Folie et Amour: a representação das relações de
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Folie et Amour: a representação das relações de
Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC Folie et Amour: a representação das relações de gênero a partir da obra da renascentista Louise Labé Luiane Soares Motta1 Resumo: O presente trabalho parte da obra da renascentista Louise Labé, que viveu durante o século XVI, na cidade francesa de Lyon, para compreender como são representados o feminino e o masculino em sua narrativa. Esta autora designa à ʺFolieʺ (loucura) como uma deusa que apesar de louca é muito sábia e o ʺAmourʺ (amor) como um jovem deus audacioso e pretensioso. Dentro desta narrativa ambos se confrontam, entretanto a deusa mais velha, mostra ao rapaz, como é ela que o move, como é ela que o guia, estabelecendo, entretanto, que ambos necessitam um do outro. Dado os papéis atribuídos aos personagens e seus discursos, pretende-se perceber o entrecruzamento da sua visão de mundo e sua narrativa que estabelece conexão com o feminino e suas ações enquanto sujeito. Palavras-chave: Renascimento, gênero, literatura. E tu mulher desconhecida, se atreves a te fazer de maior que eu? Tua 2 idade, teu sexo, teu jeito de ser te mostram o suficiente . Antes de mais nada, se faz necessário colocar que o trabalho aqui apresentado, faz parte de uma pesquisa em curso, cujas reflexões devem ser percebidas como resultados de incursões ainda parciais. A pesquisa que venho produzindo, a partir da observação da obra da escritora lionesa Louise Labé, procura compreender, através da narrativa da autora, seu entorno sociocultural e desta forma observar as relações sociais entre os sexos. Assim, cabe uma breve apresentação da autora e de seu contexto. Durante o século XVI, marco temporal famoso pelas discussões quanto às artes, filosofias, ciências, conhecido como Renascimento, refletiu-se, também, acerca do papel das mulheres em relação à penetração destas nas diversas esferas (como, por exemplo, política, econômica, religiosa – ilustrada pela grande quantidade de escritos que tratam de alguma 1 Mestranda na Universidade Federal de Pelotas, bolsista FAPERGS . E-mail: [email protected] O respectivo trecho ocorreu por livre tradução de autoria própria e será, a partir de agora, apontado pelas siglas “T. A”, constando nas notas os trechos que se referem à transcrição da obra, feita a partir do original do ano de 1555, como apresentado a seguir, na fala do deus Amor: “& toy femme inconnue, oʃes tu te faire plus grande que moy? Ta ieuneʃʃe, ton ʃexe, ta façon de faire te demĕtent aʃʃez” (Louise Labé, 1555, p. 10) (T. A.). 2 1 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC forma sobre o assunto3). O que deflagrou em polêmicas sobre a competência intelectual de mulheres, cujas argumentações por vezes sugeriam a inabilidade destas para elaborar ideias que estivessem de acordo com o conhecimento considerado pertinente para a sociedade daquele momento4. Embora, como traremos em pauta aqui, seja possível enxergarmos alguns nomes, defendendo sua identidade5 e expondo suas análises sobre como poderiam se modificar as perspectivas quanto ao papel feminino (tanto na educação, quanto em outros meios) temos de levar em conta, o quanto a produção histórica, durante muito tempo, foi em alguma medida, lugar de esquecimento historiográfico em relação às mulheres (SMITH, 2003). Esses silêncios ocorridos na história, como observa o historiador Georges Duby, devem-se em alguma medida à própria ausência de fontes, que podem não só terem sido consumidas pelo tempo, como não terem tido a chance de ganhar o estatuto que a escrita possibilita6. Entretanto, é possível elencar alguns nomes que obtiveram tal privilège7: Marguerite de Navarre, Jeanne d'Aragon, Vittoria Colenna, Olympia Morata, Madeleine e Catherine des Roches, Nicole Estienne, Marie de Gournay de Jars, Pernette du Guillet, entre outras sobreviventes de um tempo não favorável. 