universidade federal do rio grande do sul
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Perambulantes Do achamento ao descobrimento dos Brasis GIANCARLA BRUNETTO Porto Alegre, maio de 2008 RESUMO A pesquisa “Perambulantes – Do achamento ao descobrimento dos Brasis” apresenta uma apreciação crítica sobre o chamado descobrimento do Brasil, a partir do qual os povos indígenas originários desse território passaram a ser escravizados e sacrificados. Este estudo pretende mostrar que ao longo destes 508 anos de história brasileira, as comunidades indígenas continuam sofrendo discriminações, e sua cultura não é compreendida pela falta de políticas públicas efetivas no combate às violações dos direitos dos povos indígenas. Outro aspecto importante na busca do descobrimento desses povos, e das originais e verdadeiras raízes da cultura brasileira, refere-se à busca do diálogo de cosmologias, e da boa vontade, na concepção kantiana, de compreensão do outro, de si e da história. Neste sentido, a pesquisa apresenta a situação do povo indígena Charrua e de sua Cacique Acuab, como protagonistas de uma história em busca do reconhecimento de seus direitos e de sua cultura.Esta história será mostrada no filme Perambulantes, a vida do povo de Acuab em Porto Alegre, um documentário que apresenta a história de vida da indígena Acuab, líder do povo Charrua do Rio Grande do Sul. O documentário será exibido em vídeo digital, com 55 minutos de duração, e apresentará os principais problemas enfrentados pelas comunidades indígenas – Charrua, Kaingang e Guarani. Também destacará as condições precárias e desumanas nas quais essas comunidades sobrevivem em um grande centro urbano como a cidade de Porto Alegre, na região sul do Brasil, onde os indígenas perambulam, sofrendo discriminações, em busca da dignidade. Palavras-chave: povos indígenas, achamento do Brasil, descobrimento do Brasil, povo Charrua, Acuab ABSTRACT The research “The Wanderers. The discovery and disclosure of Brasis” presents critical regards about the called brazilian discovery, so that since such period the native indigenous people were suffering all kinds of slavery and sacrifice. This work intends to show that during these 508 years of brazilian history, the indigenous communities remain to be suffering discrimination, due to the lack of real government assistance that respect their human rights.Other important aspect is related to the disclosure of these communities, and the original brazilian roots, based on a cosmology dialogue and the good willness, according to Kant’s conception, so this is a better way to really understand each one and all history. By following this way, this study presents the Charruas’s situation, based on the life story of an indian woman and leader called Acuab. They are the protagonists of a story in which they are looking for the recognition of their rights and culture. “The Wanderers. Acuab’s people living in Porto Alegre” is a documentary that presents the life story of an indian woman called Acuab. She is the chief of Charrua indigenous community, that lives in Porto Alegre city, and fights for the recognition of their rights and culture, as well as accomplishes for the laws application regarding to their human rights. The documentary will be played on colors and digital video, in 55 minutes, and it will show the main problems faced by the indian communities - Charrua, Kaingang and Guarani. It will also presents the precarious and inhuman conditions of their living in an urban center like Porto Alegre city, in the south region of Brazil, in which indians are wandering with no dignity, and suffering with prejudice and discrimination. Keywords: indigenous people, indigenous people, Acuab discovery of Brazil, disclosure of Brazil, Charruas’s Para Acuab, mãe guerreira, fama no coração. Ao povo de Acuab, fonte de inspiração. Aos brasis, que a história derrame justiça. A afirmação do filósofo Jean-Paul Sartre, de que “estamos condenados à liberdade”, longe de ser uma visão negativa da vida, deve ser compreendida como uma forma essencialmente humana e desafiadora de viver a própria vida. Viver pode ser uma dádiva, pode ser um fardo. Depende das escolhas que fazemos, ao longo de nossa existência, ao caminharmos a caminhada, que é pessoal, única, intransferível, em toda a sua dor e em toda a sua plenitude, do nascer ao morrer. Caminhamos, sempre. A passos largos ou curtos, deixando pegadas, rastros, pulando, e muitas vezes parando de caminhar. Fazemos pausas para procurar novos caminhos, caminhamos bem devagar para não perder nenhuma paisagem. Removendo as pedras que o poeta Carlos Drummond de Andrade sabiamente nos alertou surgirem sempre em nossos caminhos. No tinha meio do uma pedra tinha no Nunca meio do me no uma meio do vida me de caminho tinha caminho que uma desse minhas esquecerei retinas no pedra no no meio do caminho tinha uma pedra. (DRUMMOND: 1928) pedra. acontecimento tão meio fatigadas. do uma uma pedra pedra esquecerei tinha tinha tinha uma Nunca na caminho caminho pedra meio do caminho “O não direito continuará não sendo direito mesmo quando transformado em lei.” Gustav Radbruch PREAMBULANDO Por hábito e gosto pessoal, diariamente leio. É uma necessidade, uma motivação e uma fonte de inspiração e de preocupação. Inspiração, porque cada parágrafo de um artigo, cada verso de um poema, cada trecho de um conto ou de um romance, cada argumento de uma tese, cada afirmação de uma crônica e cada fala de um roteiro, são formas de expressão de idéias e sentimentos sobre as questões do ser e do estar da humanidade. São múltiplas leituras de uma realidade múltipla, subjetivas e objetivas leituras da realidade. Preocupação, porque penso que em cada manchete de jornal, cada título de pesquisa, cada pauta de reportagem, cada obituário e cada movimento no “tele-prompter” há referências sobre uma vida que surge, efervesce, esmorece, fenece. Por meio da leitura estabelecemos um relacionamento com o real e irreal, o mundo virtual, uma ligação com os fatos e suas versões, um contato com as notícias e com as suas repercussões. Esse processo ocorre cada vez mais rápido, a tecnologia possibilita que essa comunicação seja mais instantânea, efêmera e globalizada. Porém, a tecnologia não é a responsável pela construção do sentido da comunicação. Contraditoriamente, quanto mais eficazes e sofisticados os instrumentos de informação, mais complexa e remota está a comunicação entre etnias, culturas e nacionalidades diversas. As leituras são as bases críticas para interpretarmos e decifrarmos o sentido da realidade de si e dos outros. Essa base surge ainda na infância, e mesmo que não seja estimulada ou desenvolvida, está presente em todos os seres, de forma inconsciente, de forma simbólica e em seu imaginário, pela necessidade intrínseca de ser livre e de compreender o mundo. Eu ainda não sabia ler, mas já era bastante esnobe para exigir meus livros. Meu avô foi ao patife de seu editor e conseguiu de presente Os Contos do poeta Maurice Bouchor, narrativas excluídas do folclore e adaptadas ao gosto da infância por um homem que conservava, dizia ele, olhos de criança. Eu quis começar na mesma hora as cerimônias de apropriação. Peguei os dois volumezinhos, cheirei-os, apalpei-os, abri-os, negligentemente na “página certa”, fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a sensação de possuí-los. Tentei sem maior êxito tratá-los como bonecas, acalentá-los, beijá-los, surrá-los. Quase em lágrimas, acabei por depô-los sobre os joelhos de minha mãe. Ela levantou os olhos de seu trabalho: “O que queres que eu te leia, querido? As Fadas?” Perguntei, incrédulo: “As fadas estão aí dentro?.(JEAN-PAUL SARTRE, 1984, p. 33-34) Nos escritos o ser humano deixa seus vestígios, transmite sua cultura e influencia gerações. A história existe porque existe o homem, cuja existência transcende os escritos, mas graças a eles reconstitui-se a humanidade e a civilização. E posto que existimos, não há possibilidade de negarmos as conjunturas, os contextos e situações que constituem a contingência humana. Partindo da tese existencialista sartreana de que estamos condenados a ser livres, a pergunta fundamental é: o que fazer com essa liberdade? Voltando aos livros e à história, verificamos que ao longo dos séculos a humanidade encontrou diferentes maneiras de responder a essa questão, quase sempre utilizando-se de mecanismos de força, dominação, cooptação e coerção, o que já denota uma profunda contradição, pois como é possível ser livre com repressão, como ser livre com escravidão, como ser livre com o cerceamento da liberdade? A privação da liberdade de uns sustentou a liberdade de outros. Assim funcionou durante os impérios na Antigüidade, expansionistas. as monarquias absolutistas, e os mercantilismos Na modernidade, a burguesia repudiou os totalitarismos, em nome da liberdade, e também pela liberdade implantou um modelo liberal no qual o “eu” é a medida de todas as coisas, e as conseqüências do individualismo liberal se faz sentir nos tempos atuais, pós-Guerra Fria, um mundo fragmentado no qual recrudescem ações violentas, terroristas, extremistas. Um mundo, de certa forma, niilista, à deriva. Cada liberdade violada é um direito não protegido. Milhões de anônimos inocentes morreram, melhor dizendo, foram e continuam sendo mortos por causas que não representavam seus ideais, mas os propósitos das políticas de dominação econômica e religiosa, e de expansionismo territorial e ideológico. Tais estratégias de dominação deram origem a inúmeras guerras e aos regimes totalitaristas, como o fascismo, o nazismo e o comunismo. Entre esses anônimos em situação de vulnerabilidade social, que travam um embate histórico por conta das perseguições que sofrem, estão os indígenas. Habitantes nativos e primitivos das terras na América, verdadeiros descobridores do Brasil, e denominados como “índios” por um engano de rota de Cristóvão Colombo, os brasis vivem historicamente uma luta de busca pelo reconhecimento de sua identidade. Senhor, Posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer! (TRECHO DA CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA A EL REY D. MANUEL) Caracterizados em alguns escritos como silvícolas, estigmatizados como seres inferiores e incapazes, os índios descendentes dos povos sobreviventes ao colonialismo europeu e à Guerra Guaranítica, procuram reconstituir sua cosmologia, vítimas do etnocídio cultural que antigamente ocorreu através de atos de violação explícita, como escravidão, torturas, perseguições, assassinatos, expulsão das terras, e que na atualidade se manifesta por manipulações e atos de discriminação, preconceito étnico, indiferença, ignorância da cosmologia indígena, descaso com a falta de condições mínimas de dignidade para sobreviver, violação das leis de proteção aos seus direitos. As sociedades modernas criaram constituições com o objetivo de democratizar e dar efetivo reconhecimento e proteção aos direitos do homem. Mas o ideal da “paz perpétua kantiana” a que se refere Norberto Bobbio (2004) parece continuar distante da realidade, apesar da criação de leis, cartas, declarações, e da assinatura de tratados e convenções que têm em comum a finalidade de proteger os direitos humanos fundamentais: “Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo.”(NORBERTO BOBBIO, 2004, p.21) Vivemos em democracias ditas civilizadas, mas que oscilam entre a paz e a guerra, a liberdade e a dominação. Nova contradição, pois a democracia, para concretizar-se, tem que ser construída com cidadania e respeito à liberdade, sem discriminações e relações de poder e de dominação. Ralf Dahrendorf (1997) observa que a garantia da liberdade depende de nossa capacidade e esforço consciente para construir e reconstruir as instituições. Passados 508 anos do “descobrimento do Brasil”, o que se observa é, por um lado, a desfiguração da etnia e da cultura indígena, e por outro lado, o descaso e a falta de comprometimento de várias instituições com a questão indígena. Dispersos em diferentes comunidades, na luta diária pela demarcação de terras, comunicando-se em diversos idiomas e cultivando tradições específicas, os índios mantêm seus costumes ao mesmo tempo em que são tragados pela cultura não indígena, urbanizada, globalizada, do mundo neoliberal no qual estão inseridos, como seres estranhos, alheios, diferentes, exóticos, esquisitos, deslocados. Perambulantes. Analisar essas contradições, conhecer essa cultura, valorizar sua etnia, resgatar o seu legado, fazer uma leitura crítica acerca de nossos brasis, nossos índios urbanos, cidadãos do mundo, especialmente no contexto de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul onde vivem comunidades indígenas Charrua, Kaingang e Guarani: eis aqui o motivo de necessidade, motivação, fonte de inspiração e preocupação deste trabalho. PARA ONDE PERAMBULAR O fim do direito é a paz, o meio de atingi-lo , a luta. Enquanto o direito tiver de contar com as agressões partidas dos arraiais da injustiça – e isso acontecerá enquanto o mundo for mundo – não poderá prescindir da luta. A vida do direito é a luta – uma luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos. (RUDOLF VON IHERING, 1987) A pesquisa “Perambulantes, do achamento ao descobrimento dos Brasis”, objetiva fornecer subsídios teóricos para fundamentar a realização um documentário em vídeo digital, com duração estimada em 55 minutos, intitulado “Perambulantes, a vida do povo de Acuab em Porto Alegre”. O projeto do documentário foi aprovado em novembro de 2007 pelo FUMPROARTE, da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, e está em fase de produção. Estima-se que será exibido em setembro de 2008. O filme será distribuído em DVD, gratuitamente, a escolas, universidades, centros culturais e junto a comunidades indígenas. A história apresentará o encontro surreal de uma cacique Charrua, denominada Acuab, e um jornalista porto-alegrense, Norberto, em um inusitado passeio por diversos locais de Porto Alegre. Os diálogos, imagens e depoimentos reunidos reconstituirão a cosmologia indígena, e exibirão a dura realidade dos índios em Porto Alegre, em sua luta pela sobrevivência e pelo reconhecimento de sua identidade e de seus direitos. A pesquisa em questão é, pois, o preâmbulo de um debate crítico sobre o descobrimento do Brasil que não houve, e sim um achamento de um extenso território habitado pelos brasis, e uma sucessão de combates e lutas de dominação, exploração e violação dos direitos dos povos indígenas. O documentário, ao apresentar esta questão, se focalizará na atual situação indígena em Porto Alegre, a partir da história de vida da cacique Acuab, do povo Charrua do Rio Grande do Sul. Este trabalho pretende reconstituir o contexto histórico do “descobrimento” do Brasil, com o avanço do colonialismo mercantilista e a conseqüente invasão da cultura ameríndia, bem como mostrar que esse achamento desembocou na ocorrência do etnocídio cultural dos brasis, desenvolvida historicamente de múltiplas formas: aculturação, extorsão, escravidão, racismo, conversão, cooptação. Outras importantes questões a serem levantadas abordam o legado da etnia indígena e seu protagonismo na formação cultural do gaúcho, e as atuais formas de sobrevivência das comunidades indígenas Charrua, Kaingang e Guarani em Porto Alegre. A apresentação da história de vida da cacique Acuab, da comunidade indígena Charrua, e sua luta pelo reconhecimento, é o fio condutor deste trabalho, que ao longo dos capítulos identifica fatores que caracterizam os indígenas como “índios urbanos”, uma forma moderna e perversa de etnocídio cultural e de violação dos direitos indígenas. Para fundamentar essas hipóteses, o trabalho envolveu a leitura e seleção de notícias publicadas especialmente em jornais de Porto Alegre sobre a questão indígena a partir do ano de 2006, quando esta pesquisa começou a ser desenvolvida. O documentário apresentará uma reflexão crítica acerca dos objetivos propostos, acrescido por depoimentos de especialistas em áreas como direitos humanos, direito constitucional, educação, história, antropologia e psicologia, sobre temas relativos à questão indígena. POR QUE PERAMBULAR Existe uma considerável gama de produções, acadêmicas e literárias, publicadas no Brasil, que retratam aspectos históricos e antropológicos da cultura indígena, e de sua inserção no Brasil e no Rio Grande do Sul. São trabalhos de pesquisa e obras de ficção que abordam a presença indígena durante o período colonial, nas reduções jesuíticas, na Guerra Guaranítica e na Revolução Farroupilha, somente para citar alguns exemplos. Quanto à produção audiovisual, há também vários documentários, curtas e longas-metragens dedicados direta ou indiretamente à questão indígena. Filmes como “República Guarani” (1982) e “Yndio do Brasil” (1995) do cineasta Sylvio Back, e “Hans Staden” (2000) de Luiz Alberto Pereira, tematizam o universo indígena de forma crítica e original. Entretanto, existe ainda uma grande lacuna no que diz respeito à produção de obras tanto na literatura, como no campo audiovisual, que retratem não somente de forma etnográfica, mas que resgatem a história e a cosmologia indígena como constitutivas de nossa ancestralidade. A monografia e o documentário “Perambulantes” propõem a reconstituição da etnia indígena e uma reflexão crítica sobre a situação dos indígenas em Porto Alegre, onde vivem comunidades Kaingang (no Morro do Osso e na Lomba do Pinheiro), Guarani (na Lomba do Pinheiro) e Charrua (no Morro da Cruz e na Vila Nova), invisibilizadas na sociedade portoalegrense, e em luta histórica pela garantia de seus direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal e em legislações específicas, mas