a captação do movimento: do instantâneo ao fotodinamismo

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a captação do movimento: do instantâneo ao fotodinamismo
Annateresa Fabris
A CAPTAÇÃO DO MOVIMENTO: DO
INSTANTÂNEO AO FOTODINAMISMO
Os principais expoentes da captação do movimento por intermédio da fotografia - Muybridge e Marey
- fornecem sugestões a artistas como Degas, Duchamp e os irmãos Bragaglia. Se, em Degas e
Duchamp, a presença das contribuições de Muybridge e Marey pode ser assinalada em obras pontuais,
bem diferente é o caso dos irmãos Bragaglia, cuja pesquisa fotodinâmica propõe não apenas um “transcendentalismo tecnológico”, que deveria ser capaz de superar o caráter mecânico atribuído à imagem
científica, mas também um sério desafio para a poética do Futurismo, da qual acaba por revelar algumas contradições.
I
A captação e o registro do movimento foram um dos desafios que a
fotografia se impôs desde o início, e só foram satisfeitos em 1851 com a introdução da câmara estereoscópica. Alguns daguerreótipos realizados em 1841 já
haviam satisfeito parcialmente esse desejo: imagens com transeuntes e trânsito
dos irmãos Natterer (Viena); uma vista da Ponte Nova de Paris, de Marc Antoine
Gaudin; a troca da guarda nas Tulherias, de Girault de Prangey. Em 1851,
Hyppolite Macaire apresenta daguerreótipos de um cavalo ao trote, de uma carruagem em movimento, de homens andando e algumas marinhas com navios,
tomadas numa fração de segundo. Para minimizar o efeito do movimento, as
fotografias são tomadas de distâncias consideráveis e, muitas vezes, de janelas
altas, como acontece com as vistas estereoscópicas dos fins dos anos 18501.
Em 1859, George Washington Wilson fotografa pessoas andando na
rua em Edimburgo, e Edward Anthony realiza uma série de instantâneos do
trânsito de Nova Iorque, alguns dos quais tomados num dia chuvoso. Três anos
mais tarde, Valentine Blanchard fotografa cenas da Londres comercial de uma
carruagem. Em 1887, Charles A. Wilson toma fotografias de dentro de uma
carroça que transportava móveis2. Essas imagens, chamadas de instantâneos,
num primeiro momento, fixam os objetos em posições absurdas, estranhas à
visão normal. Entre as décadas de 1870 e 1880, a fixação do movimento tornase ainda mais rápida, desafiando todas as convenções e indo muito além das
possibilidades visuais do olho.
A fotografia instantânea, cujo nascimento data de 1858, interessa de
perto às ciências fisiológicas por permitir estudar o mecanismo da deambulação. É justamente nesse sentido que as novas experiências fotográficas são
valorizadas por Oliver Wendell Holmes, professor de Anatomia da Universidade
de Harvard, interessado em produzir membros artificiais para as vítimas da
Guerra Civil norte-americana. Num artigo publicado em The Atlantic Monthly
(1861), Holmes destaca justamente as atitudes pontuais do ato de andar registradas pelos instantâneos:
Arturo Bragaglia, “O Fumante”, 1913
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1. GERNSHEIM, Helmut.
Historia gráfica de la
fotografía. Barcelona:
Omega, 1967, p. 153-154.
2. NEWHALL, Beaumont.
The history of photography: from 1839 to the
present. Nova Iorque: The
Museum of Modern Art,
1988, p. 117; GERNSHEIM. Op. cit., p. 154.
3. HOLMES, Oliver
Wendell. “Dipinti e sculture
del sole. Con un viaggio
stereoscopico attraverso
l’Atlantico”. In Il mondo
fatto immagine: origini
fotografiche del virtuale.
Gênova: Costa & Nolan,
1995, p. 41-42.
4. SCHARF, Aaron.
Arte e fotografia.
Turim: Einaudi, 1979,
p. 218; DAGOGNET,
François. Etienne-Jules
Marey. Paris: Hazan,
1987, p. 52-53.
5. SCHARF.
Op. cit, p. 220;
NEWHALL.
Op. cit., p. 119.
“Este é um maravilhoso instantâneo de Broadway realizado pelo Sr.
Anthony (número 203). Debaixo de nossos olhos materializa-se a lenda oriental
da cidade petrificada. Sua essência, provavelmente, é revelada melhor pelo uso
que fazemos dele para ilustrar a fisiologia do andar. Cada pé é fixado em seu
movimento com uma instantaneidade tamanha a ponto de parecer parado. Num,
surpreende-nos o comprimento da passada; num outro, a curva do joelho; num
outro ainda, a maneira pela qual o calcanhar toca o chão antes do resto do pé;
em suma, todas as posições particulares do corpo no ato de caminhar3.
Experiências realmente radicais nesse sentido são realizadas por
Eadweard Muybridge (Edward James Muggeridge) que, ao registrar algumas
fases da locomoção totalmente imperceptíveis na visão normal, coloca em
xeque aquela que Scharf denomina a “verdade fiel à natureza”: demonstra que
esta, freqüentemente, não passava de uma convenção. Isso é facilmente
demonstrado na captação da locomoção do cavalo, cuja participação nas principais funções econômicas do século XIX explica o desenvolvimento acentuado
da hipologia. Nesse período são publicados muitos livros sobre o assunto,
escritos por veterinários, soldados de cavalaria, estudiosos de fisiologia animal,
com o objetivo de fornecer material visual aos artistas e proporcionar informações aos cientistas: Traité des courses au trot (E. Houël, 1842); Du cheval en
France (Charles de Boigne, 1843), Cinésie équestre (Emile Debost, 1873); Le
cheval (Emile Duhousset, 1874)4.
Não se sabe se Duhousset conhecia as experiências de Muybridge que,
em 1872, havia fotografado um cavalo ao galope. O que o fotógrafo inglês
procura demonstrar desde essa data é que, num determinado momento do
trote, as quatro patas se encontram levantadas do solo, contrariando a percepção corriqueira. Em 1877-1878, graças ao auxílio financeiro de Leland
Stanford - ex-governador da Califórnia -, Muybridge realiza uma série de
fotografias de todas as fases da locomoção do cavalo. Embora as imagens obtidas fossem pouco mais que silhuetas, consegue provar que, durante o trote, o
pequeno galope e o galope, as quatro patas se levantam contemporaneamente
do solo, contrariando a representação pictórica convencional do tema5.
Na realidade, o deflagrador das experiências de Muybridge havia sido o
fisiólogo francês Étienne-Jules Marey, cujos registros gráficos eletromecânicos
dos diferentes estilos da andadura de um cavalo em termos de transição e
duração haviam permitido comprovar que, num dos momentos do galope, o animal se apoiava exclusivamente na pata esquerda posterior e que, por um instante,
as quatro patas se encontravam levantadas do solo. Publicada em 1873 em La
machine animal, locomotion terrestre e aérienne, a experiência, que comprovava
cientificamente os estudos dos veterinários Goiffon e Vincent (1779), desperta o
interesse de Stanford graças à edição inglesa divulgada no ano seguinte.
Proprietário de ferrovias e de haras, Stanford deve ter sido atraído pela utilização
que a experiência de Marey fazia prever em termos de “motores animados” e
encomenda a Muybridge seu registro fotográfico. O fotógrafo usa doze câmaras
simultâneas dotadas de um obturador que lhes permitia captar a imagem em
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menos de dois centésimos de segundo. Fios ligados a baterias elétricas pontuavam o trajeto a ser percorrido pelo cavalo: ao rompê-los o animal acionava as
objetivas sucessivamente, tendo como resultado uma série de negativos6.
A publicação de The horse in motion (1881-1882), ilustrado com
litografias extraídas de fotografias de Muybridge, coloca em xeque a visão artística
tradicional. J. D. B. Stillman é bem enfático a esse respeito no prefácio do livro:
“Se, como se costuma dizer, a Arte é a intérprete da natureza, não se mantém fiel a sua missão quando persiste obstinadamente na perpetuação de uma falsidade. (...) o erro da velha teoria do galope é agora tão evidente que os artistas que
pintam um cavalo em plena corrida da maneira convencional ou num mítico galope
não poderão mais afirmar estar representando a natureza tal como aparece” 7.
As reações dos artistas a essa nova evidência são bastante variadas,
podendo ser enfeixadas de maneira paradigmática nas figuras de Meissonier e
Rodin. Pintor conhecido pelo realismo extremo que imprimia a seus quadros,
Meissonier sente-se perturbado com as análises de Marey e as fotografias de
Muybridge, que considera, a princípio, falsas. Por ocasião da visita de
Muybridge a Paris (novembro de 1881), sua atitude havia se modificado. Não
só recebe o fotógrafo no próprio ateliê - onde é realizada uma projeção cinemática de suas imagens graças ao uso do zoopraxiscópio -, como aceita participar de um projeto coletivo dedicado ao cavalo, que contaria com as
fotografias de Muybridge e com comentários seus e de Marey. Embora a publicação não se concretize, Meissonier passa a adotar uma nova postura diante da
representação do cavalo. Estuda atentamente os movimentos do animal por
intermédio de moldes articulados de gesso e cera e de maquetes de fios de
arame, fáceis de serem manipuladas; manda instalar um trilho no parque de
Passy, sobre o qual viajava num carrinho que, correndo na mesma velocidade
de um cavalo ao galope na pista paralela, lhe permitia desenhar suas articulações de maneira cuidadosa. O modo pelo qual tenta combinar a visão natural
com as evidências da ciência é demonstrado numa cópia a aquarela do quadro
1807, exposta em 1889: estende menos os membros anteriores dos cavalos, que
sujeita a uma curvatura8.
Rodin, ao contrário, discorda vigorosamente do “aspecto bizarro” que a
fotografia instantânea conferia à captação do movimento, contrapondo ao congelamento das figuras no espaço o “desdobramento progressivo do gesto”, próprio
da arte. Numa das entrevistas concedidas a Paul Gsell, não hesita em afirmar:
“É o artista quem diz a verdade e a fotografia que mente; pois, na realidade,
o tempo não pára. E se o artista consegue produzir a impressão de um gesto que se
executa em vários instantes, o trabalho dele é, certamente, muito menos convencional do que a imagem científica onde o tempo é suspenso de forma abrupta. (...)
Criticam Géricault porque em sua obra Corrida de cavalos em Epson,
que está no Louvre, ele pinta cavalos galopando em alta velocidade com as patas
traseiras e dianteiras simultaneamente levantadas. Dizem que a chapa fotográfica nunca mostra isso. Na verdade, na fotografia instantânea, quando as pernas
dianteiras do cavalo chegam à frente, as traseiras, levando a propulsão ao corpo
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6. DAGOGNET. Op. cit.,
p. 56-58, 68; NEWHALL.
Op. cit., p. 119.
7. Apud SCHARF.
Op. cit., p. 224.
8. DAGOGNET.
Op. cit., p. 106-108.
9. RODIN, Auguste.
A arte: conversas com
Paul Gsell. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira,
1990, p. 60-61.
10. DAGOGNET.
Op. cit., p. 109-111.
11. SCHARF. Op. cit.,
p. 227-228; NEWHALL.
Op. cit., p. 121; GERNSHEIM. Op. cit., p. 155.
12. SCHARF.
Op. cit., p. 227.
inteiro, já se colocaram sob o abdome outra vez, prontas para começar um novo
galope. Conseqüentemente, as quatro patas parecem encontrar-se no espaço,
dando ao animal a aparência de ter pulado naquele mesmo instante e ter sido
imobilizado nessa posição.
Ora, creio que é Géricault quem tem razão, e não a fotografia, pois os
cavalos pintados parecem correr. Isto se dá porque o espectador, ao olhar de trás
para frente, vê, primeiramente, as pernas traseiras fazerem o esforço para o salto.
Depois, vê o corpo esticar-se e as pernas dianteiras buscarem o chão ao longe. A
representação de Géricault é falsa ao mostrar esses movimentos como simultâneos,
e é verdadeira se as partes são observadas sucessivamente. Somente esta verdade
nos importa porque é ela o que vemos e o que nos impressiona.
