Proposta de estratégia para a produção de conteúdo transmídia em
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Proposta de estratégia para a produção de conteúdo transmídia em
Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo Curso de Especialização em Gestão Integrada da Comunicação Digital nas Empresas Proposta de estratégia para a produção de conteúdo transmídia em publicações jornalísticas multiplataforma Cauã Taborda São Paulo 2014 Cauã Taborda Proposta de estratégia para a produção de conteúdo transmídia em publicações jornalísticas multiplataforma Monografia apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em cumprimento parcial às exigências para obtenção do título de especialista em Gestão Integrada da Comunicação Digital nas Empresas, sob orientação da Profa. Dra. Daniela Bertocchi. São Paulo 2014 2 Cauã Taborda Proposta de estratégia para a produção de conteúdo transmídia em publicações jornalísticas multiplataforma Monografia apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em cumprimento parcial às exigências para obtenção do título de especialista em Gestão Integrada da Comunicação Digital nas Empresas. Orientadora: Profa. Dra. Daniela Bertocchi COMISSÃO EXAMINADORA _______________________________________________ Assinatura: _____________________________________ _______________________________________________ Assinatura: _____________________________________ _______________________________________________ Assinatura: _____________________________________ São Paulo 2014 3 Autorizo a divulgação e reprodução total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. FICHA CATALOGRÁFICA TABORDA, Cauã. Proposta de estratégia para a adoção de conteúdo transmídia em publicações jornalísticas multiplataforma. Especialização em Comunicação Digital. Escola de Comunicações e Artes. Universidade de São Paulo. 2014. Palavras-chave: Jornalismo, Narrativa transmídia, Jornalismo transmídia, convergência. 4 Agradecimentos Agradeço primeiramente minha companheira Catarina Cicarelli, pela paciência e suporte em todo esse processo, à minha família e amigos pela ausência e, em especial, à minha orientadora, Daniela Bertocchi pela paciência e atenção. Também agradeço à Elizabeth Saad, todos os responsáveis pelo Digicorp e os amigos do Digicopos. 5 Resumo Este estudo propõe, por meio da interpretação de conceitos de Henry Jenkis, uma estratégia para a adoção de narrativas transmídia em redações jornalísticas. Para isso, foram analisados produtos da indústria do entretenimento e também produtos jornalísticos que se aproximam dos princípios fundamentais das narrativas transmídia. Palavras-chave: Jornalismo, Narrativa transmídia, Jornalismo transmídia, convergência. 6 Abstract This study aims, through interpretation of Henry Jenkins’ concepts, propose a strategy for the adoption of transmedia narratives in newsrooms. For this reason, products of the entertainment industry and also journalistic products approaching the fundamental principles of transmedia narratives were analyzed. Keywords: Journalism, Transmedia storytelling, Transmedia journalism, convergence. 7 Lista de figuras Figura 1: O que é transmídia (PRATTEN, 2011, p. 2).............................. pg 18 Figura 2: Captura de tela do site Defense Against The Dark Arts (LAWVER, 2014)............................................................... pg 26 Figura 3: Reprodução de tela do projeto Snow Fall (THE NEW YORK TIMES, 2012)....................................................................................................... pg 31 Figura 4: Reprodução de tela de galeria do projeto Snow Fall (THE NEW YORK TIMES, 2012).......................................................................................... pg 32 Figura 5: Captura de tela do projeto Bosnia: Uncertain Paths to Peace (THE NEW YORK TIMES, 1996).............................................................................. pg 33 Figura 6: Reprodução de tela de Out of My Window (NFB, sem data)...... pg 35 Figura 7: Reprodução de tela de Out of My Window (NFB, sem data)...... pg 35 Figura 8: Captura de tela da reportagem The shirt on your back em 12 de setembro de 2014 (THE GUARDIAN, 2014).............................................. pg 36 Figura 9: Captura de tela da reportagem A Batalha de Belo Monte em 31 de agosto de 2014 (FOLHA DE S. PAULO, 2013).......................................... pg 38 Figura 10: Captura de tela do infográfico Como Funciona a Bateria da Grande Rio em 31 de agosto de 2014 (IG, 2011)......................................................... pg 39 Figura 11: Arte promocional do pôster de Darth Vader, da Revista Info (Acervo pessoal)..................................................................................................... pg 41 Figura 12: Captura de tela da matéria Kobe Bryant em 12 de setembro de 2014 (BRAGA, Lucas; AUGUSTO, Marcelo, 2014) .......................................... pg 43 Figura 13: Captura de tela do especial 10 anos de Facebook em 12 de setembro de 2014 (VEJA, 2014).............................................................................. pg 44 Figura 14: Proposta para adoção de projetos transmídia em redações jornalísticas.............................................................................................. pg 49 8 Sumário Introdução ......................................................................................... pg 11 Capítulo 1: O poder das histórias multiplataforma............................ pg 13 1.1: O acaso e a Força 1.2: Consolidação do conceito Capítulo 2: A aposta sólida do entretenimento................................. pg 22 2.1: Do cinema à propaganda, provando eficácia 2.2: Fórmulas assertivas ou limitantes? Capítulo 3: Possibilidades para o jornalismo................................... pg 30 3.1: As tentativas do jornalismo norte-americano 3.2: A aproximação da mídia brasileira 3.3: Um método viável Considerações finais .............................................................. pg 50 9 “Do or do not. There is no try” (Mestre Yoda) 10 Introdução Vivemos em nosso dia a dia transformações intensas nas formas como nos comunicamos, como lidamos uns com os outros em nossas relações digitais e, sobretudo, como consumimos informação. Há pouco menos de cinco anos, o mundo não conhecia em larga escala os tablets, por exemplo. Passamos a consumir informação à nossa maneira, enquanto produzimos conteúdo de nossos smartphones e notebooks e nos informamos das últimas notícias pelas redes sociais. Para alguns, já não se vê TV sem acompanhar a linha do tempo do Twitter ou outras redes sociais. É nesse cenário dinâmico, e em meio a uma grande crise de identidade, que o jornalismo procura novas formas de contar histórias e outras maneiras de conquistar mais receitas e, sobretudo, de conquistar a atenção de uma audiência cada vez mais bem preparada e crítica sobre o que é consumido. Na capacidade de se adaptar e atingir a audiência onde ela deseja estar, a indústria do entretenimento tem oferecido soluções mais eficazes. Desde a trilogia The Matrix, especialistas procuram recriar produtos utilizando as premissas das narrativas transmídia. Em muitos casos, com produtos de grande sucesso. Este estudo, intitulado Proposta de estratégia para a produção de conteúdo transmídia em publicações jornalísticas multiplataforma, foi estruturado em quatro capítulos. Como ponto de partida, discutiremos o sucesso das histórias contadas em múltiplas plataformas, passando por exemplos da indústria do entretenimento, como as séries Star Wars e The Matrix. Também traremos a consolidação do conceito de narrativa transmídia segundo Henry Jenkins. Observar os casos já conhecidos e estudados fornecerá indícios sobre seu sucesso, também nos permitirá analisar possíveis caminhos para uma implementação em outras áreas, como o jornalismo, que é o foco deste estudo. 11 No segundo capítulo olharemos em maior profundidade as narrativas transmídia criadas pela indústria do entretenimento, citando exemplos da literatura e indústria musical. Também veremos como é a relação entre os produtores de conteúdo e os fãs, que podem ser encorajados a produzir ou, em alguns casos, somente a consumir o conteúdo produzido para a franquia. Compreender essa relação entre produto e fãs, em especial nas franquias transmídia, que oferecem formas ricas e muito distintas de explorar um conteúdo, nos dará subsídios para elaborar uma estratégia de interação, tentar compreender quais os pontos cruciais para se estabelecer uma relação coerente com a audiência e alavancar um projeto. No terceiro capítulo vamos abordar a aproximação do jornalismo com a narrativa transmídia. Veremos exemplos da mídia norte-americana, canadense e também do Brasil. Pela análise desses conteúdos já produzidos pelo jornalismo digital, podemos averiguar se os processos atuais de construção de conteúdo se enquadrariam em uma lógica transmídia de produção pelas redações. Também vamos propor uma estratégia para a adoção de narrativas transmídia para as redações com base nos conceitos e exemplos apresentados ao longo deste estudo. Por fim, traremos nossas considerações sobre o estudo e sobre a proposta de estratégia para as redações. 