3 Arlette Farge e Natalie Zemon Davis, em sua introdução no livro a “História das Mulheres: Do Renascimento à Idade Moderna”, levantam a questão, discorrendo sobre o que se convencionou chamar de Querella das Mulheres - ou dos sexos como explicita, também, Margaret King, em seu livro sobre as “Mulheres Renascentistas e suas buscas por espaços”. Tais passagens expressam, de forma direta ou indireta, como o tema foi amplamente debatido no final do século XVI e durante o século XVII (FARGE;DAVIS, 1991). Cabe ressaltar, é claro, que tais discussões existiram antes desses períodos, como na obra da autora Christine de Pisán e seus debates com contemporâneos, e acabaram por se manter até mais tardiamente, em produções de escritores iluministas (KING,1993). 4 Esta foi a principal, mas não a única razão de tal polêmica, como já foi dito anteriormente. Até porque, as questões sobre tais capacidades intelectuais inseriram-se juntamente com as discussões acerca da capacidade das mulheres de governarem (onde Igreja, Universidades e o próprio Estado tomavam partido de um outro discurso – como se percebe em suas leis que não permitiam direitos similares para homens e mulheres). Obviamente, como prática dominante, esses questionamentos recairiam sobre o exercício de um poder político destas sobre os homens, que lhes seriam “superiores” (KING, 1991). Assim, dentro desse universo europeu ocidental, havia, por um discurso institucionalizado, a marginalização em relação a realizações de certos ofícios, que não deveriam caber ao feminino. O que se insiste aqui, é que a visibilidade dessa rejeição, que contestava a inteligência feminina, pode ser mais bem apreendida dentro do próprio âmbito da produção intelectual, que constrói, ao mesmo tempo em que reproduz, determinados tipos de saberes em relação às mulheres da época. Como exemplo, menciono um personagem bastante enaltecido por suas discussões filosóficas, Aristóteles, que também é utilizado para justificar discursos que inferiorizam o sexo feminino, devido às suas considerações bastante negativas sobre a passividade na mulher, mesmo na reprodução, relegando-a, sem princípios empiristas quaisquer, à subordinação e sujeição à sociedade (SANTOS,1996, p.363). 5 É preciso ressaltar, que nos debates ocorridos sobre a questão das mulheres e seus papéis, teve papel importante alguns teólogos humanistas, que abriam o campo da discussão, se posicionando tanto a favor quanto contra a algumas reivindicações de espaço destas (como Cornelius Agrippa, Guillaume Postel, François Billon, entre outros). 6 Lembrando que tal ausência nem sempre foi o resultado de uma “não-expressão”, já que, como o autor citado acima ressalta, tais expressões foram dignas de enormes relatos que denunciavam a “tagarelice” como um grande “defeito” das mulheres (DUBY, 1990). Além disso, o fato de não termos algumas fontes à nossa disposição, dentre outros motivos, é também resultado de períodos em que estas produções femininas não foram consideradas interessantes para serem preservadas em acervos, visto que estes lugares, produtos de concepções e determinados valores, mantém apenas o que suas sociedades consideram como “documento digno” de conservação. 7 Faço aqui referência à autorização recebida para a publicação de livros. 2 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC O que se observa, apesar de ter-se uma desconfiança quanto à capacidade das mulheres, é que algumas foram capazes de produzir intelectualmente, dando visibilidade social a esse imenso Outro, que é, dentro da história ocidental, o feminino8. Voltando-nos à Louise Labé, podemos considerar que nela há tal visibilidade. Viveu durante muito tempo na cidade de Lyon, dos anos 1522 ou 1524 até aproximadamente 1566. Foi chamada de Belle Cordière, por ser filha de cordoeiro (tipo de comerciante que trabalha com venda de materiais como cordas e baús, podendo ser considerado como relativamente abastado, já que seus negócios referiam-se aos produtos de que necessitavam embarcações da época). Pertencendo, de certa forma, a um grupo burguês, Louise Labé apresenta-nos a característica de ter sido alfabetizada, o que já é bastante incomum para o período. Além disso, a autora é letrada, o que significa que não apenas sabia ler e escrever, como também recebera uma educação que possibilitou o conhecimento da cultura clássica, bem como, a leitura do latim e do grego (FORTUNA, 1995). Louise Labé se destaca ainda, por, como indica-nos