A estética afro-brasileira no rito nagô

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A estética afro-brasileira no rito nagô
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A estética afro-brasileira no rito nagô
Anderson Gonçalves dos SANTOS1
Everton Luís SANCHES2
Resumo: Este artigo visa resgatar parte da história afro-brasileira e da estética, rica e importante para o processo de aculturação no Brasil. Os negros são
artífices em uma cultura que, ao longo dos anos, ganhou vida nos moldes e no
jeito brasileiro: na música, com o samba; nas festas, com o carnaval; nos jogos,
com a capoeira; na culinária, com a feijoada, entre tantas manifestações culturais. O presente artigo demonstra como a cultura afro-brasileira também possui
uma crença, uma mitologia, um rito e uma estética, próximo de um panteísmo
religioso, delineando uma subjetividade transcendental. Destaca-se, no rito religioso, uma estética empregada na maneira de o africano e o afrodescendente
se comunicarem com os deuses. Dentre os diversos povos africanos que vieram
para o “Novo Mundo”, selecionamos a cultura nagô para realizar este estudo. Por
esse motivo, o artigo faz um estudo de natureza analítica interpretativa, de cunho
antropológico-filosófico da estética do rito nagô.
Palavras-chave: Cultura Afro-brasileira. Rito Nagô. Estética Brasileira.
1
Anderson Gonçalves dos SANTOS. Graduado em Filosofia pelo Claretiano – Centro Universitário.
E-mail: <[email protected]>.
2
Everton Luís SANCHES. Doutor em História pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho
(UNESP). Licenciado em História pela mesma instituição – onde atualmente é pesquisador. Professor
do Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.
Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014
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The Afro-brazilian esthetic in Nagô rite
Anderson Gonçalves dos SANTOS
Everton Luís SANCHES
Abstract: This article aims at retrieving part of the African-brazilian history
and esthetic, which is rich and important to the acculturation process in
Brazil. Blacks are artificers in a culture that, over the years, came to life in the
Brazilian mold and way: in music, with “samba”; in parties, with carnival; in
games, with “capoeira”; in cooking, with “feijoada”, among many other cultural
manifestations. The present article demonstrates that the African-brazilian
culture also has a creed, a mythology, a rite and an esthetic, similar to a religious
pantheism, outlining a transcendental subjectivity. An esthetic applied in how
the African and the African-descendant communicate with gods is highlighted
in religious rites. Among the several African peoples that came to the “New
World”, we selected the Nagô culture to conduct this study. Therefore, this article
comprises a study of analytical and interpretative nature, with anthropological-philosophic characteristics of the Nagô rite esthetic.
Keywords: African-brazilian Culture. Nagô Rite. Brazilian Esthetic.
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1.  INTRODUÇÃO
Do fundo das senzalas vinha o choro convulso
Dos negros no bater dos atabaques,
Quando chegava do longínquo das praças
A inquietação dos homens...
Era toda uma raça que sofria,
Se desesperava e reagia,
Conservando alguma coisa de seu,
Puramente seu.
(Jorge Amado, De: ABC de Castro Alves).
Pensar a cultura afro-brasileira é um desafio instigante. Verificamos uma carência de pesquisas, artigos ou livros que façam
conexões entre estudos filosóficos e cultura africana. Diante disso
e considerando as possibilidades concernentes ao artigo científico,
propomo-nos a fazer uma análise da estética afro-brasileira na cultura nagô, traçando um caminho metodológico interdisciplinar que
se utiliza, sobretudo, de princípios históricos e filosóficos.
A valorização da cultura negra vem ganhando força ao longo
dos anos e rompendo barreiras, como, por exemplo, com a capoeira, que foi proibida até a década de trinta e, hoje, é praticada como
dança e esporte no Brasil e no mundo; com os tambores nos ilês-axé, com a conquista e o reconhecimento do dia da consciência
negra e, recentemente, com a promulgação da Lei 10.639, que torna
obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira em todos os
níveis da educação formal no país.
É fundamental, para abrirmos a discussão, considerarmos a
necessidade de romper preconceitos e valorizar a cultura pela sua
importância no contexto histórico brasileiro. Assim, podemos delinear como fundamental a conceituação de cultura e sua relação
com o contexto histórico recente.
De acordo com Williams (1969, p. 20), houve diferentes
compreensões da palavra “cultura” ao longo da história, ao passo
que, ao considerarmos as mudanças decorrentes da grande industrialização do final do século XVIII, essa palavra apresentou significado distinto daquele que foi anterior a esse período de grandes
transformações. Para ele, “[...] cultura significava um estado ou um
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hábito mental ou, ainda, um corpo de atividades intelectuais e morais; agora, significa também todo um modo de vida” (WILLIAMS,
1969, p. 20).
De acordo com Unesco (1982), considerando a Declaração
do México sobre Políticas Culturais, é fundamental ainda considerar, a respeito da definição de cultura, que:
Em seu sentido mais amplo, a cultura pode, hoje, ser considerada como o conjunto de traços distintivos, espirituais e
materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou grupo social. Ela engloba, além das artes e das
letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser
humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças
(UNESCO, 1982, p. 39).
Todavia, pensar o rito nagô como manifestação cultural inclui
pensar em arte, estética e mito dando sentido aos simbolismos presentes na liturgia do rito e dando sentido à vivência dos seguidores
dessa religião, trazendo consciência àquilo que funda a vivência.
Sobre a definição e importância do rito, Langdon (2007) ressaltou:
[...] no campo de antropologia, o conceito do rito é um dos
mais antigos e dos mais caros. No seu início, as discussões
enfocaram na expressão simbólica dos ritos sagrados, ou
seja, nos ritos religiosos como a representação máxima
da sociedade. Hoje a noção abrange um conjunto amplo e
heterogêneo de eventos presente na vida contemporânea,
sejam estes sagrados ou profanos. Podem ser dos mais
banais, como as saudações cotidianas que iniciam e fecham
os encontros, mas incluem também os cultos religiosos,
atos políticos e cívicos, cerimoniais de todos os tipos,
processos jurídicos e uma variedade de outros eventos
que constroem e expressam a vida social e individual
(LANGDON, 2007, p. 5).
Nessa perspectiva, ao tomarmos o rito como categoria analítica, tratamos da significação ampla da vida dos africanos no Brasil
e de seus descendentes, até hoje participantes de nossa cultura. Os
africanos trouxeram seus conhecimentos e foram se adaptando e
apresentando o seu jeito, as suas crenças, suas palavras e costumes
ao Brasil. Esse país, por sua vez, se formou a partir de grande misLing. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014
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cigenação, composto por diversas culturas étnico-raciais que convivem entre si e se renovam constantemente.