12 Capítulo 1: O poder das histórias multiplataforma Neste capítulo iremos abordar a prática de contar histórias em múltiplas plataformas e o surgimento do conceito da narrativa transmídia, recorrendo a exemplos da indústria do entretenimento como Star Wars e The Matrix, e a consolidação desse conceito segundo Henry Jenkins. Observar os casos já conhecidos e estudados fornecerá indícios sobre seu sucesso, também nos permitirá analisar possíveis caminhos para uma implementação no jornalismo. 1.1 O acaso e a Força Há não muito tempo atrás, em uma galáxia nada distante, o mundo viu surgir uma nova fórmula para se contar histórias. Com a chegada de Star Wars ao cinema, em 25 de maio de 1977, George Lucas marcou a inauguração de uma tendência de mercado que perdura até hoje: as franquias. Seu épico de ficção científica, que resgatava a trajetória do herói e outras fórmulas narrativas conhecidas alterou a relação entre público e produtores. Com bastante inovação tecnológica em sua estética, e também um carisma matador ao redor das personagens e o desafio intrigante do jovem Luke Skywalker, Star Wars se manteve vivo e, mesmo após 35 anos de sua primeira exibição, ainda é referência no imaginário dos espectadores. Prova disto, às vésperas da estreia de Guardiões da Galáxia, os comentários mais frequentes nas análises do blockbuster da Marvel são suas similaridades com o clássico de George Lucas (OMELETE, 2014). “Star Wars is, in many ways, the prime example of media convergence at work. Luca’s decision to defer salary for the first Star Wars filme in favor of maintaining a share of ancillary profits has been widely cited as a turning point in the emergence of this new strategy of media production and distribution... The rich narrative universe of the Star Wars saga provided countless images, icons, and artifacts that could be 13 produced in a wide variety of forms and sold to diverse groups of consumers . (THORBURN, D; JENKINS, H. 2004, p. 285) 1 Podemos atribuir o sucesso de Star Wars à força das possibilidades. Pela necessidade de Lucas em lucrar com os produtos auxiliares da franquia, era impossível não encontrar elementos da história de Skywalker e seus companheiros em redes de fast-food, lojas de departamento, brinquedos etc. Com a história envolvente do primeiro filme, os espectadores eram forçados a conviver com a ansiedade e oferta de produtos até que o próximo capítulo da história chegasse aos cinemas. Os filmes originais tiveram um intervalo de três anos entre si, dando aos fãs bastante tempo para explorar sua inquietação e criar suas próprias histórias. As histórias criadas por cada um com os inúmeros aparatos oferecidos ao mercado, como sabres de luz de brinquedo, fantasias e histórias paralelas foram absorvidas pelas empresas de Lucas e transformadas em livros, quadrinhos e séries animadas, fixando as personagens e sua saga no imaginário de gerações. O processo de Star Wars não foi arquitetado desde o início. Como cita Henry Jenkins em seu livro Cultura da Convergência (2009), a consolidação do universo de George Lucas como um dos primeiros produtos transmidiáticos não foi planejada. Anos mais tarde, os irmãos Wachowski publicaram a primeira peça de seu famoso quebra-cabeças. Em 1999, o filme The Matrix encantou e confundiu espectadores e críticos em todo o mundo. Unindo elementos das culturas ciberpunk de Willian Gibson2, quadrinhos japoneses e conceitos de Simulacro e Simulação, de Jean Baudrillard (1991), o projeto dos Watchowski foi organizado de forma fragmentada desde o princípio. 1 [Tradução livre] Star Wars é, em várias formas, o principal exemplo de convergência de mídia em funcionamento. A decisão de Lucas de negar um salário no primeiro Star Wars em troca de manter uma participação nos lucros auxiliares é frequentemente citada como o ponto de mudança dessa estratégia de produção de mídia e distribuição… O rico universo narrativo de Star Wars forneceu incontáveis imagens, ícones e artefatos que puderam ser produzidos em formas variadas e vendidos para grupos distintos de consumidores. 2 Autor de Neuromancer (1989), romance que venceu os prêmios Nebula, Hugo e Philip K. Dick de ficção científica. 14 Para incentivar o consumo da narrativa de formas distintas, reproduzindo o sucesso de Star Wars ao longo dos anos, os Wachowski deveriam oferecer um universo com consistência suficiente para que cada pedaço fosse flexível, e ao mesmo tempo parte de um todo. Cada vez mais, as narrativas estão se tornando a arte da construção de universos, à medida que os artistas criam ambientes atraentes que não podem ser completamente explorados ou esgotados em uma única obra, ou mesmo em uma única mídia. O universo é maior do que o filme, maior, até, do que a franquia – já que as especulações e elaborações dos fãs também expandem o universo em várias direções. (JENKINS, 2009, p. 162) Ao olharmos de perto Star Wars e The Matrix, fica evidente a força das duas franquias do cinema em se fixar no imaginário. Se em Star Wars os buracos na história que proporcionaram a exploração do universo foram acidentais, em The Matrix eles foram colocados cirurgicamente. A saga foi dividida em três filmes, jogos de videogame e curta-metragens de animação que foram reunidos no Animatrix, lançado em 2003. Cada um dos suportes utilizados pelos Wachowski, como um filme ou um game, são considerados como plataformas distintas. Dessa mesma forma, dentro do conceito de transmídia, um jornal e uma revista são duas plataformas diferentes, assim como um livro e uma história em quadrinhos. Portanto, uma história multiplataforma é aquela que percorre múltiplos suportes narrativos. Para compreender completamente a narrativa de The Matrix é necessário consumir todas as suas peças, preenchendo as lacunas deixadas pelos Wachowski nos filmes. Mesmo assim, o espectador que consumir os três filmes, sem passar pelos games ou animações consegue compreender uma história com começo, meio e fim. Os aficionados que desejam conhecer todos os aspectos da narrativa são servidos com mais material e também são satisfeitos. 15 Os grandes exemplos de histórias multiplataforma não se limitam a essas duas franquias. Os livros do inglês J.R.R Tolkien, O Senhor dos Anéis e O Hobbit, lançados originalmente em 1955 e 1937, ganharam uma dimensão muito mais profunda com a primeira adaptação para o cinema, em 2001. Construídas com uma complexidade grande, as personagens da Terra Média de Tolkien não foram completamente exploradas em seus livros, e não foi diferente no cinema. Os três filmes sobre a saga do Um Anel e Frodo ganharam games complementares e subprodutos de marketing (BAIN, K. e col, sem data). Na mesma linha, J.K Rowling e seu bruxo Harry Potter venderam mais de 450 milhões de livros, produziram 8 filmes e geraram uma receita de 21 bilhões de dólares com a franquia (THE ATLANTIC, 2011). Além dos livros, filmes e games produzidos ao longo dos anos, a narrativa de Potter continua a ser explorada no Pottermore, site de J.K Rowling que mistura conceitos de gameficação, redes sociais e traz novos contos que alimentam o universo fantasioso de Hogwarts (INFO, 2014). Ao contrário de se desgastar com o tempo, as narrativas divididas por múltiplas plataformas parecem ganhar mais força. A exemplo do cinema, vivemos a era das trilogias. Parece haver sempre uma continuação, algo mais para ser revelado na história. Afinal, as empresas de entretenimento não se podem dar ao luxo de ignorar uma fórmula com resultados bilionários. Homem de Ferro, Vingadores, Crepúsculo e Jogos Vorazes são alguns dos exemplos que levaram bilhões de espectadores aos cinemas nos últimos 10 anos. Segundo Jenkins, a convergência não se dá somente nos aparatos, como livros, smartphones ou videogames, o fenômeno é muito mais denso e se forma nos consumidores e em suas relações diárias com outras pessoas. Cada um de nós constrói a própria mitologia pessoal, a partir de pedaços e fragmentos de informações extraídos do fluxo midiático e transformados em recursos através dos quais compreendemos nossas vidas cotidianas (JENKINS, 2009, p. 30). 