Imaculada Kangussu, ter tido o mérito de apresentar discussões filosóficas de cunho psicológico, epistemológico e emocional9. Sua obra é modesta para nossos padrões, mas, impactante. Produziu uma narrativa sobre Débat de Folie et D'Amour (Disputa de Loucura e de Amor), três elegias, e vinte e quatro sonetos. Além disso, há considerações muito inquietantes em uma dedicatória à Clemence de Bourges, na qual expõe o porquê de sua obra, bem como, ideias sobre a educação das mulheres. Nesta análise, a obra que daremos maior atenção é a que dá título ao conjunto de seus textos, ou seja, Débat de Folie et D'Amour, na qual Labé faz reflexões sobre o alcance dos poderes e ações desses dois deuses sobre o mundo. Tal texto não traz apenas discussões de sua época sobre loucura e amor, que, é claro, apresentam importantes reflexões quanto aos limites da razão sobre a vontade e o sentimento humano. Seu discurso discorre ainda sobre sua própria época, quanto aos estereótipos que em tais personas colocam-se. 8 Defendo que a história tem de se preocupar com as diversas versões que os indivíduos produzem de suas realidades. Disto decorre que o engajamento ou preocupação social de uns não deve ocupar o lugar de elaboração de um discurso histórico “oficial”. Assim, como é de fácil entendimento que se produza história social a partir “de baixo”, como, por exemplo, utilizando fontes que “operários” produziram sobre suas lutas e negociações, torna-se crível que há importância em se produzir história a partir desse outro que é o feminino, ainda que devamos, muitas vezes, compreender e/ou lidar com o silêncio das fontes. 9 Ver: KANGUSSU, Imaculada. A Disputa de Amor e Loucura, segundo Louise Labé. Artefilosofia. Ouro Preto, n. 1, p. 5669, Julho, 2006. 3 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC Vale ressaltar, que diante da escolha desses deuses apresentados como feminino (Folie) e masculino (Amour), serve como importante consideração, a compreensão de que no francês moderno estas palavras pertenciam a um gênero designado como substantivo neutro10. Assim, a construção desses personagens, na forma que a autora propõe, que coincidirá com a classificação de gênero atual (ou seja, “a deusa loucura” e “o deus amor”), não fez parte da lógica gramatical da época. Seja por influência dos escritos do período, seja por afirmar neles certos estereótipos11, que busco aqui compreender, podemos concluir que sua construção “generificada” não foi acidental ou natural 12. Dentro de seu estilo, podemos elencar que possui influências de Platão (quanto à forma que constrói sua argumentação) e Petrarca – pelo formato dos sonetos e seus elementos de antíteses (KANGUSSU, 2006) -, onde seu texto é produzido através do diálogo entre os personagens, se assemelhando a um roteiro teatral. Esse tipo de construção possibilita a exposição de diversos elementos argumentativos, o que também permite uma criação dialética expondo, ao final, um resultado concluído “pelos personagens” (obviamente através deles)13. Dentro dos papéis atribuídos na sua narrativa, há elementos muito característicos, onde se verificam aspectos mundanos, mesmo em seu panteão de deuses. Isto é, alinha-se com o conhecimento da cultura greco-romana. Porém, suas referências delimitam papéis um tanto quanto diversos aos dois personagens principais. Em seu diálogo, nos é dado a conhecer como o deus Amor/masculino, se posiciona como tolo. Já, Loucura/feminina, que deveria pertencer, pelo senso-comum, a uma postura mais irracional, alicerça suas ações com inteligência e eficácia. Como no trecho a seguir: Loucura [diz ao Amor]: Você não tem nada além que o coração: a vida está governada por mim. Tu não sabes os meios necessários para agir. E para declarar aquilo que deverás fazer para satisfazer, eu te moverei e conduzirei: e não te servirão teus olhos, não mais que a luz a um cego. 10 Ver: CÔRREA, Roberto A. &. STEINBERG, Sary H. Gramática da Língua Francesa. 