111. O poder de Pigmalião

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111. O poder de Pigmalião
GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
J
111. O poder de Pigmalião
Era uma vez um velho chamado Nahokoboni. Perturbava-o não ter uma filha.
Quem iria cuidar dele se não tinha genro? Mas, como Nahokoboni
era um feiticeiro, esculpiu uma filha num galho de ameixeira...
Conto de fadas dos índios da Güiana
I
Desde que os filósofos gregos chamaram à arte uma "imitação da Natureza", seus sucessores se ocupam em corroborar, desmentir ou qualificar essa definição. Os primeiros dois capítulos deste livro têm o
mesmo objetivo. Procuram mostrar alguns dos limites desse propósito
de atingir a "imitação" perfeita, sugerida, por um lado, pela natureza
do meio empregado e, por outro, pela psicologia do procedimento artístico. Todo o mundo sabe que essa imitação deixou de ser a preocupação dos artistas contemporâneos. Mas significará isso uma nova arrancada? Estavam os gregos certos até na sua descrição dos objetivos
dos artistas no passado?
Sua própria mitologia Lhes teria narrado uma outra história. Ela faIa de uma função mais antiga e mais aterradora da arte, quando os artistas não procuravam "imitar" a criação, mas rivalizar com ela. O mais
famoso dos mitos que cristalizam a crença no poder da arte para criar
em vez de retratar é a história de Pigmalião. Ovídio transformou-a numa novela erótica, mas mesmo nessa versão perfumada podemos sentir
algo do temor religioso que os misteriosos poderes do mtista infundiam .
outrora aos mortais.
Em Ovídio, Pigmalião é um escultor, que deseja modelar uma figura de mulher a seu gosto e se apaixona pela estátua que fez. Roga a
Vênus que lhe dê uma noiva à sua imagem, e a deusa converte o frio
marfim num corpo vivo. Esse mito cativou, naturalmente, a imaginação
dos artistas, os sonhos solenes e um tanto piegas de Burne-Jones [62], e
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ARTE E ILUSÃO
~
~
Figs. 64 e 65.
Fig. 62.
BURNE-JONES:
1878.
Pygmalion.
Fig. 63.
Pigmalião. 1842.
Litografia.
DAUMIER:
até a zombaria irreverente de Daumjer [63]. Sem a promessa subjacente desse mito, os secretos temores e esperanças que acompanham o ato
de criação, talvez não houvesse arte tal como a entendemos. Um dos
mais originais entre os jovens pintores da Inglaterra, Lucien Freud, escreveu recentemente: "Um momento de completa felicidade é coisa
que jamais ocorre durante a criação de uma obra de arte. A promessa
que ela encerra pode ser sentida no ato da criação, mas desaparece ao
final do trabalho, porque é então que o artista se dá conta de que aquilo
é apenas um quadro que ele está pintando. Até então ousara quase esperar que o quadro pudesse de repente adquirir vida."
"Apenas um quadro", diz Lucien Freud. Pois é um motivo que
vamos encontrar em toda a história da arte ocidental. Vasari conta como Donatello, trabalhando no seu Zuccone [66], de repente olhou para ele e ameaçou a pedra com uma praga medonha: "Fala, fala - favella, favella, che ti venga il cacasangue!" E o maior feiticeiro de todos eles, Leonardo da Vinci, exaltou o poder que tem o artista de
criar. Naquele hino em louvor da pintura, o "Paragone", ele chama o
pintor de "senhor de todas as pessoas e de todas as coisas". "Se o pintor quiser ver belezas e se apaixonar por elas, basta-lhe criá-las, pois
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Cabeças grotescas. C. 1495. Leda. C. 1509.
Pena e tinta.
LEONARDO DA VINCI:
tem poder para isso; e se desejar ver coisas monstruosas, que causem
terror, ou que sejam tolas, ou que provoquem riso ou compaixão, ele é
delas Senhor e Deus." [64 e 65]
Na verdade, o poder da arte para despertar paixões é, para ele,
um símbolo da sua mágica. Ao contrário do poeta, escreve Leonardo,
o pintor pode dominar a tal ponto as mentes dos homens que eles podem se apaixonar por um quadro que não representa uma mulher real.
"Já me aconteceu", continua ele, "fazer uma pintura religiosa que foi
comprada por alguém que se enamorara perdidamente da figura ali representada e queria ver removidos os atributos sacros para poder beijá-la sem causar estranheza. Por fim, a consciência do comprador prevaleceu sobre os seus suspiros e luxúrias, mas ele foi obrigado a retirar o quadro de casa." Se imaginarmos uma obra como o São João e
sua transformação em Baco [67], poderemos aceitar como plausível o
relato de Leonardo.
E, no entanto, o pintor sabia melhor do que ninguém que o desejo do artista de criar, de trazer à luz uma segunda realidade, encontra
barreiras inexoráveis nas limitações do seu meio. Penso detectar um
eco dessa desilusão encontrado em Lucien Freud, por ter criado apenas uma pintura, ao ler as notas de Leonardo: "Os pintores muitas ve101
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do, e sua aparência será plana. Não é de admirar que os seus contemporâneos o descrevessem, nos seus últimos anos, cada vez mais irritado
com os pincéis e mais absorto na matemática. A matemática o ajudaria a ser um verdadeiro criador. Lemos hoje sobre o projeto da "máquina voadora" de Leonardo, mas se examinarmos as suas notas não encontraremos tal expressão. O que ele queria fazer era um pássaro que
voasse, e uma vez mais há um tom exultante na famosa profecia do
mestre de que o pássaro haveria de voar. Não voou. E logo depois encontramos Leonardo hospedado no Vaticano - ao tempo em que Michelangelo e Rafael estavam lá, criando suas mais famosas obras brigando com um alemão fabricante de espelhos e prendendo asas e
uma barba num lagarto amestrado para assustar suas visitas. Fabricou
um dragão, mas isso foi apenas uma excêntrica nota de rodapé na sua
vida de Prometeu. O desejo de ser um criador, um fazedor de coisas,
passara do pintor para o engenheiro - deixando ao artista apenas a
pequena consolação de ser um fazedor de sonhos.
