romaria dos mártires da caminhada romaria dos mártires da
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Povo Bororo não pode viver em terra homologada Página 4 Página 12 ISSN 0102-0625 Orçamento cresce, mas verba para demarcações diminui Minervina e Marilene Pataxó Hã Hã Hãe, mãe e irmã de Galdino, assassinado em 1997 – Foto: Priscila D. Carvalho Ano XXVII •• N00 287 •• Brasília-DF •• Agosto-2006 R$ 3,00 ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA CELEBRAÇÃO LEMBRA AQUELES QUE MORRERAM DEFENDENDO A VIDA pág. 8 e 9 Opinião Porantinadas Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas A recente decisão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas de aprovar a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas representa um fato relevante no debate internacional sobre a afirmação dos direitos dos povos indígenas. O Conselho acolheu a proposta do Grupo de Trabalho da Comissão de Direitos Humanos, que foi encarregado, em 1994, de elaborar um projeto de declaração. O texto, que deve ser submetido à apreciação da Assembléia Geral da ONU, projeta no cenário normativo internacional parâmetros que a Organização Internacional do Trabalho já consagrara na Convenção n° 169, de 1989, que foi incorporada ao nosso ordenamento jurídico, em 2004. Em seus 43 artigos, a Declaração projeta o reconhecimento mundial em relação aos direitos específicos e à diferença étnica e cultural dos povos indígenas. Ela estabelece que ao exercerem seus direitos à livre determinação, estes povos têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas aos seus assuntos internos, assim como, aos meios para financiar suas funções autônomas. Além do direito a tratamento pelos Estados como povos distintos, rejeitando quaisquer formas discriminatórias ou integracionistas, a Declaração reconhece o direito dos povos e dos indivíduos de pertencer a uma comunidade ou nação indígenas, conforme suas tradições. Os sistemas próprios nas áreas educacional, de informação, de atendimento à saúde são reconhecidos como direitos, cabendo aos Estados assegurar meios para o seu desenvolvimento. Os direitos a terra e recursos que possuam em razão de propriedade ou uso tradicional também são reconhecidos, cabendo aos Estados garantir a proteção jurídica, respeitando-se os costumes e os sistemas de posse da terra pelos povos indígenas. No que se refere às formas de relação destes povos com o Estado, o texto se destaca pela convergência com o que eles vêm reivindicando. Trata-se do direito de “participar na adoção de decisões nas questões que afetem a seus direitos, vidas e destinos, por intermédio de representantes eleitos por eles” e a previsão de que “os Estados celebrarão consultas e cooperarão de boa fé com os povos indíge- Melhor mudar de canal nas interessados, por meio de suas instituições representativas para obter seu consentimento prévio, livre e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem”, ou “antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação com o desenvolvimento, a utilização ou a exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo”. Garantias desta natureza são fundamentais como referência para a administração dos interesses desenvolvimentistas e o respeito às especificidades étnicas e culturais dos povos indígenas. A aprovação pela ONU de Declaração com este conteúdo significará importante balizamento na regulação dos direitos constitucionais no Brasil, expressos na elaboração do novo Estatuto dos Povos Indígenas, que se espera venha a ser definitivamente aprovado pelos deputados federais e senadores e promulgado pelo Presidente da República, na próxima legislatura, que resultará das eleições de outubro. Paulo Machado Guimarães e Cláudio Luiz dos Santos Beirão Advogados e Ass. Jurídicos do Cimi MARIOSAN As grandes empresas de telecomunicação pediram e o governo atendeu: o padrão da TV digital brasileira será japonês. Em troca da promessa cumprida, o presidente Lula pediu o apoio das emissoras de TV para criar um canal com uma programação que mostre o Brasil “bonito”. As emissoras cederiam produções que mostram as belezas naturais e a cultura brasileira (como costuma fazer o “Globo Repórter”) que seria transmitida internacionalmente com o intuito de limpar a imagem nacional lá fora. Dizem que Lula acha muito ruim viajar pelo exterior e ver na TV tantos problemas recorrentes em seu país, como a violência, o desrespeito ao meio ambiente e os direitos indígenas. Taí uma boa solução para os problemas do Brasil... mudar de canal! Magnata quer comprar a Amazônia Trata-se de uma piada antiga, mas de vez em quando retorna. Agora foi a vez do magnata, Johan Elliach, presidente de uma empresa sueca de materiais esportivos propor a compra da Amazônia para proteger a floresta e a natureza. A proposta, no mínimo absurda, foi apresentada em Londres em um simpósio sobre mudanças climáticas promovido por uma empresa de seguros. Johan, que já é proprietário de 160 mil hectares da floresta amazônica, acredita que com cerca 39 bilhões de reais é possível levar a floresta inteira ... a pergunta é: com ou sem seus habitantes? Devastação na Amazônia ISSN 0102-0625 Os satélites do Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam) confirmaram o que ambientalistas e indigenistas vêm denunciando insistentemente nos últimos anos: 4% (cerca de 546 Km²) das áreas de proteção ambiental da fronteira sul das florestas do estado do Amazonas foram devastadas pelos interesses econômicos predatórios. Um detalhe importante apontado pelo estudo é que as terras indígenas, que teoricamente deveriam ser protegidas pelo poder público, são as mais afetadas na região. Edição fechada em 01/08/2006 Publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). APOIADORES UNIÃO EUROPÉIA Agosto - 2006 2 Na língua da nação indígena Sateré-Mawé, PORANTIM significa remo, arma, memória. Priscila D D.. Carvalho EDITORA RP 4604/02 DF Dom Gianfranco Masserdotti PRESIDENTE CONSELHO DE RED AÇÃO REDAÇÃO Antônio C. Queiroz Benedito Prezia Egon Heck Nello Ruffaldi Paulo Guimarães Paulo Maldos Paulo Suess Paulo Maldos ASSESSOR POLÍTICO Marcy Picanço EDITORA RP 44458/SP Editoração eletrônica: Licurgo S. Botelho (61) 3349-5274 Revisão: Leda Bosi Impressão: Gráfica Teixeira (61) 3336-4040 Administração: Dadir de Jesus Costa Redação e Administração: SDS - Ed. Venâncio III, sala 310 Caixa Postal 03.679 CEP 70.084-970 - Brasília-DF Tel: (61) 2106-1650 Fax ax:: (61) 2106-1651 E-mail: [email protected] Cimi Internet Internet: www.cimi.org.br Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício de Registro Civil - Brasília Faça sua assinatura, enviando cheque ou vale postal em nome de CIMI-PORANTIM PREÇOS PREÇOS: Ass. anual: R$ 40,00 Ass. de apoio: R$ 60,00 América latina: US$ 25,00 Outros PPaíses: aíses: US$ 40,00 Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores. Conjuntura A transformação do cidadão em consumidor Enquanto o país mantém prioridades de estado mínimo e reduz investimentos sociais, movimentos enfrentam ideologia individualista que dificulta mobilização, mas seguem tentando crescer Ivo Lesbaupin (* ) Sociólogo competência. E este é só um dos muitos exemplos. O desemprego desestrutura uma das bases da organização dos trabalhadores, os sindicatos. Para sobreviver, as pessoas têm de trabalhar muito mais (tanto os empregados como, sobretudo, os desempregados) e, com isso, o tempo para a mobilização parece escassear. Também as motivações para a luta diminuem, pois elas vinham da crença de que os seres são sujeitos de direitos, que podem lutar unidos pela dignidade. Se não há mais direito, ou se direito é privilégio, lutar em nome de quê? O que fazer se querer salário melhor é provocar o aumento da inflação? Na ideologia neoliberal, esta situação é apresentada como inevitável, como conseqüência do progresso, da globalização: esconde-se que ela é produzida pelo ser humano, que é injusta. O mundo vem sendo transformado drasticamente nos últimos 25 anos pela hegemonia das políticas neoliberais, que se materializam na redução dos investimentos sociais, no foco dos governos em priorizar o pagamento de dívidas mantendo juros altos, além da política de privatizações. Em paralelo, ocorre a globalização neoliberal, pela qual os países do Terceiro Mundo são explorados pelos do Primeiro, e também pelas multinacionais, que quebram a indústria e a produção nacionais. Resultados visíveis dessas políticas têm sido o desemprego estrutural, massivo, e, conseqüentemente, a precarização do emprego. Diminui o número de trabalhadores com carteira assinada. Há 20 anos, no Brasil, chegamos a ter 60% dos trabalhadores registrados; hoje, mais da metade dos trabalhadores está no emprego informal. Quem consegue trabalhar submete-se a baixos salários, pouca proteção social e jornada de trabalho prolongada. Voltam a ocorrer situações que nos fazem lembrar o início do capitalismo: trabalho escravo, exploração de crianças, tráfico de mulheres, de crianças, migração de trabalhadores da Ásia para a Inglaterra, da América Latina para os EUA, da África para a Europa. No Brasil Aqui, depois da ascensão dos movimentos sociais entre o fim dos anos 70 e a década de 80, vimos o triunfo do neoliberalismo e sua hegemonia durante os anos 90. Depois de anos enfrentando com dificuldade o governo Fernando Henrique Cardoso, a esquerda finalmente conseguiu derrotá-lo, graças a um discurso coerente e de mudança. O novo governo, no entanto, deu continuidade às políticas econômicas da era FHC. Os movimentos sociais ficaram perdidos durante o primeiro ano do governo Lula. Divididos em setores (funcionalismo público X trabalhadores do setor privado), divididos quanto à postura face ao governo (“governo em disputa” x “nosso governo”), divididos sobre como agir no PT (“enfrentar o governo” ou “se submeter”?). O governo Lula conseguiu dividir os movimentos sociais. Quando fazem críticas, os movimentos são acusados de “fazer o papel da direita”. É uma das táticas A política neoliberal veio acompanhada pela difusão de uma nova ideologia. A base moral que sustentava a sociedade – direitos humanos, sociais, trabalhistas, dignidade da pessoa humana – foi sendo desmontada. Tudo se reduz ao indivíduo. Cada um deve trabalhar para obter saúde, educação, moradia. O ser humano não é mais sujeito de direitos, é consumidor; não há serviços públicos, mas bens a serem comprados. O Estado nada deve fazer, porque qualquer ação de proteção social será tachada de “paternalismo”. Por que isto afeta os movimentos sociais? Os novos valores não produzem união, solidariedade, consenso. Ao contrário, a ideologia individualista afasta a possibilidade de atuação coletiva. Se antes a pobreza era fruto do trabalho malremunerado, hoje ela é vista como fruto da incompetência