diuturnamente violados. Segundo o historiador Mário Maestri (1994), “Para a imensa maioria dos brasileiros, o “índio” permanece um ser, talvez simpático, mas ‘estrangeiro’ e, portanto, estranho à nossa civilização”. Famílias indígenas perambulam pelas ruas, vilas e morros de Porto Alegre, como “índios urbanos”, tragados por uma sociedade outrora colonial e mercantilista, substituída por uma nova sociedade, liberal e capitalista, um mundo de consumo completamente incompatível com sua cultura original, causando ao longo do tempo um etnocídio cultural de graves e talvez irreparáveis conseqüências, expressas pela perda de sua essência natural. O arqueólogo Arno Kern (1994) declara que “Uma etnia não é composta apenas por grupos de indivíduos, mas pela tradição cultural que desenvolveu ao longo dos séculos”. A pesquisa e o filme “Perambulantes” pretendem mostrar como vivem os indígenas em Porto Alegre, reconstituindo a saga dos índios Charrua, uma etnia que luta pela preservação de suas tradições, pela demarcação de terras e, sobretudo, luta pelo reconhecimento. A estrutura do documentário baseia-se no protagonismo da cacique Charrua, denominada Acuab (a que recolhe água da chuva). As cenas terão como fio condutor a sua história de vida, narrada por meio de diálogos com um personagem que simboliza a etnia branca, ambientada em lugares característicos de Porto Alegre, e também nas áreas ocupadas pelos indígenas na capital. Depoimentos de especialistas intercalam comentários a respeito de temas em áreas como direitos humanos, educação, história, entre outros aspectos, e analisam a importância das legislações e de políticas públicas voltadas à garantia e proteção dos direitos dos índios. Uma seqüência de depoimentos com porto-alegrenses mostrará o que os habitantes da capital gaúcha pensam sobre a presença indígena na cidade. Outra seqüência apresentará depoimentos de índios que vivem em Porto Alegre. O documentário, ao utilizar-se de recursos dramáticos e de animação, imprime uma linguagem próxima à fabula, ao associar aos relatos e registros, o encontro de duas etnias e cosmologias distintas que têm em comum a ausência de preconceito, algo próximo do fantástico, surreal, da realidade utópica. Para o historiador Luiz Roberto Lopez (1988) há uma indissociabilidade do racismo com o colonialismo, em uma relação de dominação na qual a cultura européia era tida como superior, e os índios, os “silvícolas” eram tratados como raça inferior a ser adestrada e aculturada. O índio foi a primeira vítima do racismo neste país. Considerado preguiçoso, incapaz, ingênuo, puro, infantil, etc., o índio foi, alternadamente, escravizado, instrumentalizado pelo paternalismo jesuítico ou simplesmente exterminado, quando se colocou no caminho da expansão capitalista, num processo silencioso, sistemático e eficaz de genocídio. (LUIZ ROBERTO LOPEZ, 1988) O escritor Eduardo Galeano (1990) observa que “a democracia finca suas raízes no mais profundo da história da América. “A Utopia”, de Thomas Morus, se inspirou nas comunidades indígenas americanas, que através dos séculos e das matanças, e apesar do desprezo, têm sido milagrosamente capazes de perpetuar seu modo de produção e de vida, baseado na solidariedade, igualdade de direitos e da participação coletiva”. Os brasis, que já haviam descoberto o Brasil antes dos colonizadores portugueses, constituem hoje, através de seus descendentes, povos indígenas que sobrevivem, perambulantes, em busca de uma vida digna, e lutam para resgatar os valores e os direitos que lhes foram subtraídos ao longo da história. O documentário pretende dar visibilidade à questão indígena, mostrar o diálogo interétnico como possibilidade de resgatar a importância e a identidade dos brasis na história de Porto Alegre, cidade de formação étnica heterogênea, inicialmente habitada por índios Guarani, Tapi-Mirim e Tapiguaçu. Conhecer a cultura indígena permitirá que cada portoalegrense conheça mais de si mesmo, de sua própria história e ancestralidade. A maior originalidade desse projeto está em desvelar os protagonistas de uma terra cosmopolita que, entremeada por morros, lombas e vilas, ainda desconhece a si mesma. ABRINDO CAMINHOS Deram-me as fábulas de La Fontaine; elas me desagradaram; o autor ia pelo mais fácil; decidi reescrevê-las em alexandrinos. A empreitada ultrapassava minhas forças e julguei notar que provocava sorrisos: foi minha última experiência poética. Mas eu estava lançado: passei dos versos à prosa e não senti a menor dificuldade em reinventar por escrito as apaixonantes aventuras que eu lia no Cri-Cri. Era tempo: ia descobrir a inanidade de meus sonhos. Durante as minhas cavalgadas fantásticas, era a realidade que eu procurava alcançar. Quando minha mãe perguntava, sem tirar os olhos da partitura: “Meu bem, o que é que você está fazendo?” acontecia-me por vezes romper o voto de silêncio e responder-lhe: “Faço cinema”. Com efeito, eu tentava arrancar as imagens de minha cabeça e realizá-las fora de mim, entre verdadeiros móveis e verdadeiras paredes, resplendentes e visíveis tanto quanto os que jorravam sobre as telas. (JEAN-PAUL SARTRE, 1984, p. 102) A questão indígena, por sua importância histórica e cultural, é objeto de inúmeras pesquisas, dissertações e teses, é pauta para reportagens e também tema de produções cinematográficas. Em todas essas obras, há uma característica comum: é a visão do pesquisador sobre seu objeto de pesquisa, do narrador sobre o tema narrado, do cineasta sobre a obra criada. O que torna peculiar cada produção é o recorte, a visão, a fundamentação. Existe um mesmo tema em questão - os índios - sobre o qual são feitas múltiplas abordagens. Esta pesquisa tem o propósito e o desafio de desenredar as diversas formas praticadas de violação dos direitos e da liberdade dos brasis, especialmente no contexto porto-alegrense. Neste sentido, faz-se necessário desmembrar esta análise em duas seções. Na primeira parte, “Perambulantes na história”, será reconstituída a trajetória dos brasis, a partir do achamento do Brasil, no ano de 1500. É o momento de refletir sobre o fato de que nunca houve assimilação dos grupos indígenas, nem tampouco vingou uma democracia racial. Surgiu uma população brasileira, miscigenada, ocupando o território pertencente a múltiplas etnias tribais, que criou uma forma própria de identificação étnica, da etnia nacional branca. Onde quer que um grupo indígena pôde manter a convivência familiar – os pais educando seus filhos – permaneceu a identificação étnica tribal. A etnia é, assim se demonstra, uma das maiores forças da cultura humana. Resiste às guerras se há sobreviventes; resiste à transformação ecológica de seu hábitat. Resiste até o assédio missionário que, mesmo exercido secularmente, não converte ninguém, nem europeíza ninguém, por maior que seja a pressão exercida. (DARCY RIBEIRO, 2004, p. 12) Neste contexto, no alvorecer do século 16, surgia a primeira violação aos direitos indígenas. Os colonizadores lusitanos utilizaram-se dos conhecimentos, dos ensinamentos e do tratamento amistoso dos ameríndios, para em seguida apossarem-se de seus territórios, suas liberdades, sua cultura. Analisar as principais causas do etnocídio cultural dos brasis, e as formas de resistência às pressões de dominação, denominadas por Darcy Ribeiro de “processo de transfiguração étnica”, também fazem parte das preocupações deste trabalho: O que se dá, inevitavelmente, é uma integração sócio-econômica, sem nenhuma assimilação cultural, porque os grupos indígenas alcançados e engolfados pela fronteira da civilização se vêem na contingência de conviver com seu contexto. Muitos índios se convertem em trabalhadores assalariados ou em produtores de alguma mercadoria, porque precisam de recursos para comprar ferramentas, remédios, panos e outros artigos de que necessitam. Mas, ainda assim, permanecem índios, porque se identificam e são aceitos como membros de sua comunidade indígena de origem antiqüíssima. (DARCY RIBEIRO, 2004, p. 13) A segunda parte, “Perambulantes Urbanos” contextualiza a questão indígena na sociedade moderna, caracterizada pela produção de bens de consumo, supérfluos e aquisições de mercadorias como fontes de prazer e objetos da libido. Nesse mundo “coisificado” ou nadificante, na acepção satreana, a liberdade assume contornos individualistas, em relações de dominação e de estratificação social que aumentam as diferenças, subjugam as maiorias excluídas socialmente, e determinam os padrões de comportamento. Em um movimento contraditório e inevitável, constituem-se tribos não indígenas, compostas por indivíduos que reproduzem as relações entre senhores e súditos, mas sob uma roupagem contemporânea. Nessas tribos, não há espaços para os indígenas, que se tornam presas fáceis de violações, manipulações ideológicas e aculturações que os retiram de seu hábitat natural. Herbert Marcuse percebe essa sociedade em crescimento fundada em bolsões de pobreza e miséria. Ele questiona o que o homem moderno fez de sua liberdade: Hesito em empregar a palavra – liberdade – porque é precisamente em nome da liberdade que os crimes contra a humanidade são perpetrados. Essa situação não é certamente nova na História: pobreza e exploração foram produtos da liberdade econômica; repetidamente, povos foram libertados em todo o mundo por seus amos e senhores, e a nova liberdade dessas gentes redundou em submissão não ao império da lei, mas ao império da lei dos outros. (HERBERT MARCUSE, 1981, p. 15) Marcuse analisa a proposição freudiana de que a civilização é baseada na permanente subjugação dos instintos humanos, e questiona a possibilidade de uma civilização nãorepressiva. Nesta perspectiva, o filósofo argentino Rodolfo Kusch apresenta elementos de uma antropologia filosófica que compreenda a América a partir de um pensamento indígena, em um movimento circular na história que remete à nossa ancestralidade. Kusch critica a europeização do pensamento como paradigma universal, posto que há contextos específicos na história de cada cultura que influenciarão na constituição de teorias e correntes filosóficas, variáveis conforme os estilos de vida. Para Kusch, na América não existe um estilo de vida uniforme: Puede surgir um pensamiento proprio en la América, en virtud de la oposición rotunda que existe entre el indigena y el burgués medio? (RODOLFO KUSCH, 2000, p. 267) José Bengoa refere-se à evolução da questão indígena na América Latina, mostrando que existe uma consciência e organização indígena no mundo globalizado, resgatando os índios como sujeitos de direitos universais. Ele observa que os ameríndios, oriundos de sociedades que viviam em equilíbrio com a natureza e com uma cultura característica, estão inseridos em uma sociedade fundada na violência e desequilibrada. Mas os índios, ao se organizarem, começam a participar ativamente dessa sociedade, reivindicando direitos, denunciando violações, acionando a sociedade para atentar aos seus conflitos. Les guste o no les guste a los grupos de interesses, a los políticos, a los intelectuales de la modernidad latinoamericana, a quienes han hecho del mestizaje y el criollismo una bandera, el actor indígena está sentado en la mesa de las disputas, de los debates, de las negociaciones, de las construcciones de obras de infraestructura, de los conflictos medioambientales, de la contradictoria elaboración de nuestra cultura. Se cansáran de acusarlos de mentirosos, de inventores de falsas teorías, de ingenuos y ahistóricos, de retrógrados y de cualquier tipo de epíteto degradante. El indígena se ha incorporado a los hechos sociales y políticos del continente. Vino para quedarse. (JOSÉ BENGOA, 2000, P. 12-13) Darcy Ribeiro expõe o dilema enfrentado historicamente pela etnia indígena. Agora, como no passado, trava-se um embate ideológico de dominação da etnia nacional sobre as variadas etnias indígenas. Ele afirma que uma constatação comum a historiadores e antropólogos é de que esse enfrentamento, ora mais visível, ora mais sutil, acarretaria o desaparecimento de tribos, ou a sua total assimilação através da miscigenação. Ele contraria essa tese, ao declarar que, diante desse embate, ou as etnias indígenas foram dizimadas, ou as que sobreviveram permanecem indígenas. O ser índio hoje não se expressa pelas tradições outrora tão características, mas se expressa pela sua compreensão como povo distinto do brasileiro, e historicamente subjugado pela etnia nacional. Esses perambulantes em território nacional diferem em idiomas, costumes, hábitat. Os efeitos do impacto da aculturação e da integração na sociedade nacional podem ser observados em todas as diversas comunidades indígenas no país. A presença indígena nas cidades urbanas é emergente. A falta de terras demarcadas, as condições indignas de moradia e a deficiência de serviços de atendimento na área da saúde são alguns dos principais fatores para esse fenômeno de êxodo para o universo urbano. Na cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, comunidades Kaingang habitam áreas no Morro do Osso e na Lomba do Pinheiro; também os índios Guarani vivem em uma reserva na Lomba do Pinheiro. Os índios Charrua – que lutam pelo reconhecimento de sua etnia – estão ocupando áreas no Morro da Cruz e na Vila Nova. A pesquisa bibliográfica, a observação direta através do contato com as comunidades, e a história de vida de uma índia, cacique da comunidade Charrua no Rio Grande do Sul, são as abordagens utilizadas para analisar, sob o manto de várias hipóteses e teorias, as formas de ser índio na urbanidade. Outro aspecto importante a desvelar é a prioridade da liberdade, que permeia as ações humanas em toda a sua diversidade de etnias. John Rawls apresenta argumentos para fundamentar a prioridade da liberdade, em contraposição à idéia da ordem natural, segundo a qual cada um tem uma posição definida, com o no caso do sistema feudal ou de castas. São relações de dominação, de superioridade e autoridade por um lado, e resignação e obediência, de outro lado. A liberdade suprimida e violada alimenta o poder e a dominação. Em contextos dessa natureza ocorrem as violações dos direitos dos índios. Quando as instituições não se fazem presentes, ou quando estão ausentes em sua presença. A liberdade do índio, quando subtraída, estraçalha a sua cultura e o seu ser. John Rawls compreende a possibilidade de realização da justiça com democracia, pela abertura a mudanças nos princípios de justiça com base em alterações nas convicções estabelecidas. Assim, ao aquiescer a uma liberdade menos que igual, poder-se-ia perder dos dois lados. Isso é particularmente possível, na medida que a sociedade se torna mais justa, já que direitos iguais e atitudes públicas de respeito mútuo possuem lugar fundamental na manutenção do equilíbrio político e na confirmação, ao cidadãos, de seu próprio valor individual. Assim, apesar das diferenças sociais e econômicas entre os vários setores da sociedade, podemos considerar os grupos não comparáveis, dificilmente gerando animosidade, e as dificuldades surgidas da desigualdade política e cívica, e de discriminação cultural e étnica, não são facilmente toleradas. (JOHN RAWLS, 1981, p. 396) Trata-se de dar proteção jurídica às liberdades iguais, para que a sociedade não se organize com indivíduos com liberdade maior, e outros com liberdade menor, e que essa organização aconteça com pessoas e etnias intrinsecamente livres e iguais. OS CAMINHOS Pesquisa monográfica A pesquisa monográfica é o resultado da leitura crítica de várias obras ligadas à questão indígena e aos direitos humanos. Outra fonte de coleta de dados é baseada na análise das informações e documentos obtidos a partir de reuniões e entrevistas realizadas especialmente com a cacique Acuab, da comunidade indígena Charrua. A história de vida da cacique será registrada no documentário “Perambulantes”. As referências bibliográficas estão agrupadas em livros e artigos, teses e dissertações, cds, dvds e jornais, documentos, legislações, e sites de pesquisa. A pesquisa monográfica fornecerá subsídios teóricos necessários para a produção do documentário, assim como as informações obtidas na préprodução do documentário proverão a pesquisa monográfica. PARTE I - PERAMBULANTES NA HISTÓRIA “Morrer se preciso for, matar nunca”. Cândido Mariano da Silva Rondon Os nativos Quando nos referimos à humanidade, estamos nos reportando a uma história que começou há mais de três milhões de anos no planeta Terra, com base em estudos e descobertas científicas e arqueológicas, desenvolvidas especialmente pelos métodos de datação absoluta e relativa. Ao longo do tempo histórico, diversas formas de organização, povoamentos e migrações originaram diferentes sociedades, culturas e nações. Neste processo de evolução encontram-se os originários seres e modos de vida pré-históricos, as comunidades indígenas coloniais americanas, as sociedades européias constituídas a partir dos antigos impérios greco-romano-feudais. O imenso continente americano destaca-se pela pujança de recursos naturais, pela exuberância de paisagens que envolvem as montanhas dos Andes, a floresta tropical amazônica, os rios Paraná, Paraguai, Uruguai e o oceano Atlântico, constitutivos da bacia do rio da Prata Oriental. Segundo KERN (1994) , as etnias que povoaram essas paisagens não têm um passado tão recente. Milhares de sítios arqueológicos descobertos nos campos, florestas e margens de rios comprovam que um grande número de sociedades indígenas estabeleceram-se nessas regiões, com características próprias e adaptadas aos locais onde viviam. “Quando chegaram os espanhóis e os portugueses, encontraram estas áreas orientais da bacia platina povoadas por milhares de indígenas, organizados em muitos grupos