3ª Ed. e 3ª tiragem. Rio de Janeiro: FAE, 1990. P. 34 11 Estereótipo, aqui, refere-se a imagens simplificadas de objetos sociais - algo como uma caricatura. Embora, o estereótipo esteja geralmente associado a uma atitude negativa, cabe salientar que é tratado aqui como o estabelecimento de atitudes ou comportamentos padrões que determinados grupos de indivíduos incidem sobre seus elementos, tendo por base uma generalização, que, obviamente, nem sempre condiz com as especificidades das múltiplas realidades. A formação e reprodução dos estereótipos girariam em torno, então, do imaginário dos indivíduos sobre os elementos de sua sociedade. 12 Principalmente a partir dos anos 1970, com contribuições diversas de estudos realizados pela Escola Canadense de Tradução, começa-se a pensar a linguagem como lugar de influência na produção e reprodução de hábitos, em relação, inclusive, à exclusão social e política das mulheres. Percebe-se que, “através de sua escrita [da linguagem], de sua produção literária interveem no seio mesmo da instituição patriarcal, de seus símbolos e de seu imaginário, pois a língua, enquanto instituição ‘é um local de exercício de poder e o alvo de ataques de facções’”(DÉPÊCHE, 2003). 13 Aliás, através da escolha de construção do texto por diálogos (ou sermo uiuens), é possível “superar a dificuldade de se comunicar conceitualmente a experiência de limites. (...) costuma ser mais potente, dada a sua capacidade de produzir afetos, do que argumentos desencarnados. Platão que sempre colocou suas palavras em lábios alheios sabia disso” (KANGUSSU, 2006). 4 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC (...)[Narradora:] Loucura tira os olhos de Amor 14 . Na passagem acima, estabelece-se que esta personagem não se coloca de modo patético, ou infundado. Expõe argumentos que, no decorrer do texto, tornam cada vez mais consistente a ideia de que Loucura deteriora o limite rígido, e considerado nobre, entre ela e a razão. Na verdade, Kangussu, que estuda filosofia da arte e estética, aponta o quanto Labé se aproxima de Erasmo, já que expõe que ações “heroicas” têm entre seus colaboradores a Loucura. Porém, podemos discernir elementos que se diferenciam deste autor, pois Labé não só fala que Loucura move atos de heroísmo, como está presente na própria sabedoria dos indivíduos15. Ou seja, de certa forma, é possível ver que suas considerações, quanto a este personagem ou conceito, ultrapassam alguns pressupostos de Roterdã, que apresenta-nos, ao fundo, reflexões de cunho satírico e cômico. Reinterpretando: Loucura, em Erasmo, poderia ter o sinônimo de ousadia desmedida e debochada, enquanto que em Labé, aparece justamente como símbolo de força, de percepção aguçada e de eficácia. Podemos, então, formular a seguinte questão: Qu’est ce que c’est l’amour ou le Folie, afinal? E em que se diferem? Nossa compreensão contemporânea pensaria as palavras Amour e Folie, como sendo afeição, enquanto que a outra designaria demência, leviandade, em seu sentido mais agudo. O sentido dessas duas palavras, entretanto, vem sendo pensado de forma historicizada, em pesquisas mais recentes, afinal, temos consciência da própria historicidade das palavras e conceitos. Georges Duby, em seus estudos sobre a Idade Média, revela que o amor aparecia de diversas formas, porém, dá bastante ênfase ao amor cortês. Esse tipo de amor revela, para ele, um jogo, no qual a dama se posiciona no centro de uma disputa, servindo de inspiração a uma juventude masculina, urgindo, portanto, em reeducar e controlar tais jovens em direção ao ideal de contenção dos desejos carnais. Os heróis dessa literatura eram os cavaleiros, enquanto as damas poderiam ser vistas como objetos a serem conquistados, já que, ainda que obtivessem certa posição de domínio, faziam parte de um cenário, em que os verdadeiros protagonistas, eram os homens de “maior qualidade”. Dentro desse aspecto relacionado ao 14 Folie: (...) Tu n'as rien que le coeur:le demeurant eʃt gouuerné par moy. Tu ne ʃcez quel moyen faut tenir. Et pour te declarer qu'il faut faire pour com plaire, ie te meine & condui: & ne te ʃe[...]*uent tes yeus non plus que la lumiere à […]* aueugle. (…)[Narradora:] Folie tire les yeus à Amour (Louise Labé, 1555). T.A. (*) palavras que não aparecem de forma completa na impressão de 1555, substituídas por ʃeruent e un, conforme reimpressão de 1556. 15 Tu as ofensé la Royne de hommes, celle qui leur gouuerne le cerueau, coeur & ʃprit (Louise Labé, 1555; p. 19). T.A.: Tu ofendes a Rainha dos homens, aquela lhes governa o cérebro, coração e espírito. 