A RELIGIÃO TRADICIONAL AFRICANA E O DIALOGO INTER

Transcrição

A RELIGIÃO TRADICIONAL AFRICANA E O DIALOGO INTER
A RELIGIÃO TRADICIONAL AFRICANA
INTERRELIGIOUS DIALOGUE
DIALOGO INETERRELIGIOSO
Our fist task en approaching another people,
another culture, another religion,
is to take off our shoes,
for the place we are approaching
is holy ground.
Else we may find ourselves
treading on another’s dream.
More serious still,
we may forget that God was there
before our arrival.
A nossa primeira tarefa
ao aproximar-nos de um outro povo,
de uma outra cultura, uma outra Religião,
é tirarmos os nossos sapatos,
porque o terreno que estamos a pisar
é uma terra santa!
Mais: podemos encontrar-nos a passar por
cima do sonho de um outro!
Muito mais sério ainda:
Podemos esquecer de que
antes da nossa chegada,
Deus já lá estava!
Author unknown
Autor Desconhecido
INTRODUÇÃO
Tratar da Religião Tradicional Africana ( RTA) é tratar de um tema bastante
recente, por isso mesmo não muito amadurecido.
A problemática da RTA carrega consigo as mesmas interrogações que a cultura
africana em geral carrega, uma vez que cultura e religião em África vão de mãos
dadas. Existe uma coisa que se chame cultura africana, tendo em conta a
diversidade do mosaico cultural africano, ou devemos falar de culturas africanas, no
plural? Consequentemente temos de falar da RTA ou das RTAS?
Muitas Revistas, sobretudo as missionárias, tratam deste fenómeno no plural.
Talvez porque as fontes de informação em geral são trabalhos de etnólogos,
especializados num determinado povo ou área cultural concreta, como exige a
ciência da Etnologia. No entanto, não deixa de haver africanistas ocidentais que se
aventuram em estudos comparativos entre as várias monografias em vista de uma
síntese mais ou menos bem sucedida. Seja como for os Africanos não têm dúvida de
que o assunto deve ser tratado no singular.
Outra problemática em relação à RTA é o próprio nome que recebeu ao longo da
História. Peter Sarpong faz um inventário crítico dos nomes pelos quais a RTA foi
conhecida: Paganismo, no duplo sentido de rural e não - cristão, Feiticismo.
Animismo, Idolatria, Religião primitiva, religião nativa, Politeísmo, Totemismo,
adoração dos Antepassados. Estas designações são fruto de observações rápidas,
generalizadas e parceladas. Não é minha intenção demorar-me nestas designações,
mostrando o significado de cada uma e os seus limites de compreensão. Seja como
for, qualquer dos nomes, mesmo o da RTA, implica um modo de compreender o
fenómeno religioso entre os Africanos.
MUDANÇA DE ORIENTAÇÃO
À medida em que os Africanos entravam no mundo da intelectualidade ocidental
através das Letras mais ou menos aprofundadas, “acordavam”, pouco a pouco, à
consciência do próprio ser e começavam, ainda que timidamente, a avaliar-se e a
reconhecer-se como sujeitos dignos de figurar na “História do Mundo”.
O Movimento da Negritude, lançado por Senghor e seus companheiros, seguido das
reivindicações ao direito às Independências, lá para os anos 50-60, foram uma
grande alavanca no processo do despertar dessa consciência do próprio ser.
O livro “Dês Prêtres Noirs s’interrogent”foi, na Igreja Católica, um começo tímido,
como o mostra o próprio título e o estilo dos artigos, mas significativo. Começaram a
surgir revistas e escritos, tanto de missionários como de nativos de África, sobre os
povos africanos e suas culturas, numa linha de informação e formação mais positiva
que negativa.
Por outro lado, as Encíclicas missionárias de Bento XV ( Maximum Illud) e de
PioXII( Evangelii Praecones, Fidei Donum), insistindo na necessidade do clero
indígena e no direito dos Povos africanos à Independência estavam a contribuir
grandemente no lançamento das bases de uma África que se ergue e se põe de pé
para andar com os próprios pés.