diferentes, distribuídos em paisagens as mais diversas. Os restos materiais de suas culturas terminaram originando centenas de sítios arqueológicos, que comprovam esta ocupação. Grupos variados de caçadores, coletores, pescadores e horticultores, pertencentes a sociedades e culturas indígenas muito distintas, estavam adaptados aos diversos ambientes que encontraram e ocupavam todas as paisagens da imensa região platina. (ARNO KERN, 1994, p. 10) Folheando as páginas da história da humanidade, nos defrontaremos com uma dinâmica de políticas expansionistas, lutas pelo poder e pela apropriação de terras. A população primitiva da América, as civilizações pré-colombianas, a apropriação das terras americanas pelos europeus e a incorporação do Novo Mundo foram capítulos de uma história marcada pelo grande genocídio e escravização dos povos pré-colombianos na América espanhola, portuguesa e anglo-saxônica. mapa do Brasil no século XVI A lógica expansionista era simples: atingir os interesses das metrópoles e da classe dominante mediante a exploração e dominação dos povos considerados primitivos, e que na verdade eram os primitivos – originais – habitantes dessas terras. “Os marinheiros que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral mandou a terra, em 23 de abril de 1500, encontraram facilmente um grupo de duas dezenas de espantados e curiosos nativos. Os primeiros contatos entre brasis e lusitanos foram tranqüilos e cordiais. Tupinambás e portugueses trocaram gestos e presentes – um barrete, uma carapuça e um chapéu por um cocar de penas e uma fileira de contas brancas. Os europeus registraram a elegância e a beleza física dos americanos.” (MAESTRI, 1994, p. 09) Os indígenas são considerados oriundos da Ásia, e chegaram à América, hipoteticamente, após terem atravessado a pé o Estreito de Bering. Segundo o inventário realizado pelo viajante alemão Karl von den Steinen (1884), habitavam o Brasil quatro grupos indígenas: tupi-guarani, jê ou tapuia, nuaruaque ou maipuré e caraíba ou cariba. Há estimativas de que em 1500 havia de um a três milhões de indígenas no Brasil. Com a ocupação do território brasileiro pelos colonizadores lusitanos, e os sucessivos massacres aos quais as comunidades indígenas foram submetidas ao longo da história brasileira, registra-se em cinco séculos, os atuais 270 mil índios, o que representa apenas 0,02% da população brasileira. Os estrangeiros A ocupação do território brasileiro pelos portugueses ocorreu devido a interesses e necessidades do mercado externo. Para garantir a ocupação, o povoamento, e sobretudo a exploração dos recursos naturais, os colonizadores travaram combates contra os povos indígenas. A primeira grande violação aos direitos dos indígenas aconteceu nesse momento, com a invasão do território, declarado como descoberto, e com os sistemáticos abusos e violências cometidos contra homens, mulheres e crianças indígenas, através de sua expulsão, destribalização e escravidão. Também há farta documentação, pesquisas antropológicas e históricas que comprovam as atrocidades cometidas contra os povos indígenas do Brasil desde a época do chamado “descobrimento”. Apesar desses registros e informações, é alarmante a falta de conhecimento por parte dos brasileiros, de um modo geral, sobre as opressões a que foram submetidos os indígenas. A impressão que se tem, no senso comum, é de que são uma raça em extinção, não porque foram e continuam sendo massacrados, mas porque não são quase vistos. Há comumente duas formas distintas de “ver” os indígenas: ou como pessoas dóceis, que gostam de se pintar, cantar e dançar em volta do fogo; ou como seres selvagens, quase animais, que fazem parte de algum lugar do passado na história, quase comparados a vilões de filmes norte-americanos. Não é à toa que essas impressões vigoram em pleno século XXI. São reflexos de um processo sórdido de invisibilização de sua identidade cultural. Desde os primeiros contatos dos colonizadores com os indígenas, o que deles se esperava é que fossem úteis como mão-de-obra escrava, nas culturas de cana-de-açúcar e de subsistência. Os indígenas, aos olhos dos portugueses, eram inicialmente importantes na medida em que seriam utilizados em seu benefício, já que seu custo seria muito menor do que o escravo negro africano – levando-se em conta que o tráfico de escravos era um negócio extremamente rentável. Neste contexto, a coroa portuguesa e a igreja se posicionaram contra a escravização dos índios, já que recebiam comissões dos traficantes de escravos negros. Na medida em que os indígenas se rebelavam contra as tentativas de cooptação, passavam a ser massacrados, escravizados, expulsos, exterminados. “ De 1557 a 1571, já tinham penetrado, fugindo dos brancos, mais de 264 quilômetros pelo interior da Bahia: em seu governo, Mem de Sá destruiu e desbaratou o gentio que viva de redor da Bahia, a quem queimou e assolou mais de trinta aldeias, e os que escaparam de ser mortos ou cativos fugiram para o sertão e se afastaram do litoral mais de quarenta léguas.” (FLORESTAN FERNANDES, Organização Social dos Tupinambás) Os genocídios Os Tupinambá foram as principais vítimas dos colonizadores. Eram habitantes de vastas áreas litorâneas do Rio de Janeiro e da Bahia. Apesar de tentativas de pacificação feitas pelos padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, o genocídio dos tupinambás foi especialmente brutal no Rio de Janeiro, Cabo Frio e São Paulo. Os tupinambás organizaramse para resistir à conquista portuguesa. Deste confronto, resultou o massacre dos indígenas, que foram cercados nos fortes de Bertioga e da ilha de Santo Amaro. Segundo Fernandes, no início do século XVII, o viajante inglês Anthony Knivet presenciou as atrocidades cometidas contra os tupinambás, velhos e mulheres. Nas cartas do padre Antonio Vieira também há o relato dos crimes, que “excedem muito os que se fizeram na África: em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram por esta costa e sertões mais de dois milhões de índios e mais de quinhentas povoações, como grandes cidades, e disto nunca se viu castigo”. Interessante é observar que se por um lado o padre Vieira deixou um relato histórico sobre o genocídio indígena, por outro lado ele atribuía a impossibilidade da colonização com os índios pela natural incapacidade do ser indígena. Em uma declaração preconceituosa, padre Vieira afirma: “(...) índios naturais da terra, os quais por sua natural fraqueza e pelo ócio, descanso e liberdade em que se criam, não são capazes de aturar por muito tempo o trabalho em que os portugueses os fazem servir, principalmente os das canas, engenhos e tabacos, sendo muitos os que por esta causa continuamente estão morrendo.” Além dos interesses econômicos que justificavam os crimes contra as etnias indígenas por parte dos colonizadores portugueses, havia o aspecto religioso que, por parte da maior autoridade religiosa, o papa, justificava as invasões e a escravidão do gentio. Em 1454, o papa Nicolau V assinou a bula Romanus Pontifex, na qual os portugueses eram favorecidos em sua política expansionista e no aprisionamento de negros na África, com o intuito de salvar-lhes a alma. Também as bulas papais de 1456 e 1481, dos papas Calixto III e Sixto IV, apregoavam a presença portuguesa na África. A escravização de negros, e a tentativa de escravização dos indígenas tinha como pretexto a salvação de suas almas pagãs. A atuação dos padres jesuítas junto aos indígenas ao longo do século XVI em muitos momentos foi conflituosa com a atuação dos colonizadores e da coroa portuguesa. Seu trabalho era feito com o propósito de integrar o indígena ao processo de colonização, mediante o aldeamento dos indígenas. Esse processo de destribalização foi uma outra forma de violação dos direitos indígenas, na medida em que eles eram forçados a uma integração, com a união de membros de diversas tribos em uma mesma aldeia, deslocados de seu modo de vida original, levados a trabalhar para servirem como mão-de-obra reserva. Havia permissão governamental para a atuação dos jesuítas e a implantação do aldeamento indígena, através da chamada Lei do Asilo. Entretanto, os colonizadores desrespeitaram tal lei inúmeras vezes, atacando as aldeias e dizimando as populações indígenas. Os ataques às aldeias de Bom Jesus, Santo Antônio, São Pedro e Santo André deixaram um rastro de um mil sobreviventes, de um total de doze a catorze mil habitantes indígenas. Se não fugiam, os indígenas eram escravizados, ou esmoreciam diante do trabalho servil, deficiências alimentares, e doenças contraídas pelos contatos com os invasores, pelos abusos, maus tratos violência sexual, e epidemias, como a varíola, que no ano de 1562 matou cerca de trinta mil pessoas. A servidão deu lugar à escravização dos índios. No século XVII, foram criadas as denominadas reduções jesuíticas – aglomerações indígenas submetidas a autoridade dos padres, com localizações afastadas dos núcleos de povoamento. Nas reduções, os indígenas realizavam trabalhos servis e eram iniciados à religiosidade cristã. Com a invasão holandesa do nordeste brasileiro e a interrupção do tráfico de escravos africanos, em 1641, os indígenas passaram novamente a serem caçados. Para efetivar esse apresamento, foram constituídas grandes expedições armadas sob o comando de bandeirantes paulistas como Antônio Raposo Tavares, Pedro Vaz de Barros, Manuel Preto, Fernão Dias Pais e André Fernandes. O saldo dos ataques foi a captura de trinta mil índios Guarani, que escravizados, eram vendidos como mercadorias. O apresamento bandeirante deu lugar, no século XVIII, ao sertanismo de contrato. Os indígenas que se rebelavam eram perseguidos, aprisionados e mortos por expedições de bandeirantes contratadas por donatários e governadores. A ocupação européia do território brasileiro pode ser interpretada como uma história de conquistas em busca do desenvolvimento, da expansão, do progresso. Esses fins justificariam os meios? Do ponto de vista do invadido, do massacrado, do escravizado, a resposta é não. Na história da humanidade, os seres humanos são desumanizados quando tratados como mercadorias, e como tais são comercializados, são violados em seus corpos e em suas culturas. Quando são considerados gentios, sem alma, sem capacidades. Esta visão criada a partir de interesses econômicos e políticos levaram à dizimação cultural e física de comunidades indígenas. Para conquistar as terras e dominar os indígenas, os colonizadores utilizaram-se de todos os artifícios possíveis: pretensa cordialidade, suborno, corrupção, até a escravização, os combates e assassinatos. “Alexander Marchant publicou, em inglês, um breve e brilhante ensaio que foi traduzido e editado, em português, em 1943, com o título Do escambo à escravidão: as relações econômicas de portugueses e índios na colonização do Brasil (1500-1580). A partir de uma atilada análise da documentação quinhentista então conhecida, o historiador norte-americano estabeleceu uma convincente periodização dos contatos de europeus e brasis no século 16. Num primeiro momento, - o do escambo – trocas voluntárias e proveitosas entre europeus e tupinambás. Num segundo tempo, com a ocupação territorial e os primeiros engenhos e plantações, a importância decrescente da economia de trocas e o conflito interétnico pelo controle da terra e a força de trabalho americana (MAESTRI, 1994, p. 12-13) Deste quadro infelizmente real, que mancha de sangue a história do surgimento do Brasil, é importante constatar que, além do genocídio indígena, há também o fator da miscigenação, constitutiva da formação étnica e cultural de nosso país. “A ocupação européia deu origem, por um lado, ao genocídio de centenas de indivíduos pertencentes a estes grupos indígenas. Por outro lado, teve início uma intensa miscigenação já nos momentos iniciais da conquista. Ocorreram igualmente transformações socioculturais importantes, tais como a influência cultural mútua, as aculturações forçadas e espontâneas, bem como as intensas alterações dos costumes tradicionais das diversas comunidades indígenas locais, num processo gradual de europeização.” (KERN, 1994, p. 10) A falta de legitimidade e a imoralidade dos denominados e considerados conquistadores e desbravadores de terras, deve-se ao fato de que o embate entre brancos e índios foi uma luta desigual. O estado feudal e escravista lusitano contra comunidades indígenas que viviam em uma realidade aldeã, sem divisão de classes e sem interesses mercantilistas expansionistas. A invasão de um território por um grupo pertencente ao mundo europeu, sobre grupos que viviam na e da natureza, em comunidades domésticas. Quando se fala, lê, aprende e quando se comemora o dia 22 de abril de 1500, dia do descobrimento do Brasil, deve se ter em conta que o Brasil, ao ser “descoberto”, tinha já uma imensa população. Povos que cultivavam línguas, tradições, formas próprias de produzir e sobreviver. O Brasil foi “descoberto” para os europeus, que não conheciam essas terras, desvirginadas pela fúria de interesses econômicos colonialistas. A Ilha de Santa Cruz, Terra de Santa Cruz, Terra de Vera Cruz e, finalmente, Brasil. Os brasis e os brasileiros O primeiro nome registrado na história do Brasil não foi de um indígena, mas de um degredado português, chamado Afonso Ribeiro. Da expedição cabralina, e de outras que se seguiram com a finalidade de conhecer o litoral e ocupar o território, vieram degredados, marinheiros, soldados, náufragos, funcionários das feitorias, traficantes de pau-brasil. Eles constituíram os primeiros núcleos brancos de povoamento. Os indígenas eram considerados seres inferiores, tidos como atrasados, ingênuos e preguiçosos. A palavra “índio” designava habitantes de territórios considerados erroneamente como das Índias. Designava também habitantes das selvas, silvícolas e selvagens. Desde essa época havia uma conotação pejorativa e preconceituosa com relação a essas pessoas consideradas inferiores. “ A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disto são de grande inocência(...) Os cabelos são corredios. E andavam tosquiados. (...) moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; (...) ...andavam bem curados, e muito limpos (...) ... os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não podem ser mais! (...) ... porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade(...). Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons (PERO VAZ DE CAMINHA, 1963) Primeiro, foi uma troca de presentes. O que se seguiu foi uma invasão. De homens e mulheres plenamente livres, os indígenas do Brasil tornaram-se alvo como escravos, como mercadorias, como encarcerados em suas próprias terras. Foram humilhados, subjugados, retirados de suas aldeias e de suas culturas. Espoliados de suas terras, dizimados por doenças infecciosas e pela fome. Assim desapareceram muitos, dispersaram-se outros tantos. Segundo DARCY RIBEIRO, entre os anos de 1900 a 1957 desapareceram 31% dos grupos indígenas isolados, 25% dos grupos indígenas que tinham contato intermitente com o homem branco, 72% dos que estabeleciam contato permanente, e 42% dos completamente integrados. Estes são dados objetivos do maior extermínio cometido na terra brasilis, um dos maiores massacres no que diz respeito aos direitos humanos na América. “Os índios foram morrendo, vítimas de toda sorte de violências, e uma população neobrasileira foi crescendo no antigo território tribal, onde implantou uma forma totalmente nova de vida e criou sua própria identificação étnica. Na população neobrasileira evidentemente se incorporaram genes indígenas, oriundos de mulheres prenhadas por brancos ou pretos, cujos filhos cresceram já, longe de seu povo. Outra origem desses genes foram as crianças roubadas e desindianizadas, por já crescerem dentro de comunidades estranhas. Onde quer que um grupo indígena pôde manter a convivência familiar – os pais educando seus filhos – permaneceu a identificação étnica tribal. A etnia é, assim se demonstra, uma das forças maiores da cultura humana. Resiste às guerras se há sobreviventes; resiste à transformação ecológica de seu hábitat. Resiste até ao assédio missionário que, mesmo exercido secularmente, não converte ninguém, nem europeíza ninguém, por maior que seja a pressão exercida. A etnia só não resiste à escravização pessoal que, desgarrando as pessoas de sua comunidade, as transforma em mera força de trabalho, possuída por um senhor e vivendo a existência que ele lhe impõe. Resiste mal à prática missionária de separação dos filhos para educá-los longe de seu povo. Só conseguem assim deculturá-los, transformando-os em ninguéns, que não sabem de si e não servem para ser índios nem civilizados” (DARCY RIBEIRO,2004 p. 12) Da tutela ao reconhecimento A legislação pombalina (1755 a 1758) defendia a liberdade dos índios e a necessidade de prepará-los para a vida civilizada, mas permitia a utilização do índio como mão-de-obra assalariada. Essa legislação terminaria por legitimar a escravidão do índio no Brasil. Em 13 de maio de 1808 era redigida a Carta Régia que permitia o apresamento de índios e sua utilização como escravos. Os índios eram inclusive marcados a ferro pelos denominados bugreiros, os caçadores de índios. A Carta Régia foi revogada em 1831, o que não impediu a continuidade de conflitos entre colonizadores e indígenas. No Segundo Império, a tutela dos indígenas foi dada aos missionários capuchinhos italianos. Com a instituição da Lei das Terras, no ano de 1850, os indígenas foram ainda mais prejudicados: a aquisição de terras era possível apenas mediante a compra, a preços elevados, os lotes eram leiloados com pagamento à vista. As terras pertencentes aos indígenas foram confiscadas pelo governo. Até o momento, continua