O paciente inglês

Transcrição

O paciente inglês
Sobre Amor e Perda - algumas considerações
Maria Denise T. F. Klein
Em 1997, o filme "O Paciente Inglês" recebeu 9 estatuetas na
festa anual do Oscar, em Los Angeles, inclusive na categoria de melhor filme.
Foi agraciado ainda com inúmeras premiações européias, fazendo sucesso
junto ao público e à crítica. Utilizarei esta história de um amor, baseada no
romance homônimo de Michael Ondaatje (Premios The Man Booker Prize,
Inglaterra e Governor General's Awards, Canadá), para alinhavar algumas
idéias.
"O Paciente Inglês" traz a história do conde Almasy (Ralph
Fiennes), um homem que sofreu grandes queimaduras, e cuja identidade é
desconhecida por aqueles que o tratam em um hospital de guerra, durante a
Segunda Guerra Mundial.
Hana (Juliette Binoche) é a enfermeira que, após perder o
namorado e a amiga, resolve abandonar o pelotão militar e cuidar do paciente
queimado. Aos poucos, e sob os cuidados de Hana, Almasy revela sua
história. Arqueólogo, juntamente com outros colegas (o “clube da areia” ),
trabalhava no Saara, mapeando civilizações perdidas e esquecidas.
Ao grupo juntam-se Katherine (Kristin Scott-Thomas) e o marido
Geoffrey (Colin Firth). Paralelamente, a guerra segue.
Katherine e Almasy apaixonam-se. Geoffrey percebe o que se
passa entre eles e, quando retorna ao acampamento com Katherine, arremete
seu avião contra Almasy, morrendo e deixando a mulher seriamente ferida.
Almasy a coloca na 'Caverna dos Nadadores' (complexo de cavernas com
inscrições rupestres, situadas entre Egito, Sudão e Líbia) e parte numa jornada
insana pelo deserto, em busca de socorro.
Ao ser tomado por um espião, é preso e Katherine morre sozinha
na caverna.
Tempos depois, retorna para resgatá-la e, ao voar com ela, seu
avião é atacado. O povo do deserto o salva e, mais tarde, Almasy encontrará
no hospital a enfermeira Hana.
Hana também tem suas dores. Seu pai (no livro)/namorado (no
filme) morrera e ela crê que condena à morte aqueles que recebem seu amor.
Logo, juntam-se a eles outros dois personagens, Kip e Caravaggio.
Kip é um militar anglo-indiano, desarmador de minas, com quem Hana viverá
um caso de amor. Caravaggio possui um passado obscuro, além de ser um
assumido ladrão. Entra em cena o passado de Hana, pois Caravaggio foi
amigo de seu pai. Há entre os dois uma ligação ambígua, em que ele ocupa um
lugar simultâneo, de flerte proibido e presença protetora (um substituto
paterno).
Os quatro - Almasy, Hana, Kip e Caravaggio - irão tecendo uma
rede de amores e confrontos, enquanto a guerra está em seus momentos finais.
Duas histórias paralelas são narradas: a de uma enfermeira no
front da Segunda Guerra Mundial e a de um paciente muito ferido que fica sob
seus cuidados. A partir daí se estabelece uma intersecção de duas vidas/duas
histórias, onde o que é comum aos dois seres é o amor, a dor, a morte.
O livro que deu origem ao filme é como o relato de um sonho, um
fluxo associativo do qual aos poucos vai emergindo um sentido, uma
significação.
A história de Hana, a enfermeira, e Almasy, o paciente inglês,
revela uma outra história: a de um amor intenso, desesperado. O relato desse
amor, que tenta sobreviver à destruição semeada pela guerra, é feito aos
poucos. Hana vai acolhendo e ouvindo Almasy, ao mesmo tempo que repensa
sua própria vida.
Deste entrelaçamento de vivências resulta um trabalho de
elaboração dos lutos vividos pelos dois personagens, permitindo um “acerto
de contas” com passados carregados de sentimentos. É a possibilidade de que
cada um siga em frente: a enfermeira podendo partir (para uma nova
vida/novos investimentos) e o paciente podendo, enfim, despedir-se da vida.