1.2: Consolidação do conceito 16 Transmidia é um terno que não gosto de usar de forma isolada. Porque há uma certa ambiguidade sobre o que ele significa e poderia ser o mesmo que multi-plataforma ou crossmedia. Quando você o usa de forma isolada, há esse problema. Entretanto, narrativa transmídia é o termo que me sinto mais confortável em usar, porque você estabelece a noção de que está comunicando mensagens, conceitos, histórias de forma que cada plataforma diferente de mídia possa contribuir com algo novo para uma narrativa principal. (Isto É, 2010) Em 2003, Henry Jenkins definiu no MIT Technology Review o que chamou de “narrativa transmídia”, fenômeno onde empresas de entretenimento e mídia desenvolveram franquias para ser entregues por múltiplos canais para inspirar o espectador a interagir com a história, conforme citamos anteriormente. Esses espectadores criaram, debateram o conteúdo, se lançaram em jogos relacionados e deram corpo a suas próprias mídias para enriquecer sua experiência com o conteúdo. Jenkins detalha esse fenômeno em seu livro Cultura da Convergência: Uma história transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que sabe fazer melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida em um filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em game ou experimentado como uma atração de um parque de diversões. Cada acesso à franquia deve ser autônomo, para que não seja necessário ver o filme para apreciar o game, e vice-versa. (JENKINS, 2009, p. 138) Para Jenkins, a narrativa transmídia é aquela que se divide por mais de uma mídia. Como mídia entende-se o suporte para a narrativa, que pode ser um livro, um game, um quadrinho ou até mesmo um programa de rádio. Ao contrário do conteúdo multiplataforma, que se divide entre aparatos distintos, e que não exige que todos sejam consumidos, cada pedaço da narrativa transmídia deve ser 17 compreendido por completo, como se fosse uma narrativa independente, mas, ao se analisar suas outras peças é possível compreender o todo. Figura 1: O que é transmídia (PRATTEN, 2011, p. 2). Para Pratten (2011), no formato de franquias tradicionais, o consumo das partes individuais leva a conclusões distintas e não satisfatórias para quem coleciona todas as peças. Nas franquias transmídia, o todo é mais importante do que a soma de partes, o que proporciona uma euforia nos espectadores e incentiva o colecionismo de cada porção do projeto. We are surrounded by an unprecedented ocean of content, products and leisure opportunities. The people to whom we wish to tell our stories have the technology to navigate the ocean and can choose to sail on by or stop and listen. Technology and free markets have allowed unprecedented 18 levels of customization, personalization and responsiveness such that a policy of “one size fits all” is no longer expected or acceptable . (PRATTEN, 2011, p. 3) 3 Segundo Jenkins (2009), Pratten (2011) e Moloney (2011), não há uma fórmula exata para caracterizar uma narrativa transmídia. A única delimitação é que de fato ao menos duas mídias sejam exploradas pelo projeto. Há, no entanto, divergências quanto a essa classificação. Para Arnaut e col. (2011), um projeto só é considerado transmídia se utilizar no mínimo três plataformas de mídia diferentes. Para este estudo, consideramos o conceito menos limitante adotado por Jenkins (2009). As possibilidades, portanto, são grandes. Uma narrativa pode começar em um filme, se ampliar para uma série de tirinhas de jornal, se transformar em um game e continuar em redes sociais. Jenkins (2009) identificou sete princípios básicos que devem ocupar uma posição central dentro das narrativas transmídia. São eles: 1 Espalhabilidade x Profundidade; 2 Continuidade x Multiplicidade; 3 Imersão x Extração; 4 Criação de Universos; 5 Serialização; 6 Subjetividade e 7 Performance. 1. Espalhabilidade x Profundidade A habilidade e grau que um conteúdo é compartilhado e os fatores motivacionais para uma pessoa compartilhar o conteúdo VS a habilidade de uma pessoa de explorar, em profundidade, um grande poço de extensões narrativas quando se confrontam com uma ficção que verdadeiramente captura sua atenção. 2. Continuidade x Multiplicidade 3 [Tradução livre] Estamos rodeados por um oceano sem precedentes de conteúdo, produtos e oportunidades de distração. As pessoas que queremos atingir com nossa história têm a tecnologia para navegar neste oceano e podem escolher continuar ou parar e escutar. A tecnologia e mercados livres permitem um nível sem precedentes de personalização, adaptação e responsividade que tornam a política do “um tamanho serve a todos” não esperada e inaceitável. 19 Algumas franquias transmídia sustentam uma coerência contínua para garantir uma plausibilidade para todas as suas extensões. Outras costumam usar versões alternativas de personagens ou universos paralelos em suas histórias para recompensarem maestria sobre o conteúdo original. 3. Imersão x Extração Em imersão, o consumidor mergulha na experiência do universo (como em parques de diversão), enquanto na extração os fãs se apropriam de partes da história como repositórios que farão parte de suas vidas diárias (como presentes de lojas). 4. Criação de Universos Extensões transmídia, muitas vezes não centrais para o desenvolvimento da narrativa geram uma representação muito mais rica do mundo no qual a narrativa se desenvolve. Franquias podem explorar tanto o mundo real como experiências digitais. Essas extensões geralmente levam o consumidor a capturar e catalogar os elementos díspares. 5. Serialização A narrativa transmídia pegou a noção de quebrar o arco narrativo entre múltiplos e tímidos pedaços em um único meio e a transformou, espalhando essas ideias ou pedaços em múltiplos meios. 6. Subjetividade Extensões transmídia geralmente exploram a narrativa central por novas perspectivas; como personagens secundárias ou pessoas de fora. Essa diversidade de olhares geralmente leva os fãs a considerar fortemente quem está falando ou por quem estão falando. 7. Performance 20 A habilidade de extensões transmídia em levar os fãs a produzir peças que podem se tornar parte da própria narrativa transmídia. Algumas dessas criações são incentivadas pelos criadores, e outras não. Fãs buscam fontes para essas criações por conta própria. Uma diferença significativa do tempo atual em relação aos grandes projetos transmídia do passado, como The Matrix, é a penetração de plataformas tecnológicas na sociedade. Em 2013, no Brasil, o número de smartphones registrado pela consultoria Morgan Stanley chegou a 70 milhões (EXAME, 2013). Esse fenômeno amplia o leque de possibilidades para os produtores de conteúdo, já que experiências mais ricas podem ser elaboradas por aplicativos de dispositivos móveis mais potentes, como smartphones e tablets. Neste capítulo vimos a consolidação do conceito de narrativa transmídia, tomando como exemplo casos de sucesso da indústria de entretenimento. Também definimos que, para este estudo, consideraremos a abordagem mais ampla do conceito defendida por Jenkins. 21 Capítulo 2: A aposta sólida do entretenimento Neste capítulo vamos abordar a aproximação da indústria do entretenimento com a narrativa transmídia, citando exemplos da literatura e indústria musical. Também veremos como é a relação entre os produtores de conteúdo e os fãs, que podem ser encorajados a produzir ou, em alguns casos, somente a consumir o conteúdo produzido para a franquia. Compreender essa relação entre produto e fãs nos dará subsídios para elaborar uma estratégia de interação, tentar compreender quais os pontos cruciais para se estabelecer uma relação coerente com a audiência e alavancar um projeto. 