em vigor a Lei nº 6.001/73, o Estatuto do Índio, que não corresponde às reais necessidades dos povos indígenas brasileiros. Este instrumento jurídico foi embasado no que dispõe o Código Civil (1916), que trata os indígenas como seres relativamente capazes, devendo ser tutelados por um órgão indigenista estatal até serem definitivamente integrados à comunhão nacional. De 1910 a 1967 essa tutela era exercida pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio), criado a partir do extraordinário trabalho realizado por Cândido Rondon, cuja tese era de que cabia ao Estado, e não aos leigos ou às missões religiosas, atuarem na execução de uma política indigenista. “Até então o índio fora tido por toda a legislação como uma espécie de matéria bruta para a cristianização compulsória e só era admitido enquanto um futuro não índio. Aquele regulamento marca, pois, uma nova era para os índios. Por ele, a civilização brasileira abre mão, ao menos em lei, do dogmatismo religioso e do etnocentrismo que até então não admitia outra fé e outra moral senão a própria” (DARCY RIBEIRO, 2004, p. 138-9) O Serviço de Proteção ao Índio, considerado órgão exemplar graças ao trabalho realizado por Rondon, com o passar dos anos foi se desmantelando, com escassez de dotações orçamentárias, funcionários despreparados e não identificados com a causa indígena. Tornouse alvo de uma política clientelista, na barganha por cargos, e o resultado foi uma sucessão de escândalos e irregularidades, que levaram a comunidade internacional pressionar pela extinção do órgão. A FUNAI (Fundação Nacional do Índio) surge para substituir e aprimorar o trabalho que era feito pelo SPI. A FUNAI foi instituída pelo Governo Federal (Lei nº 5.371/67) com a função de estabelecer as diretrizes de política indigenista, exercer a tutela dos índios nãointegrados, gerir o patrimônio indígena e prestar assistência nas áreas indígenas. A realidade brasileira com relação a aplicação dessas diretrizes e políticas vem se revelando um fracasso. O Estado não conseguiu assegurar as condições mínimas de sobrevivência das comunidades indígenas, nem tampouco respeita seus direitos fundamentais; em muitas situações, é o próprio violador, quando omisso e negligente com relação aos crimes cometidos contra indígenas. Mais de 1470 povos indígenas foram extintos no Brasil (CIMI, 2001): região Sul (33), região Sudeste (143), região Nordeste (344), região Centro-Oeste (137) e região Norte (820). Da auto-suficiência natural dos indígenas em suas terras, o que se percebe ao longo da história é uma forte dependência dessas comunidades, pelo fato de não disporem de terras e recursos naturais que lhes permitam a auto-sustentabilidade. Entre as principais causas dos massacres e injustiças cometidos contra os povos indígenas estão a falta de proteção legal, a existência de instrumentos jurídicos evasivos nessa área, e o descumprimento sistemático das legislações criadas para proteger seus direitos. A falta de recursos naturais de alguns países, a ambição pela extração desses recursos, a expansão demográfica, são outros fatores, aliados ao status ou estigma de inferioridade e a falta de entendimento do jeito de ser e estar indígena. Os sobreviventes dos massacres perambulam ao longo da história para resgatar sua identidade étnica e cultural, pelo idioma, rituais e tradições específicos de cada comunidade indígena. Atualmente, os indígenas encontram-se dispersos em todas as regiões do Brasil, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste. A Fundação Nacional do Índio contabiliza a existência de 206 povos indígenas. Uma extensão territorial de 94.091.318 hectares, correspondendo a 11% do país, abriga 547 áreas indígenas. A Constituição Federal do Brasil (1988), no Capítulo VIII – Dos Índios, reconhece os direitos originários dos indígenas sobre as terras que ocupam. Art. 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcálas, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. A Constituição considera como terras indígenas as que são por eles habitadas em caráter permanente, utilizadas para atividades produtivas, e indispensáveis à preservação dos recursos ambientais, à sua reprodução física e cultural em conformidade com seus usos, costumes e tradições. Aos indígenas compete o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes (Parágrafo 2º). Pode se considerar como uma reparação histórica e um grande avanço na questão indígena no Brasil, o fato de a Constituição de 1988 estabelecer garantias aos indígenas no que diz respeito ao direito de propriedade com fins de produzirem nessas terras e nelas viverem em seu ambiente natural, original. A Constituição também é meritória no sentido de que reconhece direitos permanentes aos indígenas. Como forma de dar uma segurança jurídica no que se refere à possibilidade de os indígenas ingressarem em juízo em prol de seus direitos, o artigo 232 da Constituição estabelece que: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.” Há catorze anos tramitam no Congresso Nacional três projetos de Estatuto dos Povos Indígenas. Representantes das diversas comunidades indígenas do Brasil se mobilizam no sentido de pressionar o governo e os parlamentares a aprovarem o estatuto, em conformidade com as propostas e necessidades das comunidades indígenas. Questões relativas à saúde, e educação; ações urgentes relativas à demarcação, homologação e registro de terras, e também que garantam condições para um projeto de desenvolvimento sustentável. Segundo os proponentes do Estatuto dos Povos Indígenas, este novo instrumento deverá revogar o dispositivo do Código Civil que estabelece a tutela, regulamentar a exploração de recursos naturais nas terras indígenas, e tratar de temas polêmicos como os direitos de propriedade intelectual, proteção ao meio ambiente, e acesso a recursos genéticos. No Estado do Rio Grande do Sul, foi criado o Conselho Estadual dos Povos Indígenas – CEPI, conforme a Lei nº 12.004, de 12 de novembro de 2003. Este órgão tem a competência de propor diretrizes para a política indigenista estadual, para incentivar a continuidade cultural das comunidades indígenas, e garantir-lhes os direitos que lhe são constitucionalmente assegurados. Um importante instrumento em prol dos direitos indígenas foi aprovado em 13 de setembro de 2007: a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, um documento internacional que objetiva a proteção de mais de 370 milhões de indígenas em todo o mundo. Segundo a Declaração, os Estados devem assegurar a proteção jurídica de seus territórios e recursos. Qualquer ação em terras indígenas só pode ser feita após consulta e consentimento prévio das comunidades. O texto foi aprovado por 143 votos a favor. Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Austrália votaram contra. Na América do Sul, a Colômbia se absteve, e todos os demais países votaram a favor, inclusive o Brasil. Assim como a Constituição, a Declaração Universal dos Povos Indígenas pode ser usada pelo Poder Judiciário como referência na análise das questões indígenas. “Artigo 1- Os indígenas têm direito, como povos ou como pessoas, ao desfrute pleno de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das Nações Unidas, pela Declaração Universal de Direitos Humanos e o direito internacional relativo aos direitos humanos. Artigo 2 – Os povos e as pessoas indígenas são livres e iguais a todos os demais povos e pessoas e têm o direito a não ser objeto de nenhuma discriminação no exercício de seus direitos fundados, em particular, em sua origem e identidade indígena.” (DECLARAÇÃO DA ONU SOBRE OS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS) As garantias constitucionais são indispensáveis no sentido de permitir às comunidades indígenas a busca por justiça social, e por condições de efetivação dos direitos fundamentais dos indígenas, sobretudo relacionados à terra, alimentação adequada, saúde, moradia e educação. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas, em suas Observações Conclusivas sobre o Brasil, dedica um capítulo especialmente aos povos indígenas. O Comitê se preocupa com o distanciamento entre as previsões constitucionais e legislativas, e os procedimentos administrativos para a implementação dos direitos do Pacto, e com a ausência das medidas necessárias para efetivar esses direitos. Preocupa-se também com a discriminação difundida e enraizada, e com o fato de que o Estado não providencia proteção suficiente para as populações indígenas, que continuam sendo vítimas de desocupação forçada de suas terras, enfrentando ameaças e sendo vítimas de execuções. Os direitos desses povos são desrespeitados, enquanto que mineradoras, madeireiras e outros interesses comerciais têm tido acesso e permissão para expropriar parcelas das terras que pertencem aos indígenas. No ano em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 60 anos, percebe-se que embora os trinta artigos constitutivos da Carta sejam propositivos de um ideal comum a todos os povos e todas as nações, a realidade tanto no plano nacional como internacional está profundamente marcada por cisões, visões xenofóbicas, atitudes etnocêntricas, posições ideológicas, manifestações racistas, e tantos outros sintomas de sociedades enfermas diante de opções e ações que na maioria das vezes não representam os anseios dos grupos sociais, mas de focos em disputa pelo poder. O mercado regula as nações; os países mais pobres agonizam na dependência de ações na maioria das vezes pontuais e assistencialistas. Assistimos a uma banalização do estar no mundo. Viver e deixar de viver, pela falta de assistência do Estado; definhar por fome, alimentar-se da miséria, limpar-se na doença, habitar o caos: há uma multidão, um verdadeiro exército de seres humanos que assim estão agora, neste segundo, em algum canto deste planeta Terra. A Terra sem Males que, segundo o mito Guarani, é um local onde não há sofrimento nem morte: "Quando Ñamandu ( nosso grande Pai) resolveu acabar com a terra, devido à maldade dos homens, avisou antecipadamente Guiraypoty, o grande pajé, e mandou que dançasse. Esse obedeceu-lhe, passando toda a noite em danças rituais. E quando Guiraypoty terminou de dançar, Ñamandu retirou um dos esteios que sustentam a terra, provocando um incêndio devastador. Guiraypoty, para fugir do perigo, partiu com sua família para o Leste, em direção ao mar. Tão rápida foi a fuga, que não teve tempo de plantar nem de colher mandioca. Todos teriam morrido de fome, se não fosse o seu grande poder que fez com que o alimento surgisse durante a viagem. Quando alcançaram o litoral, seu primeiro cuidado foi construir uma casa de tábuas, para que quando viessem as águas, ela pudesse resistir. Terminada a construção, retomaram a dança e o canto. O perigo tornava-se cada vez mais iminente, pois o mar, como que para apagar o grande incêndio, ia engolindo toda a terra. Quanto mais subiam as águas, mais Guiraypoty e sua família dançavam. E para não serem tragados pela água, subiram no telhado de casa. Guiraypoty chorou, pois teve medo. Mas sua mulher lhe falou: Se tens medo, meu pai, abre teus braços para que os pássaros que estão passando possam pousar. Se eles sentarem no teu corpo, pede para nos levar para o alto. E, mesmo em cima da casa, a mulher continuou batendo a taquara ritmadamente contra o esteio da casa, enquanto as águas subiamGuiraypoty entoou então o nheengaraím, o canto solene Guarani. Quando iam ser tragados pela água, a casa se moveu, girou, flutuou, subiu... subiu até chegar à porta do céu, onde ficaram morando. Esse lugar para onde foram chama-se YvY marã eÿ ( a "Terra Sem Males"). Aí as plantas nascem por si próprias, a mandioca já vem transformada em farinha e a caça chega morta aos pés dos caçadores. As pessoas nesse lugar não envelhecem e nem morrem, e aí não há sofrimento”. Assim como há desde a invasão européia pessoas e organizações interessadas em devastar as terras indígenas, com fins exploratórios e econômicos, há também esforços de organismos e ativistas que atuam na proteção dos direitos dos povos indígenas. Uma das principais personalidades na defesa desses direitos é o marechal Cândido Rondon, descendente de índios Terena e fundador do Serviço de Proteção ao Índio, o primeiro órgão do governo a tratar da questão indígena. O sertanista Orlando Villas Boas deixou como sua obra máxima o Parque Nacional do Xingu, com quatro mil habitantes divididos em 13 nações, em 2,8 milhões de hectares. Curt Nimuendaju (“aquele que fez seu próprio lar, em tupi-guarani), cujo nome de registro é Curt Unkel, foi adotado pela tribo dos Guarani-apinacauá. Durante 40 anos estudou cerca de 30 povos indígenas, e sua obra é considerada uma das mais importantes da etnologia brasileira. O antropólogo Darcy Ribeiro elaborou o plano de colonização das fronteiras e de amparo às populações indígenas na Amazônia. Organizou no Rio de Janeiro o Museu do Índio, o primeiro museu etnográfico dedicado expressamente à luta contra o preconceito. Elaborou também o plano de criação do Parque Indígena do Xingu. Em 1976, Darcy Ribeiro participou ativamente da campanha contra a falsa emancipação dos indígenas, pretendida pelo governo durante a ditadura militar. É autor do projeto Caboclo, destinado a criar experimentalmente novas formas não destrutivas de ocupação humana da Amazônia. O indígena Felipe Camarão, pertencente à tribo Potiguar, participou da luta pela expulsão dos holandeses de Pernambuco, bem como da primeira batalha dos Guararapes. O cacique Caingangue Nonoai viveu durante 120 anos e, após morar em Santa Catarina, se estabeleceu nas imediações de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e seu nome foi dado a maior reserva indígena do Estado. O cacique Doble foi um de seus maiores inimigos. Ele apoiou os colonizadores e participou do massacre de um grupo Caingangue liderado pelo cacique João Grande, no ano de 1853. Um dos principais chefes Txukahamãe, subgrupo Kayapó, é o cacique Raoní. Sua vida foi tema de um documentário dirigido pelo francês Jean-Pierre Dieleux, e juntamente com o cantor inglês Sting, atraiu os holofotes de vários países para a causa indígena no Xingu e na Amazônia. O filho do cacique Xavante Apoenã, Mário Juruna, é oriundo de uma aldeia do Mato Grosso. Lutador pela demarcação Xavante, Raoni tornou-se famoso e ganhou projeção política. Foi o primeiro deputado federal indígena do Brasil. Foi responsável pela criação da Comissão Permanente do Índio na Câmara Federal. Estas são algumas lideranças que se dedicaram à causa dos direitos dos povos indígenas no Brasil. Uma causa que continua, no século XXI, a suscitar esforços para evitar um novo etnocídio que, diferentemente do massacre cometido pelos colonizadores, reveste-se agora de sutilezas próprias do fenômeno urbano. PERAMBULANTES URBANOS “A dignidade e a coragem do índio nunca vão acabar... Enquanto tiver um índio em pé, a luta vai continuar” Ortiz Lopes – Kurussu Ambá, em 19/01/2007 Crônica de uma natividade violada No dia 19 de abril comemora-se o dia do índio. É tempo de resgatar a história para refletir sobre as violações que ao longo do tempo são cometidas contra as comunidades indígenas no Brasil. Um desses trágicos acontecimentos é o massacre dos índios Yanomami. Em 1993, a aldeia Haximu protagonizou o primeiro ato genocida oficialmente reconhecido pelo estado brasileiro. Doze indígenas da etnia Yanomami foram brutalmente assassinados por 23 garimpeiros na Amazônia venezuelana. O caso teve repercussão internacional, e em dezembro de 1996 o juiz federal de Roraima reconheceu a existência de genocídio, crime contra a etnia. Passados quinze anos, os massacres e violações continuam. É alarmante o número de mortes entre bebês e crianças Xavante, no Mato Grosso do Sul, onde seis bebês com menos de um ano, e sete crianças entre um e cinco anos, morreram em janeiro de 2008. São indígenas vivendo em aldeias com condições precárias, sem alimentação adequada, com doenças e desnutrição. Situações como estas mostram que há menos o que comemorar, e muito mais a respeitar e agir pelos direitos indígenas. No dia 21 de abril de 1997 as manchetes dos principais jornais e os noticiários dos programas de rádio e televisão do Brasil informavam que cinco rapazes de classe média haviam ateado fogo no corpo do índio Galdino Jesus dos Santos Pataxó Hã-HãHãe. Ele estava dormindo em um banco de uma parada de ônibus em Brasília, no Distrito Federal, para onde havia viajado juntamente com outros membros da comunidade para tratar de questões relacionadas à demarcação de terras. Na época, a defesa alegou que o homicídio foi praticado sem intenção. Vários indígenas foram assassinados nas últimas décadas: Ângelo Pankararé, Ângelo Kretã Kaingang, Marçal Tupã-i-Guarani, Simão Bororó, Arnaldo Apurinã, Xicão Xukuru, Marcos Veron, Aldo da Silva Mota Macuxi, Josenilson José dos Santos Atikum, José Ademilson Barbosa da Silva Xucuru, João Araújo Guajajara, Dorival Benitez Guarani-Kaiowá, Adenilson dos Santos Truká, Jorge dos Santos, Dorvalino Rocha Guarani-Kaiowá. Em sua maioria, os crimes são motivados por causa das terras e dos interesses econômicos sobre o que há nessas terras. Conflitos envolvendo indígenas e fazendeiros, garimpeiros e grileiros são infelizmente cada vez mais comuns, e as autoridades governamentais não têm assumido seu papel no controle da situação, tampouco no sentido de apresentar propostas para solucionar os problemas dos índios, relacionados à saúde, educação, alimentação, regularização de terras e proteção à biodiversidade em áreas indígenas. No dia 08 de julho de 2007 o líder Guarani Kaiowá Ortiz Lopes foi assassinado na porta de sua casa. Ele lutava pelo direito de sua comunidade à terra Kurussu Ambá, no Mato Grosso do Sul. Seis meses antes outra indígena da comunidade também foi assassinada. A onda de violência cometida contra indígenas no Mato Grosso do Sul, caracterizando um genocídio – em 2007 ocorreram 22 assassinatos nas terras indígenas daquele Estado – resultou na elaboração de um documento que foi entregue ao representante da Organização das Nações Unidas no Brasil. Neste encontro, organizado pela Ordem dos Advogados do Brasil seção MS, relatou-se a história dos deslocamentos forçados dessas populações, expulsas de suas terras tradicionais, e foi cobrada uma ação enérgica por parte do governo brasileiro contra a impunidade: quando os indígenas, em pleno século XXI, tentam retornar às suas terras, das quais foram expulsos, são recebidos à bala, num pérfido, perverso, abominável extermínio silencioso. Constatamos que apesar de passados 508 anos do massacre lusitano, o Brasil assiste uma nova forma de violação aos direitos e à cidadania dos povos indígenas, pela negligência e omissão, pelas políticas públicas assistencialistas e não direcionadas a efetivar os direitos garantidos constitucionalmente, e por não propor uma busca de real entendimento e diálogo com a cultura indígena. Pelo contrário, assistimos perplexos a um desmantelamento da cultura indígena pelas ações institucionais, nas quais os indígenas ainda são tratados de forma preconceituosa e inferiorizada. Um exemplo dessa situação no Brasil são as comunidades indígenas Krahô/Kanela, oriundas do Maranhão. No ano de 1920, esses povos passaram a habitar o território de Mata Alagada, localizado no Estado de Tocantins. Nesse local fixaram moradia e desenvolveram sua cultura. 