Além disso, observe que, quando pintores e escultores reúnem numa
mesma figura fases diferentes de uma ação, não procedem desta forma por
raciocínio ou artifício. Eles expressam, bastante ingenuamente, o que sentem. As
almas e mãos dos artistas parecem ser conduzidas na direção do gesto, cujo desdobramento instintivamente eles traduzem” 9.
O desassossego de Rodin perante a fotografia tinha sua razão de ser.
Interessados em defender uma visão documental da arte, Marey e Duhousset
passam em revista as principais representações do cavalo e não poupam críticas a pintores como Carle Vernet e Géricault, cujas soluções consideram
errôneas ou convencionais por falta de “recursos científicos”. Semelhantes
análises, eivadas de um positivismo intransigente, são consideradas “um passo
em falso” por François Dagognet: se Géricault havia proposto uma solução
equivocada em termos científicos, não se pode esquecer que estava visando um
efeito sugestivo e sintético que lhe permitiu traduzir a energia do animal de
uma maneira muito mais eficaz que o Neoclassicismo10.
A crítica de Rodin à fotografia instantânea tem como alvo principal a
continuação das pesquisas de Muybridge, publicadas em 1887 sob o título de
Animal locomotion, an electrophotographic investigation of consecutive phases of
animal locomotion. A pesquisa, realizada entre 1884 e 1885 sob os auspícios da
Universidade da Pensilvânia, tivera como resultado um conjunto de 781 pranchas (num total de mais de 20.000 imagens) que abarcavam quase todas as
fases da atividade motora humana e animal. Usando chapas secas de gelatina,
Muybridge consegue imagens bem detalhadas num tempo de exposição reduzido que, em certos casos, não vai além de 1/6000 de segundo. A utilização de
vinte e quatro câmaras dotadas de disparador automático, colocadas em pontos
estratégicos e sincronizadas, permite-lhe tomar simultaneamente as imagens de
cada série de diferentes pontos de vista - frontal, lateral e posterior11.
O fato de Rodin ter sido um dos artistas que adquiriu o livro de
Muybridge, conforme o autor revela em 1901 na edição reduzida intitulada The
human figure in motion12, não deve surpreender. Ele demonstra que o interesse
que a fotografia despertava nos artistas das mais variadas correntes não era
superficial, uma vez que estes estavam dispostos a analisar de perto as novas
evidências de que a imagem técnica era portadora. No caso específico do escul54
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tor, Scharf aventa uma hipótese que merece ser levada em consideração: não é
improvável que algumas fotografias de Muybridge que representavam mãos e
antebraços tenham feito com que Rodin conferisse uma nova dimensão artística aos fragmentos escultóricos que se encontravam em seu ateliê13.
Embora Marey tenha sido o inspirador das primeiras pesquisas de
Muybridge, é inegável que é graças ao fotógrafo inglês que passa da cronografia
à cronofotografia. Com a cronofotografia, Marey, que era titular da cadeira de
História Natural dos Corpos Organizados no Collège de France, consegue atingir o cerne de sua pesquisa anterior, articulada em volta da dimensão espaciotemporal do movimento:
“Todo movimento é produto de dois fatores, o tempo e o espaço.
Conhecer o movimento de um corpo é conhecer a série de posições que este
ocupou no espaço numa série de instantes sucessivos”14 .
Substituir a cronografia pela cronofotografia implicava abandonar
aquelas trajetórias gráficas em que a representação do movimento abarcava
poucas dimensões em prol da tomada de instantâneos de um ser em movimento, executados em intervalos regulares. Para tanto, Marey, que conta com a
colaboração de Georges Demenÿ entre 1882 e 1894, cria um sistema diferente
daquele utilizado por Muybridge. Enquanto este trabalhava com um conjunto
de câmaras, o cientista francês lança mão, num primeiro momento, do fuzil
cronofotográfico, capaz de obter doze imagens num segundo (março de 1882).
Dois meses depois, realiza experiências com o cronofotógrafo, um aparelho
dotado de um obturador de disco que permitia obter dez imagens por segundo
numa chapa fixa de vidro, reproduzindo, assim, as fases consecutivas de um
movimento. Em 1888 substitui a chapa de vidro pelo filme sensível sobre papel
(depois sobre celulóide) proposto por George Eastman, que lhe permite reunir
quarenta imagens.
Havia uma clara diferença entre o método de Marey e aquele de
Muybridge. A prática do fotógrafo inglês proporcionava uma ilusão cinemática,
uma vez que os diferentes aparelhos retinham fases de um movimento dividido, ao passo que as experiências de Marey permitiam “reunir numa mesma
fotografia uma série de imagens sucessivas que representam as diferentes posições
que um ser vivo ocupa durante um movimento de locomoção”. O que significa
que o cientista francês tenta obter uma sincronização entre o modelo e seu
traçado gráfico a fim de captar as posições intermediárias entre os diferentes
estágios de um movimento. Cabe ao aparelho inserir-se entre duas possibilidades de registro - a fusão e a atomização - para dar conta de uma realidade
heterogênea como a do movimento, graças a duas estratégias: um “levantamento” exato e uma ligeira “contração” espaciotemporal15.
Marey vai muito além dessa primeira transcrição própria da chapa fixa.
Como com esta se obtinha uma silhueta e não uma imagem completa, consegue uma “fotografia parcial” servindo-se de algumas técnicas de Chevreul.
Aplica uma mancha clara numa figura pintada ou vestida de preto, registrando
os movimentos da mancha sobre o fundo escuro. Ou desenha listras brancas
Fabris
55
13. Idem, p. 230.
14. Apud MANNONI,
Laurent. “La photographie
animée du nu: l’oeuvre de
Marey et Demenÿ”. In L’art
du nu au XIXe siècle:
le photographe et son
modèle. Paris: Hazan/
Bibliothèque Nationale de
France, 1997, p. 178.
15. DAGOGNET. Op. cit.,
p. 75, 78-79; Apud FRIZOT,
Michel. “Le temps constitué”.
In Étienne-Jules Marey.
Paris: Centre National de la
Photographie, 1984, s.p.
16. DAGOGNET. Op.
cit., p. 79-81; SCHARF.
Op. cit., p. 238.
17. DAGOGNET.
Op. cit., p. 83, 86.
18. Apud FRIZOT. Op.
cit., s. p.; DAGOGNET.
Op. cit., p. 102.
19. PHÉLINE, Christian.
L’image accusatrice.
Laplume: AACP, 1985,
p. 100-101.
20. GILARDI, Ando. Storia
sociale della fotografia.
Milão: Feltrinelli, 1976, p.
298.
num braço e numa perna que, fotografadas em intervalos intermitentes, traçam
o diagrama das oscilações da figura em movimento. Desse modo, ao invés de
volumes capta linhas, o que o leva a escrever:
“As fotografias parciais são úteis porque permitem multiplicar muito o
número de atitudes representadas. (...) Essa disposição permite decuplicar facilmente o número das imagens captadas num tempo determinado numa mesma
chapa: assim, ao invés de 10 fotografias por segundo, é possível tomar 100”16.
A fotografia parcial aplicava-se sobretudo aos movimentos e aos deslocamentos terrestres, não permitindo o registro de peixes, que interessava igualmente ao cientista. A solução para esse problema é dada pelo lançamento da
fita de papel móvel (1888) e finalmente pela película de celulóide (1891).
Graças a elas, Marey tem condições de deixar de lado a chapa fixa, mas é obrigado a encontrar duas soluções: deixar uma das extremidades da película não
emulsionada; instaurar uma espécie de pose curta nas tomadas que permitia
deter momentaneamente o aparelho sem prejudicar nem acelerar o deslocamento da película. Desse modo, Marey pode finalmente captar o ínfimo (insetos) e o intransponível (peixes), revelando à visão os movimentos mais complexos do mundo animal17.
A novidade de que eram portadoras as imagens de Marey é prontamente percebida por Nadar e Bertillon. Ao afirmar que o fisiólogo havia desviado a fotografia do caminho do realismo por captar “o imprevisível, o indiscernível em imagens plurais nas quais o sujeito é a um só tempo ele mesmo e diferente, nas quais a forma se dedica a encontrar uma identidade fugidia e renovada”, Nadar demonstra ter compreendido o alcance profundo de suas pesquisas.
O uso de recursos científicos havia permitido a superação da visão retiniana,
situando as imagens de Marey entre a ciência e a arte. Tratava-se, de fato, de
imagens que não copiavam a realidade, mas que a transpunham em curvas, ritmos, vibrações18.
O interesse de Bertillon por “essas combinações extraordinárias de
movimentos reveladas pela fotografia” é atribuído por Christian Phéline a uma
consciência do efeito crítico inerente ao novo tipo de imagem. A fotografia de
Marey - do mesmo modo que o retrato judiciário codificado por Bertillon -,
remetia a uma pesquisa basicamente interessada nos meios específicos de representação da imagem técnica, sem qualquer pretensão artística de caráter pictorialista. Por outro lado, ela permitia demonstrar que a objetividade e a
transparência, qualidades consideradas intrínsecas à imagem fotográfica, não
são dadas, mas produzidas numa incessante superação crítica dos usos e convenções atribuídos a ela19.
Ando Gilardi detecta nas experiências de Marey um fato singular na
história da fotografia: o valor artístico, criativo dos novos signos foi compreendido imediatamente pelos artistas de vanguarda, mas não pelos fotógrafos,
muito mais preocupados com as dimensões industriais que a imagem técnica ia
adquirindo20.
Tal opinião não é compartilhada por Kirk Varnedoe, que estabelece
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uma diferença entre a fragmentação e a repetição das fotografias de Marey e
Muybridge e aquela presente na pintura de Degas e na escultura de Rodin. As
formas fotográficas, que derivam seu sentido das idéias científicas do momento, participam ao mesmo tempo do instantâneo e da normalização. Ou seja, a
fragmentação do tempo registrada nas imagens de Muybridge e Marey está
alicerçada em dispositivos de sucessão ritmada que recortam os segmentos de
informação e os tornam úteis para as ciências. Mais ainda: o sentido dessas imagens deve ser buscado na maneira pela qual elas apresentam a informação - em
“séries complementares, emparelhadas, de elementos separados, sujeitos ao ritmo de
um alinhamento regular”. Nessa estrutura dual, Varnedoe localiza o verdadeiro
móvel dessas imagens, às quais a visão positivista confere um sentido utilitário21.
Os artistas do século XIX conheciam suficientemente as idéias evolucionistas então correntes, não necessitando das imagens fotográficas para corroborar a visão dinâmica do mundo. Em Zola e em Duranty, Degas já havia
encontrado elementos para “considerar esta ou aquela cena de rua fugaz do
mesmo modo pelo qual Marey considerava um homem correndo: como um feixe
de momentos a serem descorticados em pedaços ínfimos, a fim de discernir no quê
o aspecto e o comportamento dos indivíduos atestam a ação de leis determinantes”. Mesmo levando a sério as idéias de Duranty, cujo método era semelhante aos de Marey e Muybridge, Degas não busca na realidade exterior os
índices de uma ordem oculta. Ao contrário, cria um mundo artificial, cuja significação reside na ordem visível; numa ordem feita de signos emprestados e de
signos novos, que propicia um diálogo entre o indivíduo e o grupo, entre o inato
e o adquirido, entre o flutuante e o imóvel. Aplicando a Degas as leis evolucionistas de Darwin, Varnedoe afirma que os novos modos de composição utilizados por ele representavam exemplos de adaptação de fórmulas existentes às
quais eram conferidas novas possibilidades22.
Quanto a Rodin, fragmentação e repetição são testemunhos inequívocos
de um método de trabalho alicerçado numa composição não homogênea. O escultor usava um grande número de peças isoladas, com as quais modelava diferentes
versões e variantes a fim de sublinhar o caráter artificial da obra de arte. Num
trabalho como A Porta do Inferno (1880-1917), a fragmentação e a repetição tornam-se instrumentos de desagregação de um universo para afirmarem um antiuniverso, no qual reina um desvario perpétuo. Ao deslocar as formas de um contexto para o outro Rodin promove uma mobilidade de sentido que faz dele um
escultor moderno, apesar do caráter literário de muitos de seus temas23.