2.1 Do cinema à propaganda, provando eficácia Com o sucesso conquistado por Star Wars, que conseguiu levantar um império de mais de 22 bilhões de dólares em 30 anos, a indústria do entretenimento viu nas narrativas transmídia uma máquina de ganhar dinheiro (FORBES, 2007). Já listamos alguns dos exemplos conhecidos no capítulo anterior, mas não só no cinema encontramos casos de sucesso. Chamada de Fábrica de Felicidade, uma campanha mundial da Coca-Cola de 2006 explorou o potencial da narrativa transmídia. Para orquestrar a ação, a multinacional contratou Jeff Gomez, CEO da Starlight Runner, empresa que cria projetos transmídia para diretores de cinema como James Cameron (FORBES, 2013). Durante um ano, a Starlight Runner se dedicou a expandir um comercial de 60 segundos em um universo completo, desenvolvendo a “bíblia transmídia”, nome que se dá à documentação de personagens, enredos, personalidades e quaisquer informações que façam parte do universo do projeto. Segundo a CocaCola, a empreitada resultou em um aumento de 4% nas vendas globais. O investimento de empresas nas narrativas transmídia não se limitou a essa campanha. A própria Starlight Runner foi contratada para elaborar projetos para a franquia Piratas do Caribe, da Disney, e a série de games Halo, da Microsoft. O preço de cada bíblia transmídia pode variar de 1 a 2 milhões de dólares. Focada 22 na indústria cinematográfica, a empresa se viu obrigada a ampliar seu quadro de funcionários para atender a essa demanda (FORBES, 2013). Além do cinema, a indústria de entretenimento aproveitou a fórmula de franquia transmídia para seus produtos de TV, como seriados e Reality Shows. Neves (2011) destaca o esforço empregado na série Mad Men, do canal norteamericano AMC. Com perfis no LinkedIn e Twitter, o personagem principal da trama (Don Drapper) ajudou a expandir o universo da narrativa publicando mensagens durante e após os episódios. Outros personagens da série também fizeram parte da campanha, que não nasceu por iniciativa dos produtores. Em agosto de 2008, os usuários do Twitter foram surpreendidos com a chegada de alguns perfis inusitados, como @Don_Draper, @BettyDraper (sua esposa) e @ PeggyOlson (sua secretária e futura redatora). A partir daí, outros personagens de Mad Men foram surgindo, conversando entre si e com os fãs, e obtendo milhares de seguidores em poucas semanas. Curiosamente, estes perfis não haviam sido criados pelos produtores da série, mas sim pelos seus fãs, que tuitavam como se fossem os personagens, dando a eles uma voz própria... (NEVES, 2011, p. 50) A reação inicial do departamento jurídico da AMC foi tradicional, tentando coibir os usuários que alimentavam os perfis e restringindo o uso de sua marca nas redes sociais. Percebendo o potencial de marketing dessa inciativa dos fãs, a agência Deep Focus, responsável pelo marketing da emissora, liberou o uso das personagens (NEVES, 2011). Essa comunicação amplia as ofertas tradicionais de mídia que envolvem a franquia. Além das possibilidades de receita tradicionais, como propagandas nos intervalos ou licenciando as personagens, é possível também comprar espaço publicitário nesses perfis e promover produtos. Jenkins (2009) descreve esse potencial para os conglomerados de mídia citando o exemplo do reality show American Idol. Além das exibições na TV, o reality American Idol convida os fãs a participarem ativamente pelas redes sociais. Convites para opinião e votação são feitos em todos os blocos. Cada participante 23 possui sua própria hashtag, permitindo que o fã comente e vote em seu favorito nas redes sociais. Para os espectadores norte-americanos, também é possível votar por telefone e pelo site do programa. Cada apresentação é publicada no YouTube, permitindo que os usuários consumam o conteúdo livremente. As canções também são colocadas à venda em lojas online, como a iTunes, da Apple. A ganhadora da primeira temporada, Kelly Clarkson, assinou contrato com a RCA Records, e seu disco alcançou um imediato primeiro lugar na parada de sucessos da Billboard Hot 100. A música, “A Moment Like This”, tornou-se o single mais vendido dos EUA em 2002. Um livro do American Idol chegou à lista dos mais vendidos, e os candidatos do programa tocaram em casas lotadas em sua turnê pelos Estados Unidos. (JENKINS, 2009, p. 95) Parte do sucesso dessa estratégia é fruto do entendimento dos produtores sobre o que Jenkins (2009) chama de economia afetiva. Para o autor, a economia afetiva é uma reconfiguração da teoria de marketing. Ela se concentra em entender os fundamentos emocionais da tomada de decisão do consumidor, examinando a “força motriz por trás das decisões de audiência e de compra” (JENKINS, 2009, p.96). O ponto crucial para as empresas de mídia segundo Jenkins é compreender esse processo, podendo moldá-lo e monetizá-lo da melhor forma possível. De acordo com Neves (2011), esse processo é possível também pelo momento atual das relações de consumo. O comportamento típico do fã, que consome cada peça de conteúdo de uma franquia, a incorpora em seu cotidiano e até mesmo persona virtual, como em avatares de redes sociais, se tornou aceitável culturalmente (NEVES, 2011, p. 59). Da mesma forma que os fãs de décadas passadas, o fã ávido transmidiático reinterpreta e produz novos textos; entretanto, ele hoje pode compartilhar sua produtividade em proporções jamais vistas antes. O novo fã não mais grava apenas para si 24 próprio, ele disponibiliza o episódio para download, para que fãs de todo o planeta possam acessá-lo. Ele constrói enciclopédias temáticas colaborativas, os wikis, com outros fãs online. (NEVES, 2011, p. 60) 2.2 Fórmulas assertivas ou limitantes? Como vimos no item anterior deste capítulo, somos rodeados por possibilidades de consumir e contribuir com as narrativas que temos afinidade. Há, no entanto, algumas incoerências do mercado, em especial quando tratamos de grandes franquias e seu potencial em atingir cifras bilionárias de público e renda. Jenkins (2009) apresenta uma dicotomia proporcionada pelo universo do bruxo Harry Potter, da autora inglesa J. K. Rowling. Jenkins destaca a importância que a comunidade de Harry Potter desempenhou antes de os direitos da franquia terem sido adquiridos pela Warner Bros. para a produção dos oito filmes da série. J.K. Rowling e a editora Scholastic haviam, inicialmente, sinalizado apoio aos fãs escritores, enfatizando que contar histórias ajudava as crianças a expandir a imaginação e as habilitava a encontrar sua própria expressão como escritores. Por meio de sua agência em Londres, a Christopher Little Literacy Agency, Rowling havia publicado uma declaração, em 2003, reafirmando a antiga política da autora de acolher positivamente o enorme interesse que os fãs têm pela série e o fato de ela os ter levado a experimentar escrever suas próprias histórias. (JENKINS, 2009, p. 259) Por mais que as lacunas deixadas pelas franquias sejam um convite à participação dos fãs, em muitos momentos incentivada, as formas de controle impostas por direitos autorais podem prejudicar o processo. Apesar das intenções de J. K. Rowling, a Warner Bros. procurou e intimidou sites mantidos por fãs para defender seus direitos (JENKINS, 2009). Um exemplo é a criação do site Defense Against The Dark Arts (Defesa Contra a Arte das Trevas) para proteger as 25 criações dos fãs da saga de Rowling. O site, que já não está mais ativo, foi idealizado por Heather Lawver, uma fã de Harry Potter que ficou conhecida na internet por criar e alimentar o Daily Prophet (Profeta Diário), que reunia notícias fantasiosas sobre o universo ficcional do pequeno bruxo. Figura 2: Captura de tela do site Defense Against The Dark Arts em 31 de agosto de 2014 (LAWVER, 2014). Parte de uma grande comunidade de escritores juvenis para o universo de Potter, que foram incentivados pela própria J. K Rowling, Lawver criou o site PotterWar em 2001 como uma tentativa de boicotar a produção cinematográfica da Warner Bros. Pouco tempo mais tarde, o Defense Against The Dark Arts seria a vertente norte-americana dessa iniciativa. “Planejamos por meses, melhorando minha ideia inicial de boicote para ensinar à Warner Brothers uma lição de oferta e procura. Queríamos mostrar que eles não podiam amedrontar crianças e escapar ilesos” (LAWVER, 2014). As possibilidades geradas pelas franquias transmídia são grandes, já que todo o conteúdo gerado pelos usuários pode fazer parte da narrativa oficial, ou 26 mesmo fornecer subsídios valiosos para os produtores gerarem conteúdos novos e mais eficazes. Por outro lado, a proteção das franquias para que outros não lucrem indevidamente pode ir na contramão dessa tendência. Nos termos de uso do portal Pottermore, que expande a saga de Harry Potter, os termos de uso são claros: “For all other content, in general, you are not permitted to reproduce or publish in any way any of the content that appears on Pottermore unless you have first obtain our written permission to do so” 4(Pottermore, sem data). Utilizar essa rede de fãs da maneira mais eficiente parece ser fundamental para as franquias. Jenkins (2009) constata que provavelmente o que mudará ao longo dos anos é a forma de os detentores de direitos lidarem com essas situações, já que mudanças nas legislações de direitos autorais parecem improváveis. Moloney (2011) cita que um dos exemplos de maior sucesso no uso do potencial viral dessas redes veio de uma indústria normalmente punitiva, a da música. Em 2009, a banda Nine Inch Nails lançou um ARG5, jogo de realidade alternativa em tradução literal, para atrair atenção para um novo álbum. The network-engaging alternate reality game launched for Nine Inch Nails’ next European tour with subtle clues printed on tshirts. Seemingly random bold-faced letters discovered by fans within the shirt’s text spelled out “i am trying to believe.” The hidden message was posted on fan message boards. This led the curious to iamtryingtobelieve.com, which sent them to a site for a fictional drug used in Reznor’s imagined world to sedate citizens. Email sent to the site’s contact link replied with the message, “I’m drinking the water. So should you.” Curiosity about the band’s next album was piqued among devoted fans. (MOLONEY, 2011, p. 41) 4 [Tradução livre] “Para todo conteúdo, no geral, você não está autorizado a reproduzir ou publicar de nenhuma forma qualquer conteúdo que aparece no Pottermore a não ser que você obtenha primeiro nossa autorização por escrito para fazê-lo”. 