individual. Como conseqüência, a riqueza está atrelada à terra indígena Raposa Serra do Sol, embora com modificações. Estas vitórias só foram conseguidas graças a uma ampla mobilização - do próprio movimento e dos seus apoiadores: alguns parlamentares, setores da sociedade civil, da universidade, parte da Igreja Católica, movimentos de trabalhadores rurais. Foi somente a articulação de muitos movimentos e de muitos setores da sociedade que conseguiu, até o momento, barrar algumas das investidas do governo para atender aos interesses dos grandes. Alguns objetivos, no entanto, até agora não foram alcançados: a realização da reforma agrária, a ruptura com o agronegócio, a realização de uma auditoria da dívida externa, a mudança da política econômica. No confronto entre movimento social e governo, este último costuma usar os seguintes meios para enfraquecer o movimento: dificultar a articulação do próprio movimento, dificultar a comunicação do movimento com o conjunto da sociedade, dificultar o acesso aos meios de comunicação, enquanto os grandes meios seguem difundindo a ideologia individualista e divulgando uma imagem negativa dos movimentos (“destruidores da propriedade”). Já os movimentos, para alcançar seus objetivos, precisam reforçar a consciência de seus membros, fortalecendo a crença na legitimidade de sua luta por direitos. Precisam criar consenso junto à sociedade em torno de sua luta, o que exige comunicação (dar visibilidade a suas idéias e a seus argumentos). Um movimento, sozinho, pouco consegue: ele precisa manter e aumentar a articulação com outros movimentos e ganhar o apoio de outros setores da sociedade, para aumentar a sua força e incidência. ( ) * Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Membro da coordenação da ONG Iser Assessoria. Foto: Arquivo Cimi As “novas” idéias da “nova” sociedade para manter o apoio a um governo que é, de fato, de direita. E, mesmo se o governo não consegue convencer a todos, consegue reduzir a intensidade da luta. Os últimos três anos e meio foram anos de contenção dos movimentos. E a tática da cooptação também funcionou muito, através da oferta de benefícios, de cargos. Como resultado, vivemos no Brasil um momento em que existe mobilização, mas, de modo geral, ela está em baixa. Alguns setores mantiveram e até ampliaram sua mobilização como, por exemplo, o movimento indígena. Outros setores se dividiram: houve um racha nos movimentos sindical e ecológico, por exemplo. Com baixa mobilização é difícil se fazer ouvir. Assim, o governo conseguiu aprovar leis contrárias aos interesses dos trabalhadores, como a liberação dos transgênicos, a Lei de Falências, o leilão anual das áreas de exploração do petróleo. E o governo está preparando para 2007 a reforma trabalhista, para flexibilizar a proteção dos trabalhadores. No entanto, apesar das condições adversas, a mobilização social conseguiu barrar, até agora, o projeto de autonomia do Banco Central. A partir da greve de fome de D. Luiz Cappio, conseguiu obrigar ao debate e interromper, ao menos temporariamente, o projeto de transposição do rio São Francisco. Obteve a homologação da 3 Agosto - 2006 Política Indigenista Orçamento indigenista cresce, mas dinheiro para demarcações diminui Priscila D. Carvalho Repórter A análise das ações específicas para os povos indígenas no orçamento brasileiro entre os anos 2000 e 2005 conclui que houve aumento no gasto da administração pública estatal, mas diminuíram os recursos destinados à regularização fundiária e à proteção dos territórios indígenas. Este tipo de investimento é considerado “estratégico para a sustentabilidade social e econômica desses povos” pelo autor da análise, o pesquisador Ricardo Verdum, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Em valores reais, isto é, atualizados pela inflação, o orçamento indigenista aumentou 138%. Foi de R$ 144,75 milhões em 2000 para R$ 345,46 milhões em 2005 (ver tabela). O período avaliado engloba os últimos três anos do mandato do ex-presidente FHC e os três primeiros anos do governo Lula. Ao longo dos seis anos, a pesquisa constata que as políticas indigenistas foram sendo distribuídas por diversos ministérios e que isso resultou na “fragmentação e falta de coordenação das ações”. A análise aponta também que a participação indígena na gestão das políticas públicas não passou das intenções. “Falta uma instância que articule políticas, que dê diretrizes gerais. Esta é a idéia de propostas como a da criação do Conselho Nacional de Política Indigenista. E falta incluir indígenas na formulação de programas, definir se teremos uma reedição da velha política integracionista, agora aliada a um discurso de inclusão social, ou se é algo novo, voltado para a autonomia das comunidades em definirem as políticas voltadas para elas”, afirmou Verdum em entrevista ao Porantim. No sentido oposto ao aumento dos gastos totais, o estudo constata a diminuição do gasto com demarcação de terras indígenas desde 2002. O maior investimento ocorreu em 2001, quando foram gastos R$ 67,138 milhões, 151% a mais do que no ano anterior. Daí para frente, os valores caíram de R$ 53,323 milhões, em 2002 para R$ 42,49 milhões em 2005. No orçamento de 2006, essa tendência se mantém, pois estão previstos R$ 42,081 milhões para o mesmo conjunto de ações. “Houve, neste caso, uma sensível diminuição nos investimentos e no ritmo dos trabalhos, o que certamente deve estar re- Publicado no Jornal do Inesc Verba aumentou 138% entre 2000 e 2005, mas o valor destinado a demarcações decaiu a partir de 2002. Do total do orçamento dos últimos seis anos, 64,5% foram gastos com saúde lacionado com os compromissos do governo federal com os chamados setores estratégicos para a geração de superávits primários – particularmente, o capital investido no agronegócio –, a ponto de desacelerar e até paralisar a demarcação das terras indígenas”, diz a publicação, de junho de 2006. Do total de investimentos, que soma cerca de R$ 1,5 bilhões, 64,5% (R$ 1,036 bilhões) foram gastos com ações de prevenção, controle e recuperação da saúde indígena, de responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Em relação à saúde, a análise da aplicação do orçamento termina com questionamentos: “Considerando as constantes invasões indígenas às sedes da Funasa nos estados; as denúncias de uso político da máquina administrativa e de desvio de recursos; as greves de funcionários; os problemas de relacionamento envolvendo técnicos contratados e indígenas; a persistência de situações graves de saúde, como os casos dos Guarani e dos Xavante, e o agravamento dos problemas de saúde entre os Yanomami, se faz urgente avaliar o que está gerando tudo isso, apesar do aumento dos recursos financeiros alocados no orçamento”. Crédito e apoio técnico à produção ainda são demanda Agosto - 2006 4 O estudo indica, nos últimos seis anos, que aumentaram os gastos com suporte a projetos de geração de alternativas econômicas para a população indígena, mas avalia que os resultados práticos ainda estão “aquém das expectativas”. “No Ministério do Meio Ambiente, o PDPI (Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas) ficou praticamente parado ao longo dos três primeiros anos do governo Lula, em meio à crise que decorre da falta de definição sobre seu destino político e administrativo, da burocratização do processo orçamentário interno do Ministério e da perda de prestígio junto ao movimento indígena da Amazônia. O projeto Carteira Indígena, que conta com recursos do Ministério do Desenvolvimento Social para apoiar pequenos projetos de organizações indígenas, também sofreu com cortes de recursos e vem tendo dificuldades de superar a ainda incipiente capacidade de monitorar e assessorar os projetos apoia- dos”, analisa Verdum na análise publicada pelo Inesc. Funcionando desde 2001, o PDPI duraria até 2006, mas será prorrogado para permitir que a verba do projeto que ainda não foi aplicada – quase dois terços do total – possa ser utilizada. Ainda restam R$ 24 milhões para aplicação em projetos. Mudanças positivas Entre as mudanças ocorridas durante o governo Lula, Ricardo Verdum avaliou como positiva a expansão das ações do Ministério do Meio Ambiente para além da região Amazônica e o aumento da atuação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). O MDA tem, desde 2004, um programa de assistência técnica à produção voltado para indígenas, um programa de Promoção da Igualdade de Raça, Gênero e Etnia e ações em todas as suas secretarias que não têm verbas específicas para indígenas, mas que também atendem a esta população. Segundo Renata Leite, assessora do Programa de Promoção de Igualdade de Gênero, Raça e Etnia, os recursos do ministério gastos com apoio a projetos voltados para áreas como recuperação de áreas degradadas, gestão e controle territorial, manejo ambiental e de recursos naturais e produção agroecológica, foram de R$ 1,16 milhões em 2004 e chegaram a R$ 2 milhões em 2005. Em 2004, os recursos foram destinados a oito projetos e, em 2005, para 11. No primeiro semestre de 2006, houve outros 12. Renata Leite destaca que cresceu o número de comunidades indígenas que apresentam propostas. Elas propuseram mais projetos em 2005 do que em 2004, quando a maioria ainda eram propostas vindas de entidades não indígenas. A assessora avalia, no entanto, que ainda há problemas na qualidade dos projetos, no foco – que não pode ser para compra de sementes, por exemplo, mas para estruturação da produção. Afirma que falta, em alguns casos, estruturação das organizações indígenas que muitas vezes não têm sequer CNPJ. Orçamento indigenista Valores atualizados pela inflação 2000 144,75 milhões 2001 251, 66 milhões 2002 258, 56 milhões 2003 248, 21 milhões 2004 208, 118 milhões 2005 345,46 milhões Gastos com demarcação de terras 2000 26,73 milhões 2001 67, 13 milhões 2002 53,32 milhões 2003 51,03 milhões 2004 47,87 milhões 2005 42,49 milhões Povos da Bahia e Pernambuco na luta por uma educação escolar de qualidade Foto: Wanderley Pessoa / MEC Educação Regulamentação da educação escolar indígena é discutida em audiência com Ministro da Educação e encontro de professores em Pernambuco Bahia para que parte desta verba fosse usada para sanar os problemas emergenciais das escolas indígenas. Para encaminhar este tema, o secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Ricardo Henriques, se reuniu com a secretária Anaci Paim um dia após a audiência. Em relação à contratação de professores, a secretária garantiu que vai tentar realizar os concursos ainda esse ano. Segundo a professora Pataxó Hã-Hã-Hãe, Margarida, que esteve na audiência, Anaci já havia prometido, no segundo semestre de 2005, que realizaria os concursos em maio de 2006, porém isto não ocorreu. Na avaliação