57 anos mais tarde, eles foram expulsos de sua terra, de forma violenta, e mesmo recorrendo a FUNAI em busca da reintegração de posse, sofreram humilhações e ameaças. De 1977 a 2005, as cerca de 22 famílias Krahô/Kanela perambularam por assentamentos, como Tarumã e Loroty. Ficaram confinados na antiga Casa do Índio de Gurupi, em Tocantins. A Funai não reconhecia a legalidade da terra, apesar do relatório antropológico e do que dispõe o artigo 231 da Constituição Federal, sobre o direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas. A mobilização dos índios Krahô/Kanela, somada à garantia que lhes é dada pela Constituição de reivindicar seus direitos, resultou na realização de uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, em dezembro de 2005. Graças a essa mobilização, ficou acordada neste encontro, que contou com a participação do Incra, Ministério Público Federal, Conselho Indigenista Missionário e Funai, a criação de uma reserva indígena na área pleiteada pelos índios. Os índios Pataxó Hã-Hã-Hãe aguardam há 26 anos que a Justiça anule os títulos dados pelo governo da Bahia aos invasores de suas terras, fazendeiros que tomaram conta das terras indígenas desde 1940, quando o Serviço de Proteção ao Índio iniciou a prática ilegal de arrendamentos. Os fazendeiros tentaram usar os indígenas para o trabalho. Deram início a perseguições e mortes de indígenas, e lideranças como João Cravim, em 1988. Outra forma terrível de violação aos direitos dos povos indígenas, é a falta de assistência à saúde. Segundo a FUNASA, 56% da população indígena do Vale do Javari, no Amazonas, é portadora do vírus hepatite B, e 85,1% já teve contato com o vírus da hepatite. Casos de malária atingem 90% desta população, caracterizando uma verdadeira epidemia. Sob a pressão do agronegócio, especialmente nas regiões norte e centro-oeste do país, os indígenas enfrentam novas formas de perseguição, invasão e expulsão. Uma matéria especial publicada no Jornal do Senado em agosto de 2006 destaca que as áreas indígenas estão sob ameaça. A FUNAI, a Polícia Federal e o IBAMA agiram conjuntamente para retirar 19 invasores que, a mando de grileiros, invadiram a terra indígena Caiapó, no sul do Pará. Além de desmatar a região, os invasores portavam motos-serras, espingardas e revólver. Foi constatada a situação de trabalho escravo. Esses conflitos estão tornando-se cada vez mais freqüentes nas regiões brasileiras onde há terras indígenas já demarcadas, ou quando áreas que ainda não foram regularizadas são invadidas, mesmo estando em processo de identificação. Segundo o padre antropólogo Gunter KROEMER, é visível a presença de jagunços armados em terras públicas griladas, onde antes haviam tribos indígenas. Os indígenas têm seus direitos constitucionais rasgados diante de ações predatórias, com incursões em terras indígenas para fins de extração das riquezas naturais como madeiras, minérios. Conforme o relatório “A violência contra os povos indígenas no Brasil”, do Conselho Indigenista Missionário (2003 a 2005), há uma relação desproporcional entre a demarcação de terras e a violência contra indígenas. Quanto menos se demarcam terras, mais casos de violência são registrados. Nesse período, a média de terras declaradas não passou de seis, e a média de assassinatos ultrapassou 40. Crônica de uma natividade ignorada Os jornais Zero Hora e Correio do Povo, principais veículos de comunicação impressa do Rio Grande do Sul, dedicaram ao longo de 2006-2008 (período de realização desta pesquisa), escassos espaços de divulgação sobre os conflitos envolvendo a demarcação de terras indígenas. Também foi possível observar que são igualmente eventuais as publicações de notas e reportagens a respeito dos demais aspectos envolvendo a questão indígena, como educação, assistência à saúde e cultura. Os referidos jornais têm circulação e assinantes em todo o Rio Grande do Sul, um Estado constituído por 10.867.102 habitantes (Fonte: FEE/CIE/NIS, 2006) Os constantes conflitos envolvendo a questão da demarcação de terras, e a pífia denúncia desses conflitos pela mídia, demonstra o quanto não se compreende a cosmovisão indígena, o quanto se desrespeita a sua cultura, e o quanto a ganância e os interesses políticos e econômicos movem as ações ou, pelo contrário, a falta de ações diante da premente necessidade de demarcação de terras, de respeito à constituição, e especialmente respeito pelos direitos e pela cultura indígena. As notícias relacionadas a seguir tratam de conflitos como a criação das áreas indígenas Abelardo Luz e Saudades, em Santa Catarina, a crise entre a reserva indígena Apyterewa e agricultores no Pará, e o conflito entre indígenas da Reserva Raposa Serra do Sol e arrozeiros em Roraima. Crônica das tragédias anunciadas Ao mesmo tempo em que a imprensa muitas vezes deixa de dar espaços importantes a questões que envolvem os interesses dos grupos sociais em situação de vulnerabilidade, deve se destacar o quanto é fundamental o papel dos meios de comunicação quando estes são utilizados no efetivo interesse de divulgar, denunciar e informar a sociedade acerca dos fatos que movem e fazem a história. Infelizmente, as grandes coberturas jornalísticas, de um modo geral, são realizadas quando há o acirramento de conflitos, a consumação de tragédias, como a tragédia anunciada do conflito indígena na reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. No dia 05 de maio de 2008, o Conselho Indígena de Roraima divulgou nota informando que dez índios da reserva Raposa Serra do Sol foram baleados por jagunços do líder dos arrozeiros, Paulo César Quartiero. Em entrevista à Agência Brasil, Quartiero alegou que seus funcionários atiraram em legítima defesa. Ele afirmou ainda que aguarda uma manifestação favorável do Supremo Tribunal Federal sobre a permanência dos arrozeiros na área. Consumada a tragédia, mais um capítulo na vergonhosa história do achamento e do achacamento dos brasis. Dez índios são baleados, e instantaneamente o fato ganha páginas na imprensa, na internet, imagens na tevê aberta e por assinatura. O Brasil “redescobre” momentaneamente que neste país há índios, e, dependendo de como a notícia é divulgada, instantaneamente toma-se partido a favor ou contra os indígenas. Na maioria das vezes, sem se ter o mínimo conhecimento da situação, e da história de lutas desse povo pelo que lhes é seu direito, o direito a áreas tradicionais para viverem, cultivarem suas tradições, e se sustentarem. Não adiantou, por exemplo, o fato de que ainda em 2007 o Comitê de Combate ao Racismo da ONU recomendou ao governo brasileiro que essa área da reserva indígena Raposa Serra do Sol fosse desocupada por não indígenas, já que a área foi homologada em 2005. Apesar disso, os arrozeiros que lá se instalaram questionaram a legalidade do processo de homologação, e os próprios membros do governo e do STF não trataram da recomendação da ONU com a devida urgência. Questões como demarcação de terras indígenas na faixa de fronteira vêm criando atritos internos entre o Exército e o Ministério da Justiça. O general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, fez a seguinte declaração sobre a política indigenista no Brasil: “É um caos, não funciona. Os problemas são enormes, o alcoolismo é crescente. Sou totalmente a favor do índio. Não sou da esquerda escocesa que atrás de um copo de uísque resolve os problemas brasileiros. Eu estou lá na Amazônia vendo o que acontece com o índio brasileiro... É impossível preservar a Amazônia como lenda, floresta verde. O que depende de nós é fazer com que o desenvolvimento aconteça de forma sustentável” (Agência Reuters, 16/04/2008). Embora afirmando ser a favor do índio, o general é contrário à demarcação contínua da reserva, e manifestou sua preocupação com a possibilidade de que a demarcação de terras indígenas coloque em risco a integridade territorial do Brasil. Os indígenas manifestaram ao governo seu descontentamento com a ocupação dos arrozeiros e com as declarações do militar. Marcus Apurinã, vice-presidente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia-COIAB, declarou: “Dissemos ao presidente que não somos uma ameaça à soberania do país. Afirmamos a ele que somos os verdadeiros donos dessas terras, e pedimos que converse com os militares para reverem essa posição equivocada sobre os povos indígenas em áreas de fronteira” (Agência Brasil, 18/08/2008) Os arrozeiros ingressaram com uma ação na qual questionam a regularidade da homologação da reserva. Com a liminar do Supremo Tribunal Federal garantindo a suspensão do desalojamento dos arrozeiros, o acirramento do conflito tornou-se inevitável, em uma divisão entre “índios” e “brancos”, um impasse que poderia e que deveria ter sido evitado por quem tem o poder para fazer isso: o Governo e a Justiça. A morosidade, o descaso, a troca de farpas e declarações preconceituosas, somadas ao problema real que é a permanência de arrozeiros em uma área reconhecida como indígena, transformou o impasse em uma tensão muito maior, como se observa na declaração do coordenador do Centro Indígena de Formação e Cultura da Raposa da Serra do Sol e integrante do Conselho Indígena de Roraima, Ednaldo Pereira André: “Nós somos os guardiões das fronteiras. Nós verificamos casos de drogas, tráfico de mulheres e descaminho de combustível. Nós que defendemos a soberania de nossa fronteira. Podemos sim criar uma Nação Indígena, quem sabe no futuro. Sabemos trabalhar, desenvolvemos plantações e nessa nação podemos contribuir de forma efetiva para o desenvolvimento do Estado” (Redação Terra, 19/04/2008) O governador de Roraima, José de Anchieta, deixou transparecer sua posição contra os indígenas ao afirmar que a ação dos índios foi terrorista. Para ele, os índios invadiram as terras dos arrozeiros motivados por outras pessoas, possivelmente organizações não-governamentais. O governo se preocupa também, com o desaquecimento da produção do Estado caso os fazendeiros desocupem as terras. A plantação de arroz representa 6% da economia de Roraima. Agora, diante do agravamento da situação, o STF autorizou o uso da Força Nacional de Segurança na Reserva. Agora, diante da situação caótica derivada da negligência institucional, da ganância de exploração econômica, e do descaso em efetivar os direitos indígenas, a questão até então não considerada “urgente” como apontava a ONU em 2007, é tratada como prioridade para o governo. O ministro da Justiça, Tarso Genro, considerou “ação inaceitável” a atitude dos arrozeiros. Outras situações que descortinam o descaso das autoridades governamentais referem-se à assistência à saúde. É possível alguém morrer de frio? É humano alguém morrer de desnutrição? É possível alguém receber tratamento diferenciado por não ser branco? É aceitável que alguém seja menosprezado por ser de uma cultura diversa da cultura do branco? Apesar das sucessivas perseguições e dos vários assassinatos de indígenas, há pouca divulgação na imprensa, e uma despreocupação em aprofundar as informações acerca das motivações desses crimes. Saber o que aconteceu, e se os criminosos ficaram impunes. Somente quando há grande repercussão nacional e internacional, os veículos de comunicação mobilizam-se na divulgação dos fatos. Mas apesar de todo o arsenal tecnológico de que hoje se dispõe, e da instantaneidade das informações no mundo on line, predominam as informações superficiais e esparsas acerca das violações cometidas contra indígenas no Brasil. Da mesma forma que pouco se divulga acerca das questões envolvendo a demarcação de terras (no sentido de informar e esclarecer a população das invasões nacionais e internacionais contra áreas tradicionais indígenas), chama atenção o pouco interesse que desperta nos veículos de comunicação abordar pautas sobre a história e a cultura indígena. Na recente visita do Papa Bento XVI ao Brasil, em 2007, o líder máximo da igreja católica declarou que a evangelização não havia sido imposta aos índios. Esta declaração foi duramente criticada por indígenas, estudiosos e ativistas em direitos humanos. A repercussão na mídia foi pífia. Os indígenas, os brasis, foram achados, mas ainda não foram descobertos por grande parcela da população brasileira. Cultivou-se ao longo dos anos uma cultura de discriminação, de desinformação e de alienação, e os indígenas são alijados da sociedade brasileira, como se fossem seres à parte dela; essa mesma sociedade que na escola tradicional ocidental cristã estuda a história oficial do descobrimento, e que celebra o Dia do Índio em 19 de abril. Nesse dia, sempre há notícias nos jornais, mas ainda assim tratadas de forma superficial. As comunidades indígenas, o liberalismo e o comunitarismo Os indígenas têm em comum, independente do local que habitam, algumas características fundamentais que os distinguem de outros grupos. A raça, a etnia, o idioma, os rituais e tradições são algumas dessas características. O modo de viver e de estar na sociedade brasileira se concretiza de diversas formas: há indígenas aculturados, isolados, e os chamados grupos integrados, ou dizendo de outro modo, sugados pelo desencadeamento do fenômeno urbano, pela globalização econômica e pela dominação política da etnia branca. Decorre dessa forma de estar uma série de conseqüências graves nas comunidades indígenas, por serem reconhecidas legalmente em sua cultura, mas não serem reconhecidas em sua diversidade pela cultura não indígena. Os brasis continuam como seres exóticos, não são tratados como seres iguais, mas “diferentes” no sentido discriminatório de ser “diferente”. No liberalismo, os indivíduos e os grupos sociais devem agir livremente e com consciência autônoma, a interferência do Estado é mínima. Para o liberalismo, a sociedade funcionará em equilíbrio se houver o equilíbrio de uma liberdade diante de outra – as liberdades iguais. Para RAWLS (1981), a liberdade é desigual “quando uma espécie de indivíduos tem uma liberdade maior que os demais, ou a liberdade é menos extensa do que deveria ser” (p.165.) Nesta perspectiva e modo de viver em sociedade, os indígenas são realmente corpos estranhos, e deslocados, e as diferenças não somente existem, como se acentuam no individualismo dos grupos que constituem a sociedade liberal. A etnia é um fator de poder e de dominação de um grupo sobre outro(s). As discriminações por raça, como ocorrem com os indígenas, mostram que a universalização da liberdade das consciências no plano político tem se revelado como homo homini lupus, e as legislações e políticas públicas minimizam, mas não têm dado conta dessa situação. Pelo não reconhecimento da igualdade das liberdades, por um lado, e o não reconhecimento das diferenças entre iguais. Do mesmo modo, o comunitarismo acentua a influência do contexto histórico e cultural sobre os indivíduos. Visto assim pode parecer que a questão indígena estaria inserida “como uma luva” na concepção comunitarista, segundo a qual os indivíduos devem estar inseridos em uma comunidade política de iguais. Não se concebe a individualidade sem a socialização. Os povos indígenas brasileiros, por estarem inseridos no contexto urbano e cosmopolita das cidades, estão tornando-se cada vez mais dependentes das ações empreendidas pelo paternalismo político e estatal. Ao mesmo tempo em que os indígenas reivindicam sua liberdade, que se manifesta em plenitude na luta pela demarcação de terras, muitos indígenas terminam por abrir mão de algumas de suas principais características, como o idioma, arte e sustentabilidade, para, agindo como brancos, buscarem o reconhecimento como índios. Essa forma de agir, talvez seja a mais sutil e contemporânea forma de massacre cultural dos indígenas brasileiros, pela manipulação cultural, ideológica, econômica e política. Para viverem em sua comunidade, precisam primeiro sobreviver, e muitas vezes para que isso aconteça são forçados a conviver com um mundo que não é o seu, na busca de regressar para o seu próprio mundo, o mundo indígena. Estudiosos e indigenistas brasileiros se esforçam no sentido de dar visibilidade à causa indígena. Mas todas as