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Fig. 66. DONATELLO: Lo
Zuccone. 1423-1425. Mármore.
Fig. 67. (Atribuído a) LEONARDO DA VI CI:
Baco. C. 1508-1513.
zes se desesperam ... quando vêem que faltam à sua pintura o volume
e a vivacidade que encontramos em objetos vistos no espelho ... mas é
impossível para uma pintura parecer tão arredondada quanto uma
imagem de espelho... exceto quando vistas, ambas, com um olho só."
Talvez a passagem traia a razão final da insatisfação de Leonardo com a sua arte, a sua relutância em chegar ao momento fatal da
conclusão da obra: todo o conhecimento e toda a imaginação do artista de nada servem, pois é apenas um quadro o que ele esteve pintan102
Essa distinção decisiva remonta justamente ao período em que a "imitação da Natureza" foi descoberta e definida pelos gregos do século
IV. Poucas discussões sobre filosofia da representação tiveram mais
influência que a importante passagem da República, na qual Platão introduz a comparação entre uma pintura e uma imagem no espelho. A
filosofia da arte tem sido assediada por ela desde então. A fim de reexaminar a sua teoria das idéias, Platão compara o pintor ao carpinteiro. Este, ao fazer um sofá, traduz a idéia, ou conceito, de sofá em matéria. O pintor ue re resenta o sofá do c inteiro em um dos seus
quadros a enas co ia a a arência de um sofá determinado. Está as.
da idéia. As implicações metafísicas da consIm dua
denação da arte por Platão não nos interessam necessariamente. É
possível traduzir o que ele disse numa terminologia que não opera
com idéias platônicas. Se telefonamos a um carpinteiro para encomendar-lhe um sofá, ele sabe (ou deve saber) o que a palavra significa
ou, para formular a coisa de maneira um pouco mais pedante, que peça ou peças de mobília estão incluídas no conceito de "sofá". Um pintor que esboça o interior de um quarto não precisa forçar a cabeça pa103
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ra designar corretamente os nomes dados no comércio de mó,:,eis às
peças que tem à sua frente. Ele não tem nada a ver com conceItos ou
classes, e sim com objetos particulares.
Mas é justamente porque essa análise parece tão plausível que
temos de examiná-Ia com cautela. Haverá, de fato, essa diferença entre o carpinteiro que faz o sofá e o pintor que o imita? Seguramente, a
diferença não pode estar no meio expressivo. Muitos sofás são desenhados primeiro e construídos a partir de um projeto. Nesse caso, Platão seria forçado a admitir o desenhista no seu Estado Ideal"IPo~q~e
também ele imitava a idéia de sofá e não qualquer realidade 1 usona.
Mas
o exemplo de Inness, da pintura do galpão de reparo de locomol
~
tivas, no capítulo anterior, mostrou que não podemos distinguir, num
....
caso particular qualquer, se o desenho tem destinação instrutiva ou
imitativa. Uma série de sofás num catálogo ilustrado de vendas pode
constituir uma promessa de que tais peças de mobiliário serão feitas
por encomenda ou que já existem prontas; num dicionário ilustrado da
~ --b. língua inglesa, os sofás podem ser um "sinal icônico", expediente destinado a informar sobre o significado do termo.
Quanto mais meditamos sobre a famosa distinção de Platão entre
fazer e imitar, mais essas fronteiras ficam indistintas. Platão refere-se
ao pintor que "pinta tanto rédeas como freio". Ao c~ntrári~ do ca~a­
leiro e do fabricante de arreios, pensava Platão, o pmtor nao precIsa
ter conhecimento dessas coisas. Tal afmnação é duvidosa mesmo no
caso dos pintores. Mas o que dizer então do escultor, que fixa um
fragmento de metal no seu cavalo de mármore, como muitos têm feito? Ou do escultor que representa uma figura reclinada num sofá?
Também ele não está "fazendo" algo?
_rlI
Será mesmo sempre verdade que o sofá do escultor é uma repre' J V~ sentação? Se por esse termo entendemos uma referência a outra coisa,
então o sofá é apenas um símbolo e dependerá, certamente, do contexto. Mas basta pôr um sofá de verdade numa vitrina para transformá-lo num símbolo. É verdade que uma vez que essa é sua ún~ca função, podemos escolher um sofá que não sirva para mais nada. E pos!ível ainda fazer para tal propósito um simulacro de sofá em papelao.
Em outras palavras, há uma transição fácil, insensível, dependente da
função, entre o que Platão chama de "realidade" e o que ele chama de
"aparência". Num palco, tanto quanto numa vitrine de loja, encontr~­
mos o sofá verdadeiro lado a lado com frágeis imitações de móveIs
'i
]04
pintadas num cenário. Qualquer um deles se tornará para nós um símbolo se o interrogarmos para saber que tipo de objeto representa. Para
uma determinada pessoa, digamos, o modelo de avião pode ser interessante como referência; para a criança, será apenas um brinquedo
'11 que, de fato, funciona.
No mundo da criança não há distinção clara entre realidade e
aparência. Ela usa os mais inesperados instrumentos para os fins mais
inesperados - uma mesa de cabeça para baixo como nave espacial,
uma bacia como capacete de aço. No contexto do jogo, servem a esses
propósitos perfeitamente. A bacia não "representa" um capacete, ela é
uma espécie de capacete improvisado e pode até dar provas da sua
utilidade como tal. Não existe divisão rígida entre fantasma e realidade, verdade e impostura, pelo menos até onde a intenção e a ação humanas mantêm suas posições próprias. Aquilo gue chamamos de "cultura" ou "civilização" funda-se na ca acidade de fazer de .
sos Ines era os e e cnar substitutos artificiais.
Para nós, a palavra artificial parece imensamente distante da arte.
