Lina Bo Bardi, Lygia Pape e Hélio Oiticica

Transcrição

Lina Bo Bardi, Lygia Pape e Hélio Oiticica
Lina Bo Bardi, Lygia Pape e Hélio Oiticica – aproximações às
“arquiteturas sem arquitetos”
Resumo
É possível mapear algumas questões que envolvem a vanguarda brasileira dos anos 1960 através
da aproximação ao “popular”, traço comum em vários de seus expoentes. O presente texto
pretende investigar como se deu tal aproximação, quais foram suas motivações e objetivos e os
critérios a partir dos quais os elementos provenientes das manifestações “populares” foram
incorporados aos seus discursos. Lina Bo Bardi foi precursora ao expor objetos colhidos de feiras
populares em um museu de arte. Lygia Pape e Hélio Oiticica, egressos do Neoconcretismo
(1959), se aproximaram da cultura da favela. Através da análise dos textos que ambos produziram
podemos mapear a construção de uma nova visão acerca do popular, distinta da visão dominante.
Num conjunto de textos publicados entre 1950 e 1953 na revista “Habitat” a “arquitetura sem
arquitetos” dos ribeirinhos do Amazonas desponta para Lina Bo Bardi como exemplo de
racionalidade e demais valores associados à arquitetura moderna. Lygia Pape, em sua
dissertação “Catiti catiti, na terra dos brasis” (1980), desenvolve uma leitura da arquitetura da
favela em que esta dialoga intensamente com proposições artísticas posteriores ao
Neoconcretismo, especialmente as de Oiticica. Lina Bo, Pape e Oiticica lançaram olhares distintos
sobre essa produção, privilegiando diferentes aspectos, no entanto, guardam em comum certa
idealização da arquitetura popular, que se a configura como prática transgressora, acaba por
integrar o discurso que legitima suas práticas.
Introdução
Por volta de 1960 encontramos nos trabalhos de alguns artistas e arquitetos da “vanguarda”
brasileira uma comum e renovada aproximação ao “popular”. Por essa época, Lina Bo Bardi, Lygia
Pape e Hélio Oiticica, entre outros, desenvolveram propostas nas quais desponta a vontade de
outra aproximação com a cultura não-erudita, com os saberes e as artes do “povo”, e em especial
com sua arquitetura.
Diferentemente da versão “oficial” da “cultura popular”, para esse conjunto de artistas, as
manifestações populares recebem formulações que ressaltam seu elemento transgressor. A
década de 1960 assistiu à emergência de um conjunto de obras que superava a oposição
prevalecente anterior na década de 1950 entre nacional popular e vanguarda internacional.
Embora o olhar de cada um desses criadores destacasse diferentes elementos e privilegiasse
distintas qualidades no “popular”, acreditamos que em sua trajetória, cada um a sua maneira,
tenha procurado alcançar uma síntese (no sentido de Schwarz, 2007) entre modernização e
cultura popular.
Lina Bo Bardi (1914 - 1992) foi pioneira ao expor objetos colhidos de feiras populares e lugares
religiosos na exposição “Nordeste”, que inaugurou o Museu de Arte Popular no Solar do Unhão
em Salvador em 1963. Porém, sua aproximação à cultura popular é anterior à sua chegada ao
Brasil. Esse tema se faz presente de distintas maneiras na sua produção de arquitetura, mas é em
seus textos que encontraremos um debate tão extenso que percorre os dois países nos quais
desenvolveu a atividade editorial.
É bem conhecido (e atualmente revisado por uma segunda geração de críticos, como Asbury) o
envolvimento de Hélio Oiticica com o samba e com o Morro da Mangueira, que teria sido a matriz
para proposições inovadoras como os Parangolés, Bólides e Penetráveis. Lygia Pape, sua amiga
próxima, o acompanhou em parte das visitas ao morro e compartilhou de suas vivências nessa
cultura tão distinta da realidade da classe média alta da qual provinham. Essas experiências, na
trajetória da artista, também frutificaram em obras como Ovo e Divisor e em textos e pesquisas
que realizou, inclusive em sua dissertação de mestrado “Catiti catiti, na terra dos brasis” (1980).
Apesar dos distintos olhares sobre a produção popular, nos textos desses criadores emergem
pontos comuns, cujas motivações pretendemos avaliar.
