Efeito Túnel e Microscopia com Resolução Atômica

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Efeito Túnel e Microscopia com Resolução Atômica
CADERNO DE FÍSICA DA UEFS 07 (01 e 02):
115-132, 2009
EFEITO TÚNEL E MICROSCOPIA COM RESOLUÇÃO ATÔMICA
A. V. Andrade-Neto e Ariel Almeida Abreu Silva
Departamento de Fı́sica, Universidade Estadual de Feira de Santana: Avenida Transnordestina,
s/n, Novo Horizonte, Campus Universitário,
44036-900, Feira de Santana, BA, Brasil
Neste artigo são descritos os princı́pios fı́sicos de funcionamento de microscópios que apresentam resolução em escala atômica, i.e., dispositivos capazes de fornecer imagens de átomos
individuais. Em particular são discutidos os processos de emissão por campo (emissão fria)
e ionização por campo, fenômenos que tem como princı́pio fundamental o efeito túnel ou
penetração de barreira o qual serve de base para o funcionamento dos microscópios descritos
nesse trabalho, a saber, o Microscópio de Emissão por Campo (Field Emission Microscope
– FEM), Microscópio Iônico de Campo (Field Ion Microscope – FIM) e o Microscópio de
Varredura por Tunelamento (Scanning Tunneling Microscope – STM).
Palavras-chave: Efeito túnel, Microscopia atômica, Emissão e ionização por campo
I.
INTRODUÇÃO
A teoria quântica, desenvolvida nas primeiras décadas do século XX, provocou profunda
alteração nos conceitos e leis da fı́sica clássica e forneceu a explicação correta para diversos
fenômenos que, do ponto de vista clássico, eram incompreensı́veis. Uma das previsões mais
intrigantes da mecânica quântica é conhecida como penetração de barreira ou efeito túnel.
Para melhor compreender esse efeito lembremos que a energia total E de uma partı́cula se
movimentando em um campo conservativo, considerando movimento unidimensional, é dada
por
E = V (x) +
p2 (x)
2m
(1)
onde V(x) é a energia potencial em função da posição x e p2 (x)/(2m) é a energia cinética onde
p(x) e m são, respectivamente, o momento linear e a massa da partı́cula. A eq.(1) expressa
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a conservação da energia mecânica da partı́cula. Como a energia cinética é uma grandeza
positiva, a mecânica clássica garante que a partı́cula só pode ter acesso a regiões nas quais
E > V (x) denominadas, portanto, de regiões classicamente permitidas. Os pontos nos quais
E = V (x) são denominados de pontos de inversão ou pontos de retorno que são os locais nos
quais p(x) se anula.
Contudo, a mecânica quântica prevê a possibilidade de uma partı́cula com energia total
E penetrar em uma região classicamente proibida, i.e., em uma região onde E < V (x), fato
que é impossı́vel na mecânica clássica. Esse efeito, conhecido como penetração de barreira ou
tunelamento, é muito comum em sistemas atômicos e moleculares e é o principio básico de
vários dispositivos tecnológicos como os diodos túnel e diversos microscópios que apresentam
resolução atômica e que serão analisados aqui.
O efeito túnel é uma manifestação da dualidade onda-partı́cula, uma caracterı́stica fundamental dos objetos quânticos. Desse modo, há um análogo ondulatório clássico desse efeito
que é a reflexão total frustrada, um fenômeno bem conhecido da teoria eletromagnética da
luz, (ver, por exemplo, referência [1]). O comportamento ondulatório dos objetos quânticos é
caracterizado por um comprimento de onda λ, chamado comprimento de onda de de Broglie,
definido pela relação
λ=
h
p
(2)
onde h é a constante de Planck e p o momento linear da partı́cula.
Podemos dizer que o ano de 1928 foi o annus mirabilis do efeito túnel. Nesse ano apareceram
pelo menos três trabalhos seminais nos quais o efeito túnel aparece como a explicação central
para diferentes fenômenos.