Abandonando a visão dos processos sociais como sendo
harmônicos, a antropologia hoje estuda as características
que marcam as sociedades complexas: heterogeneidade,
hierarquia, poder, identidade étnica e minoritária e violência, entre outras. Os que continuam estudando os grupos
pequenos ou tribais também incorporam a visão de que os
processos sociais e políticos são movimentados por perspectivas diferentes, lutas de poder, hierarquias e conflitos
de interesses. Também é reconhecido que situações locais
não podem ser entendidas em isolação da sociedade maior
que as engloba (LANGDON, 2007, p. 8).
Naturalmente, consideramos o estudo circunstanciado da estética e significação do rito nagô consoante a presença do africano
no Brasil, sua importância e participação na própria formação da
cultura brasileira.
A cultura africana apresenta uma vasta mitologia que foi passada oralmente, apresentando mitologicamente explicações sobre
como surgiram o mundo e os deuses, bem como de que forma a
natureza foi repartida entre eles. O rito sagrado tornou-se uma expressão rítmica de tudo como aconteceu conforme contado nos mitos, uma representação mitológica carregada por uma arte sonora
e estética capaz de transformar o templo, num espaço de conexão
com o sagrado.
Em sentido geral, numa perspectiva reflexiva e filosófica,
Campbell (1990, p. 6) afirmou que “[...] mitos são pistas para as
potencialidades espirituais da vida humana”. Assim, a definição de
mito diz respeito à “experiência de vida”. Portanto, podemos considerar que ocorreu o resgate da identidade e presentificação do
poder do africano a partir de sua representação mitológica. Nesse sentido, “[...] o mito o ajuda a colocar sua mente em contato
com essa experiência de estar vivo. Ele lhe diz o que a experiência é” (CAMPBELL, 1990, p. 6). Todavia, a vida experimentada
pelo afrodescendente no Brasil encontrou, muitas vezes, a sua mais
profunda significação nos seus ritos, dando forma estética à sua
religiosidade, representando amplamente a sua cultura e forjando a
cultura brasileira.
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Desse modo, indagamos: quais os elementos estéticos do
mito e rito nagô? Que análises filosófico-estéticas podemos fazer
de tal manifestação cultural? Esse é o problema que abordaremos
na continuidade.
2.  MITO E FILOSOFIA
Sabemos que a mitologia sempre foi usada para contar histórias da vida dos deuses, explicar o mundo de uma forma didático-pedagógica e em alegorias desde a Grécia Antiga, sendo citada
muitas vezes por Sócrates e Platão em seus diálogos, como o mito
da criação de Timeu de Platão.
A mitologia surge dos tempos mais antigos da história do
pensamento humano e não desaparece. Segundo o filósofo Cassirer
(2004, 2004, p. 344):
[...] a forma de causalidade mítica serve nem tanto para
explicar o surgimento do mundo, ou de alguns de seus objetos, mas para explicar a procedência dos bens culturais
humanos. De acordo com a particularidade da representação mítica, essa explicação evidentemente para na concepção de que esses bens não foram criados pela força e pela
vontade do homem, mas lhe foram dados.
Para Müller (1876), estudioso de linguística, a mitologia é
natural e inevitável e, no sentido mais elevado da palavra, significa
o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento. “É de ver que
a mitologia brotou, com redobrada força, dos tempos mais antigos
da história do pensamento humano; nunca desaparece, porém, de
vez” (MÜLLER, 1876 apud CASSIRER: s/d, p. 9).
Para Cassirer (2003, p. 69), “[...] com o mito o homem começa a aprender uma nova e estranha arte: a arte de exprimir, e
isso significa organizar os seus instintos mais profundamente enraizados, as suas esperanças e temores”. Assim, a reflexão mítica
não deve ser inferida como fantasia ou patologia, mas como forma
de valorização da realidade primeira e de caráter exclusivo. Para
esse filósofo, mito e religião originam-se da vida, não havendo um
ponto em que termina o mito e começa a religião; para ele; os dois
fenômenos estão interligados.
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Em todo o curso de sua história, a religião permanece indissoluvelmente ligada a elementos míticos e repassada
deles. Por outro lado, até em suas formas mais grosseiras e rudimentares, o mito contém motivos que, em certo
sentido, antecipam os ideais religiosos mais elevados que
vieram depois. Desde o início, o mito é uma religião em
potencial (CASSIRER, 1977, p. 143).
Como vemos, para o filósofo, há uma conexão entre as religiões no decorrer da história e os elementos míticos. O mito torna-se, pois, uma religião em potência; porque é nele que estão contidos elementos que motivam e dão sentido aos ideais religiosos.
Vamos, agora, começar a analisar os povos africanos que vieram
para o Brasil, para compreendermos como os negros escravizados
que chegaram ao “Novo Mundo” também trouxeram consigo em
reminiscências suas mitologias.
3.  OS POVOS AFRICANOS
No Brasil, os negros começaram a chegar entre 1516 e 1526;
porém, foi com o cultivo e a alta expansão da cana-de-açúcar, entre
Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Recôncavo Baiano, que a escravidão começou a aumentar de forma significativa, com a chegada dos
navios negreiros.
De acordo com Queirozm (1987, p. 18):
É no século XVII, no entanto, que se inicia a grande importação. O açúcar brasileiro desbancara o da Madeira e
demais ilhas portuguesas. Apesar de a ocupação holandesa de Pernambuco diminuir temporariamente o fluxo do
tráfico, calcula-se a vinda de quinhentos a 550 mil negros
para o país nesses cem anos.
A mineração provocou novo afluxo de africanos: um milhão e setecentos mil aproximadamente viriam alentar a
economia luso-brasileira durante o século XVIII. Segundo
Alan K. Manchester, de 1759 a 1803, “os registros coloniais
mostram que entre quatorze e quinze mil negros deixaram
anualmente Angola” (QUEIROZ, 1987, p. 18).
Segundo Queiroz (1987), mesmo com a lei de 7 de novembro
de 1831 proibindo o comércio negreiro, o tráfico perdurou ilegalLing. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014
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mente até 1850, cessando definitivamente. Nesse período de quase
vinte anos de tráfico proibido, estima-se que quinhentos mil africanos adentraram o novo mundo. Certamente, a quantidade pode ter
sido maior, pois é notoriamente impossível rastrear números precisos em atividades ilegais durante esses três séculos e meio de duração. Alguns autores citam um milhão e trezentos e cinquenta mil
africanos; Robert Conrad (1985) aponta um total de cinco milhões
de escravos para todo o período, mas a maioria dos estudiosos estima a vinda de três milhões e meio aproximadamente. Esse número
ao certo jamais será conhecido.
Muitos foram os negros africanos que vieram para o Brasil
de diversas nações e aqui se misturaram. Dentre todos os povos,
segundo Rodrigues (1977), não foram os bantos que colonizaram
o Brasil, mas começou a partir das colônias portuguesas da África
meridional e as ilhas do Golfo de Guiné. Para eles, dos Congos,
Cabindas e Angolas na Costa Ocidental da África, dos Macuas e
Anjicos na oriental, provieram todos os africanos brasileiros, mas
principalmente da Costa Ocidental Africana.