Varnedoe já analisara tal problemática ao debruçar-se sobre as
relações entre Impressionismo e fotografia em dois artigos publicados por Art
in America em 1980. No primeiro deles, “The artifice of candor:
Impressionism and photography reconsidered”, o autor nega, por exemplo, que
haja qualquer relação entre a representação das figuras num quadro como
Boulevard des Capucines, de Monet (1873-1874), e fotografias que retratam o
movimento. As semelhanças propostas entre os dois tipos de imagem ignorariam a complexidade do processo pictórico de Monet: enquanto a fotografia
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21. VARNEDOE, Kirk.
Au mépris des règles: en
quoi l’art moderne est-il
moderne? Paris: Adam Biro,
1990, p. 109, 112-113
22. Idem, p. 116-118,
120, 126.
23. Idem, p. 127, 130, 133.
24. VARNEDOE, Kirk.
“The artifice of candor:
Impressionism and photography reconsidered”. Art in
America. vol. 68, n. 1. 1980,
p. 71.
25. VARNEDOE, Kirk.
“The ideology of time: Degas
and photography”. Art in
America. vol. 68, n. 6.
1980, p. 99, 105.
26. Sobre Degas fotógrafo,
ver: CRIMP, Douglas.
“Positive/negative: a note
on Degas’s photographs”.
October. n. 5. 1978,
p. 89-100.
registra claramente a arquitetura e as árvores, oferecendo em contrapartida
uma visão por manchas das pessoas, no quadro formas distintas e indistintas
fundem-se de maneira imprevista. A captação do movimento humano, incongruente na fotografia, é parte integral da concepção de Monet, que consegue o
efeito de mancha graças ao tratamento da atmosfera24.
No segundo artigo, dedicado a Degas, Varnedoe reconhece que, após
1887, o pintor realizou ocasionalmente desenhos a partir das imagens “cientificamente isoladas e sistematicamente seqüenciadas” de Muybridge, mas detecta em seus fragmentos temporais unidades que afirmam seqüências de ação.
Um argumento decisivo para negar qualquer possibilidade de coincidência
entre as concepções temporais de Degas e aquelas de Muybridge e Marey
parece residir na afirmação de que as imagens destes são produto de uma
metodologia e não do meio utilizado. A estrutura dessa metodologia, que enfatiza o isolamento e a repetição de segmentos de experiência, “não se origina de
qualquer potencialidade da câmara”, não sendo necessário recorrer a tais imagens para analisar a arte do final do século XIX25.
Este último argumento é por si só suficiente para demonstrar o caráter
capcioso da leitura proposta pelo autor norte-americano. Como é possível obliterar a especificidade do meio fotográfico e reconduzir as experiências de
Muybridge e Marey apenas a uma questão de método diante de evidências
como o uso de novos tipos de câmaras e de chapas e a diminuição considerável
dos tempos de exposição? Em seu afã de criar uma visão absolutamente original da arte de fins do século XIX, Varnedoe acaba por deixar de lado uma possibilidade de leitura capaz de fazer confluir, numa dimensão complexa, presente
e passado: o contato com as imagens fotográficas não poderia ter potencializado em Degas um uso anticonvencional de recursos derivados do Renascimento?
Não se pode esquecer que o pintor, embora considerasse a nova imagem o
resultado de um olho mecânico, incapaz de estabelecer distinções, de construir
significados, de alcançar o estilo, se distingue por uma prática fotográfica
experimental, feita de novos pontos de vista, de manipulações de negativos, da
busca de qualidades propriamente fotogênicas, localizadas antes de tudo na
dupla preto e branco26.
O mesmo tipo de raciocínio pode ser aplicado ao tratamento dado pelo
Impressionismo a algumas cenas citadinas: se os instantâneos podem ter sugerido aos pintores composições com imagens confusas, reduzidas quase a
sombras, a signos indistintos, isso em nada diminui sua contribuição na configuração de uma nova visualidade para as artes plásticas.
O que faz falta à análise de Varnedoe é uma consideração mais complexa das relações entre Impressionismo e fotografia, que não passam apenas
pela problemática dos empréstimos. Edmond Couchot aponta para uma nova
possibilidade de análise quando propõe um paralelo entre a pincelada em vírgula e o toque dividido da pintura impressionista e o novo ambiente perceptivo
moldado pelas técnicas de transmissão e codificação desde meados do século
XIX, cujos traços distintivos eram a fragmentação dos materiais e das operações
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e a busca do elemento mínimo constitutivo da imagem e da palavra, capaz de
tornar automáticas sua análise e sua síntese. Dentro desse universo mais
amplo, a fotografia desempenha um papel indireto no surgimento do
Impressionismo: ambos são a arte do instante. O instante do Impressionismo é,
porém, aquele da impressão primeira, fisiológica, não podendo ser confundido
com o instantâneo fotográfico27.
A hipótese de Couchot, embora não corrobore a idéia de uma relação
direta entre fotografia e Impressionismo, propõe, contudo, um paralelo com o
universo tecnológico do século XIX, do qual se origina um novo tipo de percepção. É enquanto renovação das possibilidades visuais que o instantâneo e a
fotografia de movimento devem ser analisados, sendo inegável o impacto que
essas imagens tiveram nos artistas do período. No caso específico das
fotografias que registravam a locomoção humana e animal, Scharf propõe duas
vertentes de abordagem por parte dos artistas plásticos: aqueles que seguiam a
tradição naturalista davam preferência à clareza das imagens de Muybridge; os
que buscavam ocultar a identidade literal das coisas para dar precedência a
realidades mais abstratas, aos movimentos, aos ritmos e aos módulos fundamentais do universo optaram pela visualidade de Marey . A distinção entre as
duas experiências tem sua razão de ser. A análise do movimento no interior de
uma série e não a partir de uma imagem isolada é um traço comum entre
Muybridge e Marey28 Este consegue, porém, uma imagem sintética que coloca
em xeque o caráter realista da fotografia, dissolvendo a estrutura do corpo em
prol de ritmos abstratos, de puros fluxos de energia e de formas que se desenvolvem no tempo.
Degas inscreve-se na primeira vertente, como já havia percebido um
contemporâneo como Paul Valéry, ao afirmar que o pintor “foi um dos primeiros
a estudar o verdadeiro aspecto do nobre animal com a ajuda... das fotografias de
Muybridge”. Há, segundo Scharf, uma diferença notável no tratamento que
Degas dá ao tema do cavalo na década de 60 e depois de 1880: enquanto no
primeiro caso a nota dominante é a estilização, no segundo não pode deixar de
ser notada uma atenção às posições exatas do animal registradas pelas
fotografias instantâneas. O pintor deve ter entrado em contato com as experiências do fotógrafo britânico graças à divulgação de algumas fotografias de
cavalos pela revista Nature de 14 de dezembro de 1878. Nem todos os aspectos
da locomoção do cavalo chamaram a atenção de Degas, que prefere concentrarse no pequeno galope e no galope de maneira peculiar: a indicação do movimento é sugestiva e não descritiva, uma vez que nunca é claro em que estágio
se encontra a andadura do animal29.
Na segunda vertente inscrevem-se algumas obras de Duchamp como
Cinco silhuetas de uma mulher em planos diferentes (1911), Jovem triste num
trem (1911) e as duas versões de Nu descendo uma escada (1911-1912).
Duchamp conhecia as experiências de Marey não só por ter lido seus livros,
mas também por intermédio do irmão Raymond Duchamp-Villon, que estudava Medicina com Albert Londe, assistente do fisiologista. A dívida de Nu
Fabris
59
27. COUCHOT, Edmond.
La technologie dans l’art:
de la photographie à la
réalité virtuelle. Nîmes:
Éditions Jacqueline
Chambon, 1998, p. 33-34.
28. SCHARF. Op. cit.,
p. 270.
29. Idem, p. 213-215.
30. DUCHAMP, Marcel.
“Pintura... a serviço da
mente”. In CHIPP, Herschel
B. (org.). Teorias da arte
moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1988, p.
398; Apud FRIZOT. Op.
cit., s. p.
31. APOLLINAIRE,
Guillaume. Pintores
cubitas: meditações
estéticas. Porto Alegre:
L&PM, 1997, p. 68-69.
descendo uma escada para com a fotografia é explicitamente reconhecida por
ele em algumas entrevistas. Em 1946, ao ser indagado sobre as relações que
poderiam existir entre o quadro e a pintura futurista, faz referência aos álbuns
de Muybridge, pois não estava interessado na sugestão do movimento, e sim
numa “composição estática de indicações das várias posições tomadas por uma
forma em movimento”. Na entrevista concedida a Pierre Cabane em 1966,
admite que o elemento deflagrador dos esboços e do segundo estágio de Nu
descendo uma escada fora a cronofotografia:
“Sim, tinha visto na ilustração de um livro de Marey como ele indicava as
pessoas que praticam esgrima, ou os cavalos a galope, com um sistema de pontilhado que delimitava os diferentes movimentos. É assim que ele explicava a idéia do
paralelismo elementar. Isso parece muito pretensioso como fórmula, mas é divertido.
Isso deu-me a idéia da execução do ‘Nu descendo uma escada’. Empreguei um
pouco esse procedimento no esboço, mas sobretudo no último estado do quadro”30.
Embora não afirme explicitamente a relação de alguns quadros de
Duchamp com a fotografia, Apollinaire não deixa de remetê-los à “arte
necessária” do próprio tempo, ao evocar “o aeroplano de Blériot”. Presença subterrânea, o impacto da cronofotografia pode, porém, ser vislumbrado no capítulo dedicado ao artista em Pintores cubistas:
“Todos os homens, todos os seres que passaram perto de nós deixaram
impressões em nossa lembrança e esses traços da vida têm uma realidade, cujos
detalhes podemos escrutar, copiar. Esses traços adquirem, assim, todos juntos,
uma personalidade cujos caracteres individuais podem ser indicados plasticamente, mediante uma operação puramente intelectual (...). Uma arte que objetivasse extrair da natureza não generalizações intelectuais, mas formas e cores coletivas cuja percepção ainda não se tornou noção, é certamente concebível e parece
que um pintor como Marcel Duchamp está em via de realizá-la. É possível que
esses aspectos desconhecidos, profundos e subitamente grandiosos da natureza não
necessitem ser estetizados para ser comoventes; isso explicaria o aspecto flamiforme das cores, as composições em forma de N, os estonteantes tons, ora suaves,
ora nitidamente acentuados. Essas concepções não são determinadas por uma
estética, mas pela energia de um pequeno número de linhas (formas ou cores)” 31
A síntese alcançada por Duchamp graças ao uso de uma paleta restrita e de formas geométricas simples em Nu descendo uma escada n. 1 (1911)
explicita-se na idéia de uma imagem contínua que Douglas Cooper remete à
fotografia estroboscópica. Uma outra aproximação pode, porém, ser sugerida
para essa obra, ainda não de todo cubista em virtude do tratamento naturalista
dado ao espaço e à escada. Não é improvável que o pintor tivesse conhecimento do livro de Paul Richer, Physiologie artistique de l’homme en mouvement
(1895), no qual fora publicado o desenho de uma figura descendo uma escada
baseado numa cronofotografia. Assistente de Charcot no hospital da Salpêtrière
e professor da Escola de Belas-Artes de Paris, Richer usa a cronofotografia num
sentido diferente daquele de Marey: interessa-lhe analisar e não reconstituir o
movimento a fim de detectar “em que medida o próprio modelado (...) torna-se
60
Fabris
expressivo da ação”32.
Se for lembrado que Duchamp afirma buscar em Nu descendo uma
escada as várias posições de uma forma em movimento, será possível aventar a
hipótese de que, na primeira versão, seu diálogo mais imediato é com Richer,
cujas cronofotografias instrumentalizam a percepção da mobilidade dos corpos,
fazendo do modelado o sintoma da atividade cinética33. A versão de 1912 traz
também a marca de Marey, patente sobretudo no encadeamento mais acentuado dos vários estágios da figura, no uso de linhas pontilhadas em interconexão
entre si na metade superior do quadro e de arcos de círculo na altura das panturrilhas, que lembram os artifícios visuais usados pelo fisiologista para registrar as oscilações de um corpo em movimento.
II
32. COOPER, Douglas.
La época cubista.