Um dos trabalhos fundamentais de 1928 foi o de G. Gamow [2] sobre a desintegração alfa,
na qual um núcleo de um átomo radioativo de número atômico Z e número de massa A emite
uma partı́cula α através da reação
(Z, A) → (Z − 2, A − 4) + α
(3)
A partı́cula α, de carga +2e, com energia total E (da ordem de 4,2 MeV) está inicialmente
em uma região do núcleo atômico separada das outras regiões do espaço por uma barreira de
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potencial de altura no mı́nimo duas vezes maior do que E. Assim, a emissão de partı́culas α no
decaimento de núcleos radioativos é explicada em termos de tunelamento quântico.
Também em 1928, Fowler e Nordheim [3] explicaram a emissão de elétrons de uma superfı́cie
metálica, induzida por campo elétrico, como um efeito de tunelamento, fenômeno conhecido
como emissão por campo. Esse fenômeno é o princı́pio fı́sico fundamental que explica o funcionamento do microscópio de emissão por campo, conhecido pela sigla FEM (da acrossemia
em inglês Field Emission Microscope). No mesmo ano, Oppenheimer [4] demonstrou que o
átomo de hidrogênio em um campo elétrico tem uma probabilidade finita de ser ionizado por
tunelamento do seu elétron, efeito conhecido como ionização por campo. Ele obteve que o
efeito seria apreciável para campos da ordem de 0,5 V/Å. Apenas na década de 1950, com a
criação do microscópio iônico de campo, conhecido pela sigla FIM (da acrossemia em inglês
Field Ion Microscope) foram obtidos campos de magnitudes capaz de realizar a ionização por
campo. O FIM foi o primeiro instrumento inventado pelo homem com capacidade de obter
imagens individuais de átomos [5].
Na década de 1980 os fı́sicos Gerd Binning e Hernrich Rohrer criaram o Microscópio de
Varredura por Tunelamento - STM (da acrossemia em inglês Scanning Tunneling Microscope),
os quais, por esta invenção, foram agraciados com o prêmio Nobel de Fı́sica de 1986, juntamente
com Ernest Ruska (este último pela invenção do microscópio eletrônico).
O objetivo principal do presente trabalho é descrever as principais caracterı́sticas de alguns
microscópios (FEM, FIM e STM) que apresentam resolução em escala atômica e cujo fenômeno
básico é o tunelamento ou penetração de barreira por elétrons. A resolução ou poder de
resolução de um microscópio é a distância mı́nima entre dois pontos de um objeto que podem
ser vistos como distintos.
II.
MECANISMOS DE TUNELAMENTO EM SUPERFÍCIES
É possı́vel estudar várias propriedades dos sólidos cristalinos considerando-os como um
arranjo periódico perfeito, infinito, de átomos em três dimensões. Nesse caso dizemos que estamos interessados nas propriedades do substrato (bulk properties). Contudo, para um sólido
real, finito, devemos levar em conta os efeitos provocados pela superfı́cie que o delimita espacialmente. Em particular, importantes processos de grande significado tecnológico tais como
emissão termiônica, crescimento de cristais, catálises, entre outros, ocorrem na superfı́cie de
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Fig. 1: Modelo simples que representa a energia potencial dos elétrons de condução em um sólido. EF
é a energia de Fermi (o maior nı́vel de energia ocupado a T = 0K), Φ é a função trabalho do material,
que corresponde à energia mı́nima necessária para arrancar um elétron do metal.
um sólido. Em um modelo simples, podemos considerar os elétrons de condução em um metal
submetidos a uma barreira de potencial semi-infinita de profundidade finita (Figura 1). No
estado fundamental (a T = 0K), pelo principio de exclusão de Pauli1 , os nı́veis de energia são
preenchidos até um valor máximo chamado energia de Fermi (EF ). A diferença de energia
entre o nı́vel de vácuo e o nı́vel de Fermi é a energia mı́nima necessária para extrair um elétron
do metal e essa energia é denominada função trabalho (Φ). O nı́vel de vácuo é a energia de
um elétron em repouso em um ponto suficientemente afastado da superfı́cie do cristal. Para os
metais, valores tı́picos da energia de Fermi situam-se no intervalo de 2 a 14 eV e para a função
trabalho o intervalo de valores tı́picos é de 2 a 5 eV (1 eV é a energia adquirida por um elétron
quando o mesmo é acelerado através de uma diferença de potencial de 1 volt).