5 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC amor, apresenta-se um jogo que distingue grupos sociais, onde esses escritos colocam seus personagens a capturarem as donzelas, não pela força, mas pelas palavras e carícias, e isso designaria as qualidades de um cavaleiro que o distanciaria de um guerreiro boçal, transformando o cavaleiro em cavalheiro (DUBY, 1989). Esse tipo de amor é uma postura diferente: ele é essencialmente um amor carnal. Já Rivair Macedo apresenta-nos, em um de seus trabalhos, a probabilidade, também referente à Idade Média, quanto ao amor possuir conotação ao mesmo tempo afetiva e jurídica “revelando tanto os sentimentos recíprocos quanto os compromissos partilhados”(MACEDO, 1999). O amor da Idade Moderna, ainda que permaneça confundido entre sexo e prazer, aparece em muitas situações como um sentimento puro, dedicado a Deus, aos filhos, aos governantes, e essa distinção enquadra o amor em um grupo mais nobre, dentro da existência humana, situando-o entre aqueles que são controlados pela razão. E essa confusão permaneceria admitindo algumas variações. Quanto a aparência do deus amor, há no período renascentista, referências numerosas de um deus cupido, que, com suas flechas, acerta os corações dos deuses e dos homens, como no Roman de la Rose, provavelmente dos escritores Guillaume de Lorris e Jean de Meun (RÉGNIER-BOHLER,2009). Essa asserção, embora nos leve a lançar a hipótese de que a base de apresentação do personagem Amour possui influência de leituras contemporâneas à nossa autora, permite-nos inferir, mais fortemente, que esta “generificação” de tal deus, não se fez ao acaso. Porém, quanto à Folie, o significado ou a percepção deste termo teria preservado algumas designações. No famoso estudo sobre a loucura, de Michel Foucault, vemos esta associada a uma espécie de doença, uma doença perigosa, que deve ser vigiada e controlada, sendo a modernidade responsável por criar lugares para a sua contensão (FOUCAULT, 1978). Contudo, Foucault ressalta que essas vozes muitas vezes malquistas, em momentos de desespero são tidas como mais sábias que a própria sabedoria. Sugerindo situações em que se pensariam estas vozes, as do louco e sua loucura, como se se posicionassem a frente de seu tempo, como que sábios oráculos, ajudando a decifrar códigos. E, embora nunca verdadeiramente inclusas, são em algum momento escutadas (FOUCAULT, 1971). Ainda sobre este tema, podemos pensar, a partir de outros estudiosos da Renascença, que a Loucura possui importantes significados sociais, como nos estudos de Danielle RégnierBohler sobre Amadas et Ydoine. Neste estudo, observamos que esta palavra está associada à 6 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC ação contra os costumes ou fuga de uma coletividade, isolamento que se realizaria sem motivação ou perigo latente, onde só um tolo cometeria tal ato contra si mesmo, ou seja, ser livre ou solitário carregava-se do mesmo signo de “louco”16. Apesar dessas designações, em Labé, Loucura é encaminhada a um diálogo extremamente articulado. Do mesmo modo, isto reflete não apenas os limites da razão, como já foi exposto, mas, também, um agir mais elaborado da mulher, levando em conta a “feminização” desta personagem, que se afirma enquanto Dama. Aliás, para tornar mais visível essa caracterização, podemos vislumbrar uma passagem em que defende-se como muito respeitável, não podendo ser sua figura passível de ultraje por jovens presunçosos: Assim se castiga os jovens e presunçosos como tu. Ah que temeridade uma criança de se endereçar a uma mulher e lhe injuriar e ultrajar com palavras: depois encaminhar-se para tentar, com mácula, mata-la 17 [grifos meus]. Como podemos ver, faz duas menções bastante significativas sobre sua posição: primeiro, contrapõe sua identidade contra a de jovens, afirmando-se enquanto mulher, que deve ser respeitada. Depois, pronuncia-se sobre o castigo aplicado, o que, note-se, sustenta a característica da mulher que trama (o estereótipo de Eva). Entretanto, impõe o caráter de que se faz independente, e que age por estar fundamentada em defesa de sua própria