Lina Bo Bardi
Lina Bo Bardi rememora assim suas lembranças da chegada ao Brasil em 1946:
Chegada ao Rio de Janeiro de navio, em outubro. Deslumbre. Para quem chegava
pelo mar, o Ministério da Educação e Saúde avançava como um grande navio
branco e azul contra o céu. Primeira mensagem de paz após o dilúvio da Segunda
Guerra Mundial. Me senti num país inimaginável, onde tudo era possível. Me senti
feliz e no Rio de Janeiro não tinha ruínas.
Como é o Brasil para o europeu que desembarca pela primeira vez no Rio de
Janeiro? Do avião, o contraste entre as favelas e as construções modernas induz
mais ao caos social que ao ressentimento burguês pelo arranha-céu padronizado,
no lugar da casa de estilo. Do navio, a enseada de Copacabana e a baía com o
Ministério da Educação e os outros edifícios que aparecem repentinamente, quase
colados na floresta da qual emana o odor que chega a bordo, sugerem um esforço
humano que não deixa tempo para pensar se era melhor o arranha-céu ou a
casinha folclórica portuguesa. (FERRAZ, 1993)
Seu relato indica que encontrava no prédio do MESP, na arquitetura moderna carioca então já
consolidada, o horizonte da construção de um novo ambiente. A paisagem do Rio de Janeiro, que
justapunha (e ainda justapõe) extremos, permitia-lhe ao mesmo tempo defrontar-se com o “caos
social” e com o “esforço humano” para superar (através da arquitetura moderna) o atraso.
Quando chega ao Brasil Lina já carregava experiências sobre as questões que envolviam o
“popular”. A pesquisa pela genealogia da casa moderna, pela herança da “cabana primitiva” e
posteriormente pela “arquitetura rural” fora enfocada em artigos que publicara em diferentes
revistas no período em que atuou na Itália1. A partir de 1941, já se encontra evidente nos ensaios
em que escreveu seu interesse pela arquitetura anônima. Nesse período, grande parte dos
arquitetos italianos voltava sua atenção aos problemas da cultura e da história, buscando uma
proposta de modernidade permeada pelas tradições locais. Nesse contexto, dividindo com Carlo
Pagani a direção da revista Domus, Lina publicou, inclusive, um artigo em que justapõe imagens
da casa adaptada de ciganos, de abrigo de moradores de rua com imagens da casa moderna préfabricada (CAMPELLO, 1997, p.37).
Num outro texto desta revista, intitulado “Arquitetura e natureza: a casa na paisagem”, publicado
em 1944, encontramos a afirmação de que:
O instinto primordial de proteção que inspirou as cabanas de palha e galhos, os
abrigos em forma de cones, de cubos de blocos de pedra maciços, se encontra de
novo hoje, através de uma evolução profunda, nas arquiteturas de casas que,
embora adaptadas às severas leis de funcionalidade e essencialidade da
arquitetura moderna, conservam sempre a “pureza” das formas espontâneas e
primordiais das quais derivam: conservam ainda na pedra regular, na madeira
trabalhada, aquele sentimento “puro”, “natural” na qual elas estão inseridas,
radicadas à terra onde nasceram, fundidas na natureza, imersas naquela
paisagem. (RUBINO; GRINOVER, 2009, p.48, grifos nossos)
Podemos dizer que, para Lina, tanto a casa moderna conservava a pureza das formas
espontâneas como a casa moderna funcional derivava das formas espontâneas do abrigo
primitivo. A arquitetura primitiva, nessa argumentação, desponta como altamente positiva,
1
De 1939 a 1945, as revistas Grazia, Lo Stile, Vetrina, l'Illustrazione, Domus, Quaderni di Domus, A – cultura della vita e
o jornal Milano Sera receberam a colaboração de Lina com artigos, ilustrações, desenhos ou direção. carregada de valores reais que podem ser adotados como referências à casa moderna. Assim,
Lina acaba por aproximar o “primitivo” e o “moderno”, destacando qualidades modernas na
arquitetura rural ao analisá-la a partir de critérios modernos.
Após a Segunda Guerra, Lina se declara desiludida, não vislumbrando a reconstrução italiana
segundo “seu projeto próprio de modernidade” e, casada com Pietro Maria Bardi, imigra para o
Brasil em 1946.