de Haddad, uma das razões que pode dificultar a realização dos concursos é a falta de regulamentação. “A lei do concurso público é universal. Precisa de uma norma dizendo que para ser professor indígena o concurso não é universal“ completou o ministro, que garantiu elaborar uma proposta de lei que regulamente esta questão. Marcy Picanço Editora do Porantim Subsistema A criação de uma lei que regulamente os concursos específicos não atende os interesses de todo o movimento indígena, pois isto se confronta com a cultura de controle social sobre os professores, exercido por alguns povos. Para o movimento de Pernambuco, por exemplo, a efetivação de professores deve ser avaliada em conjunto com as lideranças e os contratados precisam atender ao perfil definido pelo seu povo. “A lógica do concurso publico não é a lógica dos povos indígenas em Pernambuco. O concurso é feito no nosso país por vários motivos, entre eles superar o nepotismo, medir competências. Este não é o nosso caso. Já somos professores legitimados pelas comunidades, fomos escolhidos pelo povo e atendemos o perfil do professor indígena que foi construído por cada povo, então não tem mais o que selecionar. Em nosso caso, pra que concurso?”, questiona a professora Pretinha Truká. Junto com professores de oito povos, ela participou, entre 5 e 9 de julho, do XV Encontro da Comissão de Professores Indígenas de Pernambuco (Copipe), que também debateu a questão da contratação dos professores, entre outros assuntos da política escolar indígena. Os povos de Pernambuco também têm discutido a estruturação de um subsistema específico para educação indígena, de abrangência estadual. Eles vão avançar nesse debate e levar essa questão para V Conferência Estadual de Educação Indígena, prevista para acontecer no mês de agosto com cerca de 400 participantes. Representantes dos povos do sul da Bahia exigiram de Fernando Haddad medidas para resolver a precária situação da educação escolar indígena na região Professores de PE discutiram criação de subsistema para educação indígena e participação nos espaços da Apoinme Fotos: Cimi NE A pesar das questões específicas em cada região do país, há algumas reivindicações e situações comuns em relação à educação escolar indígena. A forma de contratação dos professores e a situação deles é atualmente um dos grandes desafios para a área. Segundo dados do censo escolar de 2005, há 8 mil professores indígenas nas 2324 escolas que funcionam em terras indígenas no Brasil. Na região sul da Bahia, por exemplo, há 21 escolas públicas indígenas. Alguns dos professores foram contratados após concursos específicos, outros são efetivados de acordo com a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), outros trabalham com contratos temporários, sem direitos, como férias e 13º salário, regulamentados. Esta situação de precariedade no trabalho foi uma das questões que representantes dos povos do sul e extremo sul da Bahia (Pataxó, Pataxó Hã–Hã-Hãe e Tupinambá) apresentaram ao ministro da educação, Fernando Haddad, em uma audiência realizada em 6 de julho, em Brasília. Além dos problemas trabalhistas dos professores, a reunião discutiu soluções para a grave realidade que os povos da região vêm enfrentando em relação à educação escolar. Há escassez de professores: são 100 para cerca de 4 mil alunos, segundo Agnaldo Pataxó. Além disso, os salários giram em torno de 100 e 350 reais e, freqüentemente, atrasam. Há também falta de merenda escolar e transporte em muitas aldeias. “Temos feito tudo do ponto de vista orçamentário e pedagógico para a educação indígena. Este esforço não chegar na ponta é muito frustrante”, declarou Haddad. Ele garantiu que o problema não é falta de recursos: “Faz pouco tempo nós liberamos R$ 25 milhões para o governo da Bahia via Prodeb (Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Educação Básica)”. O ministro se comprometeu a intervir junto à Secretaria Estadual de Educação da “Acho que temos leis claras. Elas têm que ser aplicadas, pois não dá mais pra ver os nossos filhos fora da escola”, discordou Agnaldo Pataxó, integrante da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena. Na opinião dele, deveria haver um subsistema federal para educação indígena com orçamento próprio. “Esta proposta saiu da última Conferência Nacional”, reforçou. Educação avança com movimento indígena forte Outra questão central discutida no XV Encontro dos Professores Indígenas de Pernambuco foi o fortalecimento da relação do movimento de professores com a entidade que representa os povos da região Nordeste, a Apoinme. O movimento dos professores se aprofunda em temáticas pedagógicas e de gestão da educação escolar. Mas a educação está ligada a todos os outros aspectos da vida das comunidades e o movimento sabe que, para garantir qualidade de ensino, precisa de terras demarcadas e de políticas públicas que só serão criadas a partir da pressão de todo o movimento indígena. Em última análise, a estruturação da educação escolar indígena depende da existência de um movimento indígena forte. Por isso, os professores reunidos definiram que, para fortalecer a Apoinme, é preciso melhorar a comunicação entre as enti- dades e ampliar a presença de cada uma delas nos espaços de debate da outra. Para isso, sugerem que a Articulação dos Povos do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo retome o investimento na organização de encontros para discutir com profundidade questões como a relação com o Estado e temas como terra, saúde e educação, além de aumentar o conhecimento sobre os povos e o intercâmbio entre eles. 5 Agosto - 2006 Fotos: Egon Heck / Cimi MS Mato Grosso do Sul Assassinato de Dorvalino, mortes de crianças, mas também muita força, união e esperança marcaram os seis meses de acampamento Histórias e Lições de Nhanderu Marangatu Guarani acampados à beira de estrada retornam para sua terra Egon Heck / Lucia Rangel Cimi MS / Antropóloga–PUC/SP R oncam os tratores. Caem os últimos barracos ou o pouco de estrutura que sobrou de alguns. Os que manejam as máquinas talvez não saibam que essa estrutura material que estão destruindo ficará para sempre na alma desse povo. Foi meio ano de heróica resistência Guarani-Kaiowá, desde dezembro de 2005, quando foram despejados de sua terra Nhanderu Marangatu, no município de Antônio João (MS). A Kuña Aty Guasu (Assembléia das Mulheres Guarani), realizada entre 22 e 24 de junho, oficializou o retorno dos quase 500 indígenas que estavam acampados à margem da BR-384 à sua terra. Os homens com as máquinas têm pressa, pois o asfalto precisa ficar pronto. Afinal, o progresso não pode ser estagnado por alguns índios e as eleições se avizinham. Hamilton Lopes, uma das lideranças do acampamento, ao sentir a chegada das máquinas, falou: “Para onde querem que a gente vá agora? Para o segundo andar, em cima das árvores?” A conclusão do asfaltamento da estrada entre Bela Vista e Antônio João expulsou definitivamente os Guarani do acampamento onde viveram por mais de seis meses e os levou a voltar para a terra que é deles, mas que ainda está ocupada por fazendeiros. Meio ano tenso e intenso na beira da estrada Agosto - 2006 6 Sentamos com Hamilton Lopes e Léia Aquino para conversar sobre esses seis meses e alguns dias de acampamento. Foram dias marcados por muito sofrimento, mortes, poeira, frio, chuva, calor intenso sob as lonas pretas. Hamilton fez uma pequena cronologia das expectativas, promessas e fatos. “Logo que fomos despejados, no dia 15 de dezembro, se dizia que, no máximo em dois meses, o Supremo Tribunal Federal poderia julgar a ação. Passaram três meses, e nada. Deram vários prazos. A gente ficava esperando para a qualquer momento ter uma notícia favorável e voltar para nossa terra. O tempo foi passando e nada de resolver a situação. O desânimo e o cansaço foram tomando conta de alguns. Mas o grupo continuou unido e com esperança. O assassinato de Dorvalino e as mortes de algumas crianças que não agüentaram a fome doeram, mas nos fortaleceram. Recebemos muitas ameaças, mas ficamos firmes. Por fim, o pessoal criou coragem e começou a voltar para seus barracos de onde foram despejados. Não tinha outra saída. O asfalto estava chegando e a gente não tinha pra onde correr”. Nesses seis meses, o acampamento recebeu inúmeras visitas de instituições nacionais e internacionais, repórteres, comissões, curiosos, amigos e inimigos. Estiveram lá o Secretário Especial de Direitos Humanos, o presidente da Funai, representantes do governo do Mato Grosso do Sul e o prefeito de Antonio João, entre outros. Em Brasília, os Guarani falaram com Ministros do Superior Tribunal de Justiça, com parlamentares e com representantes do governo federal. Também relataram a situação em que viviam para um representante da ONU. As lições, a luta e o futuro As lições ficaram. A luta continua. A cada lua que passa, é dado um passo adiante. “Nunca mais vamos sair da nossa terra. Aprendemos muito nesses seis meses. Tivemos muito tempo para ver, pensar, conhecer o mundo e o pensamento dos não índios. Engolimos muita poeira, amassamos muito barro, passamos muito frio e sofremos com o calor. Mas a dor maior era ficar aí à toa, sem ter onde trabalhar, olhando para nossa terra aí em frente, presa, proibida. Mas não desanimamos. Recebemos muita força de nossos deuses, dos antepassados, dos nossos aliados. Nossos filhos serão guerreiros e vão ter orgulho da luta que enfrentamos”, relata Léia. Hamilton expressa a vivência dos seis meses destacando suas preocupações e expectativas: “Foi uma grande lição para todos nós. Seis meses de resistência para conseguirmos empurrar o processo judicial adiante. Precisamos nos apoiar muito e nossas lideranças mostraram muita firmeza e clareza. Pensei muitas coisas nesse tempo. A mais importante foi o sonho de liberar o Marangatu e organizar nosso trabalho de produzir os alimentos. Pensei muito nas crianças que vão viver nessa terra. Queremos preparar a casa para nossos filhos. A escola e os professores são muito importantes. Muitos jovens se enforcaram no acampamento. Teve tempo de um suicídio por mês aqui.” Léia desabafa: “Vamos sair da beira da estrada para o asfalto passar. Já estamos cansados de ser enganados e tratados como crianças. Que a Justiça faça alguma coisa. Os que mataram Marçal, Dorvalino e outros estão todos soltos. Porque estão demorando todo esse tempo para julgar o processo que nos expulsou da terra?” Hamilton, vendo os tratores escavando a estrada e refletindo todo esse tempo de desprezo e ódio que sofreram, diz: ”Se não querem nos reconhecer e dar nossa terra, nossos direitos, então que peguem essas máquinas façam um buraco bem grande e nos joguem todos lá dentro. Assim ficaremos para sempre em nossa terra”. Mas a dureza da vida não