Mas não foi sempre assim. As obras de astutos artesãos do mito e da fábula incluem brinquedos preciosos e máquinas engenhosas, pássaros artificiais que cantam e anjos que sopram, de fato, trombetas. E, quando
os homens passaram da admiração do artífice à adoração da Natureza, o
paisagista foi chamado para fazer lagos artificiais, cachoeiras artificiais
e até montanhas artificiais. Ora, o mundo do homem não é só um mundo de coisas tangíveis, é um mundo de símbolos, no qual a distinção entre realidade e faz-de-conta é, ela própria, irreal. O martelo é real, mas e
a martelada? Nessa região nebulosa do simbólico, não se fazem perguntas desse tipo e, portanto, nenhuma resposta se faz necessária.
Quando construímos um homem de neve, não estamos construindo um fantasma de homem. Estamos simplesmente fazendo um boneco de neve. Não dizemos "Devemos representar um homem fumando?", mas sim "Devemos dar-Lhe um cachimbo?". Para o sucesso da
operação, um cachimbo verdadeiro pode servir tão bem ou melhor
que um cachimbo simbólico, feito com um graveto. Só a posteriori
podemos vir a introduzir a idéia de referência, de que o boneco de neve representa alguém. Podemos fazer deliberadamente um retrato ou
uma caricatura ou podemos descobrir que o boneco se parece com alguém e acentuar a semelhança. Mas sempre, insisto, fazer vem antes
de combinar ou de contrapor, e a criação precede a referência. Prova-
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lOS
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ARTE E ILUSÃO
velmente daremos ao nosso boneco de neve um nome próprio, "Jimmie" ou "Jeeves", e ficaremos com pena dele quando começar a afundar-se e a derreter.
Mas não estaremos ainda procurando copiar alguma coisa quando construímos o boneco? Não estaremos, pelo menos, modelando
nossa criação segundo a idéia de um homem, como o carpinteiro de
Platão ao copiar a idéia de sofá? Ou, se rejeitamos essa interpretação
metafísica, não estaremos imitando a imagem de um homem que temos na mente? Essa é a resposta tradicional, mas já vimos no capítulo
anterior que não é bem assim. Em primeiro lugar, a imagem criada seria uma réplica de alguma coisa que ninguém jamais viu, o homem de
neve que pretendemos ter na cabeça antes de concretizá-lo. Além disso, não há esse tal boneco preexistente. O que acontece é que nos sentimos tentados a trabalhar com a neve e jogamos com as formas até
reconhecermos um homem. A neve amontoada nos fornece o primeiro
esquema, que corrigimos até que satisfaça a nossa definição minima.
Um homem simbólico, sem dúvida, mas ainda assim um membro da
espécie homem, subespécie homem-de-neve. O que aprendemos do
estudo do simbolismo, sustento eu, é precisamente que para as nossas
mentes os limites dessas definições são elásticos.
Essa, uma vez mais, é a questão principal. Para Platão e para os
seus seguidores, as definições eram algo feito no céu. As idéias de homem, sofá ou bacia eram algo fixo, eterno, com contornos rígidos e
leis imutáveis. Muitas das complicações em que a filosofia da arte e a
filosofia do simbolismo se enredaram remontam a esse terrificante
ponto de partida. Porque, uma vez que se aceite o argumento de que
há classes rígidas de coisas, suas imagens têm de ser descritas como
fantasmas. Mas fantasmas de quê? Qual a tarefa do artista quando ele
representa uma montanha? Ele copia uma montanha determinada, um
membro individual da classe, como faz o pintor topográfico, ou, mais
pretensiosamente, copia o arquétipo universal, a idéia de montanha?
Sabemos que tal dilema é irreal. Cabe a nós definir o que é montanha. Podemos fazer uma montanha a partir de um montículo preexistente ou pedir ao nosso paisagista que construa outra. Podemo aceitar
esta ou aquela, ao nosso bel-prazer. É falsa a idéia de que a realidade
contém características como montanhas e que, vendo uma depois da
outra, aprendemos lentamente a generalizar e a formar a idéia abstrata
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de montanha. Já vimos que tanto a filosofia como a psicologia rebelam-se contra essa posição, por mais antiga e venerável que seja. ~
no pensamento nem na percepção aprende-se a generalizar. A rendemos, sim, a particularizar, a articular, a fazer distinções onde antes havia apenas massa indiferenciada.
III
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Em nenhuma outra área, creio eu, os progressos foram mais espetaculares nas últimas décadas do que na investigação dos sistemas de classificação da mente. A psicanálise mostrou-nos um aspecto das tais razões que a razão desconhece; o estudo do comportamento animal
mostrou-nos outro.
Num capítulo anterior chamei em nosso auxílio os pintainhos recém-saidos do ovo que categorizam as sombras dos pratos em que comem não segundo a cor, mas segundo relações de brilho. Sua mãe é
perfeitamente capaz de ficar sentada num ovo de mármore, na esperança pigmaliônica de que ele venha a chocar. Esse tipo de comportamento já foi investigado nas gaivotas. Se removemos um ovo do ninho da gaivota e o deixamos nas proximidades, a mãe o recolherá.
Também recolherá outros objetos arredondados - seixos ou batatas,
se forem suficientemente parecidos com o ovo, quanto à forma e à
textura - , mas deixará intocadas formas angulares e macias. Para a
gaivota, a classe de coisas ovóides é mais ampla que a nossa. Seu sistema de classificação é um pouco vasto demais, o que torna os erros
possíveis, mas não prováveis, quando em estado selvagem. É com essa amplitude da classificação que o cientista conta quando deseja enganar a gaivota. Ele não pode fazer ovos que correspondam à sua própria definição, é claro, mas pode fazer ovos que correspondam à definição da gaivota e estudar as reações da ave a essa imagem ou falsificação.
Nos últimos anos, essa fabricação de imitações e imagens tornouse um dos mais valiosos instrumentos do estudioso do comportamento
animal. Depois das sensacionais descobertas de Konrad Lorenz sobre a
maneira pela qual os animais rea em a certos adrões inatos o laboratário do cientista transformou-se num ateliê de artista. Numa famosa série
de experiências, N. Tinbergen fez cópias de esgana-gatas para estudar a
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ARTE E ILUSÃO
reação do peixe macho [68]. A cópia naturalista não o impressiona muito, a não ser que
tenha o ventre vermelho; mas a imitação com
excesso de vermelho provoca reação violenta.