Aqui, em 1950, Lina funda e dirige a Revista Habitat, publicação do recente Museu de Arte de São
Paulo, dirigido pelo próprio casal Bardi, em cujo editorial de lançamento, declara pretender
registrar as atividades de “todos os que contribuíram, continuam contribuindo e participam de
alguma forma da arte no Brasil”, “com o empenho de quem sabe apreciar o que de mais
característico tem o país” (HABITAT, 1950, s/p).
Alguns artigos da revista são específicos sobre a produção popular de arquitetura; neles ganha
destaque a arquitetura ribeirinha do Amazonas. Um conjunto desses textos, cuja autoria é
atribuída à Lina Bo Bardi, configura uma reflexão sobre o tema. “Amazonas: o povo arquiteto”
(Habitat n.1, 1950), “Porque o povo é arquiteto?” (Habitat n.3, 1951), “Casa de 7 mil cruzeiros”
(Habitat n.3, 1951), “Construir é viver” (Habitat n.7, 1952) e “O povo é arquiteto” (Habitat n.10,
1953) versam sobre a casa do homem comum. Mesmo publicados com longos intervalos,
dialogam vivamente e conformam uma visão particular da “arquitetura sem arquitetos”.
Não é novidade afirmar que Lina Bo Bardi destaque características próprias à arquitetura moderna
na casa popular. Citando alguns exemplos, em “Amazonas: o povo arquiteto”, Lina descreve a
casa do ribeirinho como exemplo de “uma arquitetura extremamente funcional e muito estética,
agradável, com cenas da vida cotidiana, que se manifestam através das alegrias do homem
simples” (HABITAT n.1, 1950, p.68). Lina complementa esse ponto de vista em “Porque o povo é
arquiteto?”, o qual inicia afirmando: “os pobres são arquitetos porque não tem as idéias
extravagantes dos ricos a respeito da casa”. Essa diferença geraria para os primeiros
“simplicidade, racionalidade, construtura lógica” (pois, segundo Lina, o povo “é sempre singelo e
racional”) em oposição à “complicação, irracionalidade, construtura viciada de decorações” dos
ricos (HABITAT n.3, 1951, p.3). Por fim, em “Construir é viver”, Lina descreve a casa do Sr. José
da Silva e Matto, que no Amazonas fabricou sua casa “sem arquitetos, sem o auxílio daqueles
escritórios técnicos que só sabem encher a cidade de ‘finos palacetes’”. Em certa altura do texto a
autora afirma que José sente “o prazer da arquitetura, o gosto de planejar, de sistematizar sua
vida embaixo de um teto” e que o Amazonas tem na habitação de José “um pequeno momento de
ordem, de carinho e poesia humana, onde tão bem se compreende que construir é viver”.
Nesses exemplos, a racionalidade desponta como uma característica da habitação popular. A
perspectiva de Lina é a de que os princípios associados à arquitetura moderna orientariam a
construção da arquitetura popular. Mas não podemos dizer que não haja riscos nessa
aproximação. Por exemplo, em “O povo é arquiteto” Lina afirma que o povo, quando se esforça
em não repetir os parâmetros da arquitetura urbana contaminada alcança suas finalidades, que
seriam “economia, propriedade dos materiais, exato emprego das funções, conhecimento dos
resultados práticos”. A sua vontade de encontrar uma ordem racional a orientar a organização do
espaço obscurece a possível carência material que teria gerado essa “economia” material e
espacial. Lina chega a escrever “E ainda há quem acha que os da floresta sejam uma gente
pobre”. (Esse tipo de idealização coincide, como veremos em breve, com a perspectiva pela qual
Lygia Pape interpreta a carência material da favela: ela traria conseqüências positivas, sendo a
real pobreza entendida como a da falta de criatividade).
Importante lembrar como esses critérios modernos ressurgem quando Lina realiza a exposição
“Nordeste”, que inaugura o Museu de Arte Popular do Solar do Unhão em 1963. Percebemos um
“olhar moderno” tanto como critério de escolha para os objetos colhidos de feiras e lugares
religiosos, como critério da museografia. As carrancas do Rio São Francisco, que lembram
esculturas e máscaras negras, são expostas como esculturas, assim como os pilões, expostos em
grupo de seis peças com os socadores pendurados por fios ao teto, com sua colocação realçando
sua similaridade às esculturas de Brancusi. Os ex-votos são expostos de forma ordenada,
organizados em estantes de madeira segundo padrões de tamanho e tipologia.