lhes roubou o sonho e a certeza de que vão construir um futuro melhor para seus filhos. Hamilton fala, com os olhos brilhando, como pensa em ajudar a organizar a produção de alimentos, fazer um desenvolvimento sustentável para dar exemplo para o município, para o Brasil e para o mundo. Léia conclui a conversa lembrando que “nós indígenas temos um coração que ama todos, não apenas nós mesmos”. “Será preciso estender essa tarja preta para lembrar tantas vidas sacrificadas para os privilégios e enriquecimento de alguns poucos” E a cruz de Dorvalino, fincada no local em que ele tombou, próximo ao portão de entrada para algumas fazendas, permanecerá para sempre no chão ou na lembrança daquela memória perigosa dos que lutaram por essa terra. Terra Guarani de Araça’í: exílio, resistência e luta Fotos: Cimi Sul Santa Catarina Enquanto o processo de regularização está parado na Funai desde janeiro, uma criança morreu em função das precárias condições em que vivem os Guarani Cleber César Buzatto Marline Dassoler Buzatto Ivan César Cima Cimi Sul E stá cada dia mais grave a situação dos Guarani do oeste de Santa Catarina que foram acolhidos, provisoriamente, há quase cinco anos, na terra Toldo Chimbangue, do povo Kaingang, no município de Chapecó. A Fundação Nacional do Índio (Funai) paralisou o processo de regularização da terra dos Guarani, desrespeitando o Decreto 1775/96. Enquanto isso, no fim de junho, uma criança morreu em função do rigor do inverno somado às precárias condições em que eles estão vivendo. Desde outubro de 2001, mais de 20 famílias de Guarani, que somam cerca de 90 pessoas, vivem sobre oito hectares da terra Toldo Chimbangue que, além de estar invadida por não-índios, ainda abriga os Kaingang que são seus ocupantes tradicionais. O espaço onde vivem os Guarani é notadamente insuficiente para a sobrevivência física e cultural destas famílias. Além disso, há a constante frustração da expectativa de retorno à terra tradicional, que ocorre em função do atraso no processo de sua demarcação. Isso tudo, somado às condições climáticas e à ineficiente assistência dos órgãos públicos, tem feito com que estas famílias continuem vivendo em condições precárias e degradantes. A aldeia fica numa região montanhosa, próxima ao poluído Rio Irani. Ela tem enfrentado tremendas dificuldades em função, por um lado, da forte umidade e do frio rigoroso durante o inverno e, por outro, da escassez de água potável nos períodos de estiagem que seguidamente têm atingido a região. Além disso, no local onde vivem há quase seis anos, os Guarani não têm condições de produzir o necessário à sua alimentação. Plantam pequenas lavouras de milho, feijão e mandioca e cultivam verduras em pequenas hortas. A produção advinda disso, no entanto, não é suficiente para se manterem. De acordo com o guarani Maximino Morais Mariano “era pra nós ficarmos aqui só pouco tempo. Aqui não dá pra plantar que chega, não tem fonte de água boa. É difícil a vida aqui”. Em função disso, apresentam grande dependência da assistência governamental. E esta tem se mostrado falha. O depoimento do cacique João Barbosa atesta esta afirmativa. Segundo ele, falta comida e, “na seca, as fontes escasseiam, chegam a secar. Aí as pessoas pegam de caneca, pela manhã, um pouquinho de água que junta durante a noite. Tem que parar as aulas por que não tem água pra nada. As crianças ficam com sede. Demora dias pra trazerem água no caminhão pipa”. Enquanto isso, o processo de regularização da terra guarani continua na dependência de encaminhamentos da Funai. O relatório antropológico, publicado em setembro de 2005, identificou e delimitou a “Terra Indígena Guarani de Araça’í”, com 2.721 hectares. Em janeiro de 2006, quando encerrou o período do contraditório, os agricultores, as prefeituras de Saudades e Cunha Porã e o governo de Santa Catarina apresentaram contestações ao relatório. Estas estão, desde então, em análise na Coordenação Geral de Identificação e Delimitação (CGDI), da Diretoria de Assuntos Fundiários (DAF) da Funai em Brasília. O prazo para conclusão de tal análise, conforme o decreto 1775/96, é de até 60 dias. No entanto, já se passaram seis meses e esta parte do processo ainda não foi concluída. Vivem, portanto, uma situação limite. Conseqüentemente, a indignação, a inquietação e a revolta têm sido potencializadas. Neste sentido, a afirmativa do rezador guarani Clementino Barbosa, 94 anos, é enfática: “Já perdemos uma criança na aldeia. Não estamos dispostos a morrer esperando”. Vinte famílias Guarani estão vivendo, provisoriamente, há quase cinco anos na terra Kaingang Toldo do Chibangue Histórico dos Guarani no oeste de Santa Catarina Desde o final do século XIX, há relatos da presença Guarani no oeste de Santa Catarina, mais precisamente na região onde, atualmente, estão localizados os municípios de Cunha Porã e Saudades. Apesar disso, as terras desta região foram consideradas “devolutas”, de propriedade do Estado. Isto serviu de justificativa para que fossem repassadas, pelo governo de Santa Catarina, a empresas particulares. Elas passaram a “povoar” a região a partir de uma visão puramente mercadológica, ou seja, com o único intuito da obtenção de lucros. Em função disso, a partir da década de 1920, período em que foi iniciada a colonização nestes municípios, os Guarani foram sendo expulsos pela empresa Colonizadora Sul Brasil, que tratou de fazer a chamada “limpeza da área”. Ou seja, ex- propriar a terra dos posseiros que ocupavam a área “objeto” da colonização. A terra “limpa” tinha maior valor comercial. Nesse procedimento, de acordo com o Sr. Fontoura de Castro “se dizia: ´compra ou te arranca´. Às vezes dava morte. Quem era de bem agarrava e saía quieto pra diante. E aquele que era bonzote ficava lá mesmo”. Feita a retirada dos “intrusos”, como a Empresa Colonizadora chamava os indígenas, a área foi sendo loteada e vendida a pequenos agricultores, na sua grande maioria descendentes de imigrantes europeus vindos do Rio Grande do Sul. Para não serem todos mortos, os Guarani atravessaram o rio Uruguai e se refugiaram na terra do povo Kaingang denominada Nonoai, no norte do Rio Grande do Sul. Ali permaneceram até julho do ano 2000, quando partiram para realização da retomada de sua terra tradicional, em Santa Catarina. Os Guarani reivindicavam a criação de um Grupo de Trabalho (GT) para identificação e delimitação da terra desde 1998, mas somente a partir dessa retomada é que a Funai constituiu o GT, em setembro de 2000. No mês seguinte, no entanto, com base numa liminar concedida por um Juiz da Justiça Federal de Chapecó, sem que fossem previamente comunicados, os Guarani foram novamente expulsos de sua terra e conduzidos compulsoriamente, mais uma vez, à terra Nonoai, pelas polícias Federal e Militar de Santa Catarina. Permaneceram naquele local até outubro de 2001, quando retornaram a Santa Catarina e foram acolhidos, provisoriamente, pelos Kaingang da terra Toldo Chimbangue. 7 Agosto - 2006 Fotos: Egon Heck, Geertje van der Pas e Priscila D. Carvalho A cada cinco anos, no mês de julho, milhares de pessoas se encontram em Ribeirão Cascalheira, no interior do Mato Grosso, para realizar uma romaria dedicada à memória daqueles que foram mortos defendendo a vida. É um encontro que celebra causas: a indígena, a de negros e negras, mulheres marginalizadas, meninos e meninas de rua, dos operários. Os participantes da caminhada renovam seu compromisso com as lutas pela Vida e pela Justiça. Mártires tornam visível injustiça vivida pelo povo no dia-a-dia N Agosto - 2006 8 Priscila D. Carvalho Repórter este ano, a Romaria dos Mártires da Caminhada ocorreu em 15 e 16 de julho, na Prelazia de São Félix do Araguaia. Este é um local importante na construção de uma Igreja Católica comprometida com a luta do povo indígena, caboclo e ribeirinho, desde a época em que o Mato Grosso começava a ser invadido pelo latifúndio incentivado pela ideologia desenvolvimentista, nos anos 70. Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), condensa o espírito da Romaria: “Cada mártir é um símbolo, um sinal, daqueles índios, posseiros, negros que foram massacrados, e que são milhões. Na América Latina se conta 80 milhões de massacrados. Esse martírio não é de cada um deles. É de todo um povo. Eles apenas tornam visível essa injustiça vivida no dia-a-dia”. Dom Tomás lembrou que um levantamento da CPT mostra que dos cerca de 1.000 assassinatos que ocorreram nos últimos 11 anos, 70 geraram processos e só foram condenados 14 posseiros e 7 mandantes. “Quando um mártir cai, é sinal de que milhares estão caindo e eles servem para dar voz aos que não têm voz. O martírio denuncia uma situação de injustiça, outros milhares foram mortos sem que ninguém se incomode”, disse Dom Tomás em entrevista. Os assassinos de Simão Bororo, Marcos Veron, Dorival Benitez, João Araújo Guajajara, Pe. Rodolfo Lunkenbein, João Bosco Penido Burnier, Vicente Cañas, Irmã Cleusa Rody Coelho ou nem chegaram a ser condenados ou continuam respondendo a processos que duram anos – e até décadas - para serem finalizados. Ao mesmo tempo, centenas de indígenas e camponeses respondem a processos criminais por fazerem retomadas de suas terras para voltar a viver nelas. Situação como esta tem sido enfrentada pelo povo Xukuru, que tem 35 lideranças respondendo a um único processo por reagirem após um atentado que matou dois jovens e feriu o cacique deste povo em 2003. Centenas de militantes de movimentos sociais vivem situações semelhantes. Fotos: Priscila D. Carvalho, Geertje van der Pas e Egon Heck Presença indígena Zezinho Bororo (foto acima), que foi baleado há 30 anos, na terra Merure, no Mato Grosso, no mesmo dia em que foram assassinados Simão Bororo e o padre Rodolfo Lunkenbein, participou da Romaria este ano. Ele contou ao Porantim uma dessas histórias de impunidade: “A Funai tinha determinado a demarcação da nossa terra. Achavam que a missão é que ficava fazendo a cabeça dos índios, mas a gente já tinha percebido que a situação não estava boa e que a nossa luta era pela terra mesmo. O Rodolfo era visado porque era diretor da Missão Salesiana. Quando a demarcação começou, no dia 15 de julho de 1976, tinha três frentes trabalhando. Eu estava na roça. O cacique avisou que tinha chegado um carro com fazendeiros que queriam parar a demarcação. Fomos para o colégio. Eles disseram que já tinham parado o trabalho de uma frente de demarcação e o Rodolfo disse que tinham que procurar a Funai, em Brasília. Quando iam sair, já estavam quase no carro, o João Mineiro, um dos cabeças, voltou e começou a falar palavrões. Percebemos que ele ia agredir o padre. Logo depois começaram os tiros. Atiraram no padre Rodolfo por trás, o tiro pegou na perna. Eu, o Simão, o Gabriel e o cacique Lourenço