Êxodo ontem e hoje
Transcrição
Êxodo ontem e hoje
PNV 337 Êxodo ontem e hoje Maria Angélica Bragança Boschiglia São Leopoldo/RS 2016 © Centro de Estudos Bíblicos Rua João Batista de Freitas, 558 B. Scharlau – Caixa Postal 1051 93121-970 – São Leopoldo/RS Fone: (51) 3568-2560 Fax: (51) 3568-1113 [email protected] www.cebi.org.br Série: A Palavra na Vida – Nº 337 – 2016 Título: Êxodo ontem e hoje Autora: Maria Angélica Bragança Boschiglia Revisão ortográfica: Isaque Gomes Correa Capa: Rodrigo Fagundes Imagem da capa por: darknoise, disponível em visualhunt.com Editoração: Rafael Tarcísio Forneck ISBN: 978-85-7733-252-6 Maria Angélica Bragança Boschiglia, mineira de Coronel Fabriciano, historiadora, especialista em história do Brasil pela UFMS e em Assessoria Bíblica pela Faculdades EST. Participou de movimentos sindicais, movimentos populares e Comunidades Eclesiais de Base – CEBs em Minas Gerais e no Pará. Atualmente reside no município de Dourados, Mato Grosso do Sul. É integrante do conselho e assessora estadual do CEBI-MS. Sumário Apresentação.......................................................................................5 Introdução...........................................................................................7 O êxodo na Bíblia 1 Um Olhar para o Êxodo..................................................................... 8 2 Qual a Real Identidade do Deus do Êxodo Iahweh? ......................... 9 3 Quando Foi Escrito o Capítulo 3 do Êxodo? .................................... 10 3.1 Um Pouco da História dos Profetas............................................. 10 4 Os Profetas e o Êxodo........................................................................ 13 O êxodo na Vida 1 Mato Grosso do Sul – Como Começou a Luta pela Terra................. 16 2 Igreja é Povo que se Organiza........................................................... 18 3 Organizar para Avançar...................................................................... 20 4 Uma Terra Desocupada...................................................................... 21 5 Ameaças, Conflitos, Negociações...................................................... 24 6 O Despejo: “Um Campo de Guerra”. Acampamento Vila São Pedro.27 7 Conclusão da Luta – Assentamento Padroeira do Brasil................... 29 O êxodo da Bíblia experimentado na vida 1 A Identidade de Deus Experimentada pelos Sem Terra..................... 31 2 A Tomada de Consciência e o Processo de Saída para a Ocupação........ 32 PNV 337 3 3 Paralelo dos Elementos Marcantes da Trajetória dos Sem Terra e do Êxodo................................................................................................. 33 3.1 O Monte...................................................................................... 33 3.2 A Sarça........................................................................................ 34 3.3 A Experiência do Deserto através da Travessia do Rio dos Pássaros.35 3.4 Os Profetas de Hoje a Serviço da Vida....................................... 36 4 Comparando Histórias....................................................................... 38 Referências...........................................................................................40 4 PNV 337 Apresentação Com muito gosto acompanhei a produção do presente trabalho. Trata-se de um texto que busca fazer com que a Palavra do Êxodo, de mais de 3 mil anos atrás, se faça vida concreta na história e na luta dos trabalhadores rurais da Gleba Santa Idalina, no Mato Grosso do Sul. Afinal, é para isso que servem os estudos bíblicos: fazer com que a memória da história da salvação de ontem se faça viva e real para que, hoje também, nossa história continue sendo de salvação, experiência viva de um Deus que conosco caminha e que nos envia para a liberdade dos pobres e oprimidos. É isso que fez Maria Angélica Bragança Boschiglia, cujo objetivo primeiro não foi o estudo do texto bíblico, e sim “o interesse de resgatar a experiência de luta da primeira ocupação pelo direito da terra em Mato Grosso do Sul, no município de Ivinhema, em abril de 1984”. Aí ela resgatou “como a experiência do Êxodo permeou essa luta, fortalecendo a caminhada no processo de preparação, ocupação e despejo”. Este trabalho é fruto de uma interação muito bem articulada entre a exegese, o que a palavra quis dizer quando foi escrita, e a hermenêutica, o que a palavra nos diz hoje. Através de uma simples e, ao mesmo tempo, sólida exegese, o texto aprofunda o significado originário