Outro ponto de destaque nos textos é que junto ao entusiasmado elogio à arquitetura “sem
arquitetos” Lina demonstra certa desilusão em relação à arquitetura formal, dos arquitetos.
Certamente não com a arquitetura moderna, mas com aquela que ela chama de “arquitetura de
gabinete” (HABITAT n.10, 1953, p.52). Sobre a casa de José da Silva, Lina concluiu: “é uma
singela porém profunda lição para todos nós das grandes cidades, onde construir tornou-se mais
uma forma de morrer do que uma forma de viver”. Já em “O povo é arquiteto” essa insatisfação
sofre uma mudança:
Não é verdade que o sentimento arquitetônico popular obedeça exclusivamente às
estritas condições de sua miséria: às vezes, ao contrário, surge-nos ele mais rico
de achados e soluções, mais cheio de lógica do que as deformadas estruturas
inventadas pelos arquitetos. (HABITAT n.10, 1953, p.52)
Nesta perspectiva, a arquitetura “primitiva”, vista num sentido plenamente positivo, emerge como
um contraponto vitorioso à arquitetura dos “finos palacetes”, “viciada em decorações”.
Nesse conjunto de artigos de Habitat, Lina Bo Bardi lançou luz sobre uma produção obscurecida
pelo processo de modernização acelerada do país, “um mundo que não quer renunciar à condição
humana apesar do esquecimento e da indiferença” (SUZUKI, 1994, p. 37), como escreveu, dando
novo valor a essa produção. Nesse ponto destacamos o fato de que Lina via tais potencialidades
no “popular” num período distinto e bem anterior aquele no qual escreveu Mário Pedrosa a
respeito do Terceiro Mundo. No contexto desenvolvimentista em que escreve e realiza exposições
com objetos populares, a estética construtiva ganhava força (em 1956-57 foi realizada a
Exposição Nacional de Arte Concreta e em 1959 publicado o Manifesto Neoconcreto). À
contrapelo, Lina encontra um tipo de produção distanciada da lógica produtiva. A “não-alienação”
emerge como característica positiva e o produtor do “pré-artesanato”, nesse sentido representaria
uma expressão estética mais genuína que a provinda dos “gênios” ou “instruídos”.
Lygia Pape e Hélio Oiticica
Aproximadamente no mesmo período em que Lina Bo Bardi escrevia na revista Habitat, Hélio
Oiticica e Lygia Pape faziam parte da vanguarda construtiva brasileira dos anos 1950, que se
apoiava na sintaxe geométrica para contrapor-se à linguagem figurativa de caráter nacionalista
dominante2.
Vimos como o edifício do MESP se destacava nos horizontes de Lina. O amplo Projeto cultural
moderno que envolve o Plano de Metas de JK, as Bienais internacionais, a consolidação dos
Museus de Arte Moderna, culminaria ainda nesta época, com a construção de Brasília.
No entanto, lembrando Brito (1999), com o Neoconcretismo (1959), definido como “vértice e
ruptura” do projeto construtivo brasileiro na arte, outra cidade, distintas dos padrões modernos,
chamará a atenção desta “neo-vanguarda” artística.
A artista Lygia Pape, que foi muito próxima a Hélio Oiticica, descreveu as transformações radicais
pelas quais passou o jovem artista, antes “organizado”, “disciplinado”, ao entrar em contato com a
cultura do morro: “aquilo começa a fazer parte dos conceitos dele, da vivência dele [...]. Ele muda
radicalmente, até eticamente; ele era um apolíneo e passa a ser um dionisíaco [...]. Essas
barreiras da cultura burguesa se rompem lá, é como se ele vestisse um outro Hélio, um Hélio do
“morro”, que passou a invadir tudo: sua casa, sua vida e sua obra”. (JACQUES, 2001, p.27, grifo
nosso)
2
É bem conhecido o apoio do clarividente crítico Mário Pedrosa à “arte concreta”. No entanto, como apontou Espada
(2006, p.4-5), é pouco lembrada a entrada do “popular” e do “primitivo” nos museus modernos, que igualmente tiveram o
apoio do crítico. Os trabalhos de naïfs, crianças e de pacientes psiquiátricos (especialmente do Hospital do Juqueri e do
Engenho de Dentro), ou a “arte virgem” nas palavras do próprio Pedrosa, fizeram parte de exposições de museus como
o MAM-SP e o MASP no final da década de 1940. Pedrosa conduziu e acompanhou um grupo de artistas, como Almir
Mavignier e Ivan Serpa, ao Hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro onde a Dra. Nise da Silveira desenvolvia um
trabalho de pintura com os internos. Mesmo Lygia Pape freqüentaria posteriormente o Centro de Estudos desenvolvido
no hospital. Para Pedrosa, não havia oposição entre “arte virgem” e arte concreta: ambas revelariam os padrões
estéticos universais. No contexto de nossa análise, lembrar o apoio de Mário Pedrosa a essas distintas manifestações
artísticas mostra outra dimensão do embate e as possíveis articulações entre “popular” e “moderno” que então
acontecia.