A.
Fenômeno de Emissão por Campo
Conforme já citado acima, a mecânica quântica prevê a possibilidade do elétron ser removido
do metal mesmo sem o fornecimento da energia mı́nima necessária para sua remoção. A maneira
de se fazer isso é pela aplicação de um campo elétrico externo suficientemente forte, da ordem
de 10−2 V/Å, o qual reduz a barreira de potencial vista pelo elétron (Figura 2) aumentando,
assim, a probabilidade de penetração da mesma. Como o campo elétrico praticamente não
afeta os nı́veis de energia dos elétrons no metal (devido a blindagem eletrostática), o seu efeito
1
O princı́pio de exclusão de Pauli afirma que duas partı́culas de spin
mesmo estado quântico
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1
2
(como o elétron) não podem ocupar o
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Fig. 2: Energia potencial de um elétron em um metal submetido a um campo elétrico externo; a e b são
os pontos de retorno.
principal é reduzir a barreira de potencial que impede que o elétron escape. Esse fenômeno é
denominado de emissão fria, para diferenciá-lo do efeito fotoelétrico (quando se fornece energia
eletromagnética) ou da emissão termo iônica (quando se fornece energia térmica).
Uma quantidade teórica fundamental a ser calculada é a probabilidade de penetração (P)
na barreira. A teoria quântica fornece diversos métodos para o cálculo de P. Um método muito
utilizado é conhecido como aproximação semiclássica ou WKB (devido a Wentzel, Kramers e
Brillouin), a qual fornece a seguinte expressão [6]:

Zb r
2m
P = exp −2
[V (x) − E]dx
~2

(4)
a
onde a e b são os pontos de retorno e a integração é realizada na região classicamente proibida.
Como a escolha do nı́vel de referência para a energia potencial é arbitrária deve-se deixar
clara a opção feita. Como os elétrons estão confinados no metal é necessário realizar trabalho
para extraı́-lo do material. Nesse caso, costuma-se atribuir energia total negativa à partı́cula.
Para essa escolha a energia de Fermi é negativa e a expressão para a energia potencial é:

 −Vo , x < 0
V (x) =
 0 ,x > 0
(5)
onde –V0 =–(Φ+EF ) é a altura do poço de potencial do metal.
Na presença de um campo elétrico externo de magnitude F haverá uma diminuição da
barreira de potencial como mostrado na figura 2. Nesse caso a expressão para a energia potencial
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é:

 −Vo , x < 0
V (x) =
 −eF x , x > 0
(6)
Para a nossa escolha, a energia total do elétron no nı́vel de Fermi é E=–Φ. Então temos
que
V (x) − E = Φ − eF x
(7)
Substituindo essa expressão na eq.(4) ficamos

Zb r
2m
P = exp −2
[Φ − eF x]dx
~2

(8)
a
onde b=Φ/eF é a largura da barreira (Figura 2).
A integral (8) é elementar e dá como resultado
#
√ √
4 2 mΦΦ
P = exp −
3~eF
"
(9)
O modelo utilizado para obter a eq.(9) é muito simples e efeitos importantes como o potencial imagem, por exemplo, não foram considerados. De qualquer modo a eq.(9) fornece
uma descrição qualitativa do fenômeno. Vemos que a probabilidade de penetração de barreira depende fortemente da função trabalho (Φ) do material bem como da largura da barreira
b=Φ/(eF) e que essa última quantidade é inversamente proporcional ao campo elétrico.
B.
Fenômeno de Ionização por Campo
Como já citado, em 1928 Oppenheimer demonstrou teoricamente que um átomo de
hidrogênio, quando na presença de um campo elétrico externo, tem uma probabilidade finita
de ser ionizado por tunelamento do seu elétron. Ele obteve que apenas para campos da ordem
de 0,5 V/? o efeito seria apreciável. Com o advento do Microscópio Iônico de Campo foram
obtidos experimentalmente campos dessa magnitude. Desse modo, a teoria de Ionização por
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Fig. 3: Energia potencial de um elétron em um átomo próximo a uma superfı́cie metálica na presença
de um campo elétrico. B é a energia de ligação do elétron no átomo e zo é a distância entre o átomo e a
superfı́cie.