do paradigma profético, guardado sobretudo nas palavras do capítulo terceiro do Êxodo. Este trabalho exegético faz emergir com clareza a identidade de quem é o nosso Deus, onde ele está e o que quer do seu povo: uma memória que perpassou gerações, guardada e anunciada pelos profetas, feita chave de interpretação de todos os momentos da história do povo de Deus. PNV 337 5 Com uma narrativa envolvente, Angélica nos leva, num segundo momento e através de vários testemunhos, a conhecer a luta dura e sofrida pela terra em um estado que, hoje também, continua sofrendo violência e abusos contra os trabalhadores e os povos originários. Sobressai a memória de uma igreja comprometida com a vida dos pequenos e que se fez presente, em atos e palavras, em defesa do direito e contra todos os abusos dos poderosos. A história da Gleba Santa Idalina, sua conquista, seus percalços, suas dores e alegrias, nos fazem ver a realidade de uma luta que precisa continuar, tão atual que é, mesmo depois de mais de trinta anos. A hermenêutica atravessa todo o terceiro capítulo: um ensaio interessante de como a palavra, hoje, fala aos corações dos camponeses que lutaram na Gleba Santa Idalina. Como esta palavra ajuda a formar consciências, a construir unidade, a marcar a identidade e os rumos da luta. O diálogo e a interação permanente entre o hoje e o ontem, a partir dos elementos simbólicos mais importantes – o monte, a sarça e o deserto – é um exemplo bonito de como a história dos Sem Terra do Mato Grosso do Sul é história da salvação e como ela pode ser um paradigma para a luta atual em defesa dos povos indígenas diante da truculência dos fazendeiros e da omissão covarde e conivente dos poderes públicos. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), objeto atual de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) desmoralizadora, continuam mostrando a atualidade e a força desta Palavra. Que as igrejas todas e como um todo sejam o sacramento desta liberdade. Só para isso vale a pena ler este texto. Sandro Gallazzi 6 PNV 337 Introdução O estudo teológico e bíblico do Êxodo estabelece um elo entre o Deus presente na vida dos hebreus no Egito com o Deus experimentado na história de luta dos trabalhadores rurais Sem Terra que ocuparam a Gleba Santa Idalina. O Êxodo é fonte de memória de libertação, e a Bíblia, em diversos livros, comprova esse fato. É proposta deste trabalho entender, no primeiro capítulo, o Êxodo como ponto central da Bíblia; a identidade do Deus do Êxodo Iahweh: o Deus que ouve o clamor; o contexto histórico em que o capítulo 3 do Êxodo foi escrito; e a releitura da memória do Êxodo pelos profetas. Em seguida, no capítulo dois, busca-se refletir sobre alguns aspectos do processo de formação e ocupação das terras do Mato Grosso do Sul; as mudanças ocorridas no jeito de ser Igreja na América Latina, pós-Concílio Vaticano II; o processo de organização dos Sem Terra no Mato Grosso do Sul; a descrição da preparação, ocupação e resistência dos trabalhadores Sem Terra na luta pela Gleba Santa Idalina. Já no capítulo terceiro, procura-se compreender a identidade de Deus experimentada pelos Sem Terra, traçando um paralelo do que foram, para os Trabalhadores Rurais no processo de Ocupação, o monte, a sarça ardente, o deserto e os profetas. Por fim, faz-se a comparação entre a história do povo no Egito com a história dos Trabalhadores Sem Terra desta ocupação, na luta por uma vida mais digna e pelo direito à terra bem como por condições de nela produzir e viver. PNV 337 7 O êxodo na Bíblia 1 Um Olhar para o Êxodo O Êxodo assume tamanho significado na vida do povo de Deus porque nele se encontram: a mística profética, a memória dos antepassados, pastores e lavradores, a experiência da opressão que continua sendo vivenciada dentro do projeto de sociedade em que vivemos. O Êxodo, como experiência de Deus, continua sendo, para os cristãos, a grande referência de presença de um Deus que desce no meio dos pobres. Diversas releituras sobre o Êxodo confirmam o seu papel de elo que molda toda Bíblia. Gianfranco Ravasi, em seu livro Êxodo, faz citação ao estudioso do antigo Testamento M. Noth, onde se define o Êxodo como sendo a forma mais original do povo de Israel confessar a sua fé (RAVASI, 1985, p. 7). Para J. Severino Croatto, o Êxodo vai ser o acontecimento-chave para a fé de Israel (CROATTO, 1989, p. 14); é o acontecimento central para entender as tradições religiosas e os livros sagrados. Já na visão de Milton Schwantes, o Êxodo é experiência fundante: libertar-se da