Madrid: Alianza Editorial,
1984, p. 139-140;
POIVERT, Michel. “Variété
et vérité du corps humain,
l’esthétique de Paul Richer”.
In L’art du nu
au XIXe siècle: le
photographe et son
modèle. Op. cit., p. 164,
168. A reprodução do trabalho de Richer pode ser
encontrada em: SCHARF.
Op. cit.,p.272.
33. POIVERT. Op. cit.,
p. 168.
As várias tentativas para fixar o movimento - instantâneo, cronofotografia, cinema - são negadas por Anton Giulio Bragaglia em Fotodinamismo,
publicado sob forma de opúsculo em 191134. O autor detecta nelas um processo analítico de conhecimento da realidade, conseguido graças à decomposição
do movimento em seus dados constitutivos; incapaz, portanto, de traduzir seu
fluxo contínuo e homogêneo no tempo. Querendo representar todo o gesto, o
instantâneo acaba por contraí-lo e imobilizá-lo num de seus estados possíveis.
Nega, desse modo, a dinâmica do movimento, ao reproduzir os valores do verdadeiro imóvel ou parado.
Cinematografia e cronofotografia, por sua vez, não só reproduzem a
realidade de maneira “precisa, mecânica e glacial” como negligenciam aquilo
que constitui a essência do movimento, a trajetória35. As experiências de Marey
não chegam a ser nem propriamente analíticas: fragmentam e atomizam o gesto
em várias imagens instantâneas, ainda mais autônomas do que as imagens cinematográficas. A cronofotografia não cria nem a sensação nem a reconstrução
do movimento. Marey seleciona alguns movimentos possíveis, estabelece uma
seqüência de figuras que poderiam provir de fontes diferentes, uma vez que não
está interessado em criar aquilo que é a verdadeira essência da fotografia:
“visões proporcionadas, na força das imagens, no próprio tempo de sua vida, e,
mais ainda, na velocidade com a qual viveram no espaço e em nós”36.
Bragaglia aponta minuciosamente aquelas que considera as limitações
da cronofotografia. É um procedimento não analítico, integrado por instantâneos
muito rígidos; incapaz de perceber a trajetória - fonte da sensação dinâmica -, de
desmaterializar as figuras e captar seu ritmo; pronto a registrar apenas uma ínfima parte da multiplicação dos corpos em seu deslocamento. O cinema, finalmente, subdivide o movimento de maneira arbitrária, desintegrando-o e fragmentando-o sem qualquer preocupação estética para com o ritmo. É incapaz de analisar o movimento porque o fragmenta arbitrariamente; e, ainda mais, é incapaz de
sintetizá-lo porque só reconstrói alguns fragmentos anteriormente estilhaçados.
A essas formas imperfeitas de captação do movimento, Bragaglia opõe
Fabris
61
34. Como o único dado
relativo a Fotodinamismo
é o manuscrito conservado
no Centro Studi Bragaglia
(Roma), Maurizio Calvesi
usa como argumento favorável à publicação em
1911 as notícias divugadas
pelas revistas L’Artista
(dez. 1911) e Il Tirso (11
fev. 1912). Cf.: CALVESI,
Maurizio. “Le fotodinamiche de A. G.
Bragaglia”. In BRAGAGLIA, Anton Giulio.
Fotodinamismo futurista. Turim: Einaudi,
1979, p. 170-171.
35. BRAGAGLIA. Op.
cit., p. 27.
36. Idem, p. 28.
37. Idem, ibidem.
38. Idem, p. 29, 33.
39. Idem, p. 36.
40. Idem, p. 49.
41. Em 1919, ao lembrar
as primeiras experiências
com o fotodinamismo,
Bragaglia cita textualmente também o nome do
irmão Carlo Ludovico.
Numa entrevista concedida em 1983, este afirma
ter sido o idealizador do
fotodinamismo e ter
realizado experiências
foto-dinâmicas com a
colaboração de Arturo,
cabendo a Anton Giulio a
tarefa de teorizador da
nova imagem. Acabou
sendo objeto de um
processo em 1995, por
ocasião da exposição
“Omaggio a Carlo
Ludovico Bragaglia”, na
qual era apresentado
suas pesquisas:
“Vulgarmente poderíamos comparar a cronofotografia a um relógio cujos
ponteiros marcam apenas os quartos de hora: a cinematografia a um que marca
também os minutos e a Fotodinâmica a um terceiro que indica não só os segundos, mas também os minutos intermomentais existentes entre os segundos, nas
passagens, sendo quase um cálculo infinitesimal do movimento”37.
Apesar de basear-se em pesquisas científicas, o fotodinamismo analisa
e sintetiza o movimento de maneira eficaz, pois “possui a força de recordar a
continuidade do gesto no espaço”. É capaz de captar num rosto a expressão da
passagem dos estados d’alma e o deslocamento dos volumes que transformam
as expressões; de traduzir “novas sensações de ritmo” graças à captação do “resultado dinâmico do gesto” enquanto síntese de uma trajetória; de deformar as imagens transformadas pelo movimento38.
O fotodinamismo, porém, não busca apenas a síntese do gesto enquanto expressão estética. Procura captar também seu interior, aquela “emoção sensorial, cerebral e psíquica que experimentamos no momento em que um gesto
deixava atrás de si seu soberbíssimo rastro irruente”, base de seus valores artísticos39. Veio, desse modo, provar uma série de fatos, alguns dos quais já previstos
pelos pintores futuristas:
1 - o movimento e a luz desintegram os corpos;
2 - o gesto descolore as imagens: mistura os valores cromáticos, obten
do uma uniformidade exterior cinzenta;
3 - o movimento, ao destruir a forma exterior dos corpos, existe apenas
como pura trajetória material da essência interior do objeto.
Se o movimento destrói a matéria, é falso, portanto, multiplicar um
objeto. Os corpos em movimento requerem a síntese, a “diminuição”, mesmo
que sua exterioridade, na trajetória, pareça “espalhada” 40.
Buscando enquadrar a pesquisa levada adiante com a colaboração do
irmão Arturo41 no âmbito de um movimento artístico de vanguarda, Bragaglia afirma que o fotodinamismo foi inspirado por “A pintura futurista. Manifesto técnico” (11 de abril de 1910) e atribui a Balla uma precedência cronológica nas
experiências “movimentistas”. Reconhece, para tanto, a existência de dois tipos
de dinamismo: o realista dos objetos em movimento real, que denomina movimentismo; o virtual dos objetos estáticos, campo de pesquisa da pintura futurista.
Balla, que integra a relação de precursores do movimentismo ao lado
de Velázquez (As fiandeiras) e Medardo Rosso, interessara-se pela fotografia
desde o início de sua carreira. Socialista humanitário e imbuído de idéias positivistas percebe nela a extrinsecação da “verdade moderna”, isto é, de uma verdade dotada de bases científicas, psicológicas e sociais. A fotografia desenvolve
dois papéis fundamentais no âmbito de seu primeiro sistema pictórico: testemunho direto da realidade fenomênica e instrumento de captação de uma
estrutura propriamente artística, a realidade física da luz.
Um desenho-colagem de 1896, no qual se vê a figura de um padre
assumir diferentes posições consecutivas de um único movimento, indicaria o
62
Fabris
conhecimento que o pintor tinha das pesquisas de Muybridge e Marey.
Giovanni Lista, que propõe esta hipótese, lembra ainda que Balla visitara a
Exposição Universal Internacional de 1900 (Paris), na qual Marey estava apresentando suas pesquisas e ilustrando as aplicações possíveis da cronofotografia
no campo da fisiologia artística. O resultado imediato desse contato foi um
quadro representando uma mulher num jardim, do qual só resta a descrição que
o artista dele faz numa carta: tratar-se-ia do estudo da maneira de caminhar de
uma moça, que daria “a ilusão” de estar avançando em direção ao espectador42.
Esse primeiro interesse por Marey não se traduz em outras obras que
exploram o caráter serial de um gesto, uma vez que a fotografia que motiva
Balla no começo do século XX é aquela de cunho realista. Vários quadros testemunham o diálogo do pintor com a imagem fotográfica: O trabalho (1902) e
Falência (1903), caracterizados pelo uso de ângulos ousados e de um detalhamento realista, reforçado no primeiro caso pelo efeito luminoso conseguido;
A jornada do operário (1904), seqüência cinemática de efeitos de luz e passagem do tempo; A despedida (1909-1910), que evoca uma fotografia aérea com
seu jogo de movimentos e direções ascensionais e com a poderosa espiral provocada pela repetição das escadas e da balaustrada. O Balla “movimentista”, que
Boccioni considera “ainda por demais fotográfico e episódico”43, surgirá em 1912
graças à retomada dos princípios da cronofotografia em obras como Coleira em
movimento (1912), Ritmos do arco (1912), Menina X sacada (1912), Linhas
andamentais + sucessões dinâmicas (1913).
O renovado interesse de Balla pela problemática do movimento
merece algumas considerações. A primeira delas remete à sua adesão ao
Futurismo, em cujos primeiros manifestos é possível encontrar ecos das
pesquisas de Marey. Não se deve esquecer que o cientista francês transcorria
parte do ano em Nápoles, que colaborava com o fisiologista Angelo Mosso
(Turim) e que suas idéias eram bem conhecidas na Itália através de conferências e de artigos divulgados por revistas especializadas, entre as quais Il dilettante di fotografia. Os pontos de contato mais evidentes entre as imagens antirealistas de Marey e a proposta de uma nova visualidade devem ser buscados
em “A pintura futurista. Manifesto técnico”. É nele que são explicitadas as premissas de uma arte inspirada no dinamismo contemporâneo, que deita raízes
nas possibilidades visuais proporcionadas por outros instrumentos que não o
olho. Duas proposições do manifesto devem ser lembradas a esse respeito: a
concepção do gesto como sensação dinâmica; a captação de um corpo em movimento em termos de multiplicação, deformação, vibração. Giovanni Lista
chama a atenção para a presença de sensações dinâmicas nos primeiros
quadros de Boccioni, Carrà, Russolo e Severini graças à presença de uma
repetição discreta da forma e de uma figura como o ângulo agudo, cuja origem
pode ser buscada nas microfotografias das ondas de choque provocadas por
projéteis nas camadas de ar, realizadas por Ernst Mach entre 1884 e 188644.
Não é improvável, por outro lado, que Balla tenha voltado a interessarse pela questão do movimento depois de ter visto as primeiras experiências
Fabris
63
como “o verdadeiro e
único fundador do
‘Fotodinamismo’”.
Cf.: LISTA, Giovanni.
Fotografia futurista.
Milão: Multhipla
Edizioni, 1979, p. 71;
ZANNIER, Italo.
“Fotografia futurista”.
Nuovi Argomenti.
n. especial. 1986, p. 99100; FUMAGALLI,
Marisa. “La Bragaglia
story finisce in tribunale”.
Corriere della Sera.
24 jan. 1995.
42. LISTA, Giovanni.
“La création photographique futuriste”.
In Photographie
futuriste italienne:
1911-1939. Paris:
Musée d’Art Moderne de
la Ville de Paris, out.
1981-jan. 1982, p. 5-6.
43. Apud DE MARCHIS,
Giorgio. Giacomo Balla:
l’aura futurista. Turim:
Einaudi, 1977, p. 24.
44. LISTA. Op. cit.,
1981-1982, p. 7.
45. Idem, p. 8. Uma vez
que a primeira fotodinâmica dos irmãos
Bragaglia foi divulgada
sob formas de cartão
postal, Italo Zannier
indaga se não se trataria
de um exemplo de mail
art. Cf.: ZANNIER.
Op. cit., p. 98.
46. Apud DE MARCHIS.
Op. cit., p. 25-26.
47. TISDALL, Caroline e
BOZZOLLA, Angelo.
Futurismo. Milão:
Rusconi, 1988, p. 63.
48. DE MARCHIS
Op. cit., p. 29.