O Vaticano II, com o seu arrojado exame de consciência sobre a natureza e missão
da Igreja, bem como sobre o seu relacionamento com o Mundo e outras religiões,
abriu caminho para um enraizamento da fé cristã nas diferentes culturas do
Mundo. Foi um grande encorajamento aos ainda muito poucos indígenas com
responsabilidades pastorais e intelectuais na Igreja para começarem a se
interrogarem muito seriamente sobre o lugar de África na Igreja, sobre o papel da
cultura africana no Mundo.
Paulo VI, na esteira dos seus Predecessores e do Vaticano II, tirou todo o tipo de
dúvida e hesitação que os Africanos ainda pudessem ter sobre a validade da sua
cultura e a importância do seu lugar na missão evangelizadora da Igreja.
Na “Africae Terrarum”, mensagem que dirigiu para a África, reconhece claramente
a RTA, ainda que não use o termo. Reconhece que a África tem “uma visão
espiritual da vida como fundamento geral e constante da Tradição Africana(n.8), o
respeito pela dignidade da pessoa humana (n.9), o sentido da família(n.10), o
respeito pela função e autoridade paternas(n.11), a participação comunitária
(n.12)”. “A Igreja considera com muito respeito os valores morais e religiosos não só
pelo seu significado, mas também porque vê neles a base providencial sobre que
pode transmitir a mensagem evangélica”.
Dois anos depois, em Kampala, capital da Uganda, dirige-se aos Bispos Africanos aí
reunidos para fundarem o Simpósio das Conferências Episcopais de África e
Madagáscar (SCEAM), nestes termos:
“Não temos outro desejo que não seja o de fomentar o que vós mesmos já sois:
cristãos e africanos…
Vós Africanos sois já missionários de vós mesmos. A Igreja de Cristo está, na
verdade, implantada nesta bendita terra. Missionários de vós próprios quer dizer:
vós, os Africanos, deveis prosseguir na construção da Igreja neste Continente… Vós
possuis valores humanos e formas peculiares de cultura que podem chegar a um
aperfeiçoamento capaz de encontrar no Cristianismo e para o Cristianismo uma
plenitude genuína e superior e, portanto, capaz de ter uma vivência de expressão
própria e verdadeiramente africana… vós podeis permanecer sinceramente
Africanos!”
Se estas palavras, pronunciadas no dia 31 de Julho de 1969, 4 anos depois de fechar
o Vaticano II, nos tiram qualquer tipo de dúvida e hesitação quanto ao lugar e à
missão de África na Igreja, são, no entanto, uma responsabilidade de grande
envergadura. Isto significava na altura dos ventos das Independências que se, por
qualquer hipótese, os missionários tivessem que deixar o Continente Africano e a
Igreja viesse a desaparecer do Continente, a culpa seria toda dos Africanos que
tinham a abraçado a fé cristã. Foi exactamente o sentimento que nós, os antigos
combatentes desta Igreja de Moçambique ( uns 34 Padres e 120 Religiosas , homens
e mulheres à busca da própria identidade ), sentimos e optámos com clareza e
determinação, naquele Setembro de 1975: que a responsabilidade sobre a história e
o futuro da Igreja em Moçambique recaíria sobre os nossos ombros, se o
Comunismo fizesse desaparecer a Igreja, como de facto era a sua pretensão
João Paulo II caminhou na mesma direcção aquando da abertura do Sínodo
Africano, na Basílica de São Pedro, no dia 10 de Abril de 1994: “Hoje o Bispo de
Roma saúda a Igreja que está em África…A Igreja de Roma saúda os seu povos,
especialmente as suas tradições religiosas onde é expressa a sua ardente busca do
Único Deus através da veneração dos seus Antepassados. Estas Tradições são, ainda
hoje, herança da maioria dos habitantes de África. São tradições que são abertas ao
Evangelho, abertas à Verdade. A Igreja que neste momento fala pela minha boca
regozija-se com o facto de que os povos de África com as suas Culturas e Tradições
vivem hoje em seus próprios Estados e Sistemas e que são soberanos no seu próprio
Continente. (n.3)
O DEUS DA RELIGÃO TRADICIONAL AFRICANA
Falar da RTA é falar, sem dúvida, do Deus em que essa Religião acredita. Mas será
que haverá um Deus delineável em que os Africanos acreditam? A ausência de
sinais visíveis como sejam templos, festas imponentes, sacrifícios feitos a esse Deus,
levaram ao mundo ocidental a não encontrar a sua existência, ou , então, a
considerá-lo um Deus longínquo, ocioso, sem nenhuma relação com o mundo dos
Homens.