5 Alternate Reality Game 27 E não foram só essas pistas. Um fã encontrou um pen drive em um banheiro durante um show. Nesse pen drive estava escondida uma música inédita da banda, que foi prontamente compartilhada em redes de fãs em todo o mundo. A cada descoberta, a curiosidade em torno do álbum crescia. Até o álbum chegar às prateleiras das lojas em abril, 2,5 milhões de pessoas visitaram ao menos um dos 30 sites do game (ROSE, 2011, p.30 apud MOLONEY, 2011, p. 41)6. No caso da experiência do ARG da banda Nine Inch Nails, os produtores utilizaram a força da rede para direcionar a atenção do público. Mesmo que as etapas da viralização não fossem controladas, já que o fã do pen drive poderia não ter compartilhado nada, os pedaços de informação oferecidos foram calculados. Se houvesse, como no caso de Harry Potter, qualquer intervenção ou imposição na forma como o conteúdo poderia ser compartilhado, o projeto poderia não ter dado certo. Para Pratten (2011), é importante que um projeto transmídia não se concentre na imersão, mas sim no engajamento. Ele cita que ao se focar em imersão um projeto pode acabar levando o consumidor a “incontáveis sites e exposição maçante”. Ainda segundo o autor, em um projeto transmídia, cada mídia deve funcionar como um ponto de descoberta para outra, tecendo a experiência do usuário e estimulando sua participação em cada etapa. Isso é particularmente importante para independentes que pensam que criando um quadrinho para seu filme isso resultará automaticamente em audiência para o filme. Não resultará. O quadrinho precisa ser descoberto e consumido e isso só acontecerá se o conteúdo for bom o suficiente para que o leitor comece a explorá-lo e descubra o filme. (PRATTEN, 2011, p. 64) Pelo que vimos até agora, não há uma fórmula completamente assertiva para um projeto transmídia. Mesmo em uma situação de amplo controle da 6 [Tradução livre] By the time the album hit the store shelves in April, 2.5 million people had visited at least one of the game’s 30 Web sites (ROSE, 2011, p.30 apud MOLONEY, 2011, p. 41). 28 Warner Bros. com Harry Potter, a uma experiência apoiada na ação dos usuários, como no ARG do grupo Nine Inch Nails, podemos delimitar um fator comum: a força de cada porção narrativa e seu design como um todo. Nesse sentido, Jenkins (2009) conclui que “relativamente poucas (ou nenhuma) franquias alcançam todo o potencial estético da narrativa transmídia – ainda. Os produtores de mídia estão ainda encontrando o caminho e mais do que dispostos a deixar que outros corram os riscos”. Neste capítulo vimos como a indústria do entretenimento tem adotado a narrativa transmídia em diversos projetos. Observamos como a relação com as audiências pode diferir de maneiras drásticas de um projeto para o outro, o que pode ser um indício de que o engajamento da audiência, no sentido de participação ativa, pode não ser um pilar fundamental dentro da estratégia transmídia em determinados casos. 29 Capítulo 3: Possibilidades para o jornalismo Neste capítulo vamos abordar a aproximação do jornalismo com a narrativa transmídia. Veremos exemplos da mídia norte-americana, canadense e também do Brasil. Também vamos propor uma estratégia para a adoção de narrativas transmídia por redações. 3.1: As tentativas do jornalismo norte-americano Ao analisarmos cada um dos sete princípios da narrativa transmídia propostos por Jenkins (Capítulo 1, item 1.2), podemos notar muitos desses elementos em produções jornalísticas ao longo da história. Como cita Moloney (2011), o jornalismo pode ser feito em profundidade, ser serializado, como em grandes temas que se desdobram em várias reportagens ao longo de um período de tempo, ou mesmo compartilhado. Segundo Moloney, o jornalismo ainda não reuniu todas as características de um projeto transmídia em sua rotina de produção. O mais comum é encontrarmos convergência de mídias, quando um veículo espalha e amarra seu conteúdo por diversas plataformas. Como a notícia do jornal que, mais tarde, pode ganhar uma versão ampliada no site. Though convergence journalism is “multimedia” in that it makes use of multiple media delivery technologies, I argue it is not transmedia. In most examples of digital journalism so far, the same content is simply repurposed for a new medium. The public gains no added value from reading or viewing the same story in another form, and neither writing nor production 7 changes to reflect the differing users of those media . (MOLONEY, 2011, p. 50) 7 [Tradução livre] Apesar de o jornalismo convergente ser multimídia por usar múltiplos tecnologias de entrega, argumento que não é transmídia. Em muitos exemplos do jornalismo digital até agora, o mesmo conteúdo é reutilizado em um novo meio. O público não recebe nenhum valor adicional ao ler ou visualizar a mesma matéria de outra forma, e nenhuma produção ou escrita é alterada para refletir os diferentes usuários dessas mídias. 30 Outro recurso do jornalismo tradicional que reúne muitas das características dos produtos transmídia são as notícias multimídia. Normalmente destinadas às grandes reportagens e séries, essas produções são ricas na apresentação do conteúdo. Podem reunir gráficos, vídeos, animações, ilustrações, trechos em áudio etc. Figura 3: Reprodução de tela do projeto Snow Fall em 31 de agosto de 2014 (THE NEW YORK TIMES, 2012). Um dos exemplos citados por Moloney (2014) é um projeto especial online do The New York Times de 2012. Chamado de Snow Fall (Figuras 3 e 4), o projeto é uma grande reportagem sobre uma avalanche em Washington Cascades, em fevereiro de 2012. O projeto reúne seis grandes textos, organizados como um site independente (hotsite) dentro do The New York Times. Cada página funciona como um capítulo para o tema e trata do incidente por um aspecto singular. Em cada página, além do texto central, há depoimentos em vídeo, infográficos animados e galerias de fotos. Todos os recursos multimídia trazem informações adicionais que complementam o texto. 31 Figura 4: Reprodução de tela de galeria do projeto Snow Fall em 31 de agosto de 2014 (THE NEW YORK TIMES, 2012). Assim como nas narrativas transmídia da indústria do entretenimento, essa matéria especial do The New York Times possui uma profundidade grande sobre o tema. Seu estilo é muito mais próximo do jornalismo literário, comum à revista New Yorker ou às obras de autores consagrados do gênero, como Truman Capote ou Lillian Ross. As we examine the possibilities of new implementations of journalism literary journalism bears a close examination. It fulfills the wish for greater immersion in a story, expresses context, explains complexity and captures the imagination of its 8 public. These are all goals of transmedia storytelling . (MOLONEY, 2011, p. 55) Em praticamente todas as direções que olhemos, podemos encontrar exemplos dentro do jornalismo atual que compreendam vários dos sete princípios apontados por Jenkis. O que é extremamente raro é encontrar um produto que 8 [Tradução livre] Ao examinarmos as possibilidades das novas implementações para o jornalismo, o jornalismo literário carrega uma exploração minuciosa. Ele preenche a ânsia por mais imersão na história, expressa contexto, explica complexidades e captura a imaginação de seu público. Esses são objetivos da narrativa transmídia. 