Na verdade, há casos em que as falsificações
provocam reações mais fortes que uma fêmea
de verdade - pois exibem os chamados "deflagradores" numa forma pura, mais facilmente reconhecível do que a possibilitada por uma
situação real. Mas por vezes a vida prega suas
peças, sobretudo entre os anjmais em cativeiro. Os esgana-gatas de Tinbergen geralmente
se punham alerta nos seus aquários sempre
Fig.68
que os caminhões (velmelhos) do Correio passavam diante da 'anela, a alguma distância.
Para os cérebros dos peixes, vermelho significa erigo e rivalidade.
Sobre a teoria da abstração seríamos obrigados a dizer que a gaivota sabia o que as batatas tinham em comum com os ovos; ou que o
esgana-gata generalizava a tal ponto o fato de os esgana-gatas vermelhos serem perigosos, que concluía serem também perigosos os carrunhões da mesma cor. Ninguém nunca sustentou esse ponto de vista,
mas a tese tem de ser explicitada se pretendemos combater a idéia de
que a criação de um símbolo ou imagem constitui uma proeza particular da abstração. Pelo contrário. Não aconteceria se nós também não
estivéssemos sempre dispostos a estender as classes das coisas para
além dos grupos racionais - isto é, se nós também não reagíssemos a
-imagens mínimas.
não creio que o mistério de Rafael possa ser algum dia resolvido através do estudo das gajvotas. Minhas simpatias estão com
os que nos previnem contra es ecula ões reci itadas sobre rea ões
inatas ao homem - quer provenham do campo racionalista, quer do
campo de Jung. A dignidade do homem, como achava Pico della Mirandola, reside precisamente na sua capacidade multiforme de mudar.
Nós não somos simples máquinas automáticas que começam a funcionar quando lhes colocam moedas. Ao contrário do esgana-gata, nós
temos o que os psicólogos chamam de "ego", que testa a realidade e
molda os im ulsos do ido Portanto, podemos permanecer senhores de
\ nós mesmos enquanto quase nos rendemos a moedas falsas, a símbo-
'"' ora,
lOS
..
FUNÇÃO E FORMA
AWD~T
oR.
D"=:610N
?
Fig. 69. FOUGASSE: Ilustração
para um/olheto.
Fig. 70. PICASSO: Babuíno com
filhote. 1951. Bronze.
los e substitutivos. Nossa dupla nature,za, posta entre a animalidade e
a racionalidade, encontra expressão naquele mundo geminado do simbolismo, com sua voluntária suspensão da incredulidade.
Um exemplo deve bastar. Pode-se dizer, e já se tem dito, que reagimos com particular presteza a certas configurações de significado
biológico para a nossa sobrevivência. O reconhecimento do rosto humano, segundo essa argumentação, não é totalmente adquirido. É ba--seado em alguma espécie de disposição inata.
Sempre que qualquer coisa que tenha alguma semelhança remota
com o rosto penetra o nosso campo de visão, algo nos alerta e reagimos. Todos nós conhecemos o sentimento provocado quando a febre
ou a fadiga afrouxam os gatilhos das nossas reações e um fragmento
de papel de parede parece de repente nos encarar ou fazer-nos caretas
com um esgar ameaçador. O humorista inglês Fougasse tem usado
com grande felicidade essa propensão que temos a ver rostos na sua
campanha em prol de um mobiliário mais funcional [69]. Objetivamente, a cadeira aqui reproduzida não se parece muito com qualquer
fisionorrua conhecida, mas, dada essa nossa tendência de correspon109
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der à intenção, o artista pode achar que fez, por acaso, um rosto. Uma
exploração audaciosa da nossa tendência de ver rostos nas coisas aparece em Dulle Criet, de Bruegel [71). Aqui, a construção da direita,
com sua única janela, transforma-se num rosto voraz, ajudado pela
justaposição da imagem mais realista da boca do inferno. E a linguagem e a metáfora não testemunham que essa classe de coisas subjetivamente associadas às idéias de olho, boca ou face é muito mais vasta
que o conceito do anatomista? Para as nossas e'!10ções, uma janela
pode ser um olho e uma jarra pode ter uma boca. E a razão que insiste
na diferença entre a classe do que é real, mais exígua, e a classe, mais
ampla, do metafórico, barreira entre imagem e realidade.
Os faróis de um carro podem parecer um par de olhos em brasa,
e podemos até chamá-los assim. O artista pode utilizar a semelhança
na sua mágica de transformação. Picasso fez precisamente isso quando criou seu maravilhoso babuíno de bronze com filhote [70). Pegou
um automóvel de brinquedo, talvez dos seus próprios filhos, e transformou-o numa cara de babuíno. Ele viu o capô e o pára-brisa do car-
Fig. 71.
lJO
BRUEGEL:
ro como um rosto, e esse novo ato de classificação inspirou-o a pôr à
prova o seu achado. Aqui, como tão freqUentemente acontece, a descoberta pelo artista de um emprego inesperado para o automóvel tem
um duplo efeito sobre nós. compan amo- o nao so vendo um etermma o automóvel como cabeça de macaco, mas aprendendo, no processo, uma nova maneira de articular o mundo, uma nova metáfora; e,
quando estamos com essa disposição, podemos de repente descobrir
que os carros que bloqueiam o caminho nos olham com aquele riso si\ miesco devido à classificação de Picasso.