49. BRAGAGLIA.
Op. cit., p. 31.
fotodinâmicas de Anton Giulio e Arturo Bragaglia. Em julho de 1911, os dois
irmãos realizam a fotodinâmica Cumprimentando, na qual já estão presentes
algumas características que irão diferenciar suas pesquisas daquelas de Marey:
captação de um gesto súbito e não de um movimento linear e contínuo; forma
evanescente capaz de traduzir o caráter imediato do episódio cinético45 Em
setembro do mesmo ano, a livraria Mantegazza de Roma hospeda uma
exposição de fotodinâmicas e é bem possível que Balla tenha tomado conhecimento dessas experiências antes que se efetivasse o contato entre os irmãos
Bragaglia e os futuristas (fins de 1912).
Coleira em movimento, definida por um crítico como “o filme de um
bassê que pateia”46, apresenta um claro corte fotográfico: o episódio representado desenrola-se num primeiro plano absoluto; a figura humana é reduzida a um
pormenor de maneira a chamar a atenção sobre o cachorro e a coleira. O movimento da mulher, do cachorro e da coleira é apresentado através de seqüências
sucessivas e se torna o elemento determinante da composição em virtude da
neutralização do efeito de profundidade e de volume. A própria escolha
cromática não deixa de evocar o princípio fotográfico: Balla opta pelo contraste
entre claro (rua) e escuro (silhuetas da mulher e do cachorro).
Ritmos do arco, que provavelmente deveria integrar um programa decorativo em Düsseldorf, pode ser aproximado de duas fotodinâmicas - Datilógrafa
(1911) e Violoncelista (1911). A forma peculiar dada à moldura enfatiza ainda
mais o propósito de Balla de distanciar-se da representação estática do movimento, uma vez que o triângulo era para ele um símbolo sintético do dinamismo47. A mão do violinista é captada em diferentes posições, conjugada a mais
dois movimentos rítmicos, o do arco e o do violino.
Menina X sacada evoca de imediato as linhas de movimento da cronofotografia de Marey. A decomposição do movimento investe toda a superfície da
tela graças à desmaterialização da cor por toques justapostos. O uso do símbolo matemático X é derivado do “Manifesto técnico da literatura futurista” (maio
de 1912), no qual Marinetti propugnava sua adoção para acentuar determinados
movimentos e indicar suas direções. No quadro de Balla, sua presença denota a
fusão entre a figura e o ambiente numa única formulação dinâmica do espaço.
Linhas andamentais + sucessão dinâmica, que se caracteriza pela imbricação de vários pontos de vista simultâneos com um espaço profundo, embora
seja considerada por De Marchis uma obra que se situa além da fotografia, não
deixa de denotar uma certa proximidade com a concepção de trajetória proposta
por Bragaglia, visível sobretudo na síntese temporal dos corpos em movimento48.
Se é provável que Balla tenha retomado as experiências com a
tradução do movimento graças, em parte, à mediação de Bragaglia, é também
provável que tenha derivado dele a idéia de um “divisionismo movimentista, que
seja síntese no efeito e análise no meio. Mas - observemos bem - análise íntima,
porém, profunda, sensível, mais do que facilmente perceptível”49. Essa concepção
será superada em 1913, quando o pintor se volta para as pesquisas sobre a
velocidade, graças às quais realiza uma nova síntese dinâmico-espacial, enfati64
Fabris
zando a quarta dimensão com a adoção de planos oblíquos e espirais.
Mesmo no caso dessas pesquisas, interessadas na representação
polidimensional do espaço por meio da intersecção de planos oblíquos e da
multiplicação de espirais, De Marchis aponta para a tangência existente entre
a poética de Balla e uma formulação precisa de Bragaglia, contida no parágrafo
34 de Fotodinamismo futurista:
“(...) olhando o caminho percorrido, não apenas serão abatidas as linhas
verticais, mas as casas serão arremessadas em direção à rua e toda a rua se tornará,
rapidamente, cada vez mais o ângulo agudíssimo das longas, retas alamedas bem
conhecidas, e se estrangulará no fundo não como um ângulo agudo, mas como
uma pirâmide, como um obelisco triangular, horizontal, com a ponta para o
infinito e com a parte posterior dos lados a reabrir-se não mais oblíqua, mas vertical, nas casas vizinhas”50.
Bosquejado o quadro das possíveis relações entre Bragaglia e Balla,
torna-se necessário determinar que elementos de “Pintura futurista - Manifesto
técnico” foram decisivos na postulação do fotodinamismo. O primeiro elemento é, sem dúvida, a concepção do dinamismo em termos de trajetória. Se os
futuristas afirmam: “O gesto para nós, não será mais um momento parado do
dinamismo universal: será, decididamente, a sensação dinâmica eternizada como
tal”, Bragaglia escreve: “Queremos traduzir, graficamente, o movimento perpétuo
na perpetuidade de um gesto traduzido”51.
O segundo elemento diz respeito às transformações da imagem produzidas pelo fenômeno dinâmico. Lê-se no segundo manifesto dos pintores
futuristas: “Tudo se move, tudo corre, tudo muda rapidamente. Uma figura
nunca aparece estável diante de nós, mas aparece e desaparece incessantemente.
Pela persistência das imagens na retina, as coisas em movimento multiplicam-se,
deformam-se, sucedendo-se, como vibrações, no espaço que percorrem. Assim um
cavalo que corre não tem quatro patas: tem vinte e seus movimentos são triangulares”. Bragaglia faz uma afirmação claramente devedora desse postulado: “Nós
sentimos, portanto, o fascínio que brota de uma fotografia movida, por possuirmos
em nós a paixão pelo movimento que, magnificamente, multiplica, transforma e
deforma as coisas, exprimindo o caráter essencial da vida moderna, de modo a que
sua sensação se afirme de fato como a síntese das sensações daquela vida moderna, a única que pode emocionar os verdadeiros homens de hoje”52.
Uma das conseqüências desse segundo postulado é expressa telegraficamente pelos futuristas: “O movimento e a luz destroem a materialidade dos
corpos”. Sintonizado com tal idéia, escreve Bragaglia: “Assim nós queremos afirmar e captar essas qualidades transcendentais do real, em seu deslocamento, o
qual, por sua vez, desloca a atmosfera; pois queremos nos esforçar para notar o
ambiente, em todo o seu volume, perturbado e desordenado na revolução provocada pelo movimento do corpo: o ambiente que conhecemos e sentimos, ainda
mais na ação do movimento do que na tranqüilidade da estase (...)”53.
O terceiro elemento pode ser localizado naquela que pode ser definida uma visão penetrante, capaz de ir além das aparências. Os futuristas afirFabris
65
50. DE MARCHIS. Op.
cit., p. 33-34. No livro de
Bragaglia, o trecho citado
pelo autor pode ser encontrado nas páginas 37-38.
51. ”La pittura futurista Manifesto tecnico”.
In APOLLONIO, Umbro
(org.). Futurismo. Milão:
Mazzotta, 1970, p. 55;
BRAGAGLIA. Op. cit., p. 15.
52. “La pittura futurista Manifesto tecnico”. Op.
cit., p. 55; BRAGAGLIA.
Op. cit., p. 15.
53. “La pittura futurista Manifesto tecnico”. Op.
cit., p. 58; BRAGAGLIA.
Op. cit., p. 17.
54. “La pittura futurista Manifesto tecnico”. Op. cit.,
p. 55-56; BRAGAGLIA.
Op. cit., p. 48.
55. “La pittura futurista Manifesto tecnico”. Op. cit.,
p. 56; BRAGAGLIA.
Op. cit., p. 38.
56. CALVESI. Op. cit.,
p. 175. O trecho citado
por Calvesi encontra-se
nas páginas 37-38 de
Fotodinamismo futurista
mam a esse respeito: “Quem pode acreditar ainda na opacidade dos corpos,
enquanto a nossa sensibilidade aguçada e multiplicada nos faz intuir as obscuras
manifestações dos fenômenos mediúnicos? Por que devemos continuar a criar sem
levar em conta nossa capacidade visual que pode dar resultados análogos aos dos
raios X?”. Bragaglia, por sua vez, escreve: “Pudemos notar que o movimento,
destruindo a forma exterior dos corpos, existe como trajetória única e pura, como
trajetória material da essência interior do próprio objeto. E a esse propósito, dispomos de um exemplo característico em nossa fotodinâmica Fumando, na qual a
mão que leva o cigarro da boca à perna se desmaterializa a ponto de mostrar o
esqueleto dos dedos, descarnados e envolvidos por uma transparência singular,
muito semelhante à das fotografias radioscópicas”54.
A interpenetração do objeto com o ambiente é o quarto elemento que
Bragaglia deriva do manifesto pictórico. Escrevem os pintores: “As dezesseis pessoas que estão à vossa volta num bonde que corre, são uma, dez, quatro, três; estão
paradas e se movem; vão e vêm, ricocheteiam na rua, devoradas por uma zona de
sol, em seguida voltam a sentar-se, símbolos persistentes da vibração universal.
(...) Os nossos corpos entram nos sofás em que sentamos, e os sofás entram em nós,
assim como o bonde que passa entra nas casas, as quais, por sua vez, se arremessam em cima do bonde e com ele se amalgamam”. Afirma Bragaglia:
“Preocupamo-nos em interpretar com eficácia, porém com neutralidade, um gesto
em sua expressão mais viva; assim deixaremos que os objetos se arremessem uns
sobre os outros, desventrando-se, trespassando-se e revirando-se, para ressurgirem
novamente vivos, para correrem a precipitar-se, a misturar-se com os outros, sempre, no vertiginoso e magnífico ímpeto de sua corrida” 55.
Maurizio Calvesi levanta a hipótese de alguns quadros de Boccioni
datados de 1911 - As forças de uma rua, Visões simultâneas, A rua entra na casa
- e a tela Rebelião (1911), de Russolo, estarem na base da seguinte afirmação de
Bragaglia: “E todas as linhas verticais dos edifícios deslocar-se-ão, abatendo-se,
tombando para trás. Todos os retângulos das janelas tornar-se-ão retângulos inclinados e losangos alongadíssimos. As casas, como leques, fechar-se-ão de chofre atrás
de nós, como se se tivesse feito percorrer a raios que partem de centros fixados
numa mesma horizontal de inúmeros círculos, relativos a cada linha, fazendo parte
das fachadas das casas, as quartas seções de inúmeros círculos: isto é, os arcos de
cem ângulos retos formados pelas linhas dos edifícios e pelas linhas horizontais que
emergem da rua imutada; e como se esses arcos tivessem de repente diminuído, tornando-se os arcos de ângulos não mais retos, mas cada vez mais agudos”56.
Bragaglia pode ter encontrado, de fato, nas telas de Boccioni a aplicação criativa dos princípios futuristas da interpenetração e desagregação do
espaço. Lançando mão da perspectiva aérea, o pintor cria em A rua entra na
casa e Visões simultâneas múltiplos eixos de visualização, confiando a um vórtice espiralado a tarefa de imprimir dinamismo à interpenetração entre figura e
ambiente. Em As forças de uma rua, consegue uma visão sintética, próxima da
abstração, graças ao uso de linhas em ângulo reto e de raios diagonais que conferem um ritmo dinâmico à composição. O quadro de Russolo, por sua vez, é
66
Fabris
estruturado geometricamente de maneira a acentuar o contraste entre a inércia da tradição e o elemento revolucionário, representado por um ângulo
dinâmico de linhas-força.
Buscando uma filiação na pintura futurista, Bragaglia não está apenas
aderindo ao movimento de Marinetti. Tenta conferir um estatuto artístico a
suas pesquisas, uma vez que estabelece uma diferença nítida entre fotodinâmica e fotografia. Seu desejo explícito é o de purificar, nobilitar, elevar a fotografia
à dignidade de arte. Para tanto, é necessário que a fotografia supere as vulgares
reproduções do instantâneo que paralisa o real, ao invés de captar sua vibração,
sua expressão. Contrário à mística oitocentista do “disparo” e à concepção
artística da fotografia, que negava todas as potencialidades do novo meio,
Bragaglia detecta na fotodinâmica a possibilidade de fundir numa única figura
o técnico e o artista. Com base em tais pressupostos, define-a como “o meio
mecânico, cujos resultados possuem as virtudes essenciais e provocam as mesmas
emoções da obra de arte, tendendo a desnaturar-se cada vez mais, lembrando cada
vez menos a máquina”57.