Campo próximo a uma superfı́cie metálica transformou-se em um problema de grande interesse
fı́sico.
A figura 3 mostra a energia potencial de um elétron em um átomo próximo a uma superfı́cie
metálica na presença de um campo elétrico externo. Deve ser observado que a polaridade do
campo é invertida em relação ao caso de emissão por campo.
A probabilidade de o elétron penetrar no metal atravessando a barreira de potencial pode
também, no presente caso, ser calculada pela eq.(4), obtida pela aproximação WKB [7]. Essa
probabilidade será apreciável para valores de campo suficientemente intenso de maneira que a
largura da barreira tenha a mesma ordem de grandeza do comprimento de onda de de Broglie
do elétron.
III.
MICROSCÓPIO DE EMISSÃO POR CAMPO
O microscópio de Emissão por Campo - FEM, criado por E. W. Müller em 1936, foi o
primeiro dispositivo a obter imagens com resolução próxima à escala atômica (cerca de 20 ?).
O princı́pio de obtenção de campo elétrico com magnitude suficiente para provocar emissão de
elétrons baseia-se no fato de que a densidade superficial de carga e, portanto, o campo elétrico
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Fig. 4: Esquema ótico utilizado para calcular o aumento no FEM.
são muito maiores nas regiões pontiagudas de um condutor. Uma aplicação importante desse
efeito é o funcionamento dos pára-raios.
O FEM consiste em uma ponta metálica pontiaguda que é ela mesma a amostra a ser analisada, com um raio de curvatura da ordem de 103 a 104 Å e uma tela condutora e fluorescente.
Ambos, a ponta metálica e a tela, estão contidas em uma região de ultra-alto vácuo cuja pressão
se encontra no intervalo de 10−7 a 10−11 Torr (1 Torr equivale a 133,322 Pascal, sı́mbolo Pa, a
unidade de pressão no SI). Uma diferença de potencial da ordem de 1 a 10 kV é aplicada entre
a tela e a amostra. Isto cria um campo elétrico da ordem de 1 V/Å próximo ao ápice da ponta
metálica. Esse campo é forte o suficiente para provocar a emissão dos elétrons, por efeito túnel,
que estão localizados na superfı́cie da ponta. As linhas de força do campo, na ponta metálica,
são perpendiculares à superfı́cie. Assim, os elétrons emitidos seguem uma trajetória que se
aproxima muito das linhas de força do campo elétrico e ao atingirem a tela produzem regiões
brilhantes e escuras que refletem a diferença na função trabalho dos vários planos cristalinos
da superfı́cie metálica.
Com o FEM é possı́vel obter imagens com aumentos de 105 a 106 vezes. É fácil se calcular
esse aumento considerando o esquema ótico de funcionamento do FEM [5]. Uma porção da
amostra de comprimento d será aumentada na tela de uma quantidade D. (Figura 5). Se α é
o ângulo de abertura correspondente ao comprimento d então temos que
α=
d
D
=
r
z
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Fig. 5:
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Imagem da superfı́cie do molibdênio (Mo) obtida com o FEM. Fonte:
wikime-
dia.org/wikipedia/commons/d/dc/Field Emission...
onde r é o raio de curvatura da extremidade da amostra e z é a distância entre a amostra e a
tela. Logo, o aumento na tela é dado por
D
z
=
d
r
(11)
Assim o aumento da imagem é, aproximadamente, a razão entre a distância da tela ao
emissor (z) e o raio de curvatura da ponta metálica (r).