J
IV
Tenho falado de classifica ão mas m psicologia esse processo é chamado
mais freqUentemente de 'projeção" Dizemos que "projetamos" a fonna familiar de um rosto na co guração e um automóvel da mesma fonna como projetamos imagens familiares em fonnas vagamente semelhantes de
nuvens. Sabe-se que essa propensão das nossas mentes tem sido empregada
na moderna psiquiatria como instrumento de diagnóstico. No chamado
"teste de Rorschach", borrões-padrão de tinta são oferecidos para interpretação [72]. O mesmo borrão pode ser' temretado\como um morcego ou
uma borboleta, para não falar em inúmeras outras possibilidades que encontramos arroladas na vasta bibliografia que já se acumulou sobre esse
método de exame. O próprio Rorschach acentuou que existe uma diferença
apenas de grau entre a percepção ordinária, o registro de impressões na nossa mente, e as interpretações devidas à "projeção". Quando tomamos consciência do processo de classifica ão, dizemos que "interpretamos"; quando
não tomamos, dizemos que "vemos' . Desse ponto de vista, há também
uma diferença de grau, mais
do que de natureza, entre
aquilo que chamamos de
"representação" e aquilo
que chamamos de "objeto
da natureza". Para o primitivo, o tronco de árvore ou a
pedra que se parece com um
animal pode tomar-se uma
Fig. 72. Borrão de tinta de Rorschach.
espécie de animal.
Dulle CrieI. 1562.
111
FUNÇÃO E FORMA
ARTE E ILUSÃO
~
~
Fig. 73. A constel~ção do Leão, à esquerda. Suas representações: figo 74. Por um
Miriti-tapuia, ao centro; figo 75. Por um Kobéua, à direita.
A idéia de que talvez se possam achar as raízes da arte nesse mecanismo de projeção, no sistema de classificação da nossa mente, não é
de origem recente. Foi expressa pela primeira vez há mais de quinhentos anos, na obra de Leon Battista Alberti. A passagem é pouco conhecida porque não se encontra no famoso livro do autor sobre pintura,
mas no seu pequeno tratado sobre escultura, De Statua:
"Creio que as artes que têm por objetivo imitar as criações da
Natureza originam-se da seguinte maneira: num tronco de árvore,
num monte de terra ou em alguma outra coisa, foram acidentalmente
descobertos, um belo dia, contornos que exigiam apenas uma ligeira
alteração para se parecerem de modo surpreendente com algum objeto
natural. Observando isso, as pessoas procuraram ver se não seria possível, por adição ou subtração, completar o que faltava para chegar à
semelhança perfeita. Assim, ajustando ou removendo perfis e planos
da maneira que o próprio objeto sugeria, conseguiram o que desejavam, e não sem ~ Desse dia em diante, a capacidade do homem
de criar imagens cresceu a passos largos, até que ele foi capaz de criar
qualquer reprodução, mesmo sem nenhum vago esboço no material
para guiá-lo."
Falta-nos hoje o arrojo de um Alberti para especular sobre origens. Ninguém estava presente quando a primeira imagem foi feita. E,
mesmo assim, acho que a teoria de Alberti sobre o papel da projeção
nas origens da arte merece ser levada a sério. Existe pelo menos uma
área em que podemos verificar e confirmar a importância que a descoberta de uma semelhança acidental tem para a mente do homem primi112
tivo: as imagens que todos os povos projetam no firmamento. Não preciso alongar-me sobre o fascínio que têm essas descobertas sobre a
imaginação humana. Reconhecer a imagem de um animal no céu ligando os pontos luminosos e esparsos era imaginar que ele reinava naquela parte do firmamento e sobre todas as criaturas que caíam sob a
sua influência. Sabemos que a mais leve semelhança bastava para ditar
a identificação. As constelações pouco mudaram desde que os nomes
do Zodíaco lhes foram dados, há milhares de anos. Mas em nenhuma
época foi fácil encontrar o carneiro ou o escorpião, o leão ou o touro.
Sabemos que diferentes tribos projetaram diferentes imagens nesse primeiro teste de Rorschach. E nada é mais instrutivo do que comparar as
diversas interpretações dadas ao mesmo grupo de estrelas.
A constelação do Zodíaco que os antigos chamavam de Leão
fornece um bom exemplo: se a abordarmos com a apropriada disposição de espírito, poderemos ver um leão ou, pelo menos, um quadrúpede, naquele determinado grupo unindo as estrelas principais com linhas [73]. Os índios da América do Sul reagem diferentemente. Não
vêem um leão de perfil porque desprezam a parte a que chamaríamos
de cauda e de quarto traseiro, e fazem do resto uma lagosta vista de
cima. O etnólogo Koch-Grünberg, há cerca de cinqüenta anos, teve a
inspiração de pedir a caçadores índioscque lhe desenhassem o céu estrelado. Um deles reproduziu uma versão que aumentava as principais
constelações de forma esquemática, e sua lagosta pode ser facilmente
reconhecida [74]. Um índio de outra tribo mostrou mais imaginação e
menos consideração pela posição verdadeira das estrelas [75]. Sua lagosta é ainda mais convincente, o que demonstra quanto ele projetou
ativamente a imagem de um animal conhecido.
Se refletirmos sobre o poder que essas imagens no céu ainda
exercem sobre a imaginação do homem ocidental, talvez fiquemos
menos relutantes em aceitar a sugestão de Alberti de que a projeção
foi uma das raízes da arte. Num estado de tensão, o homem primitivo
pode ter estado tão propenso quanto nós a projetar seus temores e suas
esperanças em qualquer forma que permitisse, mesmo que remotamente, essa identificação. Não só o céu, à noite, mas qualquer coisa
que não pudesse ser classificada de outro modo teria oferecido a ele
tais formas. Pelo menos não vejo por que não podemos estender nossa
história do É Isso Mesmo, para incluir estranhas formações rochosas,
ranhuras e veios nas paredes das cavernas. Não é possível que touros
e cavalos tenham sido "descobertos" pelo homem nesses misteriosos
113
ARTE E ILUSÃO
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Fig. 76. Cavalo. Pré-histórico, de Cap Blanc, perto de Les Eyzies (Dordogne).
covis antes que fossem fixados e tornados visíveis por meio de terras
coloridas?