questões que envolvem mudanças legais, constitucionais, e a criação e implementação de políticas públicas, bem como a demarcação de terras e projetos de sustentabilidade indígena, transitam necessariamente pelos representantes do poder público, do Estado, da União, das instâncias políticas e do poder Judiciário. Como tem sido a atuação dessas esferas de poder no sentido de melhorar e dignificar a vida dos brasis? Tem realmente havido interesse, dedicação, tem se dado a devida relevância às questões indígenas? As violações contra índios têm ficado impunes? Cada crime, cada massacre, cada ação que caracteriza um etnocídio vem sendo combatido de forma exemplar? Assistimos à lentidão da Justiça na tramitação dos processos, à escassez de pessoal para atuar junto às comunidades indígenas, a falta de apoio governamental a projetos sociais nesta área, a ausência de um plano estratégico capaz de dar autonomia aos indígenas, a começar pela demarcação de terras. Realizam-se solenidades e eventos – com muitos recursos públicos e pouca eficácia concreta – sobre os problemas indígenas. Desenvolvem-se ações pontuais, assistencialistas, que mantêm os indígenas tutelados e dependentes do poder político e da etnia branca, em uma cadeia de dominação que apesar da roupagem da modernidade não difere tanto assim dos nossos ancestrais colonizadores. Mantém-se uma política de achamento, não se deseja o descobrimento. O Plano de Aceleração do Crescimento seria a resposta do Governo Federal no sentido de combater os principais problemas que afligem as comunidades indígenas, como a grilagem e a invasão de terras por parte de fazendeiros e garimpeiros. Foi então criado o PAC Indígena, com a pretensão de implementar os seguintes programas: Proteção dos Povos Indígenas, Promoção dos Povos Indígenas, Qualidade de Vida dos Povos Indígenas. A proposta partiu do mesmo governo que em recentes declarações públicas referiu-se ao povo indígena como “entrave ao desenvolvimento do Brasil”. O programa foi apresentado sem a apreciação da Comissão Nacional de Política Indigenista, criada em 2006 e instalada em 2007 com o propósito de tratar de assuntos de interesse das comunidades indígenas. Apesar de anunciado, o PAC Indígena até o momento carece de planejamento, previsão e origem orçamentária. Medidas pontuais estão sendo desenvolvidas na área da cultura, com a instituição do prêmio Culturas Indígenas, e o trabalho da FUNASA com relação a obras de saneamento básico. A questão crucial para os brasis – a terra – não parece ser a questão crucial na política governamental com relação aos indígenas do Brasil. O descobrimento da indianeidade A terra é o elemento sagrado para os povos indígenas. Para eles, a terra é Mãe e Pai. A terra representa o encontro com a natureza, o cenário no qual a comunidade confraterniza através de narrativas míticas que são passadas de geração para geração. Percebe-se que por trás desse evidente descaso dos governos, e da própria sociedade porquanto não se interessa, ou se envolve nessa questão, há um choque de visões de mundo, um choque de interesses, nos quais a “cegueira do descobridor”, como observa BERGAMASCHI (2005), pelo não reconhecimento da diferença, e pelo encobrimento da cultura indígena, persiste. Os povos indígenas brasileiros habitam terras, reservas, e na maioria das situações perambulam por assentamentos, locais tidos como provisórios, acampamentos, espaços pertencentes a órgãos governamentais. Essas habitações são sempre locais que não têm qualquer tipo de relação com a sua forma de ser original de ser e de viver. Vivem sendo expulsos de suas terras; chamados ao conflito; emboscados, ignorados. Invisibilizados. No mundo urbano da modernidade, ou também chamada pós-modernidade, no mundo tecnológico, dos produtos descartáveis, da sociedade de consumo, dos interesses especulativos da propriedade privada, dos mercados e capitais, das cada vez mais divididas classes sociais, dos preconceitos e discriminações raciais e econômicas, neste mundo real e não indígena, não há espaço para ser e poder ser indígena. “Essa mesma explicação pode ser estendida à história dos povos indígenas da América, bem como às marcas indígenas que faz mestiço o continente americano, marcas que estão camufladas, “entulhadas” sob uma visão de branquetude, de pureza, de pseudo-europeidade. Mais do que em outros países latino-americanos, cuja presença indígena é contundente e visível “à flor da pele”, no Brasil há um desconhecimento, uma desconsideração dos povos indígenas e, em geral, sua existência é reconhecida e admitida na Amazônia, ou no Xingu. Quando se fala nos índios no Rio Grande do Sul é comum o espanto ou o julgamento, expresso em comentários como: “esses já não são mais índios, estão aculturados.” (CIDA BERGAMASCHI, 2005, p. 35-36) Ainda hoje, assim como na época do achamento, predomina essa visão do colonizador-dominador-superior sobre o colonizado-dominado-inferior. O indígena é reconhecido por sua aparência e vestes típicas, mas não é reconhecido em sua cultura e jeito próprio de ser. Não lhe é reconhecida autonomia, não lhe é dignificado o jeito “diferente” de ser, falar e agir. Não se admite como igual, nem se reconhece a identidade. Nessa ambivalente e muitas vezes conflituosa relação, a impossibilidade de comunicação não resulta de linguagens e costumes diferentes, mas de um distanciamento da vontade de reconhecer no outro e em si próprio as raízes de uma cultura ameríndia, que apesar de sufocada pela colonização, continuou a existir e a ser passada de geração a geração. Há uma resistência em aceitar-se como alguém que de alguma forma tem suas origens em uma cultura oriunda da doutrina cristã européia; por outro lado, perpetua-se a visão preconceituosa com relação a uma cultura tida como inferior, e ao mesmo tempo saber-se ser também, de alguma forma, oriundo dessa cultura. A brasilidade está a descobrir-se, a desvelar-se. A libertar-se de valores que lhe foram impostos, a conhecer suas entranhas históricas e a desfazer mitos e mentiras contadas como verdadeiras. A história contada pelos vencedores nem sempre é a história verdadeira. Rapidamente, a palavra índio tornou-se um estereótipo e passou a definir homens tidos como atrasados, ingênuos e preguiçosos. Homens inferiores, enfim. (MAESTRI, 1994, p. 11) A constatação da discriminação é dolorosa e real. No ano de 2006, em uma escola no município de Estrela, no Rio Grande do Sul, adolescentes indígenas tiveram que abandonar os estudos por serem vítimas de discriminação. Os índios Kaingang vivem em uma área com 16 hectares, onde há uma pequena escola da aldeia. Lá os estudos são desenvolvidos até a quarta série. Para continuar os estudos, as crianças indígenas precisam se deslocar por 16 quilômetros. Nesta escola, colegas brancos chamaram uma jovem kaingang de “índia suja e piolhenta”. Uma nação assumidamente mestiça como a brasileira carrega no dia-a-dia, em espaços como a escola, o racismo. Pesquisa recentemente realizada pela rede britânica BBC mapeou a ancestralidade genética de negros brasileiros, e a constatação principal é de que o total de 100 por cento de nossa brasilidade é uma soma de percentuais das ancestralidades africana, européia e ameríndia. “Os ameríndios não assimilaram as verdades absolutas da doutrina cristã européia, impostas a eles de forma veemente pelo colonizador, devido à força de sua cosmologia e à distância entre o pensamento indígena e o pensamento ocidental. Kusch (1986, p.67) insistindo na tese da continuidade dos povos pré-colombianos na atualidade americana, acredita na presença indígena na América que precisa se reconhecer e se admitir em sua indianeidade e, como América indígena, construir os seus caminhos próprios.” (BERGAMASCHI, 2005, p. 104) KUSCH (1986) propõe a compreensão da América a partir de um pensamento indígena. Apesar de toda a sorte de violências e violações a sua cultura, os indígenas mantiveram suas crenças e sua cosmovisão. Pelo processo que Kusch chama de fagocitação, “A América mestiça vive a ambigüidade do ser europeu e do estar aí indígena”, uma conjunção a partir da qual percebe-se uma efetiva presença indígena na América, e uma América a desvendar essa indianeidade para construir os seus próprios caminhos. Segundo BERGAMASCHI (2005), Kusch não desconhece a força agressora e destruidora da colonização, nem a violação dos direitos dos povos indígenas. Mas apesar destes acontecimentos a força do “estar aí” indígena não foi destruída, permanece em nossa América. Os povos indígenas existem apesar do modelo europeu etnocêntrico, que desqualificou o que encontrou na América, valorizando o branco, cristão e masculino. Apesar dessa lógica discriminatória, os povos indígenas existem, persistem, resistem. “Quando nos aproximamos dos índios e lhes oferecemos nossas escolas, nossos hospitais, nossos empregos e salários, nosso consumo decorrente de uma relação específica com os objetos, estamos imbuídos do pensamento ocidental que se julga único e raramente se dispõe a considerar a profundidade e a própria legitimidade desse outro pensar. Todas as instituições da sociedade não indígena americana têm a marca de um pensamento lógico, que a modernidade européia forjou, baseada na objetividade que fragmenta o mundo e explica seus porquês, buscando soluções eficientes num pensar causal, despersonalizado, científico e ativo. Em geral, mesmo envolto em “boas intenções”, as ações que partem do mundo ocidental para o mundo indígena se frustram, ao não considerar um pensamento e um modo de ser próprios. Ao oferecer soluções ocidentais para o modo de vida Guarani, estamos, em geral, considerando o conhecimento que se forjou durante o processo de industrialização e no mundo dos objetos, criado “fora dos sujeitos”, valorizado e consumido pelo ser ocidental. Os objetos não têm, na vida Guarani, o mesmo valor que a eles atribuímos e isso nos escandaliza, pois não é comum nas aldeias a sacralização dos objetos e, ao vê-los jogados, os olhos desavisados julgam tal desapego como descuido, desleixo e negligência.” (BERGAMASCHI, 2005, P. 105) Os citadinos Uma questão emergente no estudo sobre os povos indígenas é a migração de indígenas para espaços urbanos. Há diversas motivações para esse perambular de aldeias a não aldeias. Os índios que se dirigem para as cidades, que habitam os grandes centros ou as periferias desses centros, são considerados índios urbanos. Na verdade, a situação precária na qual vivem reflete a precariedade com que são (des) assistidos pelo poder público ao longo do tempo. Quanto maior fosse o cuidado com a questão indígena, menor seria o êxodo. Há diversos casos de migração para as capitais devido a expulsão de suas terras originárias; a falta de políticas públicas indigenistas que dêem conta das necessidades básicas dos indígenas, para a sua sobrevivência. Mas é importante salientar que os indígenas mudam de lugar mas permanecem indígenas, pelo fato de se auto-identificarem como indígenas. Dispersos no meio urbano, mas mantendo sua cultura e tradições, permanecem vivendo no universo indígena. Para Marcos Júbilo Aguiar, coordenador do Projeto “Índios Urbanos” da ONG Opção Brasil, “não é porque um índio sai de sua aldeia em busca de melhores condições de vida que ele deixa de ser índio. Assim como um brasileiro que vai para o exterior não deixa de ser brasileiro.” Atualmente, há indígenas vivendo em loteamentos, barracões, acampamentos, assentamentos, casas, favelas, instalações improvisadas. Há indígenas que silenciam sobre sua origem, e trabalham como pedreiros, empregadas domésticas, entre outras funções. Há indígenas assalariados, bem como vários sem emprego formal, e que sobrevivem da comercialização de artesanato. Este é inclusive o maior momento de aproximação dos não indígenas com os indígenas no meio urbano – pela comercialização do artesanato e pela apreciação de sua arte. A FUNAI não dispõe de estatísticas e de políticas indígenas que assistam a essas populações indígenas urbanas. A antropóloga Carmem Junqueira, da PUCSP, afirma que “o que determina que um índio seja índio é o auto-reconhecimento e o reconhecimento da sociedade a qual pertence. Os índios que saem de suas terras e vão para as cidades não são reconhecidos pela FUNAI. Eles também precisam de casa, atendimento de saúde, educação diferenciada, assim como os índios que vivem nas aldeias.” Para o professor de antropologia da UnB, Stephen Baines, “tentativas populares de argumentar que o índio na cidade “deixa de ser índio” são fruto de um preconceito altamente pejorativo quanto ao índio, que o congela no tempo e no espaço, colocando-o em oposição à vida urbana e relegando-o ao atraso; à pobreza e à ignorância. Preconceito que muitos índios têm internalizado em relação a si mesmos, como revela, por exemplo, o fenômeno do caboclismo na Amazônia. A Constituição de 1988, ao reconhecer o direito dos índios de se representarem juridicamente, resultou na criação de dezenas de organizações indígenas e numa mobilização política indígena sem precedentes. Um número crescente de líderes indígenas está migrando para as cidades para participar do movimento indígena, e muitos jovens indígenas estão migrando para estudarem e se prepararem para enfrentar a sociedade nacional. Apesar de algumas conquistas em nível local para aliviar as condições difíceis que a maioria das populações indígenas enfrenta e tentativas por parte de muitas sociedades indígenas de se organizarem dentro das suas terras, as tendências atuais de governo impor práticas neoliberais apontam para um crescente desafio para as sociedades indígenas frente ao agravamento das desigualdades econômicas e sociais”. (www.funai.org.br/artigos) Devemos refletir sobre o fato de que o Brasil surgiu e foi construído a partir de terras e nativos indígenas. Somos e estamos imbuídos dessa cultura, desse modo de ser. Conforme o censo demográfico do IBGE (2000), há 241 povos indígenas vivendo em um total de 850 terras tradicionais, algumas demarcadas, outras não, em 24 do total de 27 unidades da federação. Situação das Terras Indígenas no Brasil Registradas Homologadas Declaradas Identificadas A identificar Sem providências Reservadas/Dominiais Total Quantidade 343 49 53 19 126 224 35 850 Fonte: CIMI, 18/12/2007 Existem povos indígenas sem contato com a sociedade, e uma grande quantidade de indígenas que vivem em centros urbanos. As línguas indígenas, em um total de 180, são faladas por cerca de 270 mil pessoas, concentradas especialmente na região amazônica. UF Acre (AC) Alagoas (AL) Amapá (AP) Amazonas (AM) Bahia (BA) Ceará (CE) Distrito Federal Espírito Santo (ES) Goiás (GO) Maranhão (MA) Mato Grosso (MT) Mato Grosso do Sul (MS) Minas Gerais (MG) Pará (PA) Paraíba (PB) Paraná (PR) Pernambuco (PE) Piauí Rio de Janeiro (RJ) Rio Grande do Norte Rio Grande do Sul (RS) Rondônia (RO) Roraima (RR) Santa Catarina (SC) São Paulo (SP) Sergipe (SE) Tocantins (TO) Total População 8.009 9.074 4.972 113.391 64.240 12.198 7.154 12.746 14.110 27.571 29.196 53.900 48.720 37.681 10.088 31.488 34.669 2.664 35.934 3.168 38.718 10.683 28.128 14.542 63.789 6.717 10.581 734.131 % do total 1,09 1,24 0,68 15,45 8,75 1,66 0,97 1,74 1,92 3,76 3,98 7,34 6,64 5,13 1,37 4,29 4,72 0,36 4,89 0,43 5,27 1,46 3,83 1,98 8,69 0,91 1,44 100 Há 241 povos indígenas reconhecidos que vivem no território brasileiro: Fonte:CIMI 18/12/2007 A presença Guarani e Kaingang na imprensa de Porto Alegre “Reivindicação” é a palavra que melhor resume o teor das notícias publicadas na imprensa local nos anos de 2006 a 2008 com relações às comunidades indígenas em Porto Alegre. Apesar de não serem muitas as informações divulgadas, nem tampouco serem extensas ou intensas, no sentido de aprofundar a situação em que se encontram esses povos, as matérias dão um pouco de visibilidade a comunidades que estão há vários anos vivendo na capital do Rio Grande do Sul, praticamente ignoradas pela sociedade porto-alegrense. Os indígenas são reconhecidos quando estão comercializando artesanato no centro da cidade, ou no Brique da Redenção; são vistos quando participam de marchas e de eventos nos quais procuram relatar a precariedade de condições nas quais sobrevivem. Os Guarani e os Kaingang têm idiomas e culturas característicos, mas lutam conjuntamente no sentido de reivindicar aos representantes do poder público, a efetivação de políticas públicas, a demarcação de terras, as condições de infra-estrutura, a criação de alternativas que possibilitem a auto-sustentabilidade desses povos. Talvez seja esse, atualmente, o maior desafio dessas comunidades. É a situação do povo Guarani, que produz cestarias com fibras de taquara, esculturas em madeira, enquanto que os Kaingang dedicam-se a confecção de cestarias com cipós, especialmente, e sobrevivem da coleta de ervas e alimentos nas matas da região. O IBGE estima que há 38 mil indígenas Guarani e Kaingang no Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, essas comunidades vivem na Lomba do Pinheiro, e há uma comunidade Kaingang no Parque Natural Morro do Osso, desde abril de 2004. A permanência dessa comunidade no Morro do Osso não está definida. Os indígenas entraram com ação pedindo direito de posse a essa área, por ter vestígios de seus antepassados. A ação sofreu contestações diversas, por parte da Prefeitura, entidades ecológicas e moradores da região, localizada em um bairro de classe média alta da capital. Políticas assistencialistas têm se mostrado um verdadeiro fracasso no encaminhamento de questões vitais para os povos indígenas, como habitação, alimentação, saúde e educação. Um Estado tutelador cria, alimenta e mantém a dependência. A ausência de projetos de autosustentabilidade indígena é nefasta, pois não permite o estabelecimento de