escravidão para os hebreus torna-se o elemento maior na confissão de fé (SCHWANTES, 1988, p. 9-18). Carlos Mesters escreve ser o Êxodo a raiz dos salmos enquanto Sandro Gallazzi afirma que no “Êxodo 3 está gravada a memória teológica dos pobres, a experiência de Deus feita pelos oprimidos” (GALLAZZI, 1988, p. 69). Lucia Weiler, no texto Êxodo de Jesus: Releitura cristã do Êxodo (WEILER, 2014, s/p.), apresenta a Ressurreição como o último e definitivo Êxodo: é passagem da morte para a vida, assim como a saída do Egito representou a passagem da escravidão para a libertação. Jesus apresenta 8 PNV 337 uma nova Lei (Mt 5-7), alimenta-nos com o pão da vida – é o novo maná (Jo 6, 48-51), que dá vida para sempre. A Páscoa de Jesus Cristo completa definitivamente a Aliança abrindo passagem para o Novo Povo de Deus (cf. Ex 19, 5-6; 1Pd 2, 9-10). 2 Qual a Real Identidade do Deus do Êxodo Iahweh? “Deus falou a Moisés e lhe disse: ‘Eu sou Iahweh, apareci a Abraão, a Isaac e a Jacó como El Shaddai; mas meu nome, Iahweh, não lhes fiz conhecer’” (cf. Ex 6,2-3). Além disso, Iahweh continua: “E ouvi os gemidos dos israelitas aos quais os egípcios escravizavam, e me lembrei da minha aliança” (cf. Ex 6,5). A novidade do conhecimento de Deus, como Iahweh, se dá em uma situação de extrema opressão. Deus não quer a opressão; “e os israelitas, gemendo sob o peso da servidão, gritaram; e do fundo da servidão o seu clamor subiu até Deus” (cf. Ex 2, 23). Esse conhecimento de Deus, de forma mais profunda, é de um Deus que vai contra as estruturas de opressão, um Deus que não está atrelado ao Estado, às instituições e não apoia o sofrimento, a submissão e opressão (GALLAZZI, 1988, p. 69). Moisés é o intérprete da revelação divina ao povo. Este povo começa a não aceitar facilmente a sua condição de escravo, e clama. Ele percebe a necessidade do confronto, passando a defender seus irmãos hebreus maltratados pelos egípcios. No entanto, a ação impensada e violenta obriga Moisés a fugir; ele vai para a região de Madiã. Em Madiã, Moisés encontra Iahweh. O capítulo 3 do Êxodo vai apresentar três aspectos da identidade de Iahweh. O primeiro apresenta uma concepção de um Deus que vê, ouve e conhece: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa de seus opressores; pois eu conheço as suas angústias” (cf. Ex 3, 7). Quando o povo oprimido grita testemunhando sua impotência frente à opressão, Deus responde a este grito. Ouve, vê, conhece, lembra. Somente é possível conhecer a Deus quando se está comprometido inteiramente com a causa do oprimido. PNV 337 9 O segundo aspecto da identidade de Iahweh apresenta um Deus que toma o lado dos oprimidos e assume o conflito: “Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios [...]” (cf. Ex 3, 8). Nesse texto, o autor quer reforçar, em seu tema, que Deus é presença viva, pois Ele responde ao clamor. Moisés entende quem é esse Deus clamado e de que lado Ele está. O Deus que estava presente na vida de seus pais quando viviam em pequenos grupos, o Deus de seus antepassados, agora assume a dor de um grupo maior, de todo o sofrido, de todo o explorado, de todo o pobre que clama. Sandro Gallazzi e Ana Maria definem Êxodo 3 como um profetismo camponês, onde a experiência de Deus feita pelos oprimidos acontece de fato. Finalmente, o terceiro aspecto apresenta um Deus que envia. Iahweh nos faz sujeitos no enfrentamento do poder. No silêncio das montanhas e na sarça que pega fogo, é um outro jeito de ver Deus; é um intenso chamado difícil de resistir; queima no coração que incomoda (cf. Ex 3,11-13). Iahweh é um Deus que investe e acredita no potencial da pessoa humana. Ele envia Moisés: “Vá. Eu envio você ao Faraó para tirar do Egito o meu povo, os filhos de Israel” (cf. Ex 3,10). O medo que Moisés apresenta é o receio do povo que está anestesiado pelo sofrimento, alienado pela magia dos poderosos que apresentam um deus conivente com a opressão, e, Moisés se sente impotente. “Eu estou contigo não tenha medo” (cf. Ex 3,12). A resposta de Deus é ouvida quando nos colocamos a serviço do outro, na solidariedade do pobre com o pobre. Não existe magia nesse procedimento de Deus; existe uma experiência particular e profunda dentro da pessoa que se coloca a serviço. 3 Quando foi Escrito o Capítulo 3 do Êxodo? 3.1 Um Pouco da História dos Profetas Depois da monarquia de Salomão, o reino se dividiu em dois: o Reino de Judá, ao sul, e o Reino de Israel, ao norte. Houve em Israel um intenso movimento profético em defesa dos oprimidos e contra os abusos dos 10 PNV 337