Como já dito, a resolução do FEM é de cerca de 20 ?, o que não é suficiente para a visualização de átomos individuais, mas apenas agregados de átomos. A figura 5 mostra um exemplo
de imagem obtida com o FEM. Mais do que detalhes atômicos a imagem revela a variação da
função trabalho do material com a superfı́cie, conforme eq.(9). A resolução do FEM é limitada
pelo fato do elétron possuir comprimento de onda de de Broglie relativamente longo. Desse
modo, uma forma de aumentar a resolução do microscópio seria a utilização, como formadora
de imagens, de partı́culas que possuam momento linear maior (logo, comprimento de onda
menor) do que os elétrons. Uma maneira de se conseguir isso é utilizando partı́culas que possuam inércia maior do que os elétrons, átomos por exemplo. Isso efetivamente foi realizado
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Fig. 6: Principio de funcionamento do FIM (à esquerda) e uma imagem de uma superfı́cie metálica (à
direita) com resolução atômica. Fonte: www.nims.go.jp/apfim/fim.html
com a criação do Microscópio Iônico de Campo, conforme veremos na próxima seção.
A utilização do FEM é limitada a materiais que podem ser fabricados na forma de agulhas
extremamente finas e que podem suportar campos elétricos extremamente altos.
IV.
MICROSCÓPIO IÔNICO DE CAMPO
Um grande avanço no processo de obtenção de imagens com resolução atômica foi obtido
com a criação do Microscópio Iônico de Campo - FIM também realizado por E. W. Müller na
década de 1950 [8]. Da mesma forma que no FEM, também no FIM as amostras possuem a
forma de agulhas com pontas bem afiadas. Mas, diferentemente do FEM, o FIM dispõe de uma
câmara preenchida com um gás, usualmente um gás nobre como hélio ou neônio, o qual será o
formador das imagens. Um esquema simplificado do FIM é mostrado na figura 6.
Entre a ponta (a amostra) e a tela, separadas por cerca de 5 cm, é aplicada uma diferença
de potencial entre 1 a 30 kilovolts, cuja polaridade é invertida em relação ao FEM, i.e, o
vetor campo elétrico tem o sentido da ponta para a amostra. Assim, em regiões próximas a
protuberâncias, onde o campo elétrico é mais intenso, é possı́vel se obter magnitudes de campo
de alguns volts/angstroms. Devido às interações dipolo-dipolo entre os átomos da superfı́cie
da ponta e os átomos do gás, estes últimos são adsorvidos no metal, processo que é conhecido
por adsorção por campo (Adsorção é um processo de fixação de moléculas na superfı́cie de uma
substância). Alguns outros átomos do gás são atraı́dos para a superfı́cie pelo campo elétrico
não-uniforme decorrente da geometria da amostra, e choca-se com a ponta do metal com uma
grande energia cinética. Nessas colisões os átomos transferem parte de sua energia cinética
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Fig. 7: Imagens de uma mesma superfı́cie de nı́quel (Ni) obtidas com o FEM (à esquerda) e com o FIM (à
direita). Percebe-se claramente a melhor resolução do FIM Fonte: www.nims.go.jp/apfim/gif/FEM.gif
para a rede cristalina, o que resulta em velocidades pequenas de modo que eles não conseguem
escapar da região próxima da ponta metálica, onde o campo elétrico é bastante intenso. Isso
faz com que ocorra a ionização do átomo por tunelamento do seu elétron o qual irá ocupar
um estado acima do nı́vel de Fermi no metal. O ı́on resultante é acelerado em direção à tela
onde formará a imagem. O contraste da imagem decorre do aumento local do campo elétrico,
acima dos átomos protuberantes, criando então pequenas regiões acima destes átomos onde a
probabilidade de ionização é maior em relação a locais onde o campo é menor. A pressão interna
na câmara onde se encontra o gás é da ordem de 10−5 a 10−4 torr que é baixa o suficiente para
permitir que os ı́ons resultantes tenham um livre caminho médio necessário para alcançar a
tela sem sofrer colisões significativas. Como o ı́on que se dirige à tela tem um comprimento de
onda de de Broglie muito curto comparado com o do elétron no caso de FEM, se obtém agora
um grande aumento na resolução da imagem que é de cerca de 2 Å, o suficiente para se obter
imagens de átomos individuais, conforme vemos nas figuras 6 e 7.