Para Asbury (2008, p.30), o mergulho de Oiticica na Mangueira está associado ao envolvimento
de Ferreira Gullar, teórico do Movimento Neoconcreto e uma espécie de “padrinho” do artista, com
os Centros Populares de Cultura (CPC), nos quais a arte assumia um viés didático e político. Após
esse momento, e devido à forte influência de Gullar, Oiticica teria encontrado um campo análogo,
mas diferenciado, em relação à participação popular na favela e no samba da Mangueira.
Os escritos de Pape em conjunto com escritos de Oiticica mostram como ambos compartiam a
mesma abordagem sobre arte e cultura popular urbana, abordagem original e transgressora.
Hélio e Lygia compartiam ainda outro ponto: utilizavam na análise da cultura popular da favela
procedimentos análogos aos empregados em suas propostas artísticas, nas quais procuram
assimilar o que Oiticica denominou “primitividade construtiva popular”.
Através da análise de alguns pontos presentes na dissertação que Lygia Pape escreveu em 1980
para obter o título de mestre em Filosofia, “Catiti catiti, na terra dos brasis”, constatamos a grande
proximidade entre o seu entendimento acerca do popular e o de Oiticica. Isso porque Lygia se
pautou em duas fortes referências: Mário Pedrosa e seus textos então recentes sobre o Terceiro
Mundismo, como “Discurso aos tupiniquins ou nambás” (1976) e “Variações sem tema ou a arte
da retaguarda” (1978), e o próprio Hélio Oiticica, em cujas propostas e textos se apóia ao tratar do
estabelecimento de uma “consciência nacional na arte”.
No texto Lygia emprega um tom objetivo ao descrever os espaços do “morro”:
Equilibradas em um precipício, refazendo o perfil do morro, enclausuradas umas
dentro de outras, como seres hermafroditas, cubos dentro de cubos.
Essa arquitetura espontânea, pode ser registrada em qualquer sítio onde se faz
presente a miséria – mola propulsora da vontade de viver e que determina o
esforço de todo homem por uma integração, a melhor possível, com o espaço
que lhe coube ser destinado – o espaço natural, sem tecnologia nenhuma, o
espaço bruto, pobre, despreparado.
[...]
Formam-se gestalts, signos identificadores, as manchas nos morros das cidades,
como enormes fungos, cobrem e recobrem as topologias – e ele cria: sempre e
sempre um objeto “que participa”. (PAPE, 1980, p.60-62)
Ao enfocar a favela, emerge uma visão que privilegia a relação entre cultura material e a
vivência, e a cujos pontos costumamos associar a prática e os escritos de Oiticica. Este
escrevera em “Bases fundamentais para uma definição do Parangolé” (1964):
Na arquitetura da favela está implícito um caráter de Parangolé, tal a
organicidade estrutural entre os elementos que os constituem e a circulação
interna e o desmembramento externo dessas construções; não há passagens
bruscas do quarto para a sala ou cozinha, mas o essencial que define cada parte
que se liga à outra continuidade. [...] e assim em todos esses recantos e
construções populares, geralmente improvisados, que vemos todos os dias.
(JACQUES, 2003, p.35)
A afinidade entre suas visões na verdade não deveria causar espanto, uma vez que
compartilharam diversas experiências de trabalho e mantiveram relações pessoais próximas.