É verdade que as famosas cópias em aquarela do Abbé Breuil,
freqüentemente usadas como ilustrações, fazem tal explicação parecer
implausível. Mas, afinal, sua finalidade foi apenas separar a silhueta
pintada da superfície da pedra. Como teria sido essa superfície na era
glacial, até que ponto estaria coberta de musgo ou manchada de água,
nunca saberemos. Talvez uma fotografia do cavalo esculpido de Cap
Blanc [76] dê melhor idéia da maneira pela qual essas formas feitas
pelo homem emergiram da rocha rugosa. Sem dúvida alguma, pinturas
pré-históricas, principalmente as célebres obras-primas de Lascaux,
parecem excessivamente disciplinadas e deliberadas para serem o sim114
FUNÇÃO E FORMA
pies resultado de acidente natural e projeção. Mas essas, certamente,
não estão no começo da arte das cavernas. Milhares de anos de experimentação devem tê-Ias precedido. É importante manter essa ossibilidade em mente or ue a arte naturalista das cavernas é muitas vezes
utilizada como ar umento contr a.npinião de ue a imitação de apa
rência é um resultado complexo e tardio, fruto da tradi ão e do a ren~. Assim, a arte das cavernas e a arte dos bosquímanos, com ela
aparentada, deram origem a especulações de longo alcance com respeito à disposição psicológica desses caçadores primitivos, com seus poderes incomuns de visualização e sua concepção do mundo ainda intacta, livre da intromissão da lógica ou dos estragos causados pelo raciocínio analítico. Mas essas idéias evolucionistas, que pareciam tão
plausíveis ao século XIX, estão por toda parte em declínio. A melhor
hipótese de trabalho nesses assuntos é a presunção de que não existe
grande diferença biológica e psicológica entre nossos ancestrais da caverna e nós mesmos. Não vejo motivo, portanto, para crer que esses
artistas primevos estivessem isentos do ritmo de esquema e correção.
Uma vez descoberta a forma animal em algum canto da rocha, como a
lagosta foi descoberta nas estrelas pelo índio, deve ter sido fácil transferi-Ia e ajustá-la até que a tribo ou a casta dos feiticeiros empenhados
em algum ritual mágico adquirisse uma habilidade especial na fabricação de tais imagens. Com referência a isso iLarte das c lY..ernas que
chegou até nós pode ser tudo, menos P-Jimiti..\ill.. Pode ser até de estilo
muito desenvolvido. E, todavia, a prioridade da projeção pode ainda
determinar o caráter do estilo. Temos visto repetidamente em que medida o ponto de partida do artista determinará o produto final. O esquema em que uma representação se baseia continuará perceptível até a
última elaboração. E ficamos tentados a pensar que a mais admirável
característica da arte das cavernas - sua ausência de rigidez geométrica - pode estar ligada, assim, nas suas raízes mais remotas, às formas
indeterminadas descobertas e elaboradas por gerações sucessivas.
Talvez as suas condições de vida encorajassem os caçadores primitivos a procurar formas animais em cavernas sagradas ao invés de
fazer animais, escrutar os vagos contornos de manchas e sombras para
a revelação de um bisão exatamente como faz o caçador que varre com
os olhos a planície poeirenta em busca da silhueta da presa. Ele está
mais preparado para encontrá-la do que para fazê-la. A construção de
imagens sumárias estava provavelmente além da experiência desses
11S
ARTE E ILUSÃO
primeiros artistas. O esquema geométrico requer algo como a perícia
de um engenheiro construtor, e essa perícia e esse hábito desenvolveram-se provavelmente com as necessidades das comunidades sedentárias. Tais especulações se ajustam, de qualquer maneira, à presunção
geral de que o rígido estilo da arte neolítica tenha coincidido com o desenvolvimento da agricultura e de sua tecnologia. Algumas vantagens
na construção de imagens elementares recomendaram os novos métodos a essas culturas. Só a construção de formas básicas oferece a possibilidade de um controle estrito, a segurança do repetível, que a arte das
cavernas talvez não tenha nunca alcançado completamente.
v
O que sabemos sobre o início da fabricação de imagens confirma o
vínculo de continuidade entre achar e fazer. Recentes escavações em
Jericó trouxeram à luz uma série de imagens com alguns milhares de
anos de idade. Talvez sejam os mais antigos retratos conhecidos [77].
Exemplificam a história de Pigmalião às avessas. Nesta, uma estátua
se anima e ganha vida, enquanto nas práticas antigas
o homem vivo torna-se imagem depois de morto. A caveira era usada como armadura para a modelagem. O
artesão cobria a caveira de
terra para representar a carne apodrecida. A cabeça sofrera uma transformação
em algo rico e estranho,
mas era ainda a cabeça de
um morto. Uma vez que os
olhos também apodrecem,
o artista tinha de dar à caveira olhos artificiais e valia-se de conchas do caurim.
Sabemos que essas conchas
são utilizadas em outros
Fig. 77. Caveira modelada de Jericó.
contextos, como símbolos
C. 6000 a.C.
116
FUNÇÃO E FORMA
de fertilidade. A diferença entre simbolização e representação é de uso,
contexto e metáfora. Nos dois casos, a semelhança apresenta um ponto
de partida para aquilo que chamei, de maneira um tanto pedante, de
"extensão de uma classe". Aqui a classe dos objetos que são como
olhos pode fazer as vezes de olhos, porque, uma vez postos no lugar, a
caveira de repente "olha" para nós.
A representação não é, portanto, uma réplica. Não precisa ser
idêntica ao motivo. O artesão de Jericó não achava que o caurim é idêntico a um olho. Picasso também não achava que babuínos eram idênticos a automóveis. Mas, em certos casos, um pode representar o outro.
Pertencem à mesma classe porque desencadeiam a mesma reação.
Quanto mais recuamos na história, mais importante parece o
princípio. O teste da imagem não é a sua semelhança com o natural,
mas a sua eficácia dentro de um contexto de ação. Ela pode ser semelhante ao natural se isso for considerado como algo que contribui para
a sua força, mas em outros contextos o mais sumário dos esquemas
bastará, desde que retenha a natureza eficaz do protótipo. Deve funcionar tão bem ou melhor que a coisa real.
Uma história horripilante mas característica, contada pelos esquimós de Nunivak, no Alasca, ilustra esse ponto.
"Era uma vez um homem cuja avó era uma poderosa feiticeira.
O homem tinha problemas com O seu caiaque, que vivia capotando.