“Morri há anos, não pode matar-me”, diz ele ao personagem que ressurge do
passado, disposto a vingar-se fazendo justiça pelas próprias mãos.
A relação paciente/enfermeira cria um espaço de transferência. Às
vezes, a voz de Hana confunde-se com a de Katherine, os personagens
sobrepõem-se e compartilham algo, porém já com um certo distanciamento.
Trata-se de colocar em um tempo histórico aquilo que foi vivido e pertence ao
passado, mas que ainda não cessou de retornar e fazer-se presente.
Pode-se pensar neste encontro como uma analogia do que se passa
no setting analítico.
Nasio nos diz que conferir: “ [...] um valor simbólico a uma dor
real é o único gesto terapêutico que a torna suportável. Assim, o psicanalista é
um intermediário que acolhe a dor inassimilável do paciente e a transforma
em uma dor simbolizada.... Dar um sentido a uma dor insondável é
finalmente construir para ela um lugar no seio da transferência, onde ela
poderá ser clamada, pranteada e gasta com lágrimas e palavras” (p.17).
O analista e o analisando, assim como a enfermeira e o paciente
inglês, vivem uma “história”. Este “pensa” (também no sentido de cuidar,
tratar) as dores do passado; aquele não escapa incólume deste enfrentamento.
A cada movimento do analisando corresponde uma repercussão no analista,
numa relação dialética que vai se constituindo com o passar das sessões, assim
como um espaço onde possa aparecer o amor e o ódio.
No filme/livro, a escuta desta história de amor faz com que a
enfermeira “pense” suas próprias perdas: o namorado e a amiga (no filme), ou
o pai (no livro).
Para o paciente inglês, falar e ser escutado ajuda a descobrir o quê
perdeu. Vai definindo a extensão e intensidade do que viveu com Katherine,
dando lugar e representação psíquica ao que antes era apenas quantidade.
O vínculo com o objeto perdido é traduzido por inúmeros
traços/inscrições. O trabalho do luto, como nos ensinou Freud, fala de poder
desconectar-se de cada um deles separadamente, ao longo de um tempo
necessário a essa tarefa.
No filme/livro Almasy vai realizando este trabalho. Ao contar sua
história apega-se mais fortemente às suas lembranças, antes de desligar-se. Ao
findar o relato/revivência, pode então pedir a Hana que abrevie seu
sofrimento.
A história dentro da história nos remete ao deserto. Um Saara belo
e implacável, uma presença dramática que sinaliza o primitivo, intenso e
quase sem palavras que este amor suscitou.
O mar de areia, a mãe-natureza, nos conta sobre um encontro
pleno, impossível de sustentar. O desejo de completude sucumbe ao estigma
da castração, dos limites. E então, a dor.
Freud, em o “O Mal Estar na Civilização” diz que o sofrimento
nos ameaça de três lados: o nosso corpo frágil e extinguível; o mundo exterior,
que pode ser avassalador; e o outro humano, que pode nos fazer sofrer muito.
É o temor de viver dor e angústia que impele Almasy para longe de Katherine.
“Odeio posse”, diz ele.
No início do filme, o que primeiro surge na tela são as inscrições
rupestres da 'Caverna dos Nadadores', memória do deserto que um dia foi
água.
Em seguida, as dunas do Saara preenchem a tela, e um avião leva
um homem e uma etérea mulher (embalada pela “prateleira dos ventos”). É
tempo de guerra e o avião recebe uma rajada de tiros, caindo em chamas.
O homem é resgatado e entre seus pertences está “Histórias” de
Heródoto (485?-420 A.C.), testemunha e elo entre passado e presente. O livro,
cheio de acréscimos, colagens e desenhos, é a versão pessoal da história vivida
por Almasy.
É nesse mar de histórias que Hana e Almasy irão mergulhar.
Almasy desperta a atenção de Hana: regrediu a uma condição
quase de inexistência; seu corpo destruído, seu nome omitido, é a própria
expressão da dor.
Nasio observa que os ritos do luto necessitam ser cumpridos para
que aquele que sofreu a perda possa realizar o necessário trabalho do luto,
evitando o que Freud qualificou de 'hemorragia interna': "O complexo
melancólico se comporta como um ferimento aberto, atraindo para si, de todas
as partes, energias de investimento, e esvaziando o eu até empobrece-lo
completamente".