condições dignas de sobrevivência desses povos, que permanecem perambulantes, alijados de ações que realmente garantam uma vida melhor para suas famílias. Os brasis foram criados na liberdade e na relação direta com a natureza. E a realidade hoje, decididamente, não lembra e não remonta a essa forma de ser e viver indígena em sua plenitude. Os índios Charrua Para a FUNAI, os índios Charrua eram considerados povos extintos. A FUNAI, entidade que legalmente deve trabalhar pela causa indígena, negava reconhecê-los como etnia. Os índios Charrua pertenciam à raça pampeana, eram caçadores-coletores que deixaram vestígios da sua ocupação há mais de quatro mil anos. Pesquisas arqueológicas revelam que eles habitaram regiões como o Rio Grande do Sul, no Brasil, Entre Rios e Corrientes (Argentina) e quase todo o Uruguai. Há estimativas de que havia 1.100 índios Charrua, e que devido a ação dos colonizadores, foram forçados a fazer vários deslocamentos, por não se submeterem ao aldeamento fixo e por reagirem ao expansionismo colonialista. A população Charrua teve seus territórios ocupados por espanhóis e portugueses, sobretudo no final do século XVIII e no início do século XIX, com a proliferação das estâncias e criação de gado. Nos anos de 1831 e 1832 dois combates de extermínio foram praticados por forças do governo do Uruguai contra os índios pampeanos. Muitos índios foram presos, sacrificados. As mulheres, crianças e velhos distribuídos foram em público, encaminhados a famílias brancas para prestarem serviços domésticos. Devido a esse massacre, e a escassez de registros históricos desde o início do século XIX, oficializou-se a extinção do povo Charrua, mas sempre houve a possibilidade de que os sobreviventes houvessem se deslocado em um número pequeno, porém capaz de reconstituir sua etnia, com descendentes no Uruguai e no Rio Grande do Sul. Segundo Maria Catira BORTOLINI e Andréa Rita MARRERO, “a herança genética Charrua pode também estar presente em muitos daqueles que se identificam como gaúchos, e seu homônimo dos vizinhos países do Prata – os gauchos ... O gaúcho típico apareceu primeiramente nas terras do rio do Prata e seu surgimento no Rio Grande do Sul teria sido mais tardio, porém, sob a influência dos mesmos fatores: cavalos, pastagens abundantes e enormes rebanhos de gado. Sendo assim, o gaúcho poderia ser definido como o tipo social enquadrado dentro do contexto étnico, cultural e histórico em que se formou. Teriam herdado da grande etnia Charrua, a técnica de dominar o cavalo durante as gineteadas, bem como objetos de couro que fazem parte dos utensílios e indumentária típica gaúcha, tais como boleadeira e a lança.” KERN (1994) revela que os Charrua encontravam-se junto aos vales do rio Uruguai e seus afluentes, de ambas as margens, e que realizavam constantes migrações para os campos da mesopotâmia Argentina. Graças à mestiçagem houve integrantes dessa cultura que conseguiram sobreviver. BORTOLINI e MARRERO realizaram um estudo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cujo resultado aponta, do ponto de vista genético, a origem Charrua como constitutiva do povo gaúcho: “Os dados gerados a partir de marcadores do cromossomo Y e do DNA mitocondrial (mtDNA) mostraram que a região do Pampa do Rio Grande do Sul constitui-se em um verdadeiro reservatório de material genético nativo americano, tão importante em termos quantitativos, quanto a região Amazônica brasileira. Em especial destaque para a presença de 46% de linhagens mitocondriais de origem ameríndia na amostra investigada. Este trabalho buscou caracterizar o estoque genético nativo comparando estas linhagens do mtDNA com aquelas encontradas em uma grande amostra de índios guaranis (uma vez que alguns historiadores sugerem que o grupo Guarani pode ser considerado como a etnia indígena que desempenhou o papel mais importante na formação do povo gaúcho). Porém, as linhagens mitocondriais nativas americanas identificadas na nossa amostra do Pampa não se agruparam de tal maneira que se pudesse dizer que tenham uma origem majoritariamente Guarani. Sendo assim, esses dados sugerem que parte dessas linhagens poderia ser identificada como de origem Charrua e não Guarani.” (BORTOLINI e MARREIRO) Este parecer científico foi anexado à carta que Maria do Carmo Lima de Moura, a Cacique Acuab, do povo Charrua do Rio Grande do Sul, enviou ao presidente da FUNAI, em 30 de março de 2006. “Senhor Presidente, Nós, índios Charrua, vivemos há quarenta anos, em Vila São José, em Porto Alegre, como também nossa comunidade vive em Santo Ângelo, São Miguel das Missões e Morro da Cruz, como também do outro lado brasileiro (Uruguai – grupo Chonik e Argentina). Na comunidade de Vila São José existem 17 crianças, 20 adultos e mais os que vivem na cidade. Durante todos estes anos, vivendo este tempo todo perambulando pelas cidades, sendo massacrados, tratados como indigente, discriminados, sem nenhuma assitência de algum órgão do estado. Faz 170 anos, que nosso povo não é reconhecido pelo Estado do Rio Grande do Sul, ao qual nós, Charrua, ajudamos a construir as tradições e história do Estado, como construtores das tradições gaúchas, o chimarrão, churrasco de espeto de chão, guaiaca, tiripá e quichapin, o facão colocado no lado da cintura, a tiara pampeana e sua vez, colaborando em todas as revoluções do Rio Grande do Sul e treinando aos que hoje são na história os lanceiros negros, pelo bis, tataravô da Cacique Acuab, chamado Polidoro Aninha Sepé... Vivemos na condição de mendicância, catando lata, papelão. Com a venda disto tudo, não dá pra nós viver nesta situação... Hoje, na atual comunidade em que vivemos, estamos prestes a ser despejados para um Albergue pela prefeitura. Nós não queremos ir para Albergue nenhum, mas sim para uma terra que não venha a tirar nós dela. Nós queremos plantar nossas roças, criar galinha, praticar nossas dança e rituais, praticar nossa língua e nosso cântico. Nós não somos guarani e nem queremos ser confundidos com eles, nós não queremos ser confundido com chilenos, nós somos povo Charrua, originários do Sul. As casas tão caindo em cima das crianças... Diante disso, sr. Presidente, solicitamos o reconhecimento do nosso povo Charrua como também um lugar, uma terra para nós morar que não seja doente, uma terra boa. Atenciosamente, Maria do Carmo Lima de Moura (Cacique Geral dos Charrua do Rio Grande do Sul) Conheci Acuab em outubro de 2006. Maria do Carmo Lima de Moura nasceu em São Miguel das Missões, no dia 27 de junho de 1954, e foi registrada em Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul. Foi casada com o indígena Osvaldo Moura, com quem tem quatro filhos e nove netos. Seu pai chamava-se José Maria de Lima, e sua mãe, Nalia Martins de Lima. Acuab, cujo nome significa em Charrua “a que recolhe água da chuva”, tornou-se cacique aos 17 anos, mas começou a receber ensinamentos desde os sete anos. Foto: Adriana Franciosi A história de vida de Acuab é emblemática do histórico processo de descaso, abandono e negligência do Estado em proporcionar uma vida digna aos indígenas no Brasil, e da indiferença da sociedade diante dessa situação que acontece diante dos nossos olhos. Meu convívio com Acuab permitiu-me descobrir um mundo que até então eu conhecia pelos livros de história, pelas reportagens e pela idéia que eu fazia dos povos indígenas. Minha primeira descoberta é que temos diante de nós uma comunidade que, apesar de uma história de perseguições e discriminações, prossegue em uma luta pelo reconhecimento e pelos seus direitos, mas uma luta na qual mantêm sua comunidade unida, com afetividade, com respeito e apreço pela cultura não indígena. Em um primeiro momento, não consegui imaginar como eles podiam viver e sobreviver em condições de vida tão precárias e desumanas. E que apesar dessa situação, sempre mantinham o sorriso na face. Ao perceber em Acuab um semblante sereno e alegre, e ao mesmo tempo uma férrea disposição para a luta, para a reivindicação das necessidades de seu povo, eu percebi que estava diante de uma legítima representante e líder de uma cultura viva, e que passados 508 anos do achamento do Brasil, apesar de todos os genocídios e violações cometidas contra os povos indígenas, eu estava diante de uma mulher guerreira, descendente de um povo guerreiro, desbravador, tido como extinto, evocado como desaparecido: essa era apenas mais uma das violações que o governo cometia, mais um erro histórico a ser reparado. Acuab e seus familiares foram expulsos das terras onde viviam, na Oca das Missões, em São Miguel, e foram perambulando por vários lugares, discriminados. Dispersaram-se ao longo dos anos. Acuab chegou a Porto Alegre há mais de quarenta anos, e durante esse período habitou uma casa no Morro da Cruz, juntamente com o então marido, Osvaldo Moura, os filhos e netos. Sobreviveram ao longo desse período com a produção de artesanato, a reciclagem de lixo, a doação de alimentos e agasalhos, o apoio de pessoas sensibilizadas com a causa indígena, e a assistência social da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Essa assistência, contudo, sempre foi dificultada pelo fato de Acuab e seu povo não serem oficialmente reconhecidos como da etnia Charrua. Osvaldo Moura, ex-marido de Acuab Acuab tornou-se presença constante em eventos políticos, sociais e voltados às causas indígenas, como o Fórum Social Mundial, Os 250 anos da morte de Sepé Tiaraju, Fórum Internacional dos Povos Indígenas, I Encontro Multicultural do Morro da Cruz, 5º Acampamento Internacional da Juventude, III Seminário Nacional do Centro de Referência às Vítimas da Violência, Acampamento Terra Livre, Seminário Internacional 170 anos da Revolução Farroupilha, 9ª Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas, Mostra de Arte e Cultura Indígena, Foro Internacional Kizomba no Uruguai, I Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres e o Seminário de Políticas Públicas para Mulheres, tendo sido eleita Delegada das Mulheres Indígenas do Rio Grande do Sul. Acuab participou do revezamento da tocha pan-americana em Porto Alegre - 2007 A cacique especializou-se em perambular nos gabinetes dos parlamentares, sejam vereadores, deputados estaduais ou federais, senadores, e mesmo junto aos representantes do executivo municipal, estadual e federal. Tornou-se, por carisma, necessidade e devoção, líder indígena na reivindicação de seu povo junto aos poderes instituídos pela cultura não indígena, e passou a tentar decifrar e compreender esse jeito completamente diferente de agir, negociar, encaminhar, tramitar... Acredito na imensa dificuldade de Acuab em compreender essa forma que os gestores das instituições governamentais utilizam para resolver problemas étnico-sociais. Até porque para nós, criados e educados neste sistema, muitas vezes os projetos parecem ser inócuos, distanciam-se da realidade, convergem para interesses políticos, eleitorais e assistencialistas, e por esses motivos nem sempre chegam de fato às comunidades que necessitam. Mas esse verdadeiro enigma institucional não foi empecilho para Acuab trilhar uma verdadeira caminhada, de porta em porta, de gabinete em gabinete, de reunião em reunião. Com vitalidade, energia, aquele sorriso e aquela naturalidade de perguntar o que for preciso, de dizer o que pensa, de pedir o que necessita. Acuab não hesitou, por exemplo, em falar diretamente com autoridades como o exgovernador do Rio Grande do Sul, Germano Rigotto, a atual governadora, Yeda Crusius, o prefeito de Porto Alegre, José Fogaça, e o presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva. Falou também com o presidente venezuelano Hugo Chávez sobre a necessidade de reconhecimento dos índios Charrua, quando ele veio a Porto Alegre, participar do Fórum Social Mundial: Acuab com Hugo Chávez Acuab e seus familiares reivindicavam seus direitos como povo Charrua e como indígenas. Viviam em um casebre no Morro da Cruz, na Vila São José. O local, além de pequeno e completamente inapropriado para o modo de vida indígena, apresentava riscos à segurança do povo Charrua, com risco de desabamento. A Prefeitura então, providenciou o acolhimento do povo de Acuab em um galpão localizado na Estrada Cristiano Kraemer, no bairro Vila Nova, para “permanecerem provisoriamente”. Acuab sempre recorreu aos representantes parlamentares e gestores públicos para reivindicar o reconhecimento do povo Charrua do Rio Grande do Sul e o direito à terra. A saga da Cacique, a exemplo do que ocorre com outras lideranças indígenas no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre, é diferente do que acontece em relação aos povos indígenas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil, pois não envolve conflitos armados, emboscadas e crimes. É um outro tipo de des-assistência, é o não ouvir, o não dialogar, o não fazer, o não querer. É a falta de ação, a falta de emoção. É, simplesmente, a falta. É claro que nesse percurso de reivindicações muitos pesquisadores, antropólogos, educadores, gestores e representantes políticos se sensibilizaram e se solidarizaram com a causa indígena, que envolve as comunidades Charrua, Kaingang e Guarani. Acuab em sessão na Câmara Municipal de Porto Alegre, 2007 Mas é importante salientar que as buscas e lutas indígenas não são histórias lineares, não correspondem às expectativas que a cultura não indígena possa ter ou desejar impor; são modos diversos, são cosmologias que coexistem mas não se fundem e nem se confundem. Muitas vezes o diálogo é difícil, pois para que ele se efetive é necessária a abertura e a compreensão de uma forma de ver e agir diferente da nossa, de aceitar se colocar no lugar do outro, de compreender a sua verdade, a sua liberdade, e saber respeitá-la. Este despreendimento, esse exercício não é nada fácil, se não abrirmos mão de uma imposição valorativa etnocêntrica. Nesse caso, não há diálogos, mas monólogos; não há compreensão, mas mal-entendido; não há ação, há cooptação. Há achamento, sem descoberta. O “Parecer Charrua” A FUNAI tratou a questão Charrua de forma lacônica, pré-julgando a reivindicação e endossando a “extinção” do povo Charrua, apesar de não haver evidências e provas irrefutáveis. Em vez de requerer o aprofundamento de pesquisas antropológicas e arqueológicas, em vez de consultar pesquisadores que se dedicam a estudar os povos indígenas, especialmente na questão da etnia Charrua, o órgão optou por pautar-se em um laudo fundamentado na Lei 6001 (que considera os indígenas relativamente capazes) e referiu-se à reivindicação da comunidade de Acuab como sendo de “GRUPOS URBANOS QUE DESEJAM SER RECONHECIDOS COMO COMUNIDADES INDÍGENAS” (Parecer do Caso Charrua, MEMO nº 04/CGID/DAF, Brasília, em 08 de janeiro de 2007): “Baseado na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, tanto o MPF quanto as Coordenadorias de Defesa dos Direitos Indígenas (CGDDI) e da Coordenadoria Geral de Ensino e Pesquisa (CGEP) da FUNAI tem assumido uma posição equivocada quanto a reivindicações de grupos urbanos que desejam ser reconhecidos como “comunidades indígenas”, fazendo uma leitura restrita da convenção no seu Artigo 1º item 2 “A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.” A partir dos documentos apresentados cuja genealogia está baseada na suposta ascendência de um avô Charrua, de Maria do Carmo Lima de Moura, ou Maria Acuab, do Bairro Vila Nova, Porto Alegre, pode-se afirmar que não se enquadra na Convenção 169, que estabelece a proteção para povos tribais (e não indivíduos) cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional. Desde meados da década de 1970 a cidade de Porto Alegre e o próprio Estado do Rio Grande do Sul foi pioneiro em entidades de apoio aos povos indígenas e haveria todas as condições para o reconhecimento de um grupo indígena que estivesse organizado como um grupo social diferenciado. É estranho, portanto, que somente agora esse grupo venha a se apresentar como Charrua reivindicando o reconhecimento étnico e o direito a uma terra. A FUNAI constitucionalmente só pode reconhecer terras indígenas de ocupação tradicional, o que implica na existência de um povo que ocupe essa terra de forma contínua e tenha aí assentada a sua organização social, o que não é o caso da Vila Nova ou qualquer outro território dentro do município de Porto Alegre. O interesse pela proteção do Estado e principalmente por uma terra, por parte de grupos despossuídos da sociedade brasileira, se soma à oferta de recursos internacionais para projetos com populações indígenas. É muito conveniente para algumas “organizações nãogovernamentais” e, mesmo algumas universidades, ter grupos “indígenas” urbanos que justifiquem a tomada de recursos externos para manter projetos de significado duvidoso como apoio a população carente.” (JURACILDA VEIGA, PARECER DO CASO CHARRUA, p.3-4 grifos nossos) Fica claro, em primeiro lugar, que o órgão não agiu com objetividade, sem a análise e o detalhamento de vastos instrumentos jurídicos, antropológicos e históricos, com vistas a verificar, de fato, a existência desta descendência. Realizou uma análise parcial, abusou de adjetivações que expressam dúvida e pressuposições com relação aos indígenas requerentes, procurando desqualificar e deslegitimar a reivindicação. Também careceu de ética e respeito com os requerentes e com as instituições que atuam no estudo, pesquisa e proteção aos povos indígenas, ao referir-se, com base em pressuposições não explicitadas, sobre “a utilização de indígenas por organizações nãogovernamentais e universidades”, com fins obviamente escusos. Se há tal presunção, que se comprovem e apontem as irregularidades, exatamente para evitar que grupos – indígenas e não indígenas – sejam ludibriados. O que não se pode admitir é que sob