Mas estudos mais recentes e mais atentos ainda que não definitivos, acabaram por
revelar um Deus verdadeiramente existente, não tão longínquo como poderia
parecer à primeira vista.
A primeira grelha de leitura para uma melhor e maior compreensão do Deus do
Africano seria uma análise semântica dos nomes indígenas que se atribuem a esse
Deus em terras de África. Quanto mais exaustiva e extensiva aos vários povos
africanos fosse tal análise, maior possibilidade teríamos de designar com correcteza
o Deus dos Africanos. “A maneira como os Africanos experimentam o seu Deus é
muitas vezes retratada na linguagem que eles usam, sobretudo os nomes com que
esse deus é conhecido. Dizer com os Yoruba Olodumare, o Todo-Poderoso é dizer
que ele Oluwa, Senhor, AlgbaraGobgobo, Todo Ele cheio de Poder. Os Akan, os Ibos,
os Mendes e os Ewes têm designações semelhantes para mostrar que Deus é o
Criador, é Aquele que controla o Universo. Os Akan referem-se a ele como NyameKoropon, o Único que é Grande; os Mendes dirão Mara-Yilei, Aquele que governa o
Universo; Os Ibos chamam-no de Osabuluwa, o Senhor que sustém o Mundo.
Os Zulus têm dois nomes para o seu Deus: uMvelinquangi, Aquele que se manifesta
a si mesmo em primeiro lugar; e Unkulunkulu, o Grandíssimo, o Todo – Poderoso.
Os Bakongo dirão Mzambi-Mpungu ou Mfumu-Mzambi, para dizer que Deus é o Ser
Supremo e o Mestre da Vida.
Os Acewa do Malawi têm também vários nomes para o seu Deus: Namalenga,
Alguém que dá à luz como uma Mãe; Chauta, Alguém que dispensa chuva;
Mphambe, Trovão, sinal evidente do poder de Deus.
Através destes e de outros nomes podemos ver como é que Deus é concebido entre os
vários povos da RTA.
Talvez possamos resumir com 2 qualificativos o Deus da RTA:
1. Ele aparece como um Deus Longínquo:
“Contrariamente aos génios, os espíritos que povoam o universo africano e
representam as divindades secundárias ou os Antepassados sob uma forma
materializada, uma constatação generalizada se impõe: através da África negra ,
não existe uma representação sob a forma de pintura ou de escultura do Ser
Supremo”, afirma Marie-Viviane Tsanga Makumba, in Pour une Introduction à
l’Africanologie, p.
“Quando se pergunta a um homem do campo, as respostas impressionam pela
sua pobreza e unanimidade, observam LV Thomas e R. Luneau : “Deus está
muito longe dos homens…Ele é muito poderoso, e não podemos atingiLo…Deus tem tudo o que Ele precisa… Fora do alcance dos Homens, Deus é
invulnerável, Ele não tem, diz Dominique Nothomb, nem povo, nem família,
nem amigos. Os nomes que lhe designam insistem sobretudo no facto de Ele é o
mais elevado em dignidade.
2. Deus é um Ser Cumulado, plenificado
“O Ser Supremo cujos atributos essenciais são antiguidade e eternidade, é um Ser
plenificado que não precisa de culto celebrado pelos homens para viver.”Tsangu
Makumba, p 37
De facto, a RTA ignorou as formas habituais do culto exterior e social, e no entanto,
Ele está em toda a parte.
Apesar destas reflexões que apresentam um Deus distante e plenificado, pesquisas
mais recentes , porém, “inclinam antes a constatar que a vida concreta do Africano
está verdadeiramente imbebida duma certa presença divina… Pode-se ouvir com
muita frequência expressões como “se Deus quiser!( Makumba,38.
É preciso acrescentar que essa presença omnipresente de Deus pode ser detectada
através dos nomes que se dão as pessoas; de facto, muitos Africanos têm nomes
teóforos. Mas mesmo muito daqueles que aparentemente não o são, no fundo
recordam uma intervenção de Deus
Uma segunda grelha de leitura que nos poderia revelar um pouco mais sobre o deus
da RTA seria enveredar pelo caminho da exploração dos mitos.