32 reúna todos. Moloney (2011) destaca outro projeto do The New York Times, do começo da exploração da web pelos veículos de imprensa, e que reúne quase todas as qualidades necessárias. Em 1996 foi ao ar o projeto de fotojornalismo Bosnia: Uncertain Paths to Peace (Figura 5), do fotojornalista francês Gilles Peress e do editor fotográfico Fred Ritchin. O site permitia que o leitor navegasse livremente por várias camadas de conteúdo, da forma que achasse mais prática. A exibição poderia ser feita de forma linear, por miniaturas das imagens etc. A discussão com os leitores também fazia parte do projeto. O site continha 14 fóruns públicos de discussão envolvendo os tópicos e imagens do conflito. Cada porção de conteúdo era interligado com outro, construindo uma rica narrativa não-linear. Figura 5: Captura de tela do projeto Bosnia: Uncertain Paths to Peace em 31 de agosto de 2014 (THE NEW YORK TIMES, 1996) O resultado final ficou tão profundo que foi indicado pelo The New York Times para o prêmio Pulitzer de 1997. Infelizmente, foi considerado não elegível por não fazer parte da versão impressa do jornal. Na época, o prêmio não comportava matérias produzidas exclusivamente para a web. Not only did the site feature 14 forums for public discussion, but four Internet terminals were installed at the United Nations in New York and two at The Hague to expand the discussion. The 33 forums were introduced by the U.S. ambassador to the United Nations Madeleine Albright, CNN’s Christiane Amanpour, Soros 9 Foundations president Aryeh Neier and others . (MOLONEY, 2011, p. 62) Talvez o problema do projeto Bosnia: Uncertain Paths to Peace tenha sido estar muito à frente do seu tempo. Apesar de comportar quase todos os princípios da narrativa transmídia, o projeto foi concentrado somente na web. Não houve, portanto, uma divisão de cada uma das partes da narrativa em outras mídias. Por esse motivo, ele é um dos exemplos do jornalismo norte-americano que mais se aproximam das narrativas transmídia, segundo Moloney (2011), mas ainda não é um projeto de jornalismo transmídia. Outro exemplo mencionado pelo autor, e que reúne muitas das características das narrativas transmidiáticas é a apresentação Out Of My Window (Figuras 6 e 7), do Canadian National Film Board (NFB). O site explora, em profundidade, as vidas de 49 indivíduos espalhados por 13 cidades em 13 línguas diferentes. O projeto foi premiado com um International Digital Emmy Award para não-ficção (MOLONEY, 2011, p. 80). No projeto, cada personagem entrevistado revela informações aprofundadas de sua rotina em depoimentos em vídeo, que podem ser acessados ao clicar em elementos fotográficos do interior de seus apartamentos. Várias fotos formam uma visão em 360 graus das residências. 9 [Tradução livre] O site não só continha 14 fóruns de discussão, mas também quatro terminais de internet foram instalados nas Nações Unidas em Nova York e dois no The Hauge para expandir a discussão. Os fóruns foram introduzidos pelo embaixador dos Estados Unidos para as Nações Unidas, Madeleine Albright, para Christiane Amanpour, da CNN e para o presidente da Soros Foundations, Aryeh Neier e outros. 34 Figura 6: Reprodução de tela de Out of My Window em 31 de agosto de 2014 (NFB, sem data). Figura 7: Reprodução de tela de Out of My Window em 31 de agosto de 2014 (NFB, sem data). O projeto Snow Fall foi marcante na imprensa norte-americana. Dentro do próprio The New York Times, treze grandes matérias multimídia foram produzidas 35 em 2013 (THE NEW YORK TIMES, 2013). Em abril deste ano (2014), o jornal britânico The Guardian produziu uma grande matéria multimídia sobre o mercado têxtil de Blangadesh. Chamada de “documentário interativo”, a matéria The shirt on your back reúne vídeos, galerias de fotos e áudio para enriquecer a narrativa sobre as condições precárias de trabalho na região. O fio condutor da narrativa é a personagem Mahmuda Akhter. A história dessa trabalhadora têxtil e sua família é contada ao longo de toda a matéria. Para reforçar a situação de pobreza e trabalho exploratório de Mahmuda, a cada troca de capítulo um contador de tempo é apresentado. Ele traz o tempo que o leitor está gastando na matéria e o converte em horas de trabalho de Mahmuda. O contador também exibe o ganho de revendedores britânicos – principal destino da produção de Bangladesh - dentro do período (Figura 8). Figura 8: Captura de tela da reportagem The shirt on your back em 12 de setembro de 2014 (THE GUARDIAN, 2014) Assinada pela produtora Lindsay Poulton, a matéria envolveu treze profissionais do The Guardian, além de contar com patrocínio da Canon e do WorldView, um projeto da Commonwealth Broadcasting Association, organização mundial de emissoras públicas (THE GUARDIAN, 2014). 36 3.2: A aproximação da mídia brasileira A imprensa brasileira também tem produzido, desde 2012, projetos multimídia excepcionalmente ricos. Assim como na imprensa norte-americana, no entanto, por mais que compreendam alguns dos princípios das narrativas transmídia, as produções jornalísticas com recursos multimídia acabam se concentrando em uma única plataforma, geralmente site ou revista em tablet. Um dos efeitos dessa limitação, como aponta Moloney (2011), pode ser a falta de tempo para a produção de conteúdo, já que as redações estão cada vez mais enxutas. Com o encolhimento das redações brasileiras, projetos mais audaciosos tendem a ficar em segundo plano. Para citar um exemplo do cenário atual vivido pela imprensa no Brasil, em agosto deste ano (2014), a Editora Abril anunciou a saída de 20 de seus executivos (MEIO E MENSAGEM, 2014), movimento que faz parte de uma grande reestruturação e demissões que começou no final de 2013 (G1, 2013). A situação em outros conglomerados é parecida. Em 2012, o Grupo Estado anunciou o encerramento do Jornal da Tarde, produto com 46 anos de existência e circulação de 37.778 exemplares em agosto do mesmo ano, segundo o Índice Verificador de Circulação (UOL, 2012). Além da falta de profissionais disponíveis, o jornalismo tradicional não recebe muito bem alguns dos conceitos da narrativa transmídia, como as lacunas deixadas na narrativa para incentivar o espectador a buscar mais informação, como vimos que acontece em The Matrix. Mesmo assim, à exemplo do que acontece no jornalismo norte-americano, grandes reportagens no Brasil têm recebido um desenvolvimento mais criativo. Um exemplo é o especial A Batalha de Belo Monte, publicado pelo jornal Folha de S. Paulo em dezembro de 2013 (Figura 9). Assim como no projeto Snow Fall, do The New York Times, A Batalha de Belo Monte é dividida em capítulos, cada um trabalhando um aspecto relacionado ao tema central. Assim como na peça do Times, a reportagem da Folha é 37 centrada no texto, que é recheado com vídeos, infográficos animados e ensaios fotográficos que o complementam. Figura 9: Captura de tela da reportagem A Batalha de Belo Monte em 31 de agosto de 2014 (FOLHA DE S. PAULO, 2013). A reportagem possui cinco capítulos, 55 fotografias, 18 gráficos e foi produzida por uma equipe de 19 profissionais. Sua produção levou cerca de 10 meses (FOLHA DE S. PAULO, 2013). Ela é a primeira reportagem de uma série chamada Tudo Sobre, que reúne projetos do gênero publicados pelo veículo. O esforço rendeu à Folha o prêmio na categoria Cobertura Multimídia da Sociedade Interamericana de Imprensa, além do Grande Prêmio CNI, da Confederação Nacional da Indústria (FOLHA DE S. PAULO, 2014). Outro projeto que segue a mesma linha foi publicado neste ano (2014) por alunos da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo. Chamada de 2000eágua, a reportagem multimídia traz um texto central, recheado com informações adicionais em infográficos e depoimentos em vídeo das personagens. 38 Para analisar a crise hídrica do Estado de São Paulo, os alunos da ECA optaram por uma abordagem noticiosa e tradicional no texto, ao contrário do tom mais literário das reportagens da Folha e Times, mencionadas anteriormente. Os vídeos funcionam como um bom contraponto para prender o leitor de maneira mais profunda. Sobre esse tipo de abordagem, Moloney destaca: “Long-term investigative project stories and series stories lend themselves very well to a transmedia approach. Not only do they have longer production schedules for the reporting alone, but they also involve much planning”10 (MOLONEY, 2011, p.98). Na imprensa brasileira, todos os anos os veículos produzem séries especiais sobre o Carnaval. Grande parte dessas coberturas online é rica em conteúdo multimídia. São produzidos infográficos, ensaios fotográficos e entrevistas com sambistas. Apesar de ser um conteúdo menos exclusivo – e talvez até mesmo por esse motivo – os veículos tentam atrair a atenção dos leitores das mais variadas formas. Um bom exemplo é o infográfico Como Funciona a Bateria da Grande Rio (Figura 10), do portal iG. Figura 10: Captura de tela do infográfico Como Funciona a Bateria da Grande Rio em 31 de agosto de 2014 (IG, 2011). 10 [Tradução livre] Projetos investigativos e séries combinam muito bem com a abordagem transmídia. Não só contam com períodos de produção e publicação maiores, mas também envolvem muito planejamento. 