estávamos lá. O Gabriel foi esfaqueado. No começo, veio a Polícia. Deu processo, prenderam uns. Eles ficaram presos um tempo, depois foram soltos”. Estevão Taukane, do povo Bakairi, que também vive no Mato Grosso, foi à Romaria pela memória do padre João Bosco Penido Burnier, assassinado por causa do trabalho que desenvolvia com os Bakairi. A Romaria lembrou especialmente os 30 anos do assassinato de Burnier. “Este é um momento de reflexão, para ver onde avançamos e como proceder no relacionamento com os potenciais aliados. Refleti sobre o movimento indígena, vim buscar um pouco de ânimo, de conhecimento e de humildade. Padre João tinha conhecimento, instrução, e era muito humilde, era conselheiro. Por isso faço questão de vir quando recebo o convite”, avaliou Estevão. Os indígenas acenderam, com tochas, a fogueira na qual foram acesas as velas que romeiros carregaram pelos seis quilômetros de caminhada noturna realizada no sábado, 15 de julho, que reuniu 4 mil pessoas, segundo sua organização. Na manhã de domingo, dia 16, uma missa campestre teve a participação de Marcos Xukuru. Perguntado por Dom Pedro Casaldáliga sobre que frutos a caminhada deveria produzir, o cacique respondeu: “Cada um e cada uma deve defender um ideal e lutar pelas causas populares. E levar daqui não só a camiseta, a lembrança, mas que leve dentro do peito a força dada por Tupã e Tamaim. E que possa orar e fazer algo não apenas pelos povos indígenas, mas pelos negros, pelos sem terra. Nós povos indígenas não queremos o Brasil inteiro. Queremos apenas terra para sobreviver neste país pluriétnico e pluricultural”, disse. D. Zenilda, viúva do cacique Xicão Xucuru, assassinato em 1998, veio de Pernambuco para participar da caminhada que reuniu cerca de 4 mil pessoas A causa indígena só se salvará com união continental Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia até 2005, Dom Pedro Casaldáliga, ou simplesmente Pedro, como gosta de ser chamado, segue na sua luta para manter forte uma Igreja ao lado do povo. Aos 78 anos, ele continua vivendo na Prelazia situada na região onde vivem os povos Karaja, Xavante e Tapirapé. A entrevista que segue foi concedida antes da Romaria ao Porantim e a uma equipe de documentaristas. Como foi seu primeiro contato com os indígenas aqui na Prelazia? Foi com o povo Tapirapé, por causa das Irmãzinhas que já desde os anos 1950 estavam lá. E também com o povo Karajá, que aparecia discretamente nas ruas de São Félix. Nos quatro meses de preparação daquele curso do Cenfi [voltado para os missionários que vêm do exterior para trabalhar no Brasil] a gente começou a sentir o mundo indígena por alguma leitura, alguma palestra que nos deram. Depois, tem sido a briga, a luta diária. Criamos, entre outros muitos, o Cimi. Depois, se ampliou a visão e foi se criando consciência de Ameríndia nesse contato com os vários países da América Latina. O trabalho primeiro e fundamental do Cimi foi possibilitar encontros de chefes indígenas, que descobriram raízes, lutas, massacres comuns. E o inimigo comum. Criou entre eles solidariedade e os povos manifestam, se fazem presentes: há organizações, confederações. Há bastante intersolidariedade, até o ponto de haver consciência de Ameríndia. Digo sempre que a causa dos indígenas só se salvará se os povos se unirem continentalmente em reivindicação de terra, autonomia. Como vê a situação dos povos indígenas hoje? Infelizmente, a política indigenista deste governo é quase nula, na região do Araguaia e no Brasil. É omissa. Falta demarcar muitas áreas, muitas áreas demarcadas estão sendo invadidas. O Estatuto dos Povos Indígenas está aí esperando para ser votado, mas é melhor nem Dom Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduino e o cacique Marcos Xukuru participam de celebraçao na manhã de domingo, 16 de julho mexer, porque a bancada ruralista é perigosa, pode até estragar. Até a Constituição Federal é questionada. Todas as políticas oficiais da América Latina, ao longo dos últimos 500 anos, têm sido de integração [às sociedades nacionais], de desintegração dos povos indígenas para torná-los pobres. Brasileiros, mexicanos ou guatemaltecos pobres, negando sua identidade, sua terra, sua língua, sua cultura. Às vezes a Igreja colaborou, perseguindo religiões. Nos primeiros tempos, queimaram templos, códigos sagrados. E como está a situação dos povos indígenas que vivem na região da Prelazia? Na região, temos casos difíceis. Os Xavante da Suiá-Missu [terra Marãiwatsedé], impedidos de voltar para a sua terra. A justiça pediu três laudos antropológicos [sobre esta terra]. Já no Parque Indígena do Xingu, há uma situação de expectativa. Há 16 povos, há fazendas por perto e como não há política que dê à Funai capacidade de ser o que deveria, tudo é precário. Em outra parte, quando cheguei contavam 100 mil índios, hoje há mais de 700 mil. Os povos indígenas cresceram em número. Cresceram em consciência. Cresceram em organização. Cresceram em intersolidariedade, as várias ramas do mesmo tronco, e de povo para povo. Inclusive há setores indígenas importantes que têm consciência de Ameríndia, de todo o continente. Já não é a causa de um povo, de uma aldeia, é a causa de um mundo, o mundo indígena. Como você vê a participação popular na Romaria? A presença das pessoas anima, nesta hora em que há decepção na política, até no campo eclesial, corrupção na política. A participação do povo dá ânimo. Todo esse povo é fermento mesmo, vem das pastorais, da solidariedade. Temos percebido muita intersolidariedade, que é uma coisa de duas mãos, que vem e vai, vai e vem. 9 Agosto - 2006 Rio São Francisco Fotos: Éden Magalhães e Priscila D. Carvalho Discutir mais a transposição foi compromisso assumido pelo governo para o fim da greve de fome de Dom Luis Cáppio (segundo da esq. para dir., na foto da dir.) Encontro instaura diálogo entre governo e movimentos Sociedade civil e governo retomaram discussões em torno de um tema mais amplo - o desenvolvimento do Semi-Árido Maurício Hashizume Agência Carta Maior R eunidos em Brasília, representantes da sociedade civil e gestores governamentais participaram, entre 6 e 7 de julho, do primeiro encontro de reaproximação entre as partes, como resultado do compromisso assumido desde a suspensão da greve de fome promovida ao longo de dez dias (26 de outubro a 6 de novembro do ano passado) pelo frei Dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra, na Bahia. Pedro Bertone, coordenador do grupo de trabalho intergovernamental sobre o projeto de integração do Rio São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional – como o governo denomina o projeto de transposição -, reconhece que houve erro na forma como a questão foi colocada anteriormente. Agora, confirma o assessor, a ordem do Palácio do Planalto é a de intensificar o diálogo com base em referências mais amplas, para além da mera obra de engenharia da transposição. “A obra está integrada a outro projeto maior de desenvolvimento para a região do Semi-Árido. Sem outras ações, como a própria revitalização do Rio São Francisco, a obra deixa de ter sentido”, argumenta. Dom Cappio participou dos dois dias de conversa. Estiveram presentes, também, Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e representantes do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), de organizações como a Articulação do Semi-Árido (ASA) e de movimentos sociais com forte atuação no Nordeste. “O encontro foi bastante esperançoso. Pela primeira vez, a sociedade civil Agosto - 2006 10 está sentada ao lado do governo para dis- cutir não só a questão da obra, mas as possibilidades de ações para o povo que vive no Semi-Árido”, define Dom Cappio. Para ele, a primeira oficina – que se desdobrará em encontros posteriores com as populações das regiões envolvidas – teve o mérito da transparência. “Cada um disse o que pensa. Essa é a principal senha para se debater pontos divergentes com clareza e objetividade”, assinala, ressaltando que os acordos que surgirem da interlocução reativada ainda precisam ser cumpridos “para que não sejamos apenas instrumentalizados”. A segurança hídrica – principal justificativa do projeto de transposição - não basta, enfatiza o bispo, para atender os interesses do povo e da nação. “Lá em Barra, onde vivo, vejo de uma das janelas o rio São Francisco. Há populações miserá- veis que vivem bem próximas da água. Quem garante que essa mesma água vai garantir o desenvolvimento aos de longe se nem quem está perto é atendido?”, questiona. “Desenvolvimento é bem mais do que água”. O religioso identifica o início de um movimento importante de esclarecimento dos pontos de concordância e divergência entre os atores sociais. “Eu quero acreditar no processo. Esse primeiro encontro não foi importante apenas para o diálogo da sociedade civil com o governo. Foi importante também para o diálogo do governo com setores do próprio governo”. Foram definidos três grandes grupos de trabalho temáticos – disponibilidade hídrica, revitalização do rio São Francisco e projetos de desenvolvimento no SemiÁrido. Nesses espaços, o número de integrantes do governo e de membros da sociedade civil deve ser igual. Eles serão encaminhados pela comissão que está à frente do processo, formada por 12 representantes de entidades civis e por representantes da Casa Civil, Secretaria Geral da Presidência da República e de ministérios ligados ao tema. Entre os povos indígenas, a mobilização de resistência à obra de transposição nunca esmoreceu, relata Marcos Sabaru, do povo Tingui-Botó, de Alagoas. “Começa na Ilha de Assunção, onde vivem os Truká, e une diversos povos como os Tumbalalá, os Tingui. etc.”