Arthur Ramos (1940, 1942, 1946), prosseguindo os estudos de Nina Rodrigues (1939, 1945), distingue, quanto
aos tipos culturais, três grandes grupos. O primeiro, das
culturas sudanesas, é representado, principalmente, pelos
grupos Yoruba – chamados nagô –, pelos Dahomey – designados geralmente como gegê – e pelos Fanti-Ashanti
– conhecidos como minas – além de muitos representantes de grupos menores da Gâmbia, Serra Leoa, Costa da
Malagueta e Costa do Marfim. O segundo grupo trouxe
ao Brasil culturas africanas islamizadas, principalmente
os Peuhl, os Mandinga e os Haussa, do Norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros male e no Rio de
Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo de africanos
era integrado por tribos Bantu, do grupo congo-angolês,
provenientes da área hoje compreendida pela Angola e a
“Contra Costa”, que corresponde ao atual território de Moçambique (RODRIGUES, 1977, p. 18-19).
Dentre as várias “nações” africanas que adentraram o Brasil,
estavam presentes negros islamizados. Os chamados comerciantes
tuaregues ligavam toda a região do Sael, também conhecida como
Sudão e, em árabe, Bilad al-Sudan, que quer dizer “terra de neLing. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014
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gros”. Foram eles os responsáveis principais pela difusão do Islã,
os Tuaregues, Azenegues, Berberes e outros. Eram povos arabizados. Esses comerciantes ensinavam a língua árabe e preceitos religiosos por meio do alcorão para os povos com que tinham contato.
A influência muçulmana, que chegou cedo aos povos do
deserto, levou mais tempo para atingir aqueles que moravam próximo da costa. Na região do rio viviam jalofos,
sereres, bambaras, mandingas e fulas, muitos deles convertidos à religião islâmica desde o século X (SOUZA,
2007, p. 19).
No Brasil, esses negros islamizados foram chamados de malês. Em janeiro de 1835, houve a chamada Revolta dos Malês, liderada por negros letrados islamizados que faziam do árabe a língua
predominante para a comunicação, juntamente com os nagôs que
lideraram a revolta sem sucesso. Estudiosos, historiadores e antropólogos conseguiram documentos escritos em árabe e, após algumas tentativas, conseguiram decifrar os documentos que antecederam a revolta, os segredos e o plano. Alguns dos segredos foram:
Antes da Revolta [...]
Os trajos de guerra deviam ser, para maior estímulo, os
mesmos das cerimônias religiosas, isto é, um saio branco
apanhado por uma faixa vermelha, uma camisa igualmente vermelha e os barretes azuis circundadas por turbantes
brancos.
Convinha trajar, pelo menos, de branco, e não esquecer os
búzios, os corais, as miçangas e os anéis brancos. Como
também as armas espirituais poderiam ser de grande proveito, cada qual deveria trazer ao pescoço os seus “patuás”, para se tornar invulnerável (IGNACE, 1907, p. 124).
Nota-se a importância da dimensão estética atrelada ao religioso para esse grupo de negros mulçumanos ou, como alguns os
chamavam, “maometanos”. Na formação da cultura afro-brasileira,
os candomblés e as religiões afrodescendentes utilizam-se de vestimentas com turbantes, roupas brancas, alakas, fios de miçangas,
entre outros.
Seguindo por esse viés, para Verger (1955), os negros trazidos da África para as Américas pertenciam a diferentes “nações”:
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Nagô, Angola, Dahomé, Axantí, Aussá, Congo, Moçambique e outras. Cada uma dessas “nações” tinha sua língua, suas tradições,
suas divindades, porém, aqui, na Bahia, a dos iorubás (Nagôs) foi a
que, entre todas, manteve mais vivo e impôs o seu acervo espiritual.
Os iorubás, conhecidos como nagôs, são um dos povos com
tradição, cultura e história mais ampla de toda a África Negra.
O termo “yorùbá”, escreve S. O. Biobaku, “aplica-se a um
grupo linguístico de vários milhões de indivíduos”. Ele
acrescenta que, “além da linguagem comum, os yorùbá
estão unidos por uma mesma cultura e tradições de sua
origem comum, na cidade de ifé, mas não parece que tenham jamais constituído uma única política e também é
duvidoso que, antes do século XIX, eles se chamassem uns
aos outros pelo mesmo nome” (VERGER, 1997, p. 3).
Para Verger, “Lucumi” e “nagô” são os nomes pelos quais os
iorubás são geralmente conhecidos em Cuba e no Brasil. A expressão “anago” é, no entanto, conhecida em Cuba: ela figura no título
de um livro publicado por Lydia Cabrera: Anagó, vocabulário lucumi (1996), de onde se deduz que ali Lucumi seria um nome de
nação e anago o de sua língua.
Pierre Verger, em seu livro “Orixás – Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo” (2002), diz que:
No Novo Mundo encontramos os primeiros vestígios da
palavra “nagô” em um documento enviado da Bahia em
1756, antes mesmo que esta palavra aparecesse na correspondência da África. É, todavia, provável, como sugere
Vivaldo Costa Lima, que o termo “nagô” no Brasil seja
inspirado naquele correntemente empregado no Daomé
para designar os iorubás de qualquer origem (VERGER,
2002, p. 5).
Os negros escravizados que aqui chegavam, além de se tornar a massa substancial de fazer o Brasil, simultaneamente, foram
se aculturando nos modos e no jeito brasileiro de ser e de fazer,
tal como eles eram representados no universo cultural simplificado
dos engenhos e das minas.
Por estarem rigidamente prescritos pela estrutura da colônia como sociedade estratificada, a que se incorporava na
condição de escravo, sobrevivera principalmente no plano
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ideológico, porque ele era mais recôndito e próprio. Quer
dizer, nas crenças religiosas e nas práticas mágicas, a que
o negro se apegava no esforço ingente por consolar-se do
seu destino e para controlar as ameaças do mundo azaroso
em que submergira. Junto com valores espirituais, os negros retêm, no mais recôndito de si, tanto reminiscências
rítmicas e musicais, como saberes e gostos culinários (RIBEIRO, 2006, p. 104-105).
Os africanos trouxeram consigo sua cultura e suas crenças,
que incorporaram e ganharam vida na cultura brasileira, como as
comidas, o samba, a capoeira, a língua, os mitos e a arquitetura,
uma tradição passada oralmente e baseada fortemente na ancestralidade. Como Darcy Ribeiro (2006) descreve na citação anterior,
os africanos escravizados cantavam e dançavam para seus deuses,
buscando na memória suas canções e ritmos, a fim de amenizar o
destino que os esperava.