Na fotodinâmica a objetiva deve ser violentada. Dominada e guiada
pela sensibilidade do homem, deve captar o transcendental, próxima de dois
postulados da poética futurista: o princípio dos estados d’alma e a proposta de
colocar o espectador “no centro do quadro”. Se os futuristas contestam a contemplação tradicional da obra de arte, a distância física e psicológica entre esta e
o público, Bragaglia, através dos ritmos da fotodinâmica, pretende que o quadro
seja “invadido e permeado pela essência do sujeito”, que seja “obcecado pelo sujeito
a ponto de invadir e obcecar energicamente o público com seus valores”58. A relação
entre obra e público não poderá mais ser passiva. Se aquela impõe sua essência livre, este deverá pôr em prática novos mecanismos perceptivos, pois a visão
mimética não lhe servirá mais de ajuda.
Em busca de uma nova realidade sintética, em que o movimento, o
ritmo e a desmaterialização do objeto concorram para a criação de novas formas de percepção em consonância com o mundo da velocidade, os irmãos
Bragaglia utilizam dois procedimentos fundamentais: a captação da nitidez do
movimento e a exposição repetida de uma mesma chapa, superpondo as diferentes tomadas de fases distintas do movimento. Os temas são, via de regra,
únicos. Ora Anton Giulio e Arturo Bragaglia se concentram num movimento
único, concebido como ritmo e energia (Carpinteiro serrando, 1911;
Datilógrafa, 1911; Homem tocando violão, 1911); ora procuram captar os estados “intermomentais”, a “continuidade do gesto no espaço” em imagens que
indicam a transição de uma postura a outra (Cumprimentando, 1911; A
reverência, 1911; Procurando, 1912; Jovem que se balança, 1912; O homem que
se levanta, 1912; A atriz fotodinamizada, 1913; O tapa, 1913).
Em alguns momentos, como Fumando, atingem a descarnadura absoluta do sujeito; em outros, como Retrato polifisionômico, conseguem captar um
rosto em vários pontos de vista, o que poderia fazer pressupor um parentesco
com as experiências cubistas em sua fase analítica. Em 1910-1911, Picasso e
Fabris
67
57. BRAGAGLIA. Op.
cit., p. 51.
58. Idem, p. 35.
59. MENNA, Filiberto.
“Il fotodinamismo,
tecnica trascendente”.
In BRAGAGLIA.
Op. cit., p. 214-215.
60. DRUDI GAMBILLO,
Maria e FIORE, Teresa
(org.). Archivi del
futurismo. Roma: De
Luca, 1958, v. I, p. 288
Braque buscam efeitos de transparência que conferem uma grande homogeneidade à tela, unindo superfície e fundo e sublinhando o caráter material do
espaço. A fusão de memória e percepção, derivada de tais recursos, permite
criar uma unidade espaciotemporal graças à qual o objeto vive em pontos diversos do espaço, enquanto este se desenvolve em torno, dentro e através daquele. As pesquisas cubistas são, porém, demasiado analíticas para despertarem o
interesse dos irmãos Bragaglia, voltados para a desmaterialização do objeto,
para a captação da “pura trajetória” do movimento, daquela “anatomia do gesto”
que não é multiplicação e sim síntese, embora nela exista um “valor analítico
divisionista”, a fusão de massas geométricas e ritmos precisos com halos de luz
que desintegram os detalhes59.
Membro efetivo do movimento de Marinetti, Anton Giulio Bragaglia
participa de noitadas, procura encontrar as bases científicas das artes “movimentistas”, publica em 1913 uma nova edição de seu opúsculo, que recebe o
título de Fotodinamismo futurista e é ilustrado com dezesseis obras. Lançado em
fins de junho, conforme atesta a nota publicitária publicada na edição de Lacerba
de 1o de julho, o livro deveria assegurar a presença definitiva de Bragaglia no
movimento de Marinetti. Não é isso o que acontece, como demonstra uma carta
escrita por Boccioni ao galerista Giuseppe Sprovieri a 4 de setembro:
“(...) escrevo-lhe em nome dos amigos futuristas, evite qualquer contato
com a fotodinâmica de Bragaglia - É uma presunçosa inutilidade que prejudica
as nossas aspirações de libertação da reprodução esquemática ou sucessiva da
estática e do movimento.
Para a iniciação elementar naquilo que Balla FEZ. O que fará será certamente superior. É muito justa a subdivisão que você faz na carta a Marinetti imagine, pois, se precisamos da grafomania de um fotógrafo positivista do
dinamismo... Dinamismo experimental.
Seu livreco pareceu-me, e também aos amigos, simplesmente monstruoso. Grotesca a prosopopéia e o entusiasmo pelo inexistente” 60.
A tentativa de isolamento de Bragaglia não pára por aí. O número 19
de Lacerba (1o de outubro) publica logo abaixo do manifesto “O teatro de variedades”, um “Aviso”, datado de 27 de setembro e assinado por Boccioni, Balla,
Carrà, Severini, Russolo e Soffici:
“Em virtude da ignorância geral em matéria de arte, e para evitar
equívocos, nós Pintores futuristas declaramos que tudo aquilo que se refere à
fotodinâmica concerne exclusivamente inovações no campo da fotografia. Tais
pesquisas puramente fotográficas nada têm a ver com o Dinamismo plástico por
nós inventado, nem com qualquer outra pesquisa dinâmica no âmbito da pintura, da escultura e da arquitetura”.
Uma vez que o “Aviso” estabelece linhas de demarcação nítidas entre
o trabalho de Bragaglia e a pintura, escultura e arquitetura futuristas, Enrico
Crispolti aventa a hipótese de que seus signatários, mais do que desautorizar o
fotodinamismo, estariam tomando uma medida preventiva contra sua assimilação no âmbito do “dinamismo plástico”. Deve ser lembrado que o próprio
68
Fabris
Bragaglia havia estabelecido uma certa confusão sobre o verdadeiro estatuto de
suas pesquisas ao anunciar, em 1913, uma exposição de “quadros
Fotodinâmicos Futuristas” 61 e ao usar o termo “quadro” em seu livro.
A hipótese aventada por Crispolti pode ser complementada com dados
ulteriores extraídos de Fotodinamismo futurista, que podem ter desagradado os
artistas plásticos. Ao mesmo tempo em que estabelece um vínculo entre suas
pesquisas e a proposta pictórica do Futurismo, Bragaglia não deixa de lembrar
aos artistas que o efeito óptico era insuficiente na composição de um quadro.
Se caberia ao pintor realizar a síntese do “preciso conhecimento analítico da
essência completa daquele efeito e de suas causas”, não poderia, porém, deixar de
levar em conta aqueles “precisos e quase invisíveis elementos analíticos, ainda
realistas, que só a Fotodinâmica, em seu lado científico, pode tornar manifestos”.
Acreditando que o Futurismo e a pintura movimentista em geral não poderiam
prescindir das contribuições do fotodinamismo, Bragaglia não hesita em estabelecer um paralelo com o Neo-impressionismo - que havia encontrado na obra
científica de Rood uma base segura para suas pesquisas - e em propor um verdadeiro programa aos pintores:
“O artista (...) pode, na Fotodinâmica, encontrar uma base de experiências que facilite suas pesquisas e suas intuições para uma representação
dinâmica do real; pois são indiscutíveis as sólidas e essenciais relações que ligam
o desenvolvimento de qualquer ação real com a concepção artística, por mais que
esta venha se afirmando independentemente de qualquer comparação formal com
a própria realidade. (...) Assim a luz e o movimento em geral, a luz que age sobre
os movimentos e, logo, os movimentos da luz, têm na fotodinâmica sua revelação.
Pois - em virtude do transcendentalismo do fenômeno do movimento - só com a
Fotodinâmica o pintor poderá conhecer os volumes dos movimentos particulares
e poderá analisá-los no mais ínfimo detalhe, vindo a conhecer o acréscimo de
valor estético de um corpo que se arroja, ou sua diminuição, em relação à luz e
às conseqüências da desmaterialização do movimento. Só com a Fotodinâmica
poderá o artista possuir os elementos necessários à construção de uma obra de arte
na síntese desejada” 62.
À enunciação de um programa geral segue-se a demonstração das contribuições do fotodinamismo na comprovação de fatos previstos pelos pintores
futuristas. Ao atribuir a suas pesquisas aquele lastro científico que viria consolidar as intuições dos artistas plásticos, Bragaglia entra no cerne da poética
futurista, uma vez que atinge diretamente os principais enunciados do segundo manifesto de 1910:
“Assim provamos que o movimento de fato destrói os corpos; como se vê
particularmente numa fotodinâmica feita por nós, na qual uma mão em movimento é completamente destruída a ponto de aparecer sob a forma de uma ampla
nuvem de névoa. Provamos que o gesto descolore as imagens, fato que pode ser
notado em todas as nossas obras: que consegue misturar os valores cromáticos
destas, levando-as a uma uniformidade exterior acinzentada (...) Pudemos provar
que a luz, também, destrói os corpos, descolore as imagens, fornece ao movimenFabris
69
61. CRISPOLTI, Enrico.
Storia e critica del
futurismo. Roma-Bari:
Laterza, 1986, p. 168, 346
(nota 21).
62. BRAGAGLIA.
Op. cit., p. 30-32.
63. Idem, p. 48.
64. Idem, p. 36.
65. CRISPOLTI.
Op. cit., p. 174;
BRAGAGLIA.
Op. cit., p. 13, 36.
Idem, p. 36.
66. TISDALL e
BOZZOLLA.
Op. cit., p. 141.
67. MARINETTI, F.T. “Il
teatro di variet”; “Lo splendore geometrico e meccanico e la sensibilità numerica”. In APOLLONIO
(org.). Op. cit., p. 178;
214; p. 163-166.
to a porção de branco que permite branquear a escura mistura das cores, levando-a para um cinza claro e tão mais claro quanto maior a velocidade do movimento e quanto mais viva a própria luz. Pudemos notar que o movimento,
destruindo a forma exterior dos corpos, existe apenas como pura trajetória,
impregnada somente pela essência interior do próprio objeto” 63.
Como se isso não bastasse, Bragaglia acaba defendendo não apenas a
especificidade lingüística do fotodinamismo, mas lhe confere igualmente um
caráter efetivamente futurista, por considerá-lo superior ao sistema artístico
tradicional:
“Àqueles, enfim, que acreditam que não seja necessário realizar tais
pesquisas com meios fotográficos, uma vez que existe a pintura, nós fazemos notar
como, mesmo sem fazer nenhuma concorrência à pintura e operando em campos
totalmente diferentes, os meios da ciência fotográfica são tão rápidos, fecundos e
possantes, afirmando-se muito mais futuristas e muito mais condizentes com as
exigências da vida em desenvolvimento do que os outros velhos meios de representação” 64.
Uma leitura cuidadosa do texto de Bragaglia permite detectar a
estratégia adotada por ele em sua aproximação do Futurismo. Se, sem dúvida,
se inspira em alguns textos dos pintores futuristas, é possível analisar a aproximação dessas idéias na perspectiva proposta por Crispolti. Os textos pictóricos seriam antecedentes que fornecem a base para uma elaboração teórica original, tanto que Bragaglia não só dissocia o fotodinamismo da fotografia em
sentido lato, como estabelece para suas pesquisas um campo de atuação que
teria pouco a partilhar com a pintura futurista, configurando-se, ao contrário,
como uma “arte especial e distinta em seus moderníssimos fins” 65.
A tomada de posição de Bragaglia pode ter motivado, em parte, seu
banimento do movimento de Marinetti, porque ela acabava demonstrando que
o Futurismo, apesar de exaltar a estética industrial, não havia conseguido se
libertar de todo do sistema tradicional das artes. Afirmar que o conceito de
“dinamismo plástico” não se aplicava ao fotodinamismo - como fazem os signatários do “Aviso” publicado por Lacerba - implicava não só reduzir o alcance
daquele que deveria ser um fenômeno universal, suscetível de infinitas interpretações66, mas também atribuir à linguagem fotográfica uma única possibilidade: ser um mero registro da realidade exterior.
