aí buscar, ou seja, cabeças humanas, animais diversos, batalhas, rochedos, mares, nuvens e bosques e outras coisas semelhantes; é como o som dos sinos, nos quais podes ouvir o que quiseres. Mas ainda que essas manchas te forneçam a invenção, elas não te ensinam a dar acabamento a nenhum detalhe. E esse tal pintor fez paisagens bem pobres. [...j De que ponto de vista deve-se pintar uma paisagem. As paisagens devem ser pintadas de modo a que as árvores estejam meio iluminadas e meio sombreadas. Mas é melhor fazê-las quando o Sol está escondido pelas nuvens, pois então as árvores são iluminadas pela luz universal do céu pela sombra universal da terra. E suas partes são tão mais sombreadas quanto mais próximas essas partes estão do meio da árvore e da terra. Do modo de pintar as coisas distantes. Vê-se claramente que uma parte da atmosfera, a que confina com a terra plana, é mais densa que as outras; e quanto mais ela se eleva mais fina e transparente é. A base de objetos grandes e altos situados ao longe, será pouco visível, porque a vês ao cabo de uma linha que passa por essa área de atmosfera mais densa. O cume desses objetos elevados será mais visível, pois embora essa linha tenha origem numa atmosfera densa, próxima do teu olho, não obstante, quando alcança o cume do objeto, ela acaba numa atmosfera muito mais fina que a da sua base, e por essa razão, quanto mais essa linha se distancia de ti, mais a qualidade do ar torna-se rarefeita. Assim, tu pintor, quando fizeres as montanhas faze com que de monte em monte, as bases sejam sempre mais claras que os cumes, e quanto mais as fizeres distantes umas das outras, faze as bases mais claras, e quanto mais as montanhas se elevarem, mais elas mostrarão sua verdadeira forma e cor. Da cor das montanhas. Entre as montanhas distantes do olho, aquela que é naturalmente a mais escura se mostrará do mais belo azul; e a mais escura por natureza é a mais elevada e com mais bosques; pois, como esses bosques localizam-se no alto, eles mostram a parte inferior das suas árvores; e essa parte inferior é escura porque não vê o céu. Além disso, as plantas selvagens dos bosques são mais escuras que as cultivadas: os carvalhos, as faias, os ciprestes, os pinheiros são muito mais escuros que as oliveiras e as árvores frutíferas. [...] Se acontece de alguma nuvem em algum lugar sombrear uma parte da colina, as árvores mudam menos [de cor] que nas planícies, porque as árvores sobre as colinas possuem os galhos mais espessos pois crescem menos por ano do que nas planícies; e como esses galhos são escuros por natureza e por serem repletos de sombra, a sombra das nuvens não pode escurecê-los ainda mais. Mas o espaço livre entre as árvores, não recebendo nenhuma sombra, muda muito de tom, sobretudo se ele não é verde, como, por exemplo, nas terras aradas, nas montanhas erodidas, nos locais estéreis e rochosos. As árvores que se destacam contra o céu parecem ser todas da mesma cor — a menos que não estejam muito próximas umas das outraS ou não tenham folhagens densas, como o pinheiro e árvores semelhantes. Quando vês as árvores do lado que o Sol as ilumina, tu as verás quase que uniformemente claras e as sombras internas serão escondidas pelas folhas iluminadas interpostas entre teu olho e essas sombras. [...] Da fumaça das cidades. A fumaça é melhor percebida e mais distinta a leste que a oeste, se o Sol está a leste; e isso por duas razões: a primeira é que o Sol perfura com seus raios as partículas dessa fumaça e ilumina-as e torna-as visíveis; a segunda é que os telhados das casas vistos à essa hora, a leste, estão na sombra porque o Sol não pode iluminar as suas inclinações [dos telhados]. E o mesmo ocorre para a poeira, e tanto uma quanto a outra são mais luminosas quanto mais densas forem, e sua densidade é maior no centro. A variação da cor das árvores. As cores das