. Para Sabaru, o diálogo foi reaberto pelo governo por causa do calendário eleitoral: para não contrariar indígenas, pescadores, quilombolas, setores da Igreja Católica e diversos outros segmentos que são contra o projeto. “Mas também é importante ouvir as pessoas. Aqui é só conversa. Se tiver validade, tem que aparecer em atos”. Para Luiz Carlos da Silveira Fontes, coordenador do Baixo São Francisco do CBHSF e professor do Departamento de Engenharia Agronômica da Universidade Federal de Sergipe (UFS), a rodada inicial de conversas reabre espaço para questões que haviam sido perdidas: o debate sobre a gestão das águas do rio São Francisco e a definição da ordem de prioridades dos investimentos públicos. Bertone, que foi assessor da Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil, admite que o governo está disposto a recolocar na mesa as diferenças entre governo e setores contrários à transposição sobre a destinação da água do rio: uso para consumo humano ou uso econômico. O plano de gestão da Bacia do rio São Francisco, aprovado no âmbito do CBHSF depois de um processo longo de consultas públicas, não descarta em absoluto a transposição, desde que seja limitada e exclusivamente para consumo humano. “Neste primeiro momento, não houve tentativa de imposição do governo federal. Ainda não podemos, porém, antecipar o que vai dar no final”, observa Fontes. “Mas está claro que a imposição é o pior caminho. Perpetua o conflito”. Povos Puruborá e Karitiana realizam assembléias em Rondônia Foto: Cimi RO País Afora A Assembléia elaborou propostas sobre como reivindicar junto à Funai o direito pela sua terra. De acordo com a Funai, em setembro deverá ser criado um Grupo de Trabalho para a delimitação do território Puruborá. A criação é resultado da insistência das lideranças em exigir, via Ministério Público, que a Funai assumisse a responsabilidade pelo andamento do processo de demarcação da terra Puruborá. Outro ganho da luta, na avaliação da assembléia, foi o atendimento à saúde, que passou a ser feito pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa). A V Assembléia Puruborá renovou a esperança dos outros povos do estado que Eles discutiram saúde, educação, relacionamento com a Funai e a luta pela terra ntre os dias 10 e 13 de julho, cerca de 60 representantes Puruborá se reuniram na aldeia Aperoi, nas proximidades do rio Manoel Correia, município de Seringueira, Rondônia. O principal ponto de pauta foi a luta pela reconquista do território tradicional. A X Assembléia do povo Karitiana aconteceu nos dias 24 e 25 de junho na Aldeia Central, em Porto Velho, com a participação de 75 indígenas. O local da Assembléia Puruborá foi a casa da D. Emília, que comprou um pedaço da terra que era tradicionalmente ocupada por seu povo. Em 1994, ela e sua família foram expulsas pela Funai do local em que viviam, porque ele ficava na divisa da terra Uru Eu Wau Wau. Este povo encontra-se espalhado pelos municípios de Guajará-Mirim, Costa Marques, São Miguel, São Francisco, Porto Velho, Ji-Paraná e Seringueiras. Entretanto seu território tradicional fica no município de Seringueira. A população Puruborá é superior a 400 pessoas e os 10 idosos deste povo guardam a memória de quando podiam viver em seu terrritório e conhecem profundamente os limites da terra de seu povo. lutam pela revisão dos limites ou delimitação de seus territórios. O evento contou com o apoio do Cimi, a presença do Ministério Público Federal, da Secretaria Estadual de Educação, da Funai e da Funasa. Foto: Cimi Ne E Volmir Bavaresco Terezinha Dalcegio Cimi RO Histórico do povo Puruborá O Marechal Rondon contatou os Puruborá em 1919 e os deixou na região do rio Manoel Correia, aos cuidados de um encarregado do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), José Felix do Nascimento. No mesmo ano, o Marechal Rondon demarcou a terra deste povo. Em 1925, o doutor Benjamim Rondon, filho do Marechal, reabriu a demarcação. Nos anos seguintes, os Puruborá foram acometidos por epidemias que dizimaram o povo. O encarregado do SPI deixou seringueiros trabalharem dentro da área e os ajudava a explorar o trabalho dos indígenas. Karitiana Os Karitiana se reuniram na Aldeia Central, em Porto Velho. Abaixo, alguns idosos do povo Puruborá presentes à Assembléia deste povo Orlando Karitiana coordenou a Assembléia que, entre outras reivindicações, exigiu mais uma vaga no Conselho Distrital de Saúde, já que o povo Joari precisou se juntar aos Karitiana, quando restaram apenas homens entre os remanescentes. O presidente do Conselho, Aurélio Tenharim, comprometeu-se a levar esta questão para discussão. A Assembléia também requisitou a aquisição de computadores para estudantes indígenas universitários, pois atualmente há apenas duas máquinas. Osman Brasil, administrador da Funai em Porto Velho prometeu equipar uma sala com computadores exclusivos para os estudantes. Todos os participantes demonstraram grande interesse em continuar firmes na luta pela ampliação de seu território bem como reforçar a luta junto aos demais povos e movimento indígenas. A Assembléia contou com a presença de representantes do Cimi, Funai e Funasa. Povo Truká clama por justiça em ato silencioso Ato com mais de mil pessoas lembrou um ano do assassinato de Adenilson dos Santos Vieira e de seu filho Roberto Saraiva Cimi NE U ma passeata silenciosa nas ruas de Cabrobó, Pernambuco, marcou a memória do assassinato de Adenilson dos Santos Vieira e de Jorge dos Santos Barros, do povo Truká. Em 30 de junho, mais de mil pessoas carregaram faixas que expressavam saudade dos guerreiros, executados pela Polícia Militar do estado de Pernambuco um ano antes. Até agora, o inquérito para apuração das mortes ainda não foi concluído. O ato organizado pelos Truká foi um protesto contra a impunidade e contra as intimidações que continuam ocorrendo contra as lideranças deste povo. Os policiais envolvidos nos assassinatos aguardam em liberdade o desenrolar das investigações e a comunidade Truká sente-se intimidada com a proximidade deles, que seguem trabalhando em Cabrobó. Apesar do clima de tensão e desconfiança que havia na cidade, a manifestação silenciosa e pacífica calou a todos os que esperavam um ato violento ou provocativo. Na celebração que aconteceu dentro da aldeia, lideranças e familiares pediram força a Tupã. Os Truká esperam poder viver em paz e solicitam a punição aos culpados, com respeito às leis: “Eu só peço aos encantados que os assassinos sejam presos e paguem pelo mal que fizeram contra nós e contra as mães que sofrem as perdas de seus filhos”, declarou o cacique Neguinho Truká. A liderança Pretinha Truká resume o que seu povo deseja com o ato: “Esperamos que as autoridades vejam que só queremos chamar a atenção para esses fatos, e que não se repita com outras famílias, da aldeia ou da cidade, uma atrocidade igual. Não podemos nos calar diante do dragão da morte”. Foi com esse sentimento que estiveram presentes, além de indígenas Truká e de outros povos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), a Pastoral dos Pescadores (CPP) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). 11 Agosto - 2006 Povo Bororo não pode viver em terra homologada País Afora Em julho, oito famílias Bororo iniciaram um movimento para tentar recuperar esta terra e voltaram a viver em uma pequena parte dela A parte dos atuais habitantes do lugar sabia que a terra era indígena quando iniciaram suas construções. Indígenas e entidades indigenistas reivindicam a retirada dos não-índios que vivem em toda a extensão de Jarudóri e em cerca de 40% da terra Teresa Cristina, ambas de ocupação tradicional do povo Bororo. A decisão para a retirada depende da Fundação Nacional do Índio (Funai). O procurador da República Mário Lúcio Avelar afirmou que vai encaminhar à Justiça uma Ação Civil Pública pedindo a reintegração de posse da terra dos Bororo. Histórico A expulsão dos Bororo foi iniciada no início do século passado. Jarudóri faz par- te das terras demarcadas pelo Marechal Rondon, em 1912, e tinha aproximadamente de 100 mil hectares. Na década de 30, a região foi usada para a instalação de colônias agrícolas, como parte do Programa Marcha para o Oeste, e o loteamento intensificou-se a partir dos anos 60. Outras áreas foram invadidas por garimpeiros. Em 1945, o estado de Mato Grosso criou a Reserva Indígena Jarudóri, reduzindo a área demarcada por Rondon para 6 mil hectares. A terra sofreu nova redução quando foi registrada, ficando com 4.706 ha. Invasões, violência e epidemias – de tuberculose e sarampo - contribuíram para a saída de muitas das famílias Bororo que ali viviam. Fotos: Carlos Werner e Gonçalo Ochoa pesar de ter seu território demarcado desde 1945, os Bororo da terra Jarudóri, no Mato Grosso, são obrigados a viver espalhados em outras terras de seu povo, porque sua área tradicional está invadida por cerca de 2,6 mil posseiros. No fim de junho, oito famílias Bororo iniciaram um movimento para tentar recuperar esta terra, que fica no município de Poxoréu, no sul do estado. Elas estão acampadas em uma área da vila Jarudore, fundada nas terras dos Jarudóri. Os atuais moradores da vila temem perder seus imóveis, por isso há risco de conflitos. Segundo a assessoria da Procuradoria da República no Mato Grosso, boa O seminário “Povo BoeBororo: Território Tradicional e Direitos às Terras Indígenas Tereza Cristina e Jarudori” buscou sensibilizar a sociedade civil para as questões fundiárias deste povo. Participaram representantes dos Bororo, da Funai, do Ministério Público, entre outros Terras invadidas por posseiros Alagoas, Paraíba, São Paulo 1 Santa Catarina, Mato Grosso, Pernambuco 2 Tocantins, Rondônia, Paraná e Acre 3 Pará 4 Maranhão e Bahia 5 Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul 6 Roraima 18 Fonte: Cimi e Cir terra cada cada terras cada terras terras cada terras cada terras Fazendeiros ainda invadem 16% das terras homologadas ou registradas A situação vivida pelos Bororo de Jarudóri não é única no Brasil. Pelo menos 17% das 382 terras indígenas que já tiveram seu processo de demarcação concluído, isto é, que foram homologadas ou registradas, continuam invadidas por fazendeiros ou posseiros, que mantêm a posse da terra. Não fazem parte desta lista as terras invadidas apenas com intenção de roubo de recursos naturais, como o garimpo, a extração ilegal de madeira e a pesca. Se esses tipos de invasão fossem considerados, a lista seria ainda maior. São pelo menos 66 mil indígenas que, apesar de terem terras demarcadas, conAgosto - 2006 12 tinuam vivendo em permanente tensão com os invasores, que exploram as terras e contribuem também para a degradação dos territórios. As invasões têm históricos e conseqüências específicas em cada terra, mas uma característica constante, segundo a avaliação do Cimi, é a falta de vontade política para a retirada dos invasores. A situação se mostra pela falta de verbas para a retirada de invasores, pela falta de fiscalização e mesmo pela demora para aplicação de recursos já destinados para indenizações. “O procedimento que a Funai vem adotando em geral é de só indenizar os invasores depois que os pró- prios indígenas os expulsam”, afirma Saulo Feitosa, vice-presidente do Cimi. Isso prolonga os conflitos e dá margem para processos de criminalização das lideranças. A lista inclui terras localizadas em pelo menos 16 estados. O levantamento mais completo vem de Roraima, e foi realizado pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR). Lá, 18 terras registradas e homologadas são invadidas por posseiros e fazendeiros. Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul também se destacam, com seis terras cada um, seguidos por Maranhão e Bahia, com cinco terras cada. México tem de 15 a 25 milhões de indígenas O Priscila D. Carvalho Repórter Brasil não é o único país da América Latina em que dados recentes revelam a existência de uma população indígena maior do que a que costumava ser contabilizada em pesquisas mais antigas. No México, que tem 103 milhões de habitantes, os censos oficiais contavam entre 8 e 10 milhões de indígenas. Entretanto, um estudo publicado este ano pelo Instituto Nacional de Antropologia e Historia (INAH) informa que existem 15 milhões de indígenas no país. Os levantamentos no México mostram também que, dependendo da forma como se faz o censo e dos critérios utilizados, os resultados mudam – e muito. O censo oficial considera como indígenas apenas os cidadãos que falam idiomas tradicionais. Já o estudo do INAH inclui pessoas que se autodenominam indígenas sem terem, obrigatoriamente, que falar idiomas dos povos originários. Pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a autodenominação deve ser o critério para a identificação de indivíduos e grupos indígenas. Para o pesquisador que organizou a publicação, Miguel Alberto Bartolomé Bistoletti, o novo número demonstra uma realidade distinta. Estas informações podem proporcionar as bases para o desenvolvimento de políticas públicas mais coerentes para a população indígena. O estudo foi publicado no livro Visões da Diversidade: Relações Interétnicas e identidades indígenas no México atual. Segundo a organização católica que atua com os indígenas no México, o Centro Nacional de Ayuda a las Misiones Indígenas (Cenami), a população indígena do país pode chegar a 25 ou até 30 milhões de pessoas, se forem contados também os indígenas que saíram de suas áreas de origem e vivem nas cidades mexicanas, sem abandonar sua identidade cultural. Fotos: ALAI e Simone Bruno/Minga Informativa Encontro no Peru reúne líderes indígenas dos povos andinos Ameríndia O evento fundou a Coordenação Andina de Organizações indígenas e definiu suas prioridades Blanca Marcy Picanço Editora do Porantim A s lutas contra o neoliberalismo e pela autodeterminação dos povos foram duas prioridades nas discussões do primeiro Tantachawi, ou Congresso da Coordenação Andina de Organizações Indígenas, que ocorreu de 15 a 17 de julho no histórico santuário de Cusco, no Peru. O evento reuniu 500 delegados oficiais representantes dos Kichwa, Aymara, Mapuche, entre outros povos vindos da Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile e Argentina. A criação da Coordenação começou a ser pensada quatro anos atrás, a partir de intercâmbio entre os povos que vivem na Cordilheira dos Andes e da percepção de que há muitos problemas comuns que afetam a região. “Estão nos impondo um plano militar de iniciativa regional. O Plano Colômbia é para expulsar os indígenas do seu território. O Plano Dignidade, na Bolívia, é para perseguir indígenas, camponeses e cocaleros. Querem nos impor os tratados de livre comércio (TLC), a Alca, que pretende tirar nossos territórios, água e sementes”, explicou à Agência Minga Humberto Cholango, nomeado Coordenador Político da Coordenação Andina e presidente da Ecuarunari, uma das entidades que organizaram o Congresso. A Declaração de Cusco, aprovada ao fim do evento, rejeita a imposição dos TLC e dos grandes projetos que estão ingressando em terras dos povos indígenas sem o devido consentimento destes. Também propõe que “as instâncias internacionais deixem de nos invisibilizar e nos substituir, e levem em conta nossos direitos, em particular que a Comunidade Andina das Nações e o Mercosul, em todos seus processos e decisões, respeitem nossos Direitos Coletivos com a devida consulta e consentimento. Igualmente, que a Organização Mundial do Comércio (OMC) respeite nossos direitos de Territorialidade, Autonomia e patrimônio intelectual e cultural, e seu caráter coletivo e transgeneracional.” Autonomia A construção de Estados plurinacionais e sociedades interculturais é o eixo guia da Declaração de Cusco, que inicia afirmando: “Não queremos que os Estados nos dêem uma mão, mas sim, que tirem suas mãos de cima de nós”. Em entrevista ao Porantim, Menthor Sanchez, da Conaie, explica que os Estados acham perigosa a luta dos povos indígenas por autonomia, mas não questionam a atuação de empresas transnacionais: “Os governos acham que vamos querer Estados dentro dos Estados e vamos acabar com a soberania dos países. Mas, eles é que estão entregando sua soberania, quando vendem para empresas de outros países o direito de explorar os seus recursos naturais ou quando transferem um grande volume de dinheiro para outros países. Não sei que soberania é esta”. Ele afirma que os povos indígenas querem a autonomia porque são diferentes: “Por exemplo, temos uma relação com a terra diferente da que os países do ocidente têm. Não a destruímos, não a tratamos como capital”. Ele destaca que os povos lutam pelos seus territórios e para proteger os recursos naturais que têm sido ameaçados por projetos governamentais ou empresas privadas transnacionais que exploram petróleo, gás, madeira e até água. Chancoso e Um dos pontos centrais na agenda de Boaventura de atuação da Coordenação junto aos Estados Souza Santos no próximo período será a luta pelo territóparticiparam do evento que rio e pela proteção dos recursos naturais. reuniu 500 Outro ponto importante é a questão delegados de da participação no Estado. Miguel Palacin diversas organizações Quispe, líder indígena Kichwa do Peru, eleiindígenas da to primeiro Coordenador Geral da CoordeAmérica do nação Andina, explica que, em relação a Sul isto, a organização propõe uma refundação dos Estados incorporando as propostas dos povos indígenas que aparecem nos projetos políticos das organizações indígenas dos diversos países andinos. Dessa forma, se pretende alcançar um Estado Plurinacional institucionalizado e que incorpore a todos. Outro tema da agenda é a reconstituição e integração dos povos e nacionalidades indígenas. Quispe disse à agência de notícias Minga que eles acham que politicamente a integração entre os povos tende a crescer. “Assim como os Estados fazem acordos apenas com governos, nós fazemos acordos entre os povos”, explica. Nesse sentido, há a proposta de reconstruir politicamente o Tawantinsuyu (Império Inca, na língua quenchua) e ir integrando os povos vizinhos em uma agenda comum, em uma prática de modelo de desenvolvimento baseado nos próprios povos. Na agenda da Coordenação, também há o tema da participação política indígena. Quispe considera que os povos indígenas devem participar dos governos desde os níveis locais da administração até as instâncias nacionais, com uma prática participativa da democracia inclusiva, que é a demandada pelos povos. Uma das primeiras tarefas da Coordenação é a difusão da Declaração de Cusco. Em seguida, devem fazer com que todas as instâncias dos governos dos países andinos saibam que agora existe uma organização para representar os povos indígenas da região. O Congresso fundador da entidade foi organizado pela Ecuarunari, do Equador, pela Conacami, do Peru, pela Conamaq, da Bolívia, pela Onic (Colombia) e pela Citem (Chile). 13 Agosto - 2006 A VIDA DOS POVOS Os Apurinã na cidade de Lábrea Fotos: Cimi / Equipe Lábrea Vivendo na cidade há anos, eles ainda preservam sua medicina tradicional Os remédios, feitos de animais e plantas, são usados não apenas pelos Apurinã, mas por alguns moradores sem acesso a remédios industrializados Geertje van der Pás* Repórter A ndando pelas ruas da cidade de Lábrea, em bairros afastados e especialmente no centro, deparamonos a todo instante com homens, mulheres, jovens, crianças de estatura baixa, cabelos escuros e lisos e olhos amendoados. São indígenas ou descendentes diretos de vários povos que habitam as margens do Purus ou as periferias da cidade. A maioria é do povo Apurinã. Eles vêm à procura de tratamento médico, emprego, para receber algum benefício do governo como aposentadoria, bolsa escola, auxílio, família… A grande parte dos índios que procura emprego, não encontra. Muitos deles fazem carvão para vender. Outros pescam, plantam roças nas margens do rio, roçados em terra firme e tentam sustentar toda a família. Alguns vivem há muito tempo em Lábrea, há mais de 40 anos; outros, há alguns meses. Numa caminhada por um dos maiores bairros da cidade, chamado Fonte, onde há a maior concentração de indígenas, encontramos o senhor Edivar Apurinã, que vive na cidade há mais ou menos quinze anos. “Não estou satisfeito aqui, venho porque minha família está toda aqui. Mas acharia melhor se a minha família estivesse toda na aldeia, mas os filhos estão estudando, eles vão somente nas férias.”, diz Edivar Apurinã. “Tenho orgulho de ser índio e jamais escondo a minha condição. A melhor coisa é estar lá na aldeia, porque aqui na cidade não tem como a gente sobreviver. Na aldeia, nós temos tudo e é nosso.” Um outro Apurinã, chamado Juraci, ouve a discussão e complementa: “Entre a aldeia e a cidade, eu não troco um por outro, pois se na aldeia tem facilidades, como a alimentação, aqui na cidade tem facilidades pelo lado da saúde. Eu não preciso descer o rio remanAgosto - 2006 14 do, aqui tem tudo e é perto.” Porém, conversando com os índios que moram na cidade, pode-se perceber que apesar de tantos anos longe de suas aldeias, eles não esqueceram uma das atividades mais importantes que herdaram de seus antepassados: a medicina tradicional. Nas florestas, as populações podem encontrar grande parte do que precisam para sobreviver, desde os alimentos até os remédios. As ervas existentes são, na maioria, • As primeiras referências aos índios Apurinã foram dadas por algumas expedições em meados do século XIX (1852, 1861, 1862 e 1866). • Os Apurinã estão distribuídos por todo o rio Purus, nos estados de Rondônia e Amazonas. • No Amazonas, eles somam aproximadamente 3100 pessoas, vivendo em 35 terras indígenas. Em Rondônia, são 100 pessoas, todas na terra indígena Roosevelt. • Na cidade de Lábrea moram mais ou menos 300 famílias Apurinã, • Embora 80% de suas terras estejam demarcadas, continuam as invasões, principalmente por peixeiros e madeireiros. • A língua materna é Apurinã. É da família Aruak. conhecidas pelos pajés. Pela tradição herdada dos antigos, eles conseguem ajudar seu povo a se livrar de muitos tormentos. Na cidade, é muito comum a utilização dos remédios naturais, feitos de plantas e de animais, ou a procura por benzedores. É muito mais que, simplesmente, a tradição herdada dos pais e avós. Muitas vezes, é uma questão de sobrevivência, numa sociedade onde nem todos têm condições de se beneficiar da medicina ou comprar os remédios prescritos pelo médico. Em Lábrea, os Apurinã sempre falam sobre o conhecimento dos remédios tradicionais. Uma das histórias é sobre como eles se previnem contra picadas de cobra: se os pais encontram uma colméia de abelhas na mata, eles recolhem toda a colméia e passam no