Os daomeanos conhecidos como jejes trouxeram seus voduns; os nagôs, seus orixás e oriquis. Os nagôs (termo então usado
para designar todos os negros de fala iorubá) dominaram sem contestação o conjunto das seitas africanas, impondo seus deuses, a
estrutura de suas cerimônias e sua metafísica aos daomeanos, aos
bantos (BASTIDE, 2001).
Nota-se que os negros tiveram, também, grande influência na
arte barroca brasileira; esse movimento artístico foi importado da
Europa e aqui no Brasil os recursos oriundos do ouro foram investidos na arte sacra, que acabou adquirindo algumas características
próprias de africanidade à arte sacra católica. Personagens importantes da cultura brasileira como Aleijadinho, Machado de Assis,
o compositor de música sacra Pe. José Mauricio Nunes Garcia e o
músico de “choro” Paulo Moura foram afrodescendentes e participantes ativos da cultura oficial do Brasil.
É com os nagôs que estão presentes as mais puras essências
da religião do candomblé; essas cerimônias eram chamadas de calundus no século XVIII; a partir do século XIX, elas passaram a
ser chamadas de candomblés, e seus líderes ficaram conhecidos
como pais e, principalmente, mães de santo (SOUZA, 2006). O
candomblé é, portanto, um termo adotado na Bahia para designar
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as cerimônias religiosas de origem africana. Nele, as relações entre
os orixás e os mortais têm um caráter bastante familiar. Segundo
Verger (1997, p. 9):
O Orixá seria, em princípio, um ancestral divinizado, que
em vida, estabelecera vínculos que lhes garantiam um
controle sobre certas forças da natureza, como o trovão, o
vento, as águas doces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a
caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização o poder, àse3. O ancestral-orixá teria, após a sua morte,
a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de
seus descendentes durante um fenômeno de possessão por
ele provocada.
Os nagôs trouxeram uma crença próxima de um panteísmo
que acredita que os deuses estão presentes em todas as partes da
natureza. Iremos agora conhecer quem são os principais deuses que
os nagôs cultuavam em seus ritos, que ao longo dos anos passaram
a ser conhecidos em todo o território brasileiro.
4.  DEUSES NAGÔS – OS ORIXÁS
Definir os orixás para os nagôs é uma tarefa muito audaciosa e
difícil. A maioria dos orixás era em sua origem, seres privilegiados,
que possuíam poderes sobre as forças da natureza e que, em vez de
morrer, se transformarão em pedras, rios, árvores ou lagoas. “Os orixás são imateriais, são forças que só se tornam perceptíveis aos seres
humanos incorporando-se através de certos seres de sua escolha. Esses seres são os iaôs ou filhos de santo” (VERGER, 1955).
Pode-se afirmar que, no panteão africano, cerca de 400 orixás
eram cultuados nos mais diversos aspectos; porém, como o objetivo deste artigo são os nagôs, serão citados aqui os orixás segundo
Pierre Fatumbi-4Verger.
3
Àse: conhecido em português como “axé”. Significa: 1. Força, poder. 2. Palavra usada para definir o
respeito ao poder de Deus, pela crença de que é Ele que tudo permite e dá a devida aprovação.
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As pesquisas antropológicas de Verger em seu livro Orixás:
deuses Iorubás na África e no Novo Mundo dirão que acima dos
orixás reina um deus supremo, Olódùmarè ou Olorum, um deus
distante e inacessível; por ele, os orixás teriam sido criados para governar e supervisionar o mundo. É, pois, aos orixás que os homens
devem dirigir suas preces e fazer oferendas.
Os dezesseis grandes orixás originam-se no ventre incestuoso
de Iemanjá. Segundo a mitologia africana, da união de Obatalá (o
céu) e Odudua (a terra) nasceram Aganju (a Terra firme) e Iemanjá
(as águas). Desposando seu irmão Aganju, Iemanjá deu à luz Orungã (o ar e as alturas). Mas, certo dia, na ausência do pai, Orugã
possuiu a mãe Iemanjá. Após o ato incestuoso, Iemanjá caiu morta
e de seu ventre nasceram os demais orixás (PRANDI, 2001). É por
isso que ela é considerada a mãe de todos os orixás.
O nome de Exu não aparece entre eles. Todavia, Exu é considerado irmão de Ogum, de Xangô, de Oxóssi e, portanto,
deveria figurar nesse mito o décimo sétimo orixá, o mais
jovem de todos (BASTIDE, 2001, p. 161).
Segundo Verger (1997, p. 39-40):
Exu é guardião dos templos, das casas, das cidades e das
pessoas. É também ele que serve de intermediário entre
os homens e os deuses. Por essa razão é que nada se faz
sem ele e sem que oferendas lhes sejam feitas, antes de
qualquer outro orixá, para neutralizar suas tendências a
provocar mal-entendidos entre seres humanos e em suas
relações com os deuses e até mesmo dos deuses entre si.
Exu é um orixá relacionado a características de jovialidade,
virilidade e irreverência, gosta de suscitar dissensões e disputas;
vaidoso, é ele o intermediário entre o homem e o sobrenatural, entre
o físico e o metafísico, o intérprete que conhece ao mesmo tempo
a língua dos mortais e a dos orixás. Pelo comportamento desse orixá, ele foi erroneamente comparado ao diabo quando os primeiros
missionários ficaram assustados com essas características. Antropólogos anglicanos que não conheciam a existência de um culto
anamartesi, ou seja, uma concepção sem pecado, relacionaram esse
orixá com o diabo devido a suas características com uma visão catolicista. Exu é o orixá sempre presente, pois o culto de cada um
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dos demais orixás depende de seu papel de mensageiro. Sem ele, os
orixás e humanos não podem se comunicar.
Ogum governa o ferro, a metalurgia, a guerra e os caminhos.
Oxóssi é o orixá da caça, dos caçadores e da fartura. Ossain é a
divindade das plantas medicinais e litúrgicas. Oxumaré é a mobilidade e atividade comparado com a serpente-arco-íris. Logum Edé
é o orixá da riqueza e da fartura, filho de Oxum e Oxossi. Obaluaê
(Omolu) é o deus da varíola e das doenças contagiosas, senhor da
morte e da vida. Xangô é o orixá do fogo e do trovão, que representa a realeza e a justiça. Oya ou Yansan é o orixá dos ventos, raios e
tempestades. Euá, orixá feminino das fontes, preside o solo sagrado
onde repousam os mortos. Oxum é a rainha das águas doces, divindade da fecundidade, da riqueza e da prosperidade. Obá é a divindade feminina relacionada a força, persistência e outros valores
relativos a engajamento e luta. Iroko é a representação da dimensão
do tempo; governa o tempo e o espaço. Nanã Buruku é uma das
divindades que se têm registros mais antigos, orixá dos pântanos,
da lama, da vida e da morte. Ibejis é o Orixá-Criança, em realidade,
duas divindades gêmeas infantis, ligadas a todos os orixás e seres
humanos. É a divindade da brincadeira, da alegria; a sua regência
está ligada à infância. Iemanjá é a senhora das grandes águas, mãe
dos deuses, dos homens e dos peixes; talvez seja o orixá mais conhecido no Brasil. “É uma das mães primordiais e está presente em
muitos mitos que falam da criação do mundo” (PRANDI, 2001, p.