folhas das árvores variam segundo quatro fatores: sombra, luz, reflexo e transparência. Da visibilidade dessas variações. À grande distância, as variações das cores das folhas das árvores confundemse numa mescla, na qual aquela que ocupa a mair superfície será predominante. Das folhas opacas localizadas à frente das transparentes. Quando as folhas interpõem-se entre a luz e o olho, então a mais próxima do olho será a mais escura, e a mais distante, mais clara; a menos que tenha o céu como fundo. [...] [...j Pintor, quando fizeres uma árvore de perto, lembra-te que teu olho, estando um pouco abaixo dessa árvore, verá suas folhas do direito e do avesso, e a parte do lado direito será tão mais azul quanto mais em escorço elas estiverem; e uma mesma folha mostra, às vezes, uma parte do seu lado direito e uma do avesso, por isso deves fazê-la em duas cores. Pintura: representar os elementos característicos das paisagens montanhosas. As ervas e as plantas terão as cores tão mais pálidas quanto mais magro e sem umidade for o terreno que as nutre. O terreno é mais magro e mais seco sobre as rochas das quais se compõem os montes. E as árvores serão tão menores e tão mais frágeis quanto mais próximas dos cumes estiverem, e o terreno tão mais magro, quanto mais se aproxima dos ditos cumes das montanhas, e o terreno fértil é tão mais abundante quanto mais próximo estiver da concavidade dos vales. Então, tu pintor, mostrarás no cume dos montes as rochas que os compõem em grande parte desprovidas de terra e as ervas que aí nascem, miúdas e magras e em grande parte pálidas e secas pela falta de umidade; e que se veja o terreno arenoso e magro transparecer entre as pálidas ervas e as pequenas plantas miseráveis e envelhecidas, de tamanho mínimo, com galhos curtos e espessos e poucas folhas, as raízes como que enferrujadas e áridas, entrelaçadas com as faldas e as fendas das rochas enferrujadas, germinadas nos troncos mutilados pelos homens e pelos ventos; e em muitas partes, veja-se as rochas emergirem dos declives das altas montanhas revestidas de uma fina e pálida ferrugem; e em alguma parte mostrar as suas verdadeiras cores reveladas pelo impacto dos relâmpagos celestes, o curso dos quais, não sem vingança desses rochedos, freqüentemente é por eles impedido. E quanto mais se desce aos pés dos montes, mais a vegetação será vigorosa e cheia de galhos e folhas e seus verdes serão de tantas variedades quantas são as espécies de plantas de que tais selvas se compõem; e as copas diferem pela estrutura e densidade dos galhos e das folhas e pelos contornos e alturas; algumas com a coroa estreita, como o cipreste, e outras com ramificações espessas, dispersas e dilatadas, como o carvalho e o castanheiro etc.; algumas com folhas miúdas, outras ralas, como o zimbro e o plátano etc.; alguns grupos de plantas nascidas na mesma época separados por espaços de grandezas diversas, outros unidos sem o intervalo de prados ou outros espaços vazios. [...] Descrição do dilúvio. Seja figurado primeiramente o cume de uma montanha abrupta com alguns vales ao redor da sua base, e que em seus flancos se veja a superfície do terreno deslizar, junto com miúdas raízes de sarça, desnudando grandes porções de rochas circundantes. E descendo esses precipícios e semeando a ruína, deixe que ela se choque e desnude no seu curso turbulento as nodosas e tortuosas raízes das grandes árvores, e que as ponha de cabeça para baixo, e que as montanhas desnudando-se revelem as profundas fissuras provocadas por antigos terremotos; e que a base das montanhas seja em grande parte recoberta pelos destroços dos arbustos precipitados pelos flancos dos cumes desses montes, e que se misturem com a lama, as raízes, os galhos de árvores com diversas folhas mergulhados nessa lama, e terra e pedras. E que os destroços de certas montanhas tombem até as profundezas