Então, quando a avó morreu, ele teve a idéia de usar os poderes da velha para estabilizar o barco. Esfolou o cadáver e fixou a pele, com
braços e pernas abertos, debaixo do barco, e - vejam só! - ele nunca mais capotou. Desgraçadamente, porém, a pele se desgastou, e o
piedoso neto substituiu-a por uma imagem, que teve o mesmo efeito
estabilizador. E até hoje os caiaques daquelas paragens são adornados
com imagens esquemáticas que os mantêm em equilíbrio."
Uma vez mais, como no caso das cabeças de Jericó, vemos a
misteriosa transição da vida para a imagem ou o sucedâneo. O que interessa na imagem é que preserve e repita as características do bruxo
ou bruxa que fazia a mágica.
O lsucedâneotpode muito bem ser uma runa mágica em lugar de
uma imagem naturalista. Um par de olhos esquemáticos pode servir
para deter espíritos malignos, uma indicação de garras pode proteger
a cabeceira da cama ou uma cadeira. Na verdade, a precisão da "arte
primitiva" muitas vezes vai de par com uma redução da imagem aos
117
ARTE E ILUSÃO
seus traços essenciais. Como não ficar tentado a ver essa tendência
para a abreviação como uma conseqüência da crença no "poder de
Pigmalião"? Pois, se representar é criar, é preciso mesmo ter salvaguardas contra esse poder, que, de repente, pode ficar descontrolado.
Num livro fascinante, sobre lendas relacionadas com a arte e os artistas, Ernst Kris e auo Kurz mostram como tais temores são levados a
sério. Em muitos lugares do mundo há histórias de estátuas que têm
de ser acorrentadas para impedir que se ponham a andar por conta
própria e de artistas que se abstêm de dar a última pincelada nos seus
quadros para impedir que as imagens adquiram vida.
Sabemos de tensões semelhantes causadas pela crença no poder
dos símbolos nos domínios da linguagem e da escrita. Não se deve
pronunciar certas palavras, por conterem um conjuro, nem escrever
nomes santos, por serem excessivamente sagrados para se poder confiá-los ao papel. Pelo menos um paralelo a essa prática remonta à aurora da civilização: nas inscrições hieroglíficas das pirâmides, todos
os símbolos formados por imagens de animais nocivos são evitados
ou "abreviados" - o escorpião é deixado sem a sua perigosa cauda, o
leão é cortado pelo meio. Nesse contexto, não há dúvida de que a
imagem era vista como mais do que um signo. Escorpiões não devem
ser postos em túmulos; poderão fazer mal aos mortos.
Quando falamos de imagens "estilizadas", devemos ter sempre
em mente a possibilidade de que a crença no fazer engendrasse uma
contra-reação de temores e precauções, limitando a liberdade do artista. A arte egípcia oferece o mais famoso mas também o mais difícil
exemplo disso. Suas regras de representação esquemática, a familiar
figura de perfil, não podem ser explicadas apenas pela preponderância
do estereótipo. Estrangeiros feitos prisioneiros de guerra, inimigos
mortos no campo de batalha e mulheres escravas são, por vezes, representados de frente [78], como se certos tabus não se aplicassem a
criaturas tão inferiores.
Em casos como esses, só nos resta especular, mas existe uma tradição em que as restrições das proibições religiosas estão muito bem
documentadas: na tradição do judaísmo. Já se disse que a proibição de
"imagens em sepulcros", do Velho Testamento, não se relaciona apenas com o temor de idolatria mas com o temor, mais universal, de
usurpação das prerrogativas do Criador. Comentários rabínicos permitem o uso de anéis de sinete em forma de entalhes, porque a forma negativa não é uma imagem no sentido proibido. Diz-se também que en-
FUNÇÃO E FORMA
Fig. 78. Prisioneiros de Seli I. e. 1300 a.e.
Relevo.
Fig. 79. O sacrifício de /saac.
Mural. Sinagoga de
Dura-Europos. Séc. 11/ d.e.
tre os 'udeus da Polônia há os que admitem estatuetas nas casas, desde que
não sejam completas - que lhes falte
um dedo, por exemplo. Alguns manuscritos judeus da Idade Média mostram
figuras sem rosto, e já se sugeriu que o
primeiro artista a trabalhar na Sinaaoaa
b
b
de Dura-Europos, no século I1I, obedeceu a escrúpulos semelhantes quando
pintou o sacrifício de Isaac [79]. São
muitas as evidências de temores desse
tipo em tradições ligadas à judaica. A
Igreja oriental, que acabou por admitir
imagens sagradas, fez uma distinção
entre escultura, por demais realista e,
portanto, inadmissível, e ícones pintados. a teste consistia em saber se era
ossível eaar a imaaem elo nariz.
Mas a própria imagem pintada está sujeita a limitações. Em Bizâncio e na
Etiópia, figuras malignas como Judas
nunca são mostradas de frente: teme-se
que seu olhar maligno possa fazer mal
ao observador.
118
119
FUNÇÃO E FORMA
ARTE E [LUSÃO
Fig. 80.
t
ALFRED LEETE:
CarTaz de recrutamento. 1914.
Mas nós todos não sentimos que certos retratos nos encaram?
Estamos todos familiarizados com o guia que, num castelo ou numa
propriedade campestre, mostra aos turistas alarmados que um dos
quadros na parede os acompanha com os olhos. Queiram ou não queiram, atribuem-lhes vida própria. A publicidade comercial e a propaganda política exploram essa reação para reforçar a nossa tendência
natural a dotar uma imagem de uma "presença". O famoso cartaz de
recrutamento de Alfred Leete, de 1914, dava a cada transeunte a sensação de que Lord Kitchener em pessoa se dirigia a ele [80).
Serão mágicas essas crenças? Acreditamos, de fato, que a imagem na parede adquire vida? A questão talvez não permita resposta
clara e precisa, do mesmo modo como todas as perguntas relacionadas
120
com o simbolismo. "Sabemos mais hoje do que antes", diz Edwin Bevan em seu livro Holy lmages, "como a mente do homem funciona
em vários níveis e como, por baixo de uma teoria intelectual articulada, uma crença, inconsistente com essa teoria mas estreitamente liga.,da a sentimentos e desejos inconfessáveis pode subsistir ainda."