reputação. Ou seja, possui um saber onde articula com lógica e racionalidade suas atitudes18. Tal postura fica ainda mais explícita na citação a seguir: Folie: Deixe-me ir, não me arraste a este ponto, porque te será vergonhoso brigar gananciosamente com uma mulher. E se tu me exaltares mais uma vez, tu não obterás a melhor. (...) Folie: Tu mostras bem a tua falta de discernimento, tomando como mal o que eu te faço por brincadeira: e tu não conheces bem a ti mesmo, revelando maldade quando eu pensei que teria do melhor, se tu se dirigisses a mim. Você não vê que você é apenas um jovem garoto? De fraco tamanho que quando eu levantar um 19 braço heroicamente, se não desistires, eu vencerei . Como podemos perceber a partir da lente do Gênero, quando Folie diz ao jovem deus, a quem dirige uma contenda, que se cale e que a respeite, dá margem a se pensar a 16 Quem houvesse fugido de sua cidade, poderia ser tido como louco, já que isso resultava num perigo a si mesmo (RÉGNIER-BOHLER, 2009). 17 Folie: Ainʃi ʃe chatient les ieunes & preʃomptueus, comme toy. Quelle temerité ha (19) un enfant de ʃ’adrefʃer à une femme, & l’iniurier & outrager de paroles: puis de voye de fait tacher à la tuer.(Louise Labé, 1555, p. 18-19). T.A. 18 Principais itens que, como colocado anteriormente, geravam discussões polêmicas, sendo elencados elementos de discursos diversos, mas que visavam ordenar o feminino a um lugar inferior quanto à sua intelectualidade. 19 Folie: Laiʃʃe moy aller, ne m’arreʃte point car ce te ʃera honte de quereler auer vne femme. Et ʃi tu m’eʃchaufes vne fois, tu n’auras du meilleur. (...)Folie: Tu montres bien ton indiʃcrecion, de prendre em mal ce que ie t’ay par ieu:& te meʃconnois bien toymeʃme trouuant mauuais que ie penʃe auoir du meilleur ʃi tu t’adreʃʃ à moy. Ne vois tu pas que tu n’es qu’vn ieune garʃonneau? De ʃi foible taille que quand i’aurois um bras lié, ʃi ne te creindrois ie gueres(Louise Labé, 1555, p. 10). T.A. 7 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC posição de mulheres em relação ao lugar que ocupam numa hierarquia. Tal interação responde com certa dose de humor à questão das relações de poder entre os sexos. Se de um lado, existe uma literatura que posiciona o masculino acima do feminino, a colocação despretensiosa da autora e outros estudos contemporâneos, nos permitem pensar como essa sociedade no entorno de nossa escritora, funciona de forma menos determinante ou simplificada em relação a atribuições de papéis. O jovem, perante uma mulher de mesma classe, que em nosso texto é uma deusa, deveria calar-se, já que esta, pelas suas próprias inferências, se proclama mais velha e mais sábia que ele. É interessante pensar o contorno de ambos os personagens ao perseguir nossa análise. A visão de Amour como jovem, arrogante e cego, que merecerá a ação disciplinadora que Folie impõe a ele, pode ser percebida através de outro escrito de Labé, como características que coincidem com o que pensa sobre os homens de seu tempo. Em uma passagem de sua epístola dedicatória, Louise nos diz que os homens se equivocavam, quando privavam as mulheres de obterem acesso ao conhecimento, e que quando as mulheres a isto se dedicassem, causariam vergonha aos homens, pois estes perceberiam que elas os ultrapassariam, não passando, enfim, tal postura de mera pretensão masculina de se verem superiores (Louise Labé, 1555, p.3-4). Assim, a coincidência entre as características de Amor e estas últimas informações, não parece ocorrer de maneira tão casual. Pelo contrário, parecenos que é possível que se imbrique no deus Amour um estereótipo de sua concepção do masculino. Na verdade, ao relacionarmos os dois textos que possuem formatos diferentes, vêse que as características de ambos, misturam-se com as percepções que esta escritora tem de sua sociedade e que, embora possuam alguma dose de subjetividade, pode nos ajudar a entrever o real, já que aquilo que homens e mulheres do passado pensavam e sentiam sobre si mesmos, e seu próprio tempo, também se constituem em objeto de interesse do pesquisador. Aliás, na seguinte frase, podemos examinar melhor ainda suas expectativas: Se alguma de nós logra colocar por escrito as suas ideias, que o faça com aplicação e não desdenhe a glória, e se adorne com ela, mais do que com colares, anéis e suntuosos vestidos (...) [e] não posso fazer outra coisa senão suplicar às virtuosas Damas que elevem um pouco seus espíritos por cima de suas rocas e fusos, e se dediquem a mostrar ao mundo, que se nós não fomos feitas para combater, não devemos contudo ser desdenhadas como companheiras tanto nos negócios 20 domésticos, como nos públicos . [grifos meus] 20 FORTUNA, Felipe. Louise Labé. Editora Siciliano: SP, 1995, p.43. 