22). Oxalá encabeça o panteão da criação, formado de orixás que
criaram o mundo natural, a humanidade e o mundo social, orixá rei
do pano branco; o “grande orixá” foi o primeiro a ser criado por
Olodumaré, o deus supremo.
Cada orixá pode ser cultuado segundo diferentes invocações,
que, no Brasil, são chamadas qualidades e, em Cuba, caminhos.
Pode-se, por exemplo, cultuar uma Iemanjá jovem e guerreira, de
nome Ogunté; outra velha e maternal, Iemanjá Sabá; ou outra chamada Iemanjá Assessu, muito voluntariosa e respeitável.
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5.  MITOLOGIA AFRICANA
Podemos considerar que “O transe religioso está regulado segundo modelos míticos; não passa de repetição dos mitos. A dança
torna-se uma ‘ópera fabulosa’” (BASTIDE, 2001, p. 188-189).
Desse modo, a dança, a música e o canto são fundamentais para a
realização do rito sagrado. O chamado dos deuses acontece em uma
cerimônia após o padê5 de Exu, que é o primeiro orixá a receber sua
oferenda, por ser o intermediário necessário entre o homem e o
sobrenatural, o intérprete que está entre os dois mundos, que conhece a língua dos homens e a dos orixás. Trata-se de um princípio de
ordem humana, reflexo da ordem cósmica, e não de um princípio de
desordem moral, reflexo de degradação humana (BASTIDE, 2001).
Exu não é, todavia, o único intermediário entre os homens
e os deuses. O rito possui três tambores denominados por Rum,
Rumpi e o Lé, que é o menor. Não são tambores comuns ou pagãos:
foram batizados e a eles um ritual específico fora denominado. Esses instrumentos apresentam algo de divino, pois são os grandes
responsáveis por evocar a vinda dos orixás, os aguidavis, ou seja,
as baquetas que são usadas para tocar os instrumentos “dormiram”
junto dos deuses para receber toda a força sagrada. Há, também,
outro instrumento importante: o agogô, um sino simples ou duplo,
e o adjá, usado muitas vezes quando o transe custa acontecer, provocando um ruído agudo e alucinante fazendo que a divindade se
decida por possuir ou não aquela pessoa (BASTIDE, 2001).
A “ópera fabulosa” das danças, a linguagem gestual e a
marcação rítmica expressam a “complexidade da alma”,
que as metamorfoses do corpo e da personalidade evidenciam. O que está em jogo nessa dramaturgia particular é
uma concepção alargada do “ser”, que rejeita a concepção
Kantiana de que não existiriam estágios intermediários
entre o “ser” e o “nada”. Mais próxima de uma ontologia
medieval, a filosofia africana revelada no candomblé introduz gradações no ser, “desde o ser divino, que se con-
5
Comida ou oferenda oferecida nos rituais de candomblé para os Exus, normalmente feita com farinha,
dendê e bife, sendo depositada em uma encruzilhada, que é um dos lugares preferidos de Exu.
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funde com a perfeição absoluta, até o ser das coisas materiais” (BASTIDE, 2002, p. 12).
O ritual acontece em uma ordem de deuses africanos, a começar por Exu e terminar por Oxalá, que é o senhor do céu e o mais
elevado dos orixás. Essa ordem é conhecida como xirê.6 Cada divindade recebe, no mínimo, três cânticos regulamentares.
Nina Rodrigues analisa e faz uma narrativa de uma saída:7
[...] a orquestra, composta de cinco tabaques (tambores pequenos) e quatro cabaças [...], começava, na sala onde eu
me achava, a invocação do santo. A um sinal ou ordem do
regente, todos os tabaques foram colocados reunidos no
centro da sala e ao lado vieram depor um prato com obi
(noz-de-cola) e moedas de cobre, e uma quartinha de água
de santo, tirados do santuário. O regente levantou-se, fez
ligeira genuflexão sobre o joelho esquerdo e concentrou-se
como em oração. Depois tomou da quartinha, lançou um
pouco de água de cada lado dos tabaques, e em seguida
deitou na boca um punhado de obi. Mastigou os obis, e, tomando os tabaques um a um, invertendo-os, foi lançado de
cada um o obi mastigado. Aos tabaques seguiram-se as cabaças com que empregou processo semelhante. O regente
passou então o prato de obi aos outros músicos, dos quais
cada qual tomou a sua noz e pôs-se a mastigá-la. Música e
canto começaram então a invocar o santo (RODRIGUES,
1977, p. 81).
As palavras nos candomblés nagôs ou daomeanos são na língua
iorubá, variando de acordo com a origem étnica da “nação”. Os
cânticos são apenas cantados e “dançados”, pois constituem a
evocação de certos episódios da história dos deuses; são fragmentos
de mitos – e o mito deve ser representado ao mesmo tempo em que é
falado para adquirir todo o poder evocador (BASTIDE, 2001, p. 36).
Os gestos adquirem uma grandiosa beleza, os passos de dança
alcançam estranha poesia, os rostos metamorfoseam-se em máscaras.
Eis aqui presentes os orixás do rito nagô, saudando os tambores
6
Ordem em que são realizadas as invocações aos orixás para que desçam à terra.
A festa de saída de Iaô ou saída de santo é a festa em que um orixá está nascendo. Após a iniciação do
candidato ou filho de santo, são feitas quatro saídas no templo sagrado, a primeira saída é interna sem a
presença do público e as três últimas partes com presença de público.
7
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fazendo icá ou dòbálè8 diante dos sacerdotes supremos. Não existem
mais fronteiras entre natural e sobrenatural: o êxtase realizou a
comunhão desejada.
Estamos diante de uma manifestação do sagrado, o que Mircea Eliade deixa mais explícito em seu livro:
O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades “naturais”. [...] O homem
toma conhecimento do sagrado por que este se manifesta,
se mostra como algo absolutamente diferente do profano.
A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado,
propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo,
pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime
apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico,
a saber, que algo de sagrado se nos revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões – desde as mais primitivas
às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania – por
exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer,
uma pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema que
é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo,
não existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo “de
ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao
nosso mundo “natural”, “profano” (ELIADE, 2008, p. 17).