o manto da generalização e da leviandade, um órgão governamental criado para assistir e dar proteção legal aos povos indígenas trate de questões tão importantes como o reconhecimento de uma etnia da forma como este memorando tratou, com carência de informações objetivas, e com o abuso de terminologias subjetivas e de cunho preconceituoso e desmoralizador com relação aos requerentes. Minha leitura deste documento é que, lamentavelmente, cumpriu-se mais uma vez a tradição de negar um direito, e de agir de forma discriminatória ao qualificar Acuab e seu povo como grupos indígenas urbanos. Não satisfeita em desqualificar o pedido, a relatora do referido memorando, Juracilda Veiga, coordenadora-geral de Identificação e Delimitação da FUNAI, encaminhou ao presidente da Fundação, Mércio Pereira Gomes, este documento no qual escreveu: “Tomando por verdadeira a ascendência Charrua, por apenas um dos avós, de Maria do Carmo e seus oito irmãos essa família não constitui uma “comunidade Charrua” e, menos ainda o “povo Charrua”, e o recrutamento de pessoas na região das Missões no Rio Grande do Sul, deixa claro que não há uma organização social Charrua estabelecida, mas a tentativa de formar um grupo reivindicante para pedir terra e proteção do Estado brasileiro. Chega a ser indigno que os órgãos públicos dêem atenção a esse tipo de situação ao mesmo tempo que as comunidades indígenas do Estado do Rio Grande do Sul tem problemas sérios para serem enfrentados. Os problemas vividos por Maria do Carmo podem ser graves, mas são de ordem familiar e semelhante a de um grande contingente populacional do Rio Grande, e não de um povo indígena.” .” (JURACILDA VEIGA, PARECER DO CASO CHARRUA, P.3-4 grifos nossos) Conforme este texto, Acuab estaria solicitando indevidamente o reconhecimento como indígena do povo Charrua, EMBORA tenha comprovadamente ancestralidade Charrua; EMBORA tenha traços físicos, tradições, idioma e cultura Charrua; EMBORA a situação de Acuab e de seus familiares seja pública e notoriamente de miserabilidade, em função de terem sido expurgados de suas terras tradicionais no Estado do Rio Grande do Sul, no Estado Brasileiro; EMBORA não seja uma dignidade, mas uma obrigatoriedade do município, do Estado e da União em tratarem com seriedade e dentro da constitucionalidade a questão que envolve Acuab e seu povo indígena e Charrua. No dia 08 de fevereiro de 2007, o referido memorando, com o parecer elaborado pela antropóloga Juracilda Veiga, foi encaminhado ao Procurador da República do Rio Grande do Sul, Dr. Felipe Bretanha, em ofício assinado por Nadja Havt Bindá, Diretora dos Assuntos Fundiários da FUNAI, e com o “de acordo” do presidente da FUNAI, Mércio Pereira Gomes. O Memorando nº 04/CGID/DAF/07 e o Despacho s/nº do presidente da FUNAI de 2007, descaracterizam a comunidade Charrua como indígena. Assim como Acuab e o seu povo Charrua, outras comunidades indígenas vinham lutando pelo reconhecimento no Rio Grande do Sul. Esta era a situação das comunidades Borboleta e Estrela, que também reivindicavam os seus direitos como povos indígenas – reconhecimento da etnia, direito a terra, assistência à saúde, educação, jurídica. A cacique Acuab mobilizou parlamentares, esteve em diversas audiências públicas, tanto na Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Porto Alegre como na Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa. Também recorreu à Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal. A participação e o engajamento político dessas instâncias foi fundamental para reverter essa situação, tanto dos índios Charrua, como das comunidades de Estrela e Borboleta. Mea Culpa e o reconhecimento Em 28 de setembro de 2007, a diretora de Assuntos Fundiários da FUNAI, Maria Auxiliadora C. S. Leão, encaminhou o ofício 757/DAF/07 à coordenadora da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, Miriam Munhoz Schmidt. Este ofício tinha por objetivo responder ao documento enviado pela Comissão (ofício 0744/2007) no qual a coordenadora solicitava manifestação da FUNAI no sentido de reconhecer a identidade étnica da Cacique Acuab, de modo que a Prefeitura de Porto Alegre pudesse dar continuidade no processo de assentamento da comunidade Charrua em uma área com cinco hectares a eles destinados. Este documento enviado pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da AL/RS contém elementos antropológicos, históricos e jurídicos acerca do “caso do povo Charrua”. Em resposta, a FUNAI declara através do referido Ofício que não compete a esta Fundação Nacional dos Índios, e em particular, a Diretoria de Assuntos Fundiários questionar a identidade étnica de qualquer comunidade que se auto identifique e é identificada como indígena. A FUNAI, através desse documento, desconsidera os pareceres, memorandos e informações técnicas que haviam sido outrora produzidos com o intuito de negar a identidade étnica dos povos indígenas referidos - Charrua, e das comunidades Estrela e Borboleta. A entidade passa a reconhecer o povo indígena Charrua, com base no que dispõe o Decreto nº 5051, de 19 de abril de 2004, que ratificou a Convenção 169 da OIT, o qual garante o direito dos povos indígenas ao seu auto-reconhecimento étnico. Em correspondência enviada no dia 28 de setembro de 2007 (Ofício nº 215/DAF/PRES) ao senador Paulo Paim – presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, o presidente da FUNAI, Márcio Augusto Freitas de Meira, informa que a Fundação “irá reintegrar o Povo Charrua aos procedimentos voltados à proteção e promoção dos Povos Indígenas”. Neste mesmo documento, o presidente da FUNAI também declara que “o fato da FUNAI não dispor de um quadro técnico suficiente para atender ao número expressivo de reivindicações fundiárias e demandas dos Povos Indígenas do Brasil não pode servir de justificativa para proceder a descaracterização da identidade étnica de um Povo Indígena. A defasagem do quadro técnico do órgão indigenista deve ser resolvida não somente com a reestruturação da FUNAI, mas também a partir de uma articulação e realização de parcerias com entidades, universidades e demais órgãos públicos que atuam na questão indígena. Mas inadmissível é os Povos Indígenas sofrerem prejuízos e terem seus direitos negados, em razão das dificuldades enfrentadas pelo órgão indigenista, mormente seu reduzido número de servidores.” O reconhecimento do povo Charrua como etnia é uma situação exemplar da conquista de um direito com base em muita persistência, mobilização e combate às violações, que como vimos, foram muitas. O “mea culpa”, a reconsideração embasada juridicamente na legislação internacional e na constituição; a substituição do jogo de “empurra-empurra” institucional por uma costura política de entendimentos acerca das competências, limitações e responsabilidades dos poderes, dão mostra de que quando há mobilização da comunidade e responsabilidade social e institucional, uma violação deixa de ocorrer, dando lugar à justiça. Imagens da solenidade de reconhecimento do Povo Charrua, na Câmara Municipal de Porto Alegre, em 2007 A Secretaria Municipal de Direitos Humanos da Prefeitura Municipal de Porto Alegre desapropriou duas áreas, totalizando nove hectares, com padrão fundiário indígena ideal para a comunidade Charrua. A nova moradia dos índios Charrua está localizada na Parada 38 da Lomba do Pinheiro. Acuab e seus familiares estão no local desde maio de 2008. O passo seguinte será a construção de moradias segundo um projeto compatível com o modo de ser indígena. Continuam o sonho e o caminhar de Acuab em busca de suas origens, de sua “Oca das Missões, com muita árvore frutífera e galinhas”. Com sorriso no rosto e disposição de guerreira. POST SCRIPTUM “Tupi or not tupi, that is the question” Oswald de Andrade, Manifesto Antropofágico Achados e descobertos Na carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500, temos o primeiro registro histórico sobre o achamento do Brasil e o achamento dos brasis. Descritos como inocentes, gente boa e simples. Percebidos como seres com um jeito de ser original, uma cultura própria, hábitos peculiares nas formas de se alimentar e de usar adereços. Belos, fortes, saudáveis, falantes, risonhos, pacíficos. “Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar a costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma capazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer aljòfar, as quais peças, creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar”... ...“Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segurando a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer que nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade.”... ...“Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão médios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos”... ...“Esta terra, Senhor... Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender os olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos, terra que nos parecia muito extensa. Até agora não pudemos saber se há ouro e prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d’agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!” (PERO VAZ DE CAMINHA a Vossa Alteza, El Rei D. Manuel, datada do primeiro dia de maio de 1500 deste Porto Seguro) grifos nossos Segundo Mário MAESTRI, a historiografia brasileira construiu o difuso mito da terra sem donos. Ocorre que os pacíficos nativos foram desde o seu achamento descobertos. Foram descobertos em sua forma original de ser, de agir, de cuidar de si e da natureza. Comunitários, cultivadores de costumes e tradições próprias. Pero Vaz de Caminha já alertava em sua carta que a terra brasilis era tão extensa quanto fértil, e o povo que a habitava tinha uma forma bem característica de ser, a começar pelo idioma e pela alimentação. Portanto, os brasis, por serem descobertos, foram encobertos, invadidos em seu hábitat, em sua cosmologia, em sua casa. A tentativa, muitas vezes consumada, de escravização, e a decorrente rebeldia dos indígenas, gerou os conflitos e originou os estigmas de que os índios são ociosos e indolentes. A dizimação dos tupinambás no século 16 serviu como pretexto de um início de desenvolvimento econômico e cultural eurocêntrico. A visão, o discurso e os registros sobre as comunidades nativas, e suas respectivas formas de resistência à colonização, não fazem parte dos registros oficiais da historiografia nacional. MAESTRI chama a atenção para o fato de que o “índio” ainda é considerado como uma abstração: “Não nos identificaremos e jamais sentiremos como nosso o drama de um povo formado por homens absolutamente iguais dos quais jamais conheceremos a face. Podemos aceitá-los como homens, mas – consciente ou inconscientemente – sempre os consideraremos como homens naturais, mais próximos do reino animal do que do reino humano. Mais próximos da história natural do que da historiografia. Permanecerão eternamente personagens sem rosto, povos à margem da História. Para eles, como assinalava F.ª de VARNHAGEN, grande patrono da historiografia brasileira, apenas a Etnografia”. (MÁRIO MAESTRI, 1994, p. 155) O que vemos agora é um quadro de vários movimentos étnicos e sociais que se opõem a formas de governo e de política imperialista, neoliberal, neocolonialista. Opõem-se às formas hegemônicas de dominação e anseiam pelo respeito a diversidade, e pela mudança de paradigmas. Para o antropólogo José Otávio Catafesto de SOUZA, “o perfil etnocidário do Estado brasileiro foi sofisticado ao longo da ação histórica sobre os povos indígenas, na aplicação das chamadas políticas indigenistas” (2004, p. 188). Aspectos como vícios assistencialistas dos órgãos públicos, a mentalidade etnocêntrica, o clientelismo político e a prática tutelar impedem a introdução de novos paradigmas que contribuam na efetivação dos direitos indígenas. Partindo da relação entre necessidades e direitos, como escreve Paulo Gilberto Cogo LEIVAS (2006), seja mediante uma conexão valorativa ou por uma relação mediada pela prova de uma exigência forte, estamos diante de uma situação de que há uma obrigatoriedade constitucional do Estado brasileiro em assistir, sem ser assistencialista, em acolher, sem cooptar, e em proteger, sem tutelar, os direitos dos povos indígenas. De dar conta às necessidades básicas e intermediárias à saúde, à alimentação, à moradia, à autonomia, à etnosustentabilidade. “O mínimo existencial é a parte do consumo corrente de cada ser humano, seja criança ou adulto, que é necessário para a conservação de uma vida humana digna, o que compreende a necessidade de vida física, como a alimentação, vestuário, moradia, assistência de saúde, etc. (mínimo existencial físico) e a necessidade espiritual-cultural, como educação, sociabilidade, etc. Compreende a definição do mínimo existencial tanto a necessidade física como também culturalespiritual, então se fala de um mínimo existencial cultural”. (TREISCH, CORINNA, in PAULO LEIVAS, 2006, p. 135) Escrevendo uma nova página Entre os direitos fundamentais dos povos indígenas está o direito à educação. Felizmente no Brasil há várias iniciativas por parte de pesquisadores em universidades, ONGs e parcerias com o poder público, no sentido de possibilitar um diálogo de cosmologias, a partir de um processo pedagógico de conhecer e de se reconhecer, pelo idioma, pela cultura, pelo que Kant denomina de “boa vontade”. Medidas como ações afirmativas nas universidades, com o ingresso dos indígenas em cursos de nível superior, e o projeto que inclui no currículo de escolas públicas e particulares brasileiras o ensino de história e cultura indígena brasileira são exemplos significativos de uma possível mudança de paradigma. Na pesquisa realizada junto a comunidade Guarani em Porto Alegre, MARIA APARECIDA BERGAMASCHI (2005) anotou em seu diário de campo a seguinte observação de um membro do povo Guarani: “Os velhos são nossas bibliotecas.” A Universidade Federal do Rio Grande do Sul implantou em 2007 o primeiro processo de seleção para o ingresso de indígenas ao ensino superior. Neste trabalho interdisciplinar, as professoras Malvina do Amaral Dorneles e Maria Aparecida Bergamaschi, da Faculdade de Educação, participam deste processo desde sua elaboração até o atual acompanhamento dos nove indígenas que estão estudando em diversos cursos da Instituição. Esta boa vontade está muito mais presente na forma de os povos indígenas buscarem a compreensão e o diálogo com a cultura não indígena, que por sua vez, de um modo geral, mantém sua suposta superioridade e dominação. Tal situação se evidencia sempre que os não indígenas tentam impor sua visão de mundo, seus valores e seus interesses diante dos indígenas. Algumas iniciativas na área da educação e da cultura foram divulgadas pela imprensa porto-alegrense, como uma amostra de que é possível o diálogo e um aprendizado interétnico e intercultural. As comunidades indígenas continuam, perambulantes, em busca de seus direitos, de suas terras, do respeito à sua história. Este perambular é uma caminhada diária, à base de reivindicações e de diálogos. Este caminhar é cheio de pedras, colocadas pela civilização, em um processo antropofágico que Oswald de Andrade identificou em seu Manifesto: “A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura, A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra eles que estamos agindo. Antropófagos.” (OSWALD DE ANDRADE, 1928, Manifesto Antropofágico) Freud detectou que a inumanidade comum entre todas as formas históricas de sociedade consiste nos controles repressivos que perpetuam, na estrutura dos instintos, a dominação do homem pelo homem. A civilização desumanizou o homem. A humanização do homem, a busca do diálogo depende um pouco do entendimento de sua história, e muito do que ele projeta em seu futuro, como sinal dos tempos. Norberto Bobbio (2004) se refere, na concepção kantiana, ao sinal dos tempos como lançar um olhar, temerário, indiscreto, incerto, mas confiante, para o futuro. A história, a nossa história e a história dos povos e das nações se constrói a cada momento, e os sinais dos tempos estão sempre presentes, faustos ou infaustos, como nos avisa Bobbio. Ele se refere a morte atômica, a destruição das condições de vida nesta terra, a inversão de valores. Catástrofes. “A princípio, a enorme importância do tema dos direitos do homem depende do fato de ele estar extremamente ligado aos dois problemas fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz. O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem são a base das constituições democráticas e, ao mesmo tempo, a paz é o pressuposto necessário para a proteção efetiva dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional(...) Hoje, estamos cada vez mais convencidos de que o ideal da paz perpétua só pode ser perseguido através de uma democratização progressiva do sistema internacional e que essa democratização não pode estar separada da gradual e cada vez mais efetiva proteção dos direitos do homem acima de cada um dos Estados” (NORBERTO BOBBIO, 2004, p. 223) E somos nós, cada um de nós, brasis, humanos, coletivos e perambulantes cidadãos do mundo, os escritores das páginas faustas e infaustas de nossa própria história. ESTANTE a) Livros e Artigos ARRIEN, Angeles. O caminho quádruplo: trilhando os caminhos do guerreiro, do mestre, do curador e do visionário. São Paulo: Ágora, 1997. BARBOSA, Júlio César Tadeu Barbosa. O que é justiça. São Paulo: Editora Brasiliense, 3ª ed., 1985. BELLOMO, Harry Rodrigues (Org.). Rio Grande do Sul. Aspectos da cultura. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994. BENGOA, José. La emergência indígena em América Latina. México: Fondo de Cultura Económica, 2000. BERND, Zilá. 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