Não faltam índices dessa leitura redutora da fotografia nos textos
teóricos dos futuristas, a começar por Marinetti, que vê nela apenas a
reprodução da vida cotidiana por um ponto de vista científico, alheio a toda
dimensão emocional. Boccioni, por sua vez, não considera que a imagem técnica seja parte integrante do sistema das artes:
“Sempre rechaçamos com repugnância e com desprezo um parentesco
mesmo distante com a fotografia, porque ela está fora da arte. A fotografia tem
valor nisso: por reproduzir e imitar objetivamente, chegou, com sua perfeição, a
libertar o artista da escravidão da reprodução exata do verdadeiro” 67.
Se estas palavras lembram de imediato o papel confiado por
70
Fabris
Baudelaire à fotografia ainda no século XIX, a tomada de posição contra
Bragaglia parece deitar raízes num outro episódio que merece ser indagado. O
Futurismo, que alcançara estatura européia em 1912, graças à exposição na
galeria Bernheim-Jeune (Paris), é severamente criticado pelos cubistas, que
consideram suas pesquisas derivações da nova pintura francesa, eivadas de elementos literários (princípio dos estados d’alma) e incapazes de resolver o problema da representação do movimento. A questão do movimento provocará,
aliás, uma série de leituras depreciativas do Futurismo, em geral associado à
experiência cinematográfica. O ataque mais violento nesse sentido parece
provir de Henri des Pruraux, que justapõe fotografia e cinema em sua diatribe:
“E é do instantâneo que derivaram grotescas afirmações como esta: Um
cavalo que trota tem vinte pares de pernas... O instantâneo e sua agravante: o
cinematógrafo que destroça a vida, sacudida num ritmo impetuoso e monótono,
seriam por acaso os dois novos clássicos, em favor dos quais os futuristas proscrevem os mestres dos museus?” 68.
Ao assumir o papel de teórico do Futurismo e ao rebater as críticas dos
franceses, Boccioni transforma a fotografia em contra-argumento, em negação
das novas pesquisas italianas. Se a fotografia se presta a fixar “as percepções das
emanações luminosas do nosso corpo”, em estrita relação com o princípio do
transcendentalismo físico, não é, porém, capaz de captar as linhas condutoras
das “continuidades de matéria” 69, o complexo jogo espacial que os artistas futuristas buscam ativamente. Cerne das pesquisas futuristas, é a problemática da
continuidade das formas no espaço o que opõe claramente Futurismo e
fotografia. Após 1912, o Futurismo distancia-se dos princípios da análise, da
decomposição, da divisão ou da repetição. Esses elementos haviam estado presentes no momento protofuturista, inclusive no próprio Boccioni em quadros
como O luto (1910), no qual a repetição diferenciada da mesma figura em
diversos lugares e em diversas posições remete à simultaneidade como espaço
psicológico da duração, para onde convergem a visão, o conhecimento e a
memória. Lista afirma que o partido serial adotado por Boccioni em O luto e A
cidade que sobe (1910) deve ser creditado a Muybridge, enquanto a superposição sintética de Marey estaria na base da segunda versão de Os adeuses
(1911). O fisiologista francês seria igualmente o inspirador de La danseuse
obsédante, de Severini (1911), caracterizado pelo uso de imagens repetidas,
mas autônomas; de Os funerais do anarquista Galli, de Carrà (1910-1911), no
qual se destaca a vibração cinética dos bastões; e de Lembranças de uma noite,
de Russolo (1911), em virtude da multiplicação das patas do cavalo70.
A partir de 1912, o dinamismo torna-se para Boccioni uma realidade
cada vez mais conceitual. Poderosas linhas-força cortam um esquema de formas contrastantes, trabalhado com uma técnica divisionista e evocadora de certas estruturações cubistas, como provam as diversas telas dedicadas à exaltação
da energia muscular: Energia (1912), Dinamismo de um ciclista (1913),
Dinamismo de um jogador de futebol (1913), Dinamismo de um corpo humano
(1913). É nesse momento que o pintor passa a se interessar pela “continuidade
Fabris
71
BOCCIONI, Umberto.
“Il dinamismo futurista e la
pittura francese”.
In APOLLONIO (org.)
Op. cit., p. 160. Para dados
ulteriores, ver: CRISPOLTI.
Op. cit., p. 163-166.
68. APOLLINAIRE,
Guillaume. Chroniques
d’art: 1902-1918. Paris:
Gallimard, 1981, p. 271279; SCHARF. Op. cit., p.
271-272; BOCCIONI. Op.
cit., p. 158-159.
69. BOCCIONI, Umberto.
“Fondamento plastico della
scultura e pittura futuriste”.
In APOLLONIO (org.).
Op. cit., p. 134-135.
70. LISTA. Op. cit., 1979,
p. 13, 24.
71. BOCCIONI, Umberto.
“Dinamismo plastico”.
In: APOLLONIO (org.).
Op. cit., p. 139.
72. BRAGAGLIA. Op. cit.,
1979, p. 25-26, 29;
TISDALL e BOZZOLLA.
Op. cit., p. 79. Os dois
autores cometem um deslize
em sua avaliação, ao
afirmarem que o fotodinamismo não pretendia
representar a trajetória de
um corpo em movimento,
indo de encontro às formulações de Bragaglia.
73. MARRA, Claudio. “Il
contributo delle avanguardie
storiche”. In ALINOVI,
Francesca e MARRA,
Claudio. La fotografia:
illusione o rivelazione?
Bolonha: Il Mulino, 1981,
p. 197-198, 201.
dinâmica como forma única” graças à simultaneidade e à interpenetração,
enfeixada na equação matemática objeto + atmosfera. O dinamismo enquanto
sucessão não pode ser representado pela repetição de elementos, mas por uma
forma-tipo que Boccioni denomina “forma única que dê a continuidade no
espaço” 71. Vários dos conceitos apresentados pelo pintor lembram o requisitório
de Bragaglia contra o instantâneo e o cinema. Entre eles não pode deixar de ser
notada uma tangência relativa à concepção espaciotemporal: o que Boccioni
denomina “continuidade das formas no espaço” tem um equivalente na idéia da
“continuidade do gesto no espaço”, com a qual Bragaglia indica a pura trajetória dos corpos desmaterializados, em devir no tempo e no espaço. Caroline
Tisdall e Angelo Bozzolla acreditam que exista uma analogia entre a proposta
de Bragaglia e a mais importante obra escultórica de Boccioni - Formas únicas
da continuidade no espaço (1913) -, cujo título seria uma transcrição quase literal do conceito fotodinâmico72.
Como explicar, à luz das considerações anteriores, a oposição de
Boccioni ao fotodinamismo? Segundo Claudio Marra, trata-se de um conflito
teórico provocado por uma concepção diferente do tempo e de seu modo de
representação. Bragaglia tem uma concepção espacializada do tempo, visto
como sucessão de momentos e lugares, cuja fonte é sobretudo William James.
A concepção de tempo do filósofo americano é, porém, mecânica, por fragmentária, o que leva Bragaglia a recorrer a Henri Bergson para justificar sua
idéia dos estados intermovimentais, graças aos quais o tempo se torna “uma
quarta dimensão no espaço”. Trata-se, no entanto, de um compromisso, não de
uma solução original. Bragaglia não leva em conta que, para “Bergson as
‘estações’ que o intelecto percebe como reais são, de fato, virtuais, não existem,
motivo pelo qual não se põe o problema de dar conta daquilo que acontece entre
uma estação e outra, posto que o fluxo temporal é contínuo e sem etapas” 73.
Embora fale numa concepção diferente do tempo, Marra não analisa
as formulações de Boccioni, limitando-se a apontar a existência de dois modelos conceituais - fragmentário e integrado. Para Boccioni, uma forma quadridimensional é uma forma-tipo que transcende as divisões artificiais no espaço e
que, por isso, confere continuidade. Trata-se - como demonstra Linda
Dalrymple Henderson - de um conceito absoluto, infinito, incomensurável, que
se opõe à quarta dimensão cubista, mensurável e finita, e que deriva da intuição, não de um procedimento racional. É provável que Boccioni tenha começado a interessar-se pelo assunto por ocasião de suas viagens a Paris em fevereiro
e novembro de 1912 e junho de 1913, quando teria entrado em contato com os
textos publicados por Apollinaire e Maurice Raynal. A interpretação que o
artista dá a esse conceito não pode ser dissociada de seu interesse pela filosofia
de Bergson, assertor da existência de uma realidade em fluxo constante, a ser
intuída por cada indivíduo no interior da duração. No Essai sur les données
immédiates de la conscience (1889), o filósofo faz referência a um “tempo
homogêneo” como uma quarta dimensão do espaço, criticando a tendência da
mente em contaminar o puro fluxo da duração através da espacialização.
72
Fabris
Boccioni concebe a quarta dimensão como uma medida fixa e absoluta que cria
dinamismo; como uma projeção contínua das forças e formas intuídas em seu
infinito desdobramento. Seu maior emblema é Formas únicas da continuidade
no espaço. Protótipo de uma “continuidade sintética” que contradiz a “descontinuidade analítica” do Balla de 1912, a escultura pode ser vista como a afirmação da existência de uma forma mais elevada da realidade concebida como
fluxo, além daquelas visões instantâneas de uma transição, que tanto desgostavam Bergson74.
Uma análise bem mais complexa das relações entre Bragaglia e
Boccioni pode ser encontrada em dois ensaios que Giovanni Lista dedica à
fotografia futurista. Boccioni é, sem dúvida, uma das fontes da proposta fotodinâmica, ao lado de Bergson, Marey e Rodin. Do escultor interessam a
Bragaglia as declarações contra a fotografia instantânea e a defesa da síntese
do gesto própria da obra de arte. As experimentações de Marey são o ponto de
partida visual do projeto fotodinâmico, que pode ser visto como uma “correção”
das imagens do fisiologista francês, uma passagem do segmentado (análise
movimentista) ao contínuo (síntese movimentada). A filosofia de Bergson
fornece a teoria estética que permite legitimar a autenticidade do fotodinamismo como fotografia do movimento. Em L’évolution créatrice (1907), Bragaglia
encontra reflexões pontuais sobre o devir e a forma e uma contestação do cinematógrafo que lhe permitem apresentar o fotodinamismo como a representação
do movimento não só em sua integridade, mas também em sua pulsão vital mais
recôndita. Boccioni, igualmente imbuído das idéias de Bergson, concebe a sensação dinâmica como uma convergência entre o fenômeno óptico e a vivência
psíquica, entre a percepção visual e a memória afetiva, o que o leva a recusar o
determinismo mecânico da cronofotografia. Em 1911, o artista apresenta o
dinamismo pictórico como um fenômeno espiritual, interessado muito mais na
tradução da impressão psíquica e sintética do que daquela óptica e analítica.
No cerne de suas considerações estão as transformações provocadas pela luz
nos corpos - fluidez, desmaterialização, pura aparência luminosa75.
O encontro entre Bragaglia e Boccioni, ocorrido provavelmente em
fevereiro de 1913, tem conseqüências imediatas. Duas fotodinâmicas executadas pelos irmãos Bragaglia nesse período - Dando um giro e O homem que
caminha - apresentam, segundo Lista, uma analogia conceitual com Os que vão
(1911), de Boccioni, uma vez que conjugam dimensão psicológica, progressão
cinética e transcorrer do tempo. Além disso, a proximidade de Bragaglia dos
postulados teóricos de Boccioni pode ser provada por um episódio paradigmático: insere em seu livro o parágrafo 25 para dar conta da tomada de posição
do amigo contra a atitude analítica de Balla. O pintor, por sua vez, apóia as
pesquisas fotodinâmicas porque vê nelas um meio para obstar a pintura cronofotográfica de Balla. Não deixa, porém, de mostrar-se cauteloso porque percebe
no trabalho dos irmãos Bragaglia um perigo para sua concepção do dinamismo
pictórico, o que explicaria o fato de Fotodinamismo futurista não ter sido publicado pela editora de Marinetti 76.
Fabris
73
74. HENDERSON, Linda
Darlymple. The fourth
dimension and noneuclidian geometry in
modern art. Princeton:
Princeton University Press,
1983, p. 110-116.
75. LISTA. Op. cit., 1979,
p. 71-72, 76; LISTA. Op.
cit., 1981-1982, p. 7, 11.