Por meio de sua “ida à favela”, Hélio Oiticica respondia de uma maneira peculiar e inesperada às
demandas por uma arte participante, comuns naquele momento. Esta manobra tática lhe
permitiu desenvolver uma abordagem original da arte e cultura popular urbana. Oiticica sabia o
que buscava na “Mangueira”, seu trabalho anterior o equipara para discernir os aspectos da vida
popular urbana que interessavam ao prosseguimento a suas propostas. Ali, sua atenção se volta
para a multifuncionalidade dos espaços e dos objetos, a permeabilidade espacial, a criação nãoalienada da casa a partir da relação com o próprio corpo e a improvisação a partir da ausência
material.
Outro ponto a ser destacado é o caráter marginal desse envolvimento de Oiticica com a cultura do
morro. Para Favaretto (2007, p.94), o interesse de Oiticica por práticas populares e o destaque
dado à Mangueira e à construtividade popular, distanciando-se da valorização das “raízes
populares”, derivaria de sua experiência da marginalidade. O inconformismo social teria levado
Oiticica a uma “marginalidade nada circunstancial”.
Como acompanhara de perto o envolvimento de Oiticica com o universo popular urbano
(inclusive em algumas visitas ao “morro”), Pape aproveitou parte da dissertação para elaborar a
idéia de Mário Pedrosa sobre a “a miséria [...] [como] elemento desencadeador do processo
criativo” (PAPE, 1980, p.60), mas para localizá-la na vivência e recriação de Oiticica da cultura
material popular.
Estando tão imbricados na concepção de Pape cultura popular urbana e propostas artísticas, é
quase natural que em meio às análises ressaltem termos associados ao Neoconcretismo. Um
deles é a presença autônoma da cor na descrição das manifestações populares. Ela comparece
como potência dionisíaca, “veículo para as mais diversas vivências” (Oiticica, “A cor”, 1960). A
fita de Moebius foi privilegiada pelos neoconcretos como forma que identifica interioridade e
exterioridade, assumindo inclusive um papel metafórico, uma vez que pode dissolver fronteiras
conceituais estabelecidas. Em “A fala dos mudos”, capítulo de sua dissertação, Pape vale-se
desta forma para descrever a paisagem dos morros, que “desdobra-se entre casas, retorce-se
contra os elementos naturais” (PAPE, 1980, p. 61), ou para comentar a casa da favela, que “tem
uma exterioridade de objeto construído, mas é também a subjetividade que o levou a organizar
em torno e com o seu corpo a proteção denominada casa” (PAPE, 1980, p.62-63). Pape ainda
descreve o Parangolé como construção de capas de vários materiais e texturas, “como uma fita
de Moebius engolfada em si mesma e que só tem existência efetiva ao enlaçar-se com o corpo”
(PAPE, 1980, p.77). (De fato um dos Parangolés de Oiticica constituia-se de uma fita de Moebius
de tecido).
Conclusão
No modernismo brasileiro, a questão da incorporação da figura do povo, da arte popular na nação
que se queria moderna, foi determinante. As décadas de 1960 e 1970 talvez tenham sido o último
momento em que o popular foi visto como tendo um valor positivo intrínseco, despertando grandes
(desmedidas?) esperanças.
As figuras do “povo brasileiro” criadas pelo modernismo brasileiro variam bastante desde 1922 até
o apogeu do nacional desenvolvimentismo. Depois, durante a politização do período do “nacionalpopular”, o povo foi estilizado esteticamente como o sujeito histórico capaz de promover a
revolução. A Ditadura e a concomitante avalanche da indústria cultural promoveram um
deslizamento semântico nesta série de figuras. Nesse sentido, a leitura do popular empreendida
por Pape e Oiticica era transgressora perante a imagem que o governo ou a esquerda procuravam
estabelecer.
No período, o “popular” se constituía como um campo de disputa política. Daí a complexidade na
abordagem do tema. Lina Bo Bardi, por exemplo, rejeita a arquitetura dos “palacetes” e Lygia e
Hélio a cidade do asfalto. No entanto, são distintos os aspectos que destacam dentro da produção
popular de arquitetura.