Sabemos que a função do mito é de nos revelar as origens das coisas, i.e., explicarnos o porque é que as coisas estão como elas estão hoje. Assim, os mitos da Criação
do Homem querem dar-nos conta da actual condição humana: um ser sexuado,
social, mortal.
A dificuldade de interpretação veria talvez do desconhecimento do meio ambiente,
pois os mitos usam a linguagem, os símbolos do povo que os inventou. A dialéctica
Vida e Morte é melhor percebida através do mitos. O Mito da Primeira Morte está
para nos explicar e justificar porque é que existe hoje a Morte entre os homens.
Uma possível terceira grelha para estudar o Deus da RTA seria enveredar por uma
análise sistemática das Orações que se usam no culto aos Antepassados.
Poderíamos, então, ver como é que os Africanos vêm e situam os seus Antepassados
em relação a Deus.
OS ANTEPASSADOS NO CENTRO DA RTA
Ao falar da RTA não se pode deixar de falar dos Antepassados. O Culto aos
Antepassados foi a primeira coisa que viram, tanto os primeiros missionários como
os primeiros antropólogos. E com os escassos instrumentos de análise de que vinham
munidos, outra coisa não viram senão adoração. Daí terem classificado o fenómeno
religioso em África de ancestrolatria, i.e., adoração dos Antepassados ( Ancestor
worship) e a consequência imediata foi a de apelidar a RTA de idolatria.
Muitos pesquisadores estão de acordo em dizer que não é nada fácil separar, na
África negra, o aspecto religioso do aspecto cultural, chegando mesmo a chamaro
Africano de “incuràvelmente religioso”.
Nessa mesma linha, Tsangu Makumba faz questão de notar a receptividade religiosa
do negro-Africano: a RTA não é fechada, antes é aberta a outras formas de religião,
e por isso mesmo, muito vulnerável.
Mas para a RTA ser parte integrante da cultura africana não é menor o medo de
um sincretismo. Daí a resistência durante muito tempo à onda invadente da
Inculturação. Acredito que uma das manifestações desse medo foi ver a RTA
sempre no plural, para, consequentemente recusar a possibilidade de uma
verdadeira inculturação. Mas hoje em dia já não ‘é possível pôr honestamente em
questão a necessidade da inculturação sem se pôr em questão a si mesmo. A
necessidade e a urgência da inculturação é um dado adquirido na Igreja de Cristo
hoje.
Quanto a mim é preciso avançar um outro dado: os Antepassados estão no centro da
RTA. Quando tivermos adquirido também este dado, acredito que estaremos no
caminho correcto do Diálogo interreligioso com a RTA.
Não vou alongar-me aqui naquilo que entendo ser o lugar, a figura e a função dos
Antepassados na RTA. Se me fosse permitido resumir, eu diria com a Tsangu
Makumba:
“Os Antepassados são as sombras das pessoas históricas que se não confundem,
como as divindades auxiliares, com as suas imagens. São os defuntos do clã,
chamados Bakulu. Levaram um vida irrepreensível nesta terra, abstendo-se da
licenciosidade, da “cizânia”( discórdia) e sobretudo da feitiçaria…”( p. 59 ) Vivem
numa aldeia de beatitude, algures fora da aldeia dos vivos, diferentemente
localizado conforme o meio ambiente de cada povo…
Existe uma liturgia cujo esquema é bem claro e descrito pela Tsangu Makumba ( p.
63-68) , como por Adriano Langa ( Cfr. Questões Cristãs à Religião Tradicional
Africana, Editorial Franciscana, Braga, 1984, p.68-90).
Existem, pois, critérios claros de quem pode ser considerado Antepassado( Cfr.
Ezequiel Pedro Gwembe, Os Antepassados e Jesus Cristo, in Os Antepassados e sua
veneração, Actas da Segunda Semana Teológica da Beira, 3-8 Fevereiro de 1997, p.
139-142).
Existe uma distinção clara entre os vários espíritos que povoam o universo africano
e os Antepassados.
Mas aquilo que mais me interessa neste momento é clarificar o lugar dos
Antepassados, não tanto na RTA, que é claro, mas vistos à luz da fé cristã.