Mas, o que revelam essas imagens? Uma caracterı́stica marcante das imagens obtidas com o
FIM é o arranjo concêntrico de anéis formados por pontos brilhantes que representam os átomos
individuais. Esses anéis resultam da interseção dos planos atômicos no cristal e a geometria
hemisférica da amostra. Assim, as imagens formadas no FIM são projeções em duas dimensões
da amostra (a ponta) tridimensional. As regiões mais escuras na imagem correspondem aos
centros dos terraços atômicos, onde o campo elétrico é menor e, portanto, a probabilidade de
ionização por tunelamento também é menor.
Existe uma distância crı́tica, xc , medida a partir da superfı́cie do metal tal que, para valores
menores que essa distância, o átomo não será ionizado. As razões para esse fato são as seguintes:
a ionização só ocorrerá se a energia correspondente ao estado fundamental do átomo estiver
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Fig. 8: Diagrama esquemático da zona de ionização no FIM. xc é a largura da zona proibida, região na
qual não ocorre ionização.
acima do nı́vel de Fermi do metal já que, para distâncias menores que xc , ele estará abaixo do
nı́vel de Fermi e todos os estados abaixo desse nı́vel estão ocupados, pelo menos a T = 0K,
e não podem ser ocupados por mais de um elétron de acordo com o princı́pio de exclusão de
Pauli. Desse modo, os átomos que se encontram nessa região não podem ser ionizados razão
pela qual essa região é conhecida como zona proibida. A distância crı́tica, cujo valor depende
do material da ponta e do campo elétrico aplicado, é, ao mesmo tempo, o local onde é maior a
probabilidade de ocorrer a ionização por campo, a qual define uma região chamada de superfı́cie
crı́tica ou zona de ionização (figura 8). Medidas experimentais [9] mostram que a largura dessa
região é cerca de 0,2 Å.
Um parâmetro fundamental no conjunto de condições necessárias para formar a imagem é
o valor caracterı́stico de campo na superfı́cie da amostra para o qual são obtidas as imagens
mais satisfatórias. Esse valor de campo, conhecido como campo de imagem ótima
(best image field) depende primordialmente do gás utilizado para formar a imagem e, particularmente, de sua energia de ionização e fornece um método útil para se comparar os vários
gases utilizados como formadores de imagens. Um segundo parâmetro importante é o campo
caracterı́stico, definido como o valor de campo necessário para arrancar uma camada atômica
da superfı́cie da amostra, processo conhecido como evaporação por campo. A evaporação por
campo é realizada pela aplicação de pulsos de altas voltagens de curta duração, de tal forma
que os próprios átomos da superfı́cie da amostra podem ser ionizados e removidos. Assim, esse
processo é empregado para remover irregularidades da superfı́cie obtendo-se uma superfı́cie
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Fig. 9: Representação esquemática do funcionamento do STM. Os átomos da ponta metálica estão
representados em azul e os átomos da amostra em vermelho.
limpa.
V.
MICROSCÓPIO DE VARREDURA POR TUNELAMENTO
Conforme vimos acima, para se operar com o FEM ou com o FIM são necessários valores de
campo extremamente altos, o que reduz a quantidade de materiais que podem ser analisados
utilizando esses aparelhos, que se limita aos metais de transição e suas ligas. Como já mencionado, na década de 1980 foi criado o Microscópio de Varredura por Tunelamento (STM)
[10.11], o qual, por operar com uma pequena diferença de potencial, da ordem de alguns volts,
não é destrutivo o que permite o estudo de estruturas de moléculas orgânicas como, por exemplo, o DNA. Outra vantagem do STM é que ele não necessita de condições de alto vácuo
para operar. O STM consiste de uma agulha (ponta de prova metálica) extremamente fina,
idealmente com um único átomo na extremidade, que se movimenta muito próxima (alguns
angstroms) da amostra a ser analisada, a qual é varrida pela agulha que age como uma sonda
(figura 9).