Lina aproxima o popular ao moderno, destacando na casa ribeirinha do Amazonas as mesmas
potencialidades da casa moderna: o Sr. José quando a constrói tem “um pequeno momento de
ordem”. Mas podemos nesse ponto perguntar os motivos que conduziram Lina a enxergar tais
qualidades na casa do homem “simples”. Se recordarmos suas já citadas palavras no editorial do
primeiro número de Habitat, veremos que Lina se dispunha a registrar na revista as atividades
daqueles que contribuíam “com o empenho de quem sabe apreciar o que de mais característico
tem o país”, que naquele momento vivia a ascensão da arquitetura moderna. O Sumário da
mesma revista exemplifica a diversidade dos interesses que permeavam suas pesquisas,
encontram-se entre os títulos das matérias: “Casas de Artigas”, “O museu de arte”, “O índio
desenhista”, “O índio modista”, “Ex-votos do Nordeste”, “Povo arquiteto, Amazonas” – objetos
muito distintos entre si. Parece-nos que a aproximação tanto à arquitetura moderna quanto à
arquitetura “primitiva” permite à Lina justificar o que Recamán (2009, p.18) chamou de construção
de “uma nova articulação estética” entre popular e moderno, a construção de “nova semântica a
partir das novas tecnologias e das formas artesanais” (cuja consolidação estaria em seu projeto
para a Escola de Desenho Industrial e Artesanato).
Por outro lado, a “vanguarda” saída do Movimento Neoconcreto lança luz sobre outros aspectos
da arquitetura popular urbana. A favela é descrita a partir de questões estéticas usualmente
associadas ao Neoconcretismo – potência da cor, da fita de Moebius, do espaço interno-externo,
relação corpo-ambiente, ressaltando aspectos tais como a multifuncionalidade dos espaços e dos
objetos, a permeabilidade espacial, a criação não-alienada a partir da relação com o próprio
corpo, o que podemos chamar de um “olhar neoconcreto” a analisar a favela.
O “olhar neoconcreto” junto à “marginalidade nada circunstancial” encontrada por Oiticica no
“morro” ajuda por seu lado a legitimar as propostas empreendidas pela dupla por essa época.
Uma hipótese seria que procurariam detrás da figura do popular outra ordem de problemas,
ligados a conflitos da classe média. Haveria então, ao lado da politização de matriz “nacionalpopular”, outras formas de investimento emocional. Pensemos na simultaneidade entre a
emergência da contracultura e a aproximação à favela que Pape e Oiticica fazem nestes anos. A
ênfase nos aspectos positivos atende a certa classe de insatisfações: os moradores desta acabam
se atendo, forçados pela carência, apenas às necessidades básicas, estando, desta maneira,
“livres” das necessidades artificiais impostas pelas pressões do consumo. Assim, são impelidos a
exercer sua criatividade e a ter um contato mais autêntico com o próprio corpo, o ambiente e as
pessoas. Esta visão, por um lado, “atualiza” uma série de lugares comuns em relação às
manifestações populares (que, não raro, beiram o preconceito). É nesse sentido que esta
estilização da figura do morador da favela vem preencher uma lacuna no que se configurava como
o estilo de vida da emergente classe média no Brasil do Milagre Econômico de meados de 1970.
Mas, apesar dos diferentes pontos de vista, Lina Bo Bardi, Lygia Pape e Hélio Oiticica compartem
em seus escritos uma perspectiva próxima ao que Oiticica formulou como “primitividade
construtiva popular”, o pressuposto de uma construtividade inerente à arquitetura popular.
Na leitura que realizam as qualidades que destacam não raro são idealizadas. A miséria em si,
que teria gerado a carência encontrada nos ambientes descritos – o “aglomerado e conglomerado
de tábuas, folhas de zinco, pedaços de duratex, escadas velhas” (PAPE, 1980, p.60), os “recantos
e construções populares, geralmente improvisados” (OITICICA, 1964) – não é abordada, mas
seus resultados espaciais são exaltados positivamente. Para Lina, a arquitetura ribeirinha supera
a arquitetura da cidade em sua economia e construção racional e para Oiticica e Pape os espaços
da favela são ricos em sua construção não-alienada.
No entanto, essa vanguarda supera com suas propostas artísticas a visão idealizada do popular.