A opinião comum na Igreja é que os Antepassados se devem comparar com os
Santos e com eles devem ser, mais ou menos, equiparados. Pessoalmente eu tenho
muita dificuldade em aceitar tal opinião. Estou mais inclinado a equiparar, em
termos de equivaler, os Antepassados a Jesus Cristo. E o meu raciocínio é muito
simples: no centro da RTA estão os Antepassados; ora no centro da Fé Cristã( do
Cristianismo está Cristo (e não os Santos); logo, os Antepassados se devem
comparar com Cristo e não com os Santos. Ninguém duvida que os Santos não estão
no centro da Fé Cristã, (do Cristianismo). Muitos protestantes têm dificuldade com
o culto dos Santos , mas não com Jesus Cristo. Mesmo para os Católicos, eles não
estão no centro da sua fé. Pode um cristão não conhecer este ou aquele Santo, mas
ninguém pode desconhecer Jesus Cristo. Dizer que não estão no centro do culto
cristão não quer dizer que os Santos não contam para Fé dos Cristãos. Quero
simplesmente dizer que eu posso prescindir deles, mas nunca de Jesus Cristo.
A noção de Mediação vem corroborar esta minha hipótese que se torna cada dia
mais em minha tese. Está fora de dúvida que na Religião Cristã Cristo é o único
Mediador entre Deus e os Homens, como o demonstram a Bíblia e a Liturgia cristã.
Resumindo: se quisermos compreender cabalmente os Antepassados em termos de
Diálogo interreligioso é para Cristo que nos devemos voltar e não para os Santos.
Propus esta tese aos Bispos da IMBISA em Pretória, Africa do Sul, em Dezembro de
1993, na sua Reunião Preparatória para o Sínodo Africano a realizar-se em Roma
no Ano seguinte. As reacções da parte dos Bispos foram diversificadas: admiração,
espanto, cepticismo, regozijo. Em todo o caso, o resultado foi que os Bispos da
IMBISA tomaram muito a peito a proposta dos Antepassados e dois deles lançaram
um vigoroso apelo a favor dos Antepassados durante as sessões do Sínodo Africano.
No fim das Sessões, na Elenco das Propostas apresentadas ao Santo Padre (n.37), os
Padres Sinodais pedem para que se encontre uma maneira cristã de se venerarem os
Antepassados.
Venho hoje uma vez mais propor a mesma ideia: não é possível entabular um
diálogo interreligioso com a RTA sem engajar-se num verdadeiro diálogo com os
criadores da RTA, os Antepassados, tão vivos hoje quanto estiveram no seu tempo.
Estou a dizer que uma profunda Ancestrolagia e uma profunda Cristologia poderão
iluminar-se mutuamente.
Nesta linha já surgiram estudos sérios que apontam Cristo como o Antepassado por
excelência.
Assim, no livro “Christologie Africaine”, entre os vários títulos dados a Cristo está
também o de Antepassado. Bénézet Bujo nos seus estudos de Ética Cristã chama a
Cristo de Proto-Antepassado ; e Charles Nyamiti intitulou o seu livro de “Christ as
our Ancestor”.
Ao falar dos Antepassados num frutuoso debate interreligioso seria muito
importante distinguir os Antepassados dos diversos espíritos que povoam o
Universo africano.
Também pensar que os espíritos africanos vão desaparecer com o avanço da
civilização, é alimentar uma ilusão perigosa, como ainda hoje nos mostra a realidade
e apelidar de pura imaginação as várias manifestações espirituais, pode ser outra
ilusão. O sucesso de certas Igrejas Independentes não estará em lidar eficazmente
com tais fenómenos?
O HOMEM/A MULHER DE OLHAR PENETRANTE
Ao falarmos da RTA não podemos deixar de falar daqueles homens e mulheres que
na Sociedade africana são mensageiros do desconhecido.
A sua importância social é inegável e a sua variedade não é menos importante. Não
vou demorar-me em analisá-los. Mas pode ser importante tentar apontar os ramos
mais importantes. E a sua existência explica-se pela existência do mal, da doença, da
morte. O termo curandeiro é um termo genérico, capaz de os englobar a todos, mas
também capaz de gerar confusões.