39 Além de exibir de forma interativa cada um dos blocos que compõe uma bateria, permitindo que o leitor ative ou desative cada um deles para perceber a diferença, o infográfico traz outras camadas de informação. Cada instrumento é exibido em um vídeo independente, com um músico da escola de samba gravado em estúdio. São 9 vídeos no total, além de uma galeria com 21 fotos, entrevista com o mestre de bateria e informações sobre os ritmistas. Looking at journalism in terms of Jenkins’ seven principles, all of the characteristics of transmedia as he defines it have individually been implemented in a journalism or documentary context before. Though they may not yet have been designed together in a single storyline, all the pieces of the puzzle are there already. Nothing new must be invented to apply transmedia storytelling in journalism . (MOLONEY, 2011, p.60) 11 Como vimos anteriormente neste capítulo, o jornalismo produz peças que envolvem várias das premissas descritas por Jenkins. Há, no entanto, alguns pontos que precisam ser melhor aproveitados. Em linhas gerais, um dos pontos cruciais para um projeto transmídia é a apropriação da narrativa. Com um filme, essa relação é clara. Os fãs podem criar suas histórias com brinquedos, se fantasiar e encenar aventuras novas. Mas e com a não-ficção própria do jornalismo? Moloney (2011) propõe alternativas baseadas em conteúdos adicionais, que podem ser compreendidos como souvenirs pelo público e substituiriam as formas tradicionais de merchandising. Para o autor, um dos pontos centrais são os games. “A compelling game or immersive experience can long outlive the news 11 [Tradução livre] Olhando para o jornalismo conforme os sete princípios de Jenkis, todas as características transmídia como ele as define foram implementadas individualmente no contexto do jornalismo ou documentário anteriormente. Apesar de eles ainda não terem sido desenvolvidos em conjunto em uma única linha do tempo, todas as peças do quebra-cabeça estão lá. Nada precisa ser inventado para aplicar a narrativa transmídia no jornalismo. 40 cycle, keeping the public in tune with news events long after the media have moved on to the next event“12 (MOLONEY, 2011, p. 86). Outra forma comum de souvenirs entregue pelo jornalismo, em especial as revistas, são as edições especiais ou pôsteres. Eles funcionam como um prêmio ao leitor e podem retomar um grande tema com uma nova abordagem, deixando o assunto vivo novamente. Em 2013, para comemorar o Dia da Toalha em 25 de maio, uma homenagem ao escritor inglês Douglas Adams, de O Guia do Mochileiro das Galáxias, e que também citado como Dia do Orgulho Nerd, a Revista Info, da Editora Abril, preparou um pôster, uma série de reportagens e infográficos em seu site. Sem revelar seu propósito, o pôster foi lançado em 17 de maio como uma edição especial enviada para assinantes e também vendida separadamente (Figura 11). O pôster trouxe curiosidades sobre o personagem Darth Vader, de Star Wars. O dia 25 de maio também marca a estreia de Star Wars nos cinemas, em 1977. 12 [Tradução livre] Um game ou uma experiência imersiva podem aumentar a vida do ciclo da notícia, deixando o público alinhado com os eventos mesmo depois de a mídia ter seguido para o próximo evento. 41 Figura 11: Arte promocional do pôster de Darth Vader, da Revista Info (Acervo pessoal). Em todas as postagens em redes sociais que divulgaram o pôster, os fãs manifestaram sua admiração e interesse, marcaram seus amigos e pediram auxílio para encontrar o especial em uma banca mais próxima. Quando o dia 25 chegou, todos os conteúdos especiais foram publicados no site da Info, revelando então que o pôster fazia parte desse especial e novamente fomentando o interesse do público. Sobre uma das possibilidades de souvenirs para o público extrair o conteúdo e se apropriar dele, Moloney sugere abordagens pessoais. Reporters and editors could offer public lectures on the subject, making the experience by the public of the story more personal. And extractability and public action are also native to this story, with a compelled public more likely to support the better aid groups described in the investigation and pressure those requiring reform . (MOLONEY, 2011, p. 101) 13 Adotando esse conceito, a equipe envolvida na produção da Batalha de Belo Monte poderia oferecer um ciclo de palestras e discussões sobre o tema. O mesmo poderia ser pensado sobre o Dia da Toalha para os leitores da Revista Info. As equipes, afinal, têm muito a oferecer sobre o processo em si e também sobre os temas, pois durante um período desempenharam um grande esforço na busca por todo o conteúdo que foi apresentado. A Atavist, uma startup e revista digital de jornalismo dos Estados Unidos criou uma plataforma para publicação de grandes reportagens multimídia. Chamada de Creatavist, a plataforma oferece um layout responsivo e adaptável para grandes matérias. Assim como nas matérias que vimos anteriormente neste 13 [Tradução livre] Repórteres e editores podem oferecerer palestras sobre o tema, tornando a experiência do público mais pessoal. A extração e ação do public são mais naturais para a história com um public mais inclinado a ajudar grupos e pressionar os que precisam de reformas. 42 capítulo, é possível incluir vídeos, trechos de áudio, documentos e galerias de imagem para enriquecer o texto. O serviço é gratuito para a publicação de um único conteúdo, com uma URL do próprio serviço. Um plano mensal de 10 dólares permite que até cinco matérias sejam postadas com direcionamento para um domínio próprio, e um plano de 250 dólares mensais entrega a estrutura completa para que o autor (ou veículo) a altere para sua própria linguagem visual e de marca (CREATAVIST, 2014). Os brasileiros Lucas Braga e Marcelo Augusto utilizaram a ferramenta para publicar um extenso perfil de Kobe Bryant (Figura 12), jogador de basquete com cinco títulos da NBA. Figura 12: Captura de tela da matéria Kobe Bryant em 12 de setembro de 2014 (BRAGA, Lucas; AUGUSTO, Marcelo, 2014). Outro exemplo que se aproxima da plataforma do Creatavist é o especial da revista Veja sobre os dez anos do Facebook (Figura 13). Assinado pelo jornalista Rafael Sbarai, o especial foi publicado em fevereiro deste ano (2014) e reúne infográficos e galerias de fotos para dar suporte ao texto central. 43 Figura 13: Captura de tela do especial 10 anos de Facebook em 12 de setembro de 2014 (VEJA, 2014). Para desenvolver a reportagem, Sbarai levou quatro dias. A produção desse conteúdo foi anexada à sua rotina de trabalho. Portanto, foi produzida em paralelo com outras demandas editoriais da publicação. O desenvolvimento da estrutura da reportagem também foi realizado internamente, com o designer inserindo o fluxo de trabalho do projeto em sua rotina de produção14. Nestes dois primeiros itens deste capítulo vimos como o jornalismo norteamericano e brasileiro se aproximam do modelo de narrativa transmídia, mas ainda não conseguiram criar uma peça que reúna todas as suas características. Mas como tornar essa produção viável em um cenário de encolhimento das redações? Todo conteúdo jornalístico pode ser encaixado numa lógica transmidiática? No próximo item vamos expor uma sugestão de estratégia para implementar essas ações nas redações. 3.3: Um método viável Neste item vamos sugerir uma estratégia para a adoção de conteúdo transmídia pelas redações. Neste momento, não é nosso objetivo comprovar a 14 Comunicação pessoal entre Rafael Sbarei e o autor em 12 de setembro de 2014. 44 eficácia das propostas apresentadas, já que inúmeros fatores podem influenciar o sucesso ou insucesso de uma empreitada nessa direção. As sugestões que serão oferecidas provêm das observações do autor e das leituras realizadas, com base no que foi apresentado até aqui e também sua experiência prévia com jornalismo e redações. O jornalismo não precisa se esforçar para construir novos conteúdos que se adequem à narrativa transmídia, pois como vimos anteriormente, produções multimídia, aprofundadas e que podem ser disseminadas por múltiplas plataformas já fazem parte do cotidiano do jornalismo. Várias das produções já compreendem muitos dos aspectos transmidiáticos apresentados por Jenkins e, em especial, muita criatividade. Mais do que inventar novas formas de conteúdo, é preciso essencialmente adaptar os processos das redações. Como descreve Bertocchi (2013), ao apresentar a narrativa jornalística digital como um sistema aberto, adaptável às variáveis que o cercam, como interação com leitores, evolução do tema etc, podemos compreender que o processo atual de construção do conteúdo jornalístico, em especial nos meios digitais, já absorveu rotinas complexas e mecanismos de design para suas narrativas. Desta forma, as histórias da vida cotidiana relatadas por jornalistas e as quais acessamos a partir de telas distintas — dos pequenos e grandes ecrãs de celulares, computadores de mesa, tablets — revelam-se como o resultado de um comportamento sistêmico modelado previamente por múltiplos profissionais do jornalismo, do design gráfico e da computação. (BERTOCCHI, 2013, p. 40) Esse processo de narrativa do jornalismo pós era industrial também é discutido por Paul Breadshaw (2007), citado por Bertocchi (2013), ao apresentar o modelo The News Diamond. Para esse modelo o processo de construção se inicia com um estímulo externo, que pode ser uma mensagem no Twitter ou