corpo da criança. Uma proteção para toda a vida. Rosana Apurinã fala sobre o avô dela. Ele era pajé e morava na cidade, mas já morreu. “Ele nunca deixava as doenças atingirem a gente. Quando a gente pega gripe, não é com antibiótico que a gente vai se curar. A gente faz o tratamento caseiro. Mesmo porque a gente sabe que fortalece a gente. Tem tipo de doença que a gente sabe que é pra esse tratamento de medicina branca. E tem tipo de doença que… por exemplo: um mosquito dá uma ferrada em mim. Se aquela doença passa mais ou menos um mês, a gente já sabe que é arabani. Daí que a gente sabe que tipo de doença a gente tem, e sabe que foi algum pajé que colocou. A gente sabe que a doença é causada por algum espírito quando a pessoa começa a fazer certas coisas que não são normais.” *A partir de trechos do relatório “Indios na cidade: uma nova face e um novo desafio” do missionário Hoadsom Leonardo Silva, da equipe Lábrea-AM, elaborado para o curso de formação básica do Cimi. Algumas das ervas mais usadas pelos Apurinã que vivem em Lábrea • Alfavaca, jambú, casca de jatobá, casca de uxí, óleo de andiroba, copaíba, corâma, malvavisco (malva), hortelã = para fazer xarope para curar gripe; • Casca de goiabeira e de castanheira = para fazer chá para curar diarréia; • Banha de taíra = pinga-se no ouvido para curar dor; • Banha de cobra sucuriju e de jacaré = fricciona-se no local afetado para curar reumatismo; • Chá de cupim = para curar inchaço. Resenha Impunidade Marçal Guarani – A voz que não pode ser esquecida STF dá liberdade para acusado de mandar matar Irmã Dorothy N Benedito Prezia São Paulo : Expressão Popular 96p. R$3,00 o dia 29 de junho, a primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu habeas corpus para o empresário Regivaldo Pereira Galvão. Ele estava preso e é acusado de ser um dos mandantes do assassinato da Irmã Dorothy Stang, ocorrido em Anapu, no Pará, no dia 12 de fevereiro de 2005. Galvão poderá aguardar em liberdade o julgamento. Esta decisão contrariou todas as resoluções anteriores das instâncias mais próximas do caso (no município e no estado). O relator do caso no STF, ministro Cezar Peluso, em seu voto, considerou “a prisão preventiva absolutamente ilegal”, alegando que ela não pode ser utilizada como antecipação da pena e como justificativa para a “sede de vingança coletiva”. O voto de Peluso foi acompanhado pelos ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio Melo. Votaram contra o habeas corpus, os ministros Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Brito. Em nota, a Comissão Pastoral da Terra, lembrou que esta liberdade poderá ser aproveitada para a intimidação das testemunhas de acusação. Além disso, pode significar a impunidade, porque o empresário tem condições econômicas para fugir. O estado do Pará tem uma história marcada pela impunidade em relação aos crimes ocorridos no campo. A CPT do Pará entregou ao presidente do Tribunal de Justiça do Estado uma relação de 774 assassinatos ocorridos no estado nos últimos 35 anos. Desse total, em cerca de 70% dos casos não houve qualquer apuração sobre a responsabilidade pelos crimes. Não há um mandante sequer desses crimes condenado e cumprindo pena atrás das grades. C itando o filósofo Walter Benjamin: “A história é um profeta com o olhar voltado para trás. Pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será”, o autor mostra, nessa perspectiva, seu interesse em escrever a biografia de Marçal Tupã-i, para que sua figura não ficasse esquecida. Desde as primeiras décadas do século passado, há registros do sofrimento do povo Guarani. O livro destaca a violência da qual esse povo sempre foi alvo, os seguidos assassinatos cometidos pelos “bugreiros” para “limpar a área” a fim de que as terras fossem mais facilmente ocupadas pelos fazendeiros. Por outro lado eram utilizados como mão-de-obra barata. Curt Nimuendaju, o grande pesquisador alemão, escreveu num relatório, em 1913: “(Os Guarani) constantemente são ameaçados de morte se eles tentam abandonar as fazendas onde trabalham. E que isso não é mera invenção deles ou ameaça vaga, provam os numerosos assassinatos... ... sem outro motivo como ódio ao “bicho” ou qualquer conta fantástica (contraída nos armazéns das fazendas).” Nesse contexto de violência e exploração nasceu Marçal, a 24 de dezembro de 1920, recebendo o nome de Tupã-i, o pequeno Tupã, o pequeno senhor do trovão. Acompanhamos a trajetória de Marçal, suas idas e vindas desde a vivência na cultura ocidental e a vida evangélica, quando chegou a ser pregador até sua volta às origens, o retorno à sua identidade étnica “o caminho de volta ao ser guarani”. Sentimos como sua vida foi afetada pelo golpe de 1964, quando a ditadura militar representou um reforço do poder dos fazendeiros e dos grandes grupos econômicos, época em que a questão indígena foi considerada de segurança nacional, pois mui- tas reservas ficavam em áreas estratégicas, em regiões de reserva mineral ou de fronteira. Engajado na luta pela sobrevivência de seu povo, sofreu perseguições sendo obrigado a deixar o lugar onde exercia seu trabalho de enfermeiro. Mas nunca desistiu ou se intimidou e suas mensagens eram firmes nas denúncias sobre a situação de sofrimento a que os Guarani-Kaiowá e todos os povos indígenas do Brasil estavam submetidos. Após a participação em várias assembléias indígenas, Marçal sentiu a necessidade de se criar uma organização indígena de âmbito nacional. Em junho de 1980, no Mato Grosso do Sul, foi criada a UNI, União das Nações Indígenas. Durante as reuniões para que se estruturasse essa organização, se discutiu e aprovou a ida de Marçal a Manaus para que representasse os povos indígenas no seu discurso ao Papa João Paulo II. Em outubro daquele ano, com uma voz clara e firme, diante da multidão silenciosa que se aglomerava em frente ao palácio episcopal de Manaus, Marçal fez, não um discurso de saudação, mas sim, uma denúncia da situação em que viviam os povos indígenas naquela época, sintetizando 500 anos de violência contra esses povos: “Eu sou representante da grande tribo guarani, quando, nos primórdios, com o descobrimento desta pátria, nós éramos uma grande nação. (...) Somos uma nação subjugada pelos potentes {poderosos}, uma nação espoliada, uma nação que está morrendo aos poucos sem encontrar caminho, porque aqueles que nos tomaram este chão não têm dado condições para a nossa sobrevivência. Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos territórios são diminuídos. (...) Queremos dizer a Vossa Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte dos nossos líderes assassinados friamente por aqueles que tomam o nosso chão(...)”. A publicação do Cimi “Violência contra os povos indígenas – 2003/2005”, lançada neste ano, mostra que após 27 anos do discurso de Marçal ao Papa João Paulo II, o povo Guarani-Kaiowá continua a viver sob o signo da violência – assassinatos, invasão de suas terras, morte prematura de suas crianças, despejos injustos de seus territórios, suicídios. E foi também num contexto de violência que ele foi assassinado em 1983, três anos após ter discursado para o Papa. Mas a voz e a mensagem de Marçal não foram silenciadas com sua morte. Seu ideal foi mantido por lideranças que se sucedem na luta pelo direito à terra e a uma vida digna para seu povo. Leda Bosi Sedoc Assine o Para fazer a sua assinatura, envie vale postal ou cheque nominal em favor de Cimi/Porantim: (somente por meio de carta registrada) Caixa Postal 03679 - CEP: 70.084-970 - Brasília-DF Inclua seus dados: Nome, endereço completo, telefone, fax e e-mail. Se preferir faça depósito bancário: Banco Real Ag: 0437 C/C: 7011128-1 - Cimi-Porantim. Envie cópia do depósito bancário para o fax (61) 2106-1651, especificando a finalidade do mesmo. P R E Ç O S Ass. anual: R$ 40,00 *Ass. de apoio: R$ 60,00 América Latina: US$ 25,00 Outros países: US$ 40,00 * Com a assinatura de apoio você contribui para o envio do jornal a diversas comunidades indígenas do País. Faça sua assinatura pela internet: [email protected] 15 Agosto - 2006 A REBELIÃO DE AJURICABA E ntre os muitos povos do médio Amazonas que resistiram à conquista portuguesa, destacou-se o povo Manau, que vivia na região do baixo Rio Negro. O casamento do sargento Guilherme Valente, comandante da fortaleza de São José do Rio Negro, com a filha de um importante cacique Manau, em 1675, facilitou a presença portuguesa, sobretudo o tráfico de escravos indígenas, irritando lideranças nativas que passaram a discordar dessa prática. Isso ocorreu com Ajuricaba, filho de Huiuebene, que se retirou com um grupo de guerreiros para o interior. A morte do pai, vítima de conflitos com os portugueses, causada por desacordo sobre preço desse infame comércio, motivou o retorno desse líder, que passou a liderar seu povo. APOIADORES UNIÃO EUROPÉIA Agosto - 2006 16 Articulando-se com lideranças Mayapena, povo do alto Rio Negro, Ajuricaba conseguiu fazer uma grande frente de resistência, desencadeando uma guerra em 1723, que duraria quatro anos. Fortificando suas aldeias, passaram a atacar a fortaleza do Rio Negro e algumas missões. Para isso tiveram o apoio dos holandeses, que, interessados na região, ofereceram armas de fogo, além de outras armas obtidas em confronto com os portugueses. O governador do Pará hesitava organizar uma expedição punitiva, pois não tinha certeza de vitória. Isso possibilitou uma negociação entre as partes, sugerida pelos jesuítas, que tentavam ganhar tempo e recuperar indígenas das missões, que estavam no poder dos rebelados. Selou-se um tratado de paz, havendo troca de prisioneiros: 50 indígenas das missões seriam barganhados por 50 guerreiros Manau que estavam em poder dos portugueses. De sua parte Ajuricaba se comprometia tirar a bandeira holandesa que tremulava em seu barco, que para ele seguramente não passava de um enfeite provocativo. O tratado de paz durou pouco, pois notícias vindas da região diziam que os conflitos haviam recomeçado. O governador mandou um pequeno exército, equipado até com canhão, para enfrentar os rebelados. Depois de um cerco de vários dias, a fortaleza indígena caiu sob o poderio das armas de fogo. Ajuricaba e mais 300 guerreiros foram presos, e conduzidos em barcos para Belém. No meio da viagem, houve um motim. Como diz o relato do comandante da expedição “ele [Ajuricaba] e outros homens levantaram-se na canoa, onde estavam sendo conduzidos, agrilhoados, e tentaram matar os soldados. Estes sacaram suas armas e feriram alguns deles e mataram outros. Então Ajuricaba saltou da canoa para a água, com outro chefe, e jamais apareceu vivo ou morto”. Ajuricaba, atirando-se nas águas do Amazonas, entrou para a história, como um dos heróis mais importantes da resistência indígena na Amazônia. Benedito Prezia