O homem ocidental moderno experimenta certo mal-estar
diante de inúmeras formas de manifestações do sagrado: é difícil
para ele aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa
manifestar-se em pedras ou árvores, por exemplo. Porém, Eliade
salienta que não se trata de uma “veneração” da pedra como pedra,
ou da árvore como árvore, ou uma “adoração”, mas justamente
porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem
pedra, nem árvore, mas o sagrado.
O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para
viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos sagrados. Essa tendência é compreensível, pois para os
“primitivos”, como para o homem de todas as sociedades
8
Dòbálè: prostrar-se no chão em sinal de respeito a uma pessoa ou divindade, reverência.
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pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última
análise, à realidade por excelência (ELIADE, 2008, p. 18).
As religiões afrodescendentes têm como papel fundamental a
música, o som, o toque dos instrumentos percussivos. O rito sagrado dos nagôs tem seu chamado através do toque musical em que o
iaô ou o candidato cai em transe. Essa festa é feita dentro do ilê-9axé, o espaço sagrado, e é sabido que axé designa em nagô a força
invisível, a força mágico-sagrada de toda divindade, de todo ser
animado, de todas as coisas (BASTIDE, 2001). “Os pontífices cuidam para que, em cada um desses atos, o deus protetor seja chamado pelo seu nome correto e que a totalidade dos deuses seja invocada na ordem correta” (CASSIRER, 2004, p. 341). Dentro desse
campo sagrado, cada divindade que vem participar da festa com
seus filhos traz consigo suas cores, seus símbolos, suas ferramentas, vestes e fio de contas, respeitando uma mitologia. Nesse sentido, Eliade (2008) entende como mito aquilo que é contado como
uma história sagrada, um acontecimento primordial que equivale a
revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou heróis civilizadores.
Por esta razão suas gesta constituem mistérios: o homem
não poderia conhecê-los se não fossem revelados. O mito
é pois a história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os seres divinos fizeram no
começo do tempo. “Dizer” um mito é proclamar o que se
passou ab origine. Uma vez “dito”, quer dizer revelado, o
mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta
(ELIADE, 2008, p. 84.)
Os mitos dos orixás fazem parte dos poemas oraculares cultivados pelos babalaôs. Falam da criação do mundo, da natureza, de
como essa natureza foi repartida entre os orixás.
Os nagôs acreditam que é através dos mitos que buscamos
respostas para a origem de tudo; é pelo mito que se interpreta o
presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida. Vários são os
registros de mitos africanos, primeiramente transmitidos oralmente
e que aos poucos foram ganhando uma formalidade e incorporando
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Ilé: idioma iorubá significando “casa”.
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o texto escrito. Os primeiros mitos escritos apareceram já nas primeiras obras que trataram da religião dos orixás na África no século
XIX. Nesse sentido, as pesquisas do padre Noel Baudin (1884) e do
coronel Ellis, de 1894, iniciaram uma contribuição que não parou
de crescer. Reginaldo Prandi reuniu cerca de 301 mitos, compondo
uma das maiores coleções organizadas até hoje. Os mitos da criação
do mundo são vários, dentre os quais segue um exemplo. “Trata-se
de um mito corrente em terreiros nagô do Recife e terreiros queto
do Rio de Janeiro e de São Paulo. Fragmentos em Arno Vogel et
alii, 1993, p. 88, 105, 113” (PRANDI, 2001, p. 561).
No começo não havia separação entre
o Orum, o céu dos orixás,
e o Aiê, a Terra dos humanos.
Homens e divindades iam e vinham,
coabitando e dividindo vidas e aventuras.
Conta-se que, quando o Orum fazia limite com o Aiê,
um ser humano tocou o Orum com as mãos sujas.
O céu imaculado de Obatalá se perdera.
Oxalá foi reclamar a Olorum.
Olorum, senhor do Céu, Deus supremo,
irado com a sujeira, o desperdício e a displicência dos mortais,
soprou endurecido seu sopro divino
e separou para sempre o Céu da Terra.
Assim, o Orum separou-se do mundo dos homens
e nenhum homem poderia ir ao Orum e retornar de lá com
vida.
E os orixás também não poderiam vir à Terra com seus
corpos.
Agora havia o mundo dos homens e o dos orixás, separados.
Isolados dos humanos habitantes do Aiê,
as divindades entristeceram.
Os orixás tinham saudade de suas peripécias entre os humanos
e andavam tristes e amuados.
Foram queixar-se com Olodurame, que acabou consentindo
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que os orixás pudessem vez por outra retornar à Terra.
Para isso, entretanto,
teriam que tomar o corpo de seus devotos.
Foi a condição imposta por Olodumare
Oxum, quem antes gostava de vir à Terra brincar com as
mulheres,
dividindo com elas sua formosura e vaidade,
ensinando-lhes feitiços de adorável sedução e irresistível
encanto,
recebeu de Olorum um novo encargo:
preparar os mortais para receberem em seus corpos os orixás.
Oxum fez oferendas a Exu para propiciar sua delicada missão.
De seu sucesso dependia a alegria dos seus irmãos e amigos orixás.
Veio ao Aiê e juntou as mulheres à sua volta,
banhou seus corpos com ervas preciosas,
cortou seus cabelos, raspou suas cabeças,
pintou seus corpos.
Pintou suas cabeças com pintinhas brancas,
como as penas da galinha-d’angola.
Vestiu-as com belíssimos panos e fartos laços,
enfeitou-as com joias e coroas.
O ori, a cabeça, ela adornou ainda com a pena ecodidé,
pluma vermelha, rara e misteriosa do papagaio-da-costa.
Nas mãos as fez levar abebés, espadas, cetros,
e nos pulsos, dúzias douradas indés.
O colo cobriu com voltas e voltas de coloridas contas
e múltiplas fieiras de búzios, cerâmicas e corais.
Na cabeça pôs um cone feito de manteiga de ori,
finas ervas e obi mascado,
com todo condimento de que gostam os orixás.
Esse oxo atrairia o orixá ao ori da iniciada e
o orixá não tinha como se enganar em seu retorno ao Aiê.
Finalmente as pequenas esposas estavam feitas,
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estavam prontas, e estavam odara.
As iaôs eram as noivas mais bonitas
que a vaidade de Oxum conseguia imaginar.
Estavam prontas para os deuses.
Os orixás agora tinham seus cavalos,
podiam retornar com segurança ao Aiê,
podiam cavalgar o corpo das devotas.
Os humanos faziam oferendas aos orixás,
convidando-os à Terra, aos corpos das iaôs.
Então os orixás vinham e tomavam seus cavalos.
E, enquanto os homens cantavam e davam vivas e aplaudiam,
convidando todos os humanos iniciados para a roda do
xirê,
os orixás dançavam e dançavam e dançavam.
Os orixás podiam conviver com os mortais.
Os orixás estavam felizes.
Na roda das feitas, no corpo das iaôs,
eles dançavam e dançavam e dançavam.
Estava inventando o candomblé.