Há de facto Curandeiros que se dedicam a curar os vários males físicos, usando do
que a Natureza oferece: ervas, folhas, raízes. Os antropólogos da Escola inglesa
preferem chamá-los de herbalistas. A sua função é essencialmente o exercício de
uma profissão, geralmente aprendida através de um longo acompanhar a um ou
outro perito nas suas andanças pelo mato à procura dos remédios que curam esta ou
aquela doença. Há quem se especialize numa determinada doença ou planta e
outros em outra doença com o seu remédio próprio. Geralmente exercem a sua
profissão à luz do dia e, vezes sem conta, encontramo-los agachados numa esquina
dos nossos mercados, oferecendo conselhos e serviços das suas raízes. A estes o nome
de curandeiros fica-lhes bem, dado que a sua preocupação primária é curar
doenças, facilmente diagnosticáveis.
Segue depois a categoria dos chamados Adivinhos, também eles com uma variedade
de espécies não pequena, conforme as técnicas que usam. Uma categoria de
adivinhos é daqueles que depois de uma longa e penosa iniciação junto de um
Mestre são capazes de “lerem” e descodificarem as mensagens do Desconhecido. As
técnicas que usam são variadas.
Há quem saiba deitar ossículos e, conforme a posição que cada um deles toma, ele
empreende a viagem da descodificação da mensagem. Eles estão convencidos de que
“todas as coisas falam”, nós é que perdemos a linguagem das coisas, linguagem essa
que ainda se pode aprender. Assim, a longa e penosa iniciação junto do Mestre foi
uma longa e penosa viagem de retorno às origens das coisas, quando o Homem
ainda comunicava com os Animais e com as coisas, lá onde os sons, as cores, as
posições, as coisas, é tudo linguagem. De facto, o Adivinho não adivinha; ele “vê””,
ele “lê”, e interpreta o Desconhecido. Vê o que os outros não vêem. Eles penetraram
na Floresta dos Símbolos e conseguem interpretar os Símbolos.
Uma variante deste Adivinhos são “Aqueles que vêem na noite”. Alguns usam
simples material como Whisky, água, velas, um Livro Sagrado( Bíblia ou Alcorão).
A estas duas categorias de adivinhos eu prefiro chamá-los de “”Homens e Mulheres
de olhar penetrante, à maneira de Balãao da Bíblia:
“Oráculo de Balãao, filho de Beor,
Oráculo do homem de olhar penetrante,
Oráculo daquele que escuta as palavras de Deus,
Que tem a visão de Deus,
Que se prostra, mas de olhos abertos!”(Num. 24, 3-4).
Uma última categoria de adivinhos são os que os antropólogos chama de “Médium”.
Eles são geralmente pessoas altamente sensíveis. Estes são chamados, com
propriedade de termo, de Médiuns. Através de transes, eles deixam de ser eles para,
momentaneamente, serem “casa”, habitáculo dos espíritos
que pretendem
comunicar-se com os humanos durante algum tempo e revelarem às pessoas coisas
escondidas. Na linguagem do meu povo Cewa-Angoni são os aSing’anga a mizimu,
i.e., peritos nos espíritos, quer dos vivos como dos mortos.
Resumindo, podemos dizer que estas 2 ou 3 categorias de homens e mulheres de
olhar penetrante são pessoas dotadas de uma forte personalidade e desempenham
um papel preponderante na sociedade. Eles são detentores dos códigos que
permitem decifrar as mensagens do Além que, ao fim e ao cabo, determinam o
destino dos Humanos.
Para ser homem ou mulher de olhar penetrante é preciso seguir uma longa e penosa
iniciação junto de algum mestre para habituar a própria pessoa ao convívio dos
espíritos, para se habituar à linguagem dos sonhos, para se habituar a morar na
floresta dos símbolos.
Talvez por isso mesmo que eles são obrigados a grandes jejuns e grandes
abstinências conjugais. É muito difícil que os seus casamentos durem se ambos não
embarcarem na mesma aventura mediática. Portanto, eles são ascetas por
excelência.
E místicos também! Ivar-Axel Berglund, no seu livro “Zulu Thought- Patterns”, diz
que não é raro ouvi-los rezar pela noite fora. E não podia ser de outra maneira com
homens e mulheres vocacionados a