Diante da morte do namorado e da amiga (no filme), ou a do pai
(no livro), Hana sente que precisa parar. Pelo menos para ela, esta guerra
acabou. Desliga-se da comitiva militar, e o motivo manifesto é ajudar o
paciente inglês, que estaria prestes a morrer. Contudo, precisa dar atenção ao
que sobrou de sua vida. Busca sentir ao que sabe apenas com a razão.
Instalam-se em uma bela e arruinada villa toscana. Hana despe-se
de sua farda, corta os cabelos, como a aceitar sua impotência diante de uma
guerra que arrasa com tudo que lhe é significativo. Está firmemente
determinada a manter seu paciente vivo, no qual enxerga algo de seu pai, um
ferido de guerra, queimado, que termina morrendo na solidão de um pombal
(no livro).
Vai reformando a vida e a villa com os recursos possíveis. Tenta
resgatar o brincar, o lúdico perdido com a guerra e cada pequena conquista
representa muito. Assume-se castrada, limitada, mas não esmorece.
A rica biblioteca devastada ganha novos destinos. Agora os livros
também servem para, concretamente, preencher os buracos, obturar algo da
terrível destruição. Para além de toda a barbárie, ainda é na cultura que a
sustentação será encontrada.
A villa representa uma “cápsula do tempo”, onde os protagonistas
encontram-se em outra época, num tempo passado.
Almasy, totalmente dependente de Hana e sob efeito da morfina,
revela sua história. Katherine e seu marido uniram-se ao grupo de Almasy no
deserto, causando-lhe uma profunda impressão. Uma noite no deserto, os dois
sozinhos e tentando proteger-se de uma tempestade de areia, marca a
transformação deste sentimento em algo como a tempestade, tão fina e
engolfadora que não há resistência que dê conta.
O amor é o desejo de completude e todos buscamos nossa metade
perdida, nos diz Otavio Paz. E segue: “[...] é a grande subversão. Cada vez
que o amante diz `te amo para sempre´, confere a uma criatura efêmera e
mutante dois atributos divinos: a imortalidade e a imutabilidade. A
contradição é na verdade trágica: a carne se corrompe, nossos dias estão
contados... o amor não nos presenteia com a eternidade mas sim com a
vivacidade, este minuto no qual se entreabrem as portas do tempo e do espaço
- aqui é mais além e agora é sempre" (p. 117-8).
Ao enamorar-se de Katherine, Almasy vai mapeando o destino de
seus sentimentos, redescobrindo intensidades há muito esquecidas (como a
lembrança da antiga canção de ninar húngara). Revivendo essa história com
Hana, tenta elaborar estes afetos.
Por outro lado, Hana precisa ouvir Almasy, e através de sua fala,
reconciliar-se com suas próprias dores, aceitando pensar em suas perdas.
Ao apaixonar-se por Kip, Hana redescobre a possibilidade de
amar. É a chance de realizar novas redistribuições de sua libido, elaborando
seus lutos. A cena na igrejinha local, às escuras, e onde uma chama trazida por
Kip a faz perceber/redescobrir os afrescos, parece falar do obscurantismo
perpetrado pela guerra, o qual, entretanto, não foi capaz de sufocar a vida. É a
constante luta entre Eros e Tanatos.
Ao final, Almasy pode morrer e cada personagem seguir seu
caminho. Hana cumpriu sua missão – poder ajudá-lo a se desligar da vida –
mas, especialmente, ajudou a si própria a poder terminar sua guerra particular,
partindo para novos tempos.
REFERÊNCIAS:
FREUD, S. Luto e Melancolia. In: _____. Obras Psicológicas Completas.
Rio de Janeiro: Imago, 1966 (Edição Standard Brasileira, 2)
______. O Mal Estar na Civilização. In: _____. Obras Psicológicas
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1966 (Edição Standard Brasileira, 21)
NASIO, J.D. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1997.
PAZ, O. A dupla chama – amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.
ONDAATJE, M. O Paciente Inglês. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
O PACIENTE Inglês. Direção: Anthony Minghella. [S.l.]: Miramax, 1996. 1
DVD (162 minutos). Inglaterra. Título original: The English Patient.

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