6.  RITO SAGRADO
Para fazer a abordagem da forma como acontece o rito, foram
usadas imagens cedidas pelo Centro Cultural do Candomblé Pai
Toninho de Xangô, localizado em São Paulo e pelo Ilê Opô Ologum edé – Axé Ajagunna, que fica em Piedade – SP. Em sequência,
são apresentadas as fotos obtidas e destacados os elementos que
constituem o rito, assim como a descrição de seu simbolismo.
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Foto 1. Orixá Oxum.
Na Foto 1, vemos a imagem do Orixá Oxum, sendo a sua
qualidade: Opará, deusa da beleza e da riqueza.
No rito sagrado, simbolicamente, esse é o ato em que a Oxum
está se banhando nas águas dos rios e com a lama do “Osibatha”
(folha sagrada) que esfrega pelo seu corpo para ficar sempre bela.
Depois se olha no Abebê (leque de metal, espelho). Em sua cabeça,
carrega uma coroa composta pelas cores do orixá, chamada de Adê.
Nesse ato, os devotos seguram uma grande renda da veste
que a Oxum usa, suplicando as bênçãos do orixá. Os fios de contas
coloridas identificam o orixá e protegem a filha que os usa.
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Fotos 3, 4 e 5. Crianças participando do rito.
O rito sagrado dos iorubás não está ligado somente às pessoas
mais velhas; é possível ser iniciado na religião ainda quando criança. São “feitos no santo” conforme o próprio orixá determina através de ifá10. Usam vestes e fios de contas conforme as cores daquele que rege o “Ori” (cabeça). As crianças com vestes solenes cantam,
dançam e entram em transe com seus orixás nas festas sagradas.
Alimentam-se dos alimentos sagrados, pois são os futuros herdeiros que aprenderão os ritos, os fundamentos e que darão seguimento à religião. Como religião panteísta, as folhas sagradas (ramos e
arbustos) fazem parte solene do rito.
Fotos 6 e 7. Participantes durante rito.
É o nome de um oráculo africano, sistema divinatório; a comunicação com os orixás e feita através
de ifá.
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A miscigenação dos povos de diferentes etnias mostra que o
rito sagrado que foi difundido por negros quebrou barreiras e criou
relações inter-raciais, deixando de lado o preconceito. Na roda do
xirê (circulo), canto e dança fazem-se presentes, seguidos pelo som
dos atabaques e agogô durante o canto. O orixá pode se fazer presente no seu filho. A comunhão com o sagrado alcança o seu êxtase no
momento em que todos se alegram e festejam a chegada do orixá.
O templo sagrado é o lugar onde as cores do orixá do ilê
(casa) são mais explícitas, tendo, pois, um papel fundamental dentro do rito. As cores determinam o orixá regente; entretanto, por
motivos de igualdade (todos são iguais perante o orixá), a cor branca é adotada em todos os ritos. Como os símbolos sagrados que
estão nos templos fazem parte de tradições e são carregados de significado, aquele que se inicia na religião e é exposto a eles passa
naturalmente a ser conhecedor dessas tradições.
Fotos 8 e 9. Os tambores usados no rito.
Como já vimos, esses são os três tambores denominados rum,
que é o maior, rumpi, de tamanho médio, e lé, que é o menor. São
instrumentos sagrados, portanto, são usados unicamente para chamar os deuses, assim como o agogô, que desempenha papel importante dentro do candomblé. As pessoas que tocam esses instrumenLing. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014
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tos são os Ogans, os sacerdotes escolhidos pelo orixá para estarem
lúcidos durante o rito. Os Ogans assim como as Equedes11 não entram em transe e são fundamentais no rito. O som dos tambores é o
condutor do axé dos orixás, compondo sinfonias africanas sem partituras, próximo de um som de povos primitivos. É esse som que
conduz o rito do começo ao fim.
É através do desempenho desses atabaques que o orixá vai
executar a sua dança, mais precisamente do rum, que comanda os
outros dois tambores.
Os orixás expressam suas características através dos ritmos particulares, criando um momento musical em que
elas se tornam inteligíveis e plenas de sentido religioso.
A sincronia entre dança, cores e ritmo é tão perfeita que é
possível entender o orixá como esse conjunto de cor, ritmo
e movimento (AMARAL, 2005, p. 54).
Os tambores dentro do rito dos nagôs são tocados com os
aguedavis (varetas) e não com a mão, como acontece nos candomblés dos bantos em ritmo de angola.
Fotos 10 e 11. Dança do orixá.
Função feminina, ocupada na religião dos orixás. Responsável pela segurança física e conforto das
pessoas manifestadas, presentes em todas as liturgias fundamentais na comunidade, não entram em
transe e são fundamentais no rito.
11
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É na festa que os orixás vêm à terra, no corpo de suas filhas, com a finalidade de dançar, de brincar no xirê, termo
que em Iorubá significa exatamente isto: brincar, dançar,
divertir-se. É através dos gestos, sutis ou vigorosos, dos
ritmos efervescentes ou cadenciados, das cantigas que
“falam” das ações e dos atributos dos orixás, que o mito
é revivido, que o orixá é vivido, como a soma das cores,
brilhos, ritmos, cheiros, movimentos, gostos. A vida dos
orixás é o principal tema (e a vinda dos orixás é o principal motivo) da festa. Os deuses incorporam seus eleitos
e dançam majestosamente: usam roupas brilhantes, ricas,
coroas e cetros, espadas e espelhos; são os personagens
principais do drama religioso (AMARAL, 2005, p. 48).
Os deuses vestem-se simbolicamente com suas armas de guerra e símbolos de acordo com a mitologia. Cada orixá carrega a sua
cor, como na Foto 10, em que vemos um Oxalá “rei do pano branco” sendo a sua qualidade “Osogyan”, carregando dois símbolos que
caracterizam esse deus africano, a espada e a “mão de pilão”. Suas
cores são o branco com um leve tom de prata e azul claro.
Na Foto 11, vemos o orixá Oxumaré carregando características que revelam o seu símbolo: o da “serpente”. O orixá da mobilidade representa o ciclo da vida. A ele todas as cores do arco-íris
foram entregues, podendo-se vestir com cores que representam a
sua qualidade.
Fotos 12, 13 e 14. O transe.
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“A festa é o momento em que a experiência visual do candomblé é mais intensa, em que sua dimensão estética se revela com
mais força e maior amplitude” (SOUZA, 2007, p. 8). Os colares
chamados de “fios de conta” ou “Ilequê” estão sempre presentes
com os adeptos e têm o papel fundamental de dizer qual é o orixá
da pessoa, bem como de protegê-los. Os turbantes, compondo as
vestimentas, mostram a influência que os negros muçulmanos tiveram no rito africano. Magia e estética caminham lado a lado dentro
da religião dos nagôs, assim como as cores das roupas estão sempre
ligadas à divindade.