Nenhuma liçao e pSicologia é mais importante para o historiador
do que essa da multiplicidade das camadas, da coexistência pacífica,
no homem, de atitudes incompatíveis. Jamais houve um estágio primitivo da humanidade em que tudo fosse mágica; e jamais aconteceu que
uma evolução tivesse apagado completamente a fase anterior. O que
ocorre é que diferentes instituições e diferentes situações favorecem e
suscitam uma abordagem diversa, a que tanto o artista como o público
aprendem a reagir. Mas sob essas novas atitudes, ou contextos mentais,
as velhas sobrevivem e vêm à tona, de brincadeira ou não.
Lembro-me de uma visita que fiz a uma das residências da rainha Vitória, Osborne, na ilha de Wight, que é ainda o principal monumento àquele incrível gosto que parece mais remoto para nós, e mais
inexplicável para a mjnha geração, do que o gosto das culturas primitivas. Destacando-se entre as obras expostas, havia uma escultura em
tamanho natural de um grande cão peludo, um retrato de Noble, animai de estimação da rainha. O retrato era tão fiel quanto fora o cão.
Se tivesse cor, dir-se-ia que era um cã6 empalhado. Não sei o que me
levou a perguntar ao guia: "Posso afagá-lo?" Ele respondeu: "É curioso que o senhor queira fazê-lo. Todos os visitantes passam a mão nele.
Temos de lavá-lo toda semana." Não imagino, evidentemente, que os
turistas que vão a Osborne, inclusive eu, sejam especialmente suscetíveis a crenças mágicas. Não pensávamos que o cão fosse real. Mas se
não pensássemos assim de forma nenhuma não teríamos reagido como fizemos - o gesto de afago pode muito bem ter sido um composto de ironia, brincadeira e o desejo secreto de nos assegurarmos de
que, afinal de contas, o cão era mesmo só de mármore.
Quando escrevemos em nossos museus "É proibido tocar nos
objetos" - lembrando Noble - , não estamos apenas tomando uma
precaução das mais necessárias para a preservação das obras de arte.
Podemos argumentar com André Malraux que o museu transforma
imagens em arte pelo fato de estabelecer uma nova categoria, um novo princípio de classificação, que cria um novo contexto mental. Tome-se qualquer peça de museu, digamos Caixa em forma de caranguejo, de Riccio, da Kress Collection [81]. Se eu tivesse esse objeto
121
AWrE E ILUSÃO
IV. Reflexões sobre a revolução grega
Nossos escultores dizem que, se Dédalo nascesse hoje e criasse
as obras que lhe deram fama, todo o mundo riria dele.
PLATÃO,
Hípias Maior
Fig. 81. RICCIO: Caixa emfarma de carangl/ejo.
Começo do séc. XVI. Bronze.
nas mãos poderia ficar tentado a brincar com ele, a cutucá-lo com a
minha caneta ou ameaçar uma criança, muito pouco psicologicamente, com uma boa mordida de caranguejo se pusesse a mão em algum
papel da minha escrivaninha. Quem sabe se as pernas e pinças cheias
de pontas não foram feitas para ocultar e proteger o conteúdo da caixa
contra dedos intrometidos? Resumindo: em cima de uma mesa, o objeto pertenceria à espécie caranguejo, subespécie caranguejo-de-bronze. Contemplando-o agora, na sua vitrine, minha reação é outra. Estou
pensando em certos estilos do realismo renascentista que levaram a
Palissy e ao seu sty/e rustique. O objeto pertence à espécie bronze do
Renascimento, subespécie bronzes representando caranguejos. Não é
de admirar que os nossos artistas estejam em pé de guerra contra a desvitalização da imagem e anseiem mais do que nunca pelo segredo perdido do poder de Pigmalião. E, todavia, podemos ter feito um bom negócio quando trocamos a mágica arcaica de fazer imagens pela mágica
mais sutil a que chamamos "arte". Porque, sem essa nova categoria de
"quadros", a fabricação de imagens estaria ainda tolhida por tabus. Só
no reino dos sonhos o artista encontrou plena liberdade de criar. Acho
que a diferença está bem sintetizada num episódio que se conta a respeito de Matisse. Uma senhora que estava visitando o ateliê do pintor
observou: "Mas certamente o braço dessa mulher está comprido demais!" Ao que o artista, polido, respondeu: "Madame, a senhora está
enganada. Isso não é uma mulher, é um quadro."
122
Se eu tivesse de reduzir o último capítulo a uma fórmula sucinta, seria: "fazer vem antes de contrapor". Pois, antes de o artista pensar em
"igualar" o que via do mundo, queria criar coisas por elas mesmas. E
isso não se aplica apenas a algum passado mítico. De certo modo, a
nossa fórmula se ajusta como uma luva às conclusões do último capítulo, de que o processo de "igualar" passa pelas fases de "esquema e
correção". Todo artista tem de conhecer e construir um esquema antes
de pensar em ajustá-lo às necessidades de retratar alguma coisa.
Vimos que Platão fazia objeções a isso. O que o artista é capaz
de igualar, lembrou ele aos seus contemporâneos, são apenas "aparências"; seu mundo é o mundo da ilusão, o mundo dos espelhos que enganam o olho. Se ele fosse "fazedor", como o carpinteiro, o amante
da verdade poderia aturá-lo. Mas como imitador deste mundo dos
sentidos, em perpétua transformação, ele nos afasta da verdade e deve
ser banido do Estado.
A própria violência com que Platão denuncia o embuste nos lembra um fato significativo: no tempo em que escreveu,.ª- mimese era
uma invenção recente. Muitos críticos de hoje partilham da sua aversão, por um motivo óu por outro, mas mesmo esses admitiriam que
poucos espetáculos em toda a história da arte .?uperam o grande des-_
.E..ertar da escultura e da pintura gregas entre o século VI a.c. e o fim
do século V_-quando Platão era jovem. Suas fases já foram muitas
vezes rememoradas em termos do episódio da "Bela Adormecida",
l

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