Facebook, passando para um desenvolvimento inicial de apuração, depois para um artigo e 45 podendo até chegar ao nível mais externo, o da personalização (BERTOCCHI, 2013, p. 7). Dificilmente o conteúdo do dia a dia do jornalismo, como coberturas de acidentes, julgamentos, economia e tantos outros temas, oferecem o necessário para um produto transmídia. Desse modo, o esforço deve se concentrar nas grandes temáticas, como a reportagem de capa de uma revista mensal, ou então, de certo modo, como funciona a revista Trip, que orienta todo o conteúdo de uma edição em torno de um mesmo assunto. Mesmo que os exemplos vistos até aqui tenham envolvido grandes equipes de trabalho, Moloney destaca que com o esforço correto e entendimento do processo uma “transmedia production could theoretically be produced by a single person devoting much time and an array of skills to the task”15 (MOLONEY, 2011, p. 101). O planejamento é uma ferramenta técnica que precisa ser desenvolvida individualmente e em equipe. Ele propicia o domínio do tempo de trabalho, da prática jornalística e do material noticioso, evitando assim o improviso, a confusão, o erro e o mau acabamento da mercadoria-informação (PUBLIFOLHA, 2006, p. 19) O planejamento é fundamental para o exercício do jornalismo. Editores, repórteres, designers, fotógrafos, secretários de redação, ou seja, todos envolvidos no dia a dia de trabalho devem ter consciência das tarefas desenvolvidas por todos e dos processos internos. Para a adoção de uma estratégia transmídia, esse planejamento necessita de uma camada adicional. Ao identificar uma história que reúna todas as características para que se torne um produto transmídia, o que geralmente ocorre na reunião de pauta16, é 15 [Tradução livre] “uma produção transmídia poderia, teoricamente, ser produzida por uma única pessoa dedicando bastante tempo e reunindo as habilidades necessárias para a tarefa”. 16 Reunião onde são debatidos os assuntos levantados pelas equipes de reportagem e editores. É na reunião de pauta que se começa a desenhar o que será publicado e de que forma. 46 preciso planejar a formatação do projeto. Como esse desenvolvimento desprenderá um esforço maior do que as outras peças do veículo, é preciso definir quais serão os profissionais envolvidos no projeto. Fazendo uma analogia, seria como criar uma startup dentro da redação, que será descolada da rotina e se concentrará em desenvolver uma única pauta específica. Esse tipo de prática já se difunde no jornalismo ao redor do mundo. Michele McLellan, do Knight Digital Media Center mantém uma lista com 228 startups de jornalismo dos Estados Unidos (BREINER, 2014). Há exemplos de jornalismo local, como a Detailed Block, que se dedica a acompanhar o aquecido mercado de empreendedorismo e tecnologia de Charlotte, na Carolina do Norte (MCLELLAN, sem data). Um passo importante que deve fazer parte da rotina desta equipe é a documentação. Durante o processo de apuração, o jornalista se depara com um volume muito grande de conteúdo. Tradicionalmente, a curadoria17 desse conteúdo elimina informações interessantes em torno do tema da reportagem que, se ganhassem outra roupagem, poderiam ser produtos independentes. Um método para aproveitar ao máximo esse conteúdo é encarar cada entrevista como um pequeno documentário. Gravar as entrevistas em áudio e preferencialmente em vídeo pode gerar conteúdos extremamente ricos. Mesmo que a fonte forneça uma única aspa para a matéria central, seu depoimento em vídeo pode ser conduzido e tratado como um produto independente, ou seja, uma das peças do quebra-cabeças transmídia. Outro ponto crucial, que normalmente é desconsiderado pelo jornalismo, é a não-publicação de todo o conteúdo referente à produção transmídia de uma única vez. Nos exemplos que vimos anteriormente, tanto nacionais como norteamericanos, todo o conteúdo foi ofertado no mesmo momento. Pegando A Batalha de Belo Monte, por exemplo, cada um dos capítulos poderia ter sido apresentado em uma semana diferente. Mantendo o público cativo por cinco 17 Mais informações sobre o processo de curadoria no cenário digital podem ser encontradas no e-book Curadoria Digital e o campo da caomunicação (AMARAL, e col, 2012). 47 semanas, no caso do projeto. No intervalo de publicação entre os capítulos, conteúdos adicionais poderiam ser exibidos em outros meios. Como ensaios fotográficos completos sobre o capítulo publicado, depoimentos mais completos em vídeo dos entrevistados daquele capítulo no YouTube e até mesmo uma roda de discussão ou debate com os leitores e equipe sobre o capítulo já apresentado. Para orientar esse desenvolvimento, é necessário pensar em cada peça do conteúdo como parte do todo. Um conteúdo não pode ser meramente complementar. Ele deve ser também independente, permitindo que seja consumido pelo leitor em sua plenitude e de acordo com todos os preceitos do jornalismo. Cada conteúdo desse pode sinalizar outro ao final, ou então permitir que o leitor busque pelo tema com mais facilidade. Algo que não é comum nas narrativas transmídia da indústria do entretenimento, mas que pode ser fundamental para o jornalismo transmídia, é reunir todas as porções individuais do projeto ao final, permitindo que tudo seja consumido em totalidade. Uma solução pode ser um hotsite do projeto, descrevendo todos os seus produtos e permitindo seu consumo. Seria como se os irmãos Wachowski, ao término da empreita de The Matrix, produzissem um site, ou então documentário, reunindo todos os detalhes que podem não ter sido consumidos ou mesmo compreendidos. Neste capítulo vimos exemplos do jornalismo que reúnem boa parte das características dos projetos transmídia. Também tomamos conhecimento que o jornalismo já dispõe dos recursos necessários para incorporar uma estratégia transmidiática seguindo os preceitos apresentados por Jenkins. Também elaboramos sugestões para a construção de conteúdo transmídia para as redações e um modelo para a adoção de projetos transmídia em redações, exibido a seguir (Figura 14). 48 Figura 14: Proposta para adoção de projetos transmídia em redações jornalísticas 49 Considerações finais O objetivo central deste estudo foi apresentar as características centrais que envolvem os projetos de narrativa transmídia, tomando por base os conceitos de Heny Jenkis e traçar um paralelo com possibilidades para o jornalismo. Através do estudo de Kevin Moloney (2011), foi possível tomar conhecimento de tentativas do jornalismo norte-americano de se aproximar das produções transmídia, mesmo que não propositalmente. Pela análise do que foi apresentado no estudo, é possível propor que a adoção de projetos transmídia pelos veículos de imprensa contemporâneos não possui entraves técnicos, ou mesmo limitantes econômicos, como escassez de mão de obra. Com a absorção dos conceitos e exemplos apresentados, foi possível formular uma série de sugestões no Capítulo 3 que podem ser incorporadas pelas rotinas das redações para a produção de conteúdos seguindo os princípios das narrativas transmídia propostos por Jenkins (2009). Mais que tudo, esse estudo pretende começar um debate em torno da adoção das narrativas transmídia para os veículos de imprensa brasileiros. A exemplo do que acontece com a indústria do entretenimento, as narrativas transmídia podem tornar o conteúdo jornalístico mais atraente para um público dinâmico, sobretudo em um tempo onde o jornalismo em si passa por transformações. Esse trabalho não analisou aspectos financeiros que envolvem a produção jornalística, mas é impossível ignorá-los. Compreendemos que há muito espaço para discussão, e sobretudo para estudos sobre todos os processos que envolvem a adoção de narrativas transmídia pelo jornalismo. Pretende-se aprofundar, no futuro e à medida em que se consolidem as experiências, o estudo sobre esse tipo de produção no jornalismo e também sua eficácia e comparações com a indústria do entretenimento que, mesmo passando por dificuldades similares em relação ao 50 jornalismo, tem adotado a narrativa transmídia com grande velocidade e intensidade. Um ponto que pode ser abordado em um próximo estudo é o processo de documentação necessário à produção transmídia. Em que medida a própria organização de processos, como com o uso de ferramentas de colaboração e projetos, como as soluções Basecamp ou Teamwork podem contribuir para a formação de narrativas próprias que podem ser anexadas à ideia central. 51 Referências ARNAUT, Rodrigo; et al. Era Transmídia. Revista GEMInIS, n. 2 Ano 2, 2011. Disponível em: http://www.revistageminis.ufscar.br/index.php/geminis/article/view/93. Acesso em 31 de agosto de 2014. AMARAL, Adriana et al. Curadoria digital e o campo da comunicação. Edição 1. 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