Como apontou Asbury (2008, p.45) as conotações primitivistas se esgotam quando se considera a
extensão da trajetória de Oiticica e sua formulação da dança quando descobre o rock and roll em
Nova York. Nos textos do artista sobre esse período o rock assume o papel que antes o samba
possuía, como instrumento de descoberta do corpo pela dança, apresentando até algumas
vantagens: enquanto o samba estaria “mais ligado à terra”, às “coisas míticas”, o rock n´roll
prescindiria disso tudo, atingindo a todos sem a necessidade de que as pessoas fossem iniciadas
nele, como o samba.
De maneira similar, no período em que Pape escrevia o mestrado, significativamente, seu
interesse diversificou-se. Em carta de 1975 a Oiticica, enumera os temas sobre os quais tem se
debruçado – explorações sobre a figura dos lábios, da boca (“Eat me”), a imagem do índio (“Our
Parents”) e o carnaval de rua (“Carnival in Rio”). Data desta mesma época a pesquisa
desenvolvida junto à Funarte, “A mulher na iconografia de massa” (1979). Podemos supor que
Lygia, para além da produção popular artesanal, estivesse voltando os olhos para a emergente
cultura de massa e, ainda, a seus desdobramentos sociais, como em “Eat me: a gula ou a
luxúria?” (1976) que a partir dos objetos e das imagens da publicidade corrompida trata da
apropriação da mulher como objeto de consumo. Se sua dissertação aponta a presença
alentadora de uma “cultura popular” de raiz na favela, por assim dizer “não-alienada”, ou pelo
menos associada à possibilidade de emancipação, nas pesquisas e na produção artística
subseqüente emergem formas mais complexas, menos positivas, aspectos de uma cultura popular
urbana permeada pela cultura de massa.
Referências:
ASBURY, Michael. O Hélio não tinha ginga. In: BRAGA, Paula. “Fios soltos: a arte de Hélio
Oiticica”. São Paulo: Perspectiva, 2008.
BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. 2. ed. São
Paulo: Cosac & Naify, 1999.
CAMPELLO, Maria de Fátima de Mello Barreto. Lina Bo Bardi: as moradas da alma. Dissertação
(Mestrado) - Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos. São Carlos,
1997.
ESPADA, Heloísa. Arte virgem na década do Concretismo. Revista Número Oito. São Paulo,
2006.
FERRAZ, Marcelo C. (Org). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo Bardi e Pietro M. Bardi.
1993.
FAVARETTO, Celso. Tropicália, a explosão do óbvio. In: BOSUALDO, Carlos (org). Tropicália:
uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
FOSTER, Hal. El artista como etnólogo. In: “El retorno de lo real”. Madrid: Akal ediciones. 2001.
HABITAT. São Paulo: Habitat editora Ltda. Números 1 a 10, 1951 a 1953.
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de
Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.
MACHADO, Vanessa Rosa. Lygia Pape: espaços de ruptura. Dissertação (Mestrado).
Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos. São Carlos, 2008.
PAPE, Lygia. Catiti catiti na terra dos brasis. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1980.
________. Lygia Pape – Entrevista a Lúcia Carneiro e Ileana Pradilla. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1998.
PERREIRA, Juliano. A ação cultural de Lina Bo Bardi na Bahia e no Nordeste (1958-1964).
Dissertação (Mestrado). Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos.
São Carlos, 2001.
RECAMÁN, Luiz. Icebergs conceituais. Textos escolhidos da arquiteta Lina Bo Bardi. Jornal de
Resenhas. Número 5. São Paulo: Discurso Editorial. Out. 2009.
RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina. Lina por escrito. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.
SCHWARZS, Roberto. Cultura e Política no Brasil: 1964-1969. In: BOSUALDO, Carlos (org).
Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac & Naify,
2007.
SUZUKI, Marcelo. Tempos de grossura: o design no impasse. São Paulo: Instituto Lina Bo e PM
Bardi, 1994.

Documentos relacionados

Lina Bo Bardi e a cultura material popular

Lina Bo Bardi e a cultura material popular sua tipologia, finalidade prática e materialidade. Parte importante do ambiente das feiras, seu movimento e desordem característicos, desaparece, cedendo lugar para outra organização nessa “versão ...

Leia mais

Lina Bo Bardi: a casa moderna e a cabana

Lina Bo Bardi: a casa moderna e a cabana Sobre a forte sensibilização de Lina Bo Bardi em relação a algumas expressões da cultura popular depõe sua própria história de vida e trajetória profissional. As referências a essas manifestações n...

Leia mais