Como a amostra e a ponta estão muito próximas, a barreira de potencial vista pelos elétrons
(em ambos os materiais) é estreita o suficiente para que a probabilidade de penetração da
barreira (o tunelamento) seja apreciável. Quando é aplicada uma diferença de potencial entre a
amostra e a ponta, os elétrons tunelados formam uma corrente elétrica, a denominada corrente
de tunelamento, cujos valores tı́picos estão no intervalo de 0,1 a 10 nA (1 nA=10−9 A). Os
elétrons tunelam da ponta para a amostra ou vice-versa, a depender da polaridade da diferença
de potencial entre os materiais.
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A probabilidade de tunelamento na aproximação WKB é dada por
"
r
P = exp −2
2mΦ
z
~2
#
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onde z é a distância entre a ponta e a amostra e Φ é a altura da barreira de potencial.
Como a corrente é proporcional a P vemos que a corrente de tunelamento decresce exponencialmente com o aumento da distância entre a ponta e a amostra. Esta dependência
exponencial torna o STM muito sensı́vel e é o fator determinante pela grande resolução vertical
do aparelho quando a ponta varre a superfı́cie para produzir a imagem, enquanto a ponta extremamente afiada da agulha é responsável pela excelente resolução lateral do STM. Assim, por
exemplo, se a distância ponta-amostra aumenta por 1 Å, a corrente decresce por uma ordem
de grandeza. Desse modo, a distância ponta-amostra precisa ser controlada com precisão da
ordem de nanômetros. Essa precisão é obtida através de voltagens aplicadas em um material
piezoelétrico2 , em cuja extremidade está localizada a ponta metálica, que pode se movimentar
nas direções x, y e z (x e y são as coordenadas no plano da amostra e z é a coordenada que
descreve a posição vertical da ponta).
Basicamente há duas maneiras de operação do STM: (1) modo de operação de corrente
constante e (2) modo de operação de altura constante (agulha fixa).
Na primeira maneira, a mais utilizada, mantêm-se a distância relativa ponta-amostra fixa, o
que significa manter a corrente de tunelamento constante. Um mecanismo piezoelétrico regula
o movimento vertical da ponta metálica de modo a manter a corrente de tunelamento constante,
registrando assim vale e colinas (átomos ou espaços vazios) que são traduzidos em imagens da
superfı́cie por um computador. Desse modo gera-se o perfil topográfico da superfı́cie.
A outra maneira é manter a posição vertical da ponta fixa enquanto ela percorre a superfı́cie da amostra. A vantagem da segunda maneira é permitir varreduras rápidas, mas com
a desvantagem de diminuir a resolução vertical.
As imagens obtidas com o STM fornecem um perfil tridimensional de superfı́cies de metais
e semicondutores que são muito úteis no estudo da rugosidade dos materiais em análise. É
possı́vel também a observação direta de defeitos bem como a determinação do tamanho e
2
Piezoeletricidade é a capacidade apresentada por alguns materiais de produzir uma corrente elétrica quando
submetido a uma tensão mecânica ou apresentar pequenas variações de volume quando lhe é aplicado uma
diferença de potencial.
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Fig. 10: Imagem de uma cadeia atômica de átomos de césio (em vermelho) em forma de zig-zag sobre
uma superfı́cie de arseneto de gálio (em azul).
conformação de moléculas e agregados sobre uma superfı́cie. A figura 10 mostra uma única
cadeia de átomos de césio (em vermelho) sobre uma superfı́cie de arseneto de gálio (em azul).
Além de fornecer imagens com resolução atômica, O STM permite a manipulação de átomos
de modo controlado, o que é fundamental para a emergência da nanotecnologia. A figura 11
mostra uma imagem de 48 átomos de ferro adsorvidos numa superfı́cie de cobre formando um
“curral quântico”. As ondas estacionárias dentro do curral são formadas pelos elétrons da
superfı́cie do cobre e correspondem à densidade de estados eletrônicos de um gás de elétrons
bidimensional. Essas ondulações mostram de forma clara a natureza ondulatória dos elétrons.
O curral tem cerca de 14,3 nm de diâmetro.