76. Idem, p. 9-10. Num
artigo publicado em 1919,
Bragaglia lembra sua aproxi-
_mação dos postulados de
Boccioni e o uso que este
fazia das pesquisas fotodinâmicas: “Nós, isto é,
meus irmãos Arturo e Carlo
e eu, desde 1912, idealizamos e realizamos a fotodinâmica que recebeu o
nome de futurista, com a
aprovação de Boccioni, além
de Marinetti, uma vez que
(...) a pesquisa técnica do
movimentismo tornava
inúteis as exercitações pictóricas que, naquele sentido,
Giacomo Balla perseguia
então com quadros, de
resto muito interessantes”.
Apud LISTA. Op. cit.,
1979, p. 71
77. LISTA. Op. cit., 19811982, p. 11.
78. LISTA. Op. cit., 1979,
p. 76, 80.
79. SOFFICI, Ardengo.
“La pittura futurista”.
In APOLLONIO (org.).
Op. cit., p. 191. Ettore
Tito era um pintor naturalista muito reputado no
começo do século XX.
80. Neste ensaio, estou
fazendo uma revisão daquilo
que eu escrevia a esse
respeito em Futurismo:
uma poética da
modernidade. São Paulo:
Perspectiva/EDUSP,
1987, p. 113-114.
Desse modo, a origem do “Aviso” de 1o de outubro deve ser buscada
justamente no perigo que Boccioni vislumbra nas pesquisas fotodinâmicas. O
ensaio de Bragaglia, ao propor a continuidade do movimento a partir do
bergsonismo, coloca em foco uma questão ainda bastante confusa para os pintores. Duas atitudes de Boccioni são um claro índice do impacto provocado por
Fotodinamismo futurista: retoma, embora sem citá-lo, algumas reflexões de
Bragaglia sobre a forma em movimento, o dinamismo e o movimento relativo;
adia a publicação do ensaio “Pittura Scultura Futuriste” para acrescentar novos
capítulos relativos à representação do movimento no Futurismo plástico77.
Mesmo chamando a atenção para esses fatos, Lista não acredita que o
“Aviso” publicado por Lacerba pretendesse condenar de fato o fotodinamismo
e, muito menos, expulsar Bragaglia do movimento. Seu objetivo era antes o de
reafirmar a especificidade do dinamismo plástico, cuja formulação ocorre após
a assimilação da sintaxe cubista. Este caracterizava-se pela procura de uma
articulação construtiva da imagem dentro da qual pudesse ocorrer o trabalho
de decomposição ou desestruturação das formas provocado pela energia cinética. Bragaglia, que não deixava de interferir na produção de suas imagens para
que elas parecessem “movimentadas”, remetia a uma fase do Futurismo - a inicial - já superada naquele momento78.
A análise de Lista acaba por recolocar em pauta a relação dos futuristas com o Cubismo, parecendo confirmar a hipótese de que a fotografia é um
instrumento na luta contra a poética transalpina. A conferência “A pintura
futurista”, proferida por Soffici na noitada florentina de dezembro de 1913,
fornece novos elementos para essa hipótese. O autor exclui qualquer parentesco
entre o dinamismo futurista e o cinema com base na oposição entre pictórico e
mecânico. O dinamismo como estilo do movimento opõe-se à estética cubista;
significa a busca daqueles valores derivados do movimento que modificam a
tendência e o caráter das linhas do objeto. Também o princípio da interpenetração dos planos não deve ser interpretado a partir da representação das coisas
em “seu aspecto fotográfico, impessoal. E, de certo, não seria gracioso ver a perna
de um peixeiro de Ettore Tito ou de qualquer outro fazedor de bibelôs entrar e
fundir-se no rosto de um gondoleiro de Rialto. Mas, se numa figura e na outra só
se tivessem levado em conta valores plásticos, o fato não pareceria tão absurdo” 79.
Embora a questão do dinamismo plástico pareça ser um motivo determinante para a tomada de posição dos pintores futuristas contra o fotodinamismo, não há dúvidas de que seus argumentos são guiados por uma concepção tradicional da fotografia, considerada reprodutora e não produtora de
imagens antes de tudo mentais. Boccioni e seus companheiros devem ter percebido que, se aceitassem a existência de uma criatividade fotográfica, deveriam
admitir que a produção de novos signos não era mais uma tarefa exclusiva das
artes plásticas. Se o que está em jogo nesse embate entre pintura e fotografia é
o princípio mimético80, não se pode dizer que ele esteja presente na proposta de
Bragaglia, vazada na trajetória do movimento em sentido bergsoniano, como
ponto de confluência entre conhecimento intelectual e imersão na duração.
74
Fabris
Em alguns de seus ensaios (Marceneiro serrando, 1911; Fotodinâmica, 1913),
os irmãos Bragaglia conseguem fundir a forma desmaterializada com a atmosfera, próximos daquela poética da simultaneidade e da interpenetração buscada por Boccioni.
Apesar de explorar uma trajetória ainda física, o fotodinamismo aponta
para a possibilidade de uma metafísica do movimento, visto não mais como fenômeno óptico e sim como realidade fenomenológica. Essência, não aparência, o
movimento assim concebido é uma prefiguração da obra de arte total ainda por vir:
“O dia em que os diferentes valores existentes em todos os nossos ensaios
puderem ser fundidos numa única obra, esta será uma grande obra de arte (...).
Saberemos, então, retratar a magnífica, intensa palpitação de uma multidão que
se alastra: ou uma competição de aeroplanos ou uma batalha. Para tanto, hoje
estudamos a monstruosa beleza de um gesto e seguimos a deformação soberba de um
objeto arremessado em corrida magnífica e aspiramos lembrar o estremecimento sensual de uma fêmea luxuriosa, e o ímpeto e o elã de um arremessador de disco vivo” 81.
O interesse pela metafísica do movimento, que levará Bragaglia a
realizar experiências com a fotografia espírita82, pode ser considerado o verdadeiro divisor de águas entre a cronofotografia e o fotodinamismo. Embora
Bragaglia evite referir-se a elas, não se pode esquecer que Marey havia realizado experiências fotodinâmicas, largamente difundidas a partir da Exposição
Universal Internacional de Paris (1900). Tratava-se de imagens que captavam
um determinado movimento repentino do corpo, cujo resultado desfocado conjugava a cinética das formas e a trajetória única do gesto no espaço83. Em termos gerais, no entanto, Marey evitava justamente aquilo que os irmãos
Bragaglia valorizavam: a superposição de imagens que poderia colocar em
xeque o objetivo analítico que animava a cronofotografia. Interessados em captar a carga emocional implícita no gesto, Anton Giulio e Arturo Bragaglia buscavam, ao contrário, a imagem movimentada, a única capaz de lembrar a realidade de modo irrealista:
“Nós, porém, não nos preocupamos tanto com a realidade exterior e interior, volumétrica quanto com o espírito da realidade viva, significação da tendência íntima do movimento e expressão da paixão molecular pelo deslocamento, no
deslocamento. (...) Queremos traduzir o que não se vê na superfície: queremos
lembrar a mais viva sensação da expressão profunda de uma realidade e procuramos, de fato, a movimentista porque é rica de magníficas, secretas profundidades e de múltiplas fontes emotivas que a tornam indizível e inapreensível” 84.
Em busca da “realidade interior das coisas”, que desmaterializa e idealiza a realidade exterior, os irmãos Bragaglia chegam a uma representação
atmosférica do movimento. A forma desmaterializada é envolvida por uma
atmosfera uniforme de cor acinzentada, por uma espécie de véu que apenas a
deixa entrever, colocando em xeque toda e qualquer definição naturalista da
realidade. Se, mais uma vez, se afirma um princípio futurista, não há, porém,
lugar para Bragaglia no movimento. Ao “Aviso” de outubro de 1913 segue-se
uma “Intimação”, publicada por Lacerba a 15 de março de 1914, na qual são
Fabris
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81. BRAGAGLIA.
Op. cit., p. 42.
82. Sobre o assunto, ver:
MENNA. Op. cit.;
CELANT, Germano.
“Futurism and the occult”.
Artforum. vol. 19, n. 5.
jan. 1981, p. 36-42;
BRAUN, Marta.
“Phantasmes des vivants et
des morts: Anton Giulio
Bragaglia et la figuration de
l’invisible”. Études
Photographiques.
n. 1. nov. 1996, p. 40-55.
83. LISTA. Op. cit.,
1979, p. 74.
84. BRAGAGLIA.
Op. cit., p. 16-17.
85. LISTA, Giovanni.
Cinema e fotografia
futurista. Milão: Skira,
2001, p. 168-169.
86. TISDALL e
BOZZOLLA.
Op. cit., p. 145-146.
estabelecidos com clareza os campos de atuação do Futurismo - poesia, pintura, música, escultura, ação feminina, arte dos rumores e antifilosofia - e seus
respectivos representantes.
A exclusão do âmbito do Futurismo não põe fim de imediato às experiências dos irmãos Bragaglia com o fotodinamismo. Uma vez que o contraste
com Boccioni concernia o movimento, as experimentações dos dois irmãos se
voltam para um outro aspecto da pintura futurista, a imagem dos “estados d’alma”, na qual são usados os procedimentos da fotografia espírita acrescidos de
sobreimpressões que lhe conferem um caráter onírico e alucinatório85. Tais
pesquisas serão abandonadas em 1914, com a eclosão da Primeira Guerra
Mundial. Na década de 1920, Arturo volta a inserir-se no movimento futurista
graças à realização de novas fotodinâmicas. Anton Giulio, por sua vez, não
abandona o interesse pela imagem, dedicando-se ao cinema, tão criticado
alguns anos antes. Realiza três filmes em 1916-1917 - Thais, Il perfido inganno e Il mio cadavere -, além do curta-metragem Dramma in Olimpo. Como essas
produções se perderam, com exceção talvez de Thais, o que se pode dizer delas
se baseia em alguns fotogramas que chegaram a ser reproduzidos e numa documentação bastante escassa. Ao que parece, Bragaglia, que contou com a
colaboração cenográfica de Prampolini, explora imagens surreais e abstratas,
constitui e dissolve formas graças ao movimento, cria poderosos contrastes
tonais, usa vários tipos de lentes e prismas para conseguir efeitos de deformação a serviço de enredos melodramáticos. Il perfido incanto foi, provavelmente, a mais experimental das três produções, chegando a ser considerada (ao
lado de Vita futurista) o primeiro filme de vanguarda, opinião não partilhada
por Caroline Tisdall e Angelo Bozzolla, que atribuem precedência a um trabalho russo de 1913 ou 1914, Um drama no cabaré dos futuristas n. 13 86.
Apesar dessa atividade, Bragaglia não será signatário do manifesto “A
cinematografia futurista” (1916), fruto, em grande parte, de uma nova geração
(Corra, Settimelli, Ginna e Chiti), que procura no cinema a obra de arte total,
a “sinfonia poliexpressiva”, para a qual deveriam concorrer um trecho de vida
real, uma mancha de cor, uma linha, as palavras em liberdade, a música
cromática e plástica, a música de objetos, antecipando em vários aspectos Dadá
e Surrealismo. Do mesmo modo, não participa do filme Vita futurista (1916),
do qual será, porém, distribuidor. Em 1918, funda a Casa de Arte Bragaglia, na
qual expõem vários futuristas, inclusive Boccioni. No Teatro dos
Independentes, inaugurado em 1923, abre novamente espaço aos antigos companheiros: confia a decoração das salas a Balla, Depero e Prampolini; hospeda
uma peça de Marinetti e sínteses futuristas.
Mais conhecido por sua ação cultural e pelo trabalho de renovação do
teatro italiano, para o qual propõe o uso de cenários não pintados, mas cromáticos e baseados numa luz psicológica, Anton Giulio Bragaglia merece ser lembrado também pela experimentação fotodinâmica, em que pesem as ressalvas e
as incompreensões dos pintores futuristas num episódio ainda hoje bastante
difícil de estudar e definir em seus contornos precisos.
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Fabris
Investigação realizada com uma bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
Annateresa Fabris é professora do Programa de Pós-Graduação em Arte da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do CNPq. Autora de várias publicações dedicadas à
arte moderna e contemporânea, das quais a mais recente é “Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico” [Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004].
Fabris
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