7.  RITO E ESTÉTICA
Podemos considerar que a religião é uma grande motivadora da arte, uma vez que, no decorrer da história, tivemos grandes
movimentos religiosos que se tornaram referência para obras de
grandes artistas como Michelangelo, Leonardo da Vinci e vários
outros, tanto no campo da pintura sacra quanto na música, arquitetura, esculturas, dentre outras áreas. Como Santos destaca:
Identifico a existência de uma estética barroca no interior
dos terreiros, uma ideia de belo que revela o gosto pelo
aparato, pelo luxo, pelo ornamento, pelo brilho, pelo fausto. A elaboração estética de muitas festas de candomblé,
tal como na arte barroca, visa igualmente maravilhar, surpreender. A adoção desse estilo barroco faz com que o belo
muitas vezes seja identificado com o extravagante. Essa
estética reflete-se entre outros aspectos na idealização e na
confecção de roupas rituais (SANTOS, 2005, p. 76).
Todavia, a mitologia e a estética africana vêm consolidando
com o passar do tempo explicações para a vida na religião, o que
estimulou os descendentes africanos e outras pessoas a tornarem-se
adeptos e a praticarem a religião. Vários estudiosos do mundo inteiro passaram a se interessar e pesquisar a ritualística africana, tais
como: os franceses Pierre Verger, fotógrafo e etnólogo; Roger Bastide, sociólogo que pesquisou na Bahia; René Ribeiro, Nina Rodrigues e Artur Ramos. Carybé, nascido na Argentina, tornou-se um
artista baiano retratando vários quadros da cultura afro-brasileira.
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Podemos lembrar, ainda, Darcy Ribeiro e Rubem Valentim, dentre
tantos outros.
De acordo com Prandi (2001, p. 19):
Esse novo segmento, que em geral associa culturalmente
religião com a palavra escrita, encontrou nos mitos explicações e sentidos para práticas e concepções do candomblé, descobrindo que o mito está impregnado nos objetos
rituais, nas cantigas, nas cores e desenhos das roupas e
colares, nos rituais secretos de iniciação, nas danças e na
própria arquitetura dos templos e, marcadamente, nos arquétipos ou modelos de comportamento do filho-de-santo,
que recordam no cotidiano as características e aventuras
míticas do orixá do qual se crê descender o filho humano
(PRANDI, 2001, p. 19).
Esse pensamento africano vai se desvendando por etapas, por
“obrigações de santo”, pela experiência adquirida a cada ano nos
seus rituais particulares e festas para toda a comunidade.
A religião do candomblé, embora africana, não é só de negros; é preciso dissociar religião e cor da pele, uma vez que é possível participar da religião africana sem ser negro.
Hoje o candomblé não é mais uma religião étnica circunscrita à população negra, pois já se espalhou pela sociedade
branca abrangente, rompendo preconceitos e fronteiras geográficas, inclusive fora do país (PRANDI, 2004, p. 23).
Assim, os mais de três milhões de negros que para o Brasil
vieram nos deixaram um legado de valores: mitos, ritos, costumes,
arte, culinária, sonoridades, palavras e cultura. Cotidianamente, é
comum permanecermos desatentos à importância da incorporação
e do reconhecimento da participação do negro na formação e organização do Brasil. Nesse cenário, resgatar e valorizar “[...] a extraordinária plasticidade das culturas africanas, que sabem se adaptar
aos mais diversos meios sociais e culturais para sobreviver em outros ambientes que não o seu original” (CONDURU, 2007, p. 68),
tornou-se papel indelével de todos aqueles que pretendem reconhecer o Brasil, sua diversidade, sua cultura e composição social.
A partir do olhar atento e qualificado, podemos identificar
a imersão dos africanos na história e nas manifestações estéticas
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presentes no Brasil, participando dos misticismos, mistérios, mitologias e simbolismos que até hoje fazem parte do nosso dia a dia e
integralizam a formação cultural brasileira.
Nesse sentido, “[...] é possível pensar na fertilidade de processos visando a explicitar e incorporar as dimensões artísticas das
culturas afrodescendentes no Brasil” (CONDURU, 2007, p. 105).
Numa perspectiva interdisciplinar, é vasto e variado o campo estético afrodescendente a ser explorado: antropologia, religião, arte, arquitetura, história, filosofia, dentre outras, constituem áreas de conhecimento que se interpelam na análise da cultura afro-brasileira.
8.  CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, procurou-se realizar uma rápida análise interdisciplinar da estética do ritual nagô e de sua significação. Enquanto
parte da cultura afrodescendente, a estética nagô apresenta uma arte
profundamente ligada ao ritual, de modo que a estética constitui um
elemento indispensável, sem o qual não há rito.
Há uma união litúrgica entre cada elemento que compõe o
rito: as cores dos colares, as cores das roupas, as cores dos panos
– como o turbante; os tambores e instrumentos sonoros, o canto
próprio na língua iorubá. Em tudo há um sentido de ser, um sentido
fenomenológico com relação àquilo que é transcendente. Porém,
tudo precisa ficar odara (bonito, belo) para agradar aos deuses. No
momento das festas religiosas, ocorre aquilo que podemos denominar com a busca pelo fausto, ou seja, por aquilo que agrada aos
olhos, que é belo e, portanto, agrada igualmente aos deuses.
O filósofo Cassirer (2004) defende que do embate entre
“sentido e imagem” só haveria um equilíbrio puro e pleno quando
olhássemos para a esfera da arte e da expressão artística. Assim,
somente a consciência estética deixaria o problema da “existência”
tranquilizado, na medida em que desde o início ela (a existência) se
entregou à pura contemplação.
Todavia, mostram-se fundamentais as análises das manifestações estéticas das culturas – e, de modo particular, a estética africaLing. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014
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na e afrodescendente – como intuito consciente de oferecer ou resgatar o sentido para tudo que compõe a ritualística religiosa. Neste
estudo, o foco de preocupação definido foi o rito nagô.
No que diz respeito ao objeto em estudo, a arte dentro da ritualística nagô funde-se com a mitologia, com a indumentária, com
o templo sagrado, e é impensável uma dissociação dos elementos
estéticos, pois cada um deles torna-se tão importante, de modo a
levar a arte e o rito a se fundir.
Considerando a ampla diversidade cultural humana, tal qual
a brasileira, a educação estética pode favorecer a compreensão do
fenômeno social e o próprio desenvolvimento da cidadania, atribuindo significado à vida e estimulando a alegria de viver. Dessa
maneira, as culturas afro-brasileiras contribuem para tal reflexão,
na medida em que suas raízes africanas propõem a superação da
separação forçosa ocorrida pela escravização de negros no continente americano – a diáspora africana – retratando a resistência
cultural pacífica e que integra aqueles que dela desejam participar
(sem constranger para ou obrigar a tal).
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