A figura 12 mostra um exemplo notável de manipulação atômica. Átomos de ferro são
adsorvidos de forma aleatória sobre uma superfı́cie de cobre a uma temperatura muito baixa
(4 K). Se a ponta for colocada diretamente sobre um átomo adsorvido, a força atrativa entre
ambos pode ser aumentada ou diminuı́da pela variação da corrente de tunelamento. Desse
modo, é possı́vel ”colar” um átomo à ponta e transportá-lo pela superfı́cie. Ao atingir uma
posição desejada, diminui-se a corrente de tunelamento e o átomo de ferro abandona a ponta
exatamente no local desejado. Mais uma vez observa-se claramente a formação de ondulações
no interior do curral quântico.
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Fig. 11: Curral quântico formado por 48 átomos de ferro (Fe) adsorvidos sobre uma superfı́cie de cobre
(Cu). Fonte: http://www.almaden.ibm.com/vis/stm/stm.html.
Fig.
12:
Formação
de
um
curral
quântico
utilizando
o
STM.
Fonte:
http://domino.watson.ibm.com/comm/pr.nsf/pages/rscd.stm-picc.html.
A capacidade, proporcionada pelo STM, de manipular átomos abre novas possibilidades
tecnológicas e cientı́ficas antes inimagináveis.
Podemos agora alterar ou construir novas
moléculas átomo por átomo bem como dispositivos diversos como circuitos integrados e materiais biomédicos para desempenharem funções especı́ficas.
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Efeito Túnel ...
CONCLUSÕES
Neste trabalho procuramos descrever de forma elementar o funcionamento de microscópios
que apresentam resolução em escala atômica e que tem como fenômeno fı́sico fundamental o
tunelamento de elétrons. Esse efeito é uma manifestação do comportamento ondulatório dos
objetos quânticos e é caracterizado pelo comprimento de onda de de Broglie.
Atualmente há disponı́veis outros microscópios que também apresentam resolução atômica.
Podemos citar como exemplo, o Microscópio Eletrônico de Alta Resolução (HREM - da sigla
em inglês High Resolution Electron Microscope) e o Microscópio de Força Atômica (AFM da sigla Atomic Force Microscope). Contudo, esses aparelhos não têm como fenômeno fı́sico
fundamental o efeito túnel.
Rigorosamente o FEM não apresenta resolução atômica e, portanto, não é possı́vel obter
imagens de átomos individuais com esse aparelho. Por sua vez, o STM apresenta grandes
vantagens em comparação com o FIM. O STM não necessita de alto vácuo para operar e a
corrente de tunelamento pode ser obtida com uma pequena diferença de potencial, além da sua
capacidade de manipular átomos e moléculas. Por essas razões há um predomı́nio do STM nos
centros de pesquisas. No Brasil há várias instituições que utilizam esse equipamento, entre as
quais podemos citar a UNICAMP, a UFMG, e o INMETRO, onde são desenvolvidas pesquisas
tanto do ponto de vista tecnológico quanto do ponto de vista de ciência básica.
VII.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 - H. Moysés Nussenzveig, Curso de Fı́sica Básica 4: Ótica, Relatividade, Fı́sica Quântica.
Editora Edgar Blücher, (2002).
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3 - R. H. Fowler and L. W. Nordheim, Proc. Roy. Soc. Lond. A119, 173 (1928).
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5 - Caio Mário Castro de Castilho, Rev. Bras. Ens. Fis. 25, 364 (2003).
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(2005).
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10 - G. Binning, H. Rohrer, Ch. Gerber, E. Weibel, Phys. Rev. Lett. 49, 57 (1982).
11- G. Binning, H. Rohrer, Ch. Gerber, E. Weibel, Phys. Rev. Lett. 50, 120 (1983).
SOBRE OS AUTORES Antônio Vieira de Andrade-Neto - Doutor em Fı́sica pela UNICAMP, é Professor Adjunto do
Departamento de Fı́sica da UEFS.
e-mail: [email protected]
Ariel Almeida Abreu Silva - Licenciando em Fı́sica pela UEFS.
e-mail: [email protected]
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