de alguns vales e formem barragens para as águas transbordantes do seu rio; mas essas já romperam tais barragens e vão-se em ondas gigantescas, das quais as mais altas batem nos muros das cidades e nas fazendas dos vales, destruindo-os. E as ruínas dos altos edifícios dessas cidades levantarão uma grande quantidade de poeira, que se alçará com o aspecto de fumaça ou de nuvem turbilhonante contra a chuva que cai. Mas a água que transborda, rodopiando no lago, irá chocar-se numa ressaca turbilhonante contra diversos obstáculos, elevando-se no ar com uma espuma lamacenta, para depois recair e lançar no ar a água rebatida. E as ondas circulares, que emanam do local do choque, são impelidas contra outras ondas circulares que vêm em sentido oposto, e com o choque alçam-se no ar, mas sem se separar da superfície das águas. E onde a água escoa desse lago vêem-se as ondas desfeitas distenderem-se na direção desse escoadouro, ao fim do qual, caindo ou despencando no ar, a água ganha peso e ímpeto; e vai bater na que está abaixo penetrando-a; essa se abre e se precipita com furor, batendo no fundo que a rebate na direção da superfície, junto com o ar que com ela submergiu; e resta na superfície uma espuma misturada com pedaços de madeira e outras coisas mais leves do que a água; ao redor das quais nascem ondas que mais crescem em circunferência quanto mais movimento adquirem; e esse movimento as faz tão mais baixas quanto mais larga for a sua base, e por isso mal se discerne o seu derradeiro fim. Mas se essas ondas se chocam com um obstáculo qualquer, elas então se voltam na direção oposta às ondas que vêm em seguida, mantendo o mesmo crescimento da curvatura, como se o seu movimento inicial não tivesse sido interrompido. A chuva que cai das nuvens é da mesma cor dessas nuvens, isto é, da sua parte sombreada; a menos que os raios do Sol as penetrem, nesse caso, a chuva se mostraria menos escura do que as nuvens. E se as grandes massas de destroços das grandes montanhas ou dos outros edifícios enormes cair nesse mar de águas, uma grande quantidade de água será lançada ao ar e seu movimento tomará a direção oposta à do objeto que se chocou com a água, isto é, o ângulo de reflexão será igual ao ângulo de incidência. Dos objetos trazidos pelo curso das águas, aquele que for mais pesado ou de maior massa, se afastará mais das margens opostas. O movimento das águas nos redemoinhos é tão mais veloz quanto mais próximas estiverem do seu centro. As cristas das ondas do mar tombam antes das suas bases, chocam-se com fricção nas borbulhas da superfície; e essa fricção pulveriza a água que tomba em diminutas partículas, e transformando-se em névoa densa, mistura-se no curso dos ventos como fumaça ondulante e turbilhão de nuvens e, no final, eleva-se no ar e se converte em nuvem. Mas a chuva que cai na atmosfera ao ser arrastada e lançada pelos ventos, fazse mais rarefeita ou mais densa, segundo a rarefação ou a densidade desses ventos, e isso gera na atmosfera uma névoa de partículas transparentes próxima de quem a vê. As ondas do mar que se chocam contra os flancos das montanhas que lhe são limítrofes, produzirão espuma pela velocidade com que se chocam contra o dorso dessas colinas, e ao voltarem para trás, elas encontrarão a segunda onda que vem e, após um choque estrondoso, retornarão, inundando tudo, ao mar de onde vieram. Deixe que uma grande quantidade de habitantes — homens e animais diversos — sejam vistos fugindo da maré crescente do dilúvio em direção aos cumes das montanhas próximas dessas águas. Ondas do mar de Piombino: todas de água espumosa. Fonte: Leonardo da Vinci, Trattato della pittura, Roma, Newton Compton, 1996, pp. 36-8, 43, 48, 64, 94, 169, 278, 281; The notebooks of Leonardo da Vinci, compilado e editado por J.-P. Richter, Nova York, Dover Publications, vol. 1, pp. 228, 216-7, 310-2, 314.