8 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC Enquanto isso, em sua narrativa, apresenta na defesa de Loucura, Mercúrio, seu “advogado”, coloca-se da seguinte maneira: Aqueles que fazem casas no Céu, decifradores de signos, fazedores de caracteres, e outros semelhantes, não devem ser colocados nessa categoria [de loucos]? Essa louca curiosidade de medir o Céu, as Estrelas, os Mares, a Terra, gastar o tempo a contar, calcular, aprender mil pequenas questões que por si só são loucas; mas, no entanto, alegram o espírito, fazem-nos parecer grande e sutil, ainda que se trate de algum negócio sem importância. Eu nunca terminaria se quisesse contar quanta honra e reputação todos os dias se devem a esta Dama, da qual vós falais tão mal. 21 [grifos meus] Ou seja, somados esses dois trechos, vemos como Loucura relaciona-se com a produção do conhecimento, ainda que queiram relega-la a um lugar desonroso, parecendo mesclar tanto a concepção mais acima, de que uma Dama deve perceber na produção de conhecimento o lugar feminino e glorioso, estimulando-a à produção, como de que esta loucura, que não deve ser vista como irracional, e sim como Dama honrável, produz o conhecimento de diversas ciências. Nessas duas passagens, reconhece-se que o estereótipo de Loucura pode portar também a defesa da figura feminina na esfera intelectual, sendo ainda inspiradora e produtiva, pois, como vimos, Mércurio postula-a como Dama, a quem todos os outros devem respeito, pelos seus enormes feitos. Já no trecho abaixo, observemos como apresenta-se um determinado tipo de masculinidade da época na expressão do que seria o poder do personagem Amor: Não preciso de carroça, soldados, homens armados e grandes tropas, sem as quais os homens não triunfariam lá embaixo. (...) Eu não tenho outras armas, conselho, munição, ajuda, senão eu mesmo. Quando vejo os inimigos preparando a guerra, eu 22 me apresento com meu arco: a batalha que surge é minha vitória certa . Ou seja, a figura de Amor, atrelado às guerras e às conquistas, nos remete, semanticamente, não a uma noção de amor carnal, físico, ou ainda, transcendente, senão, à visão de um lugar essencialmente masculinizado: o campo de batalha, a guerra, o lugar do cavaleiro. Por fim, verifiquemos os valores expostos pelo deus Jupiter, realizador do banquete e juiz da contenda, ao fim da narração: Pela dificuldade e importância de vossas questões, e pela diversidade de opiniões, nós vamos adiar vosso julgamento para daqui a três vezes sete vezes nove séculos. E até lá, vos ordenamos viver amigavelmente juntos, sem vos ultrajar mutuamente. E 21 22 Ibidem, p.133-5. Ibidem, p.57. 9 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC a Loucura guiará o Amor cego, e ela o conduzirá por onde lhe parecer 23 conveniente . Como podemos observar neste trecho, o julgamento não termina, embora tenha predominado a vontade da figura Folie em conduzir o Amour. Assim, com essas sintéticas análises sobre a discussão trazida na obra de Louise Labé, busquei mostrar aqui as ideias que a autora induze-nos a formular, através de seus personagens, Amor e Loucura. Neles, parece-me, há um saber sobre a diferença sexual socialmente produzida, onde seus escritos, e mesmo a própria autora, podem vir a refletir um espaço diferenciado nesta época da querelle des sexes. 23 Ibidem, p.141-143. 10 Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC Referências Bibliográficas: DAVIS, Natalie Z. & FARGE, Arlette. Introdução. In: História das Mulheres: Do Renascimento à Idade Moderna. Vol. 3. Edições Afrontamento: Porto, 1991. DUBY, Georges. Depoimentos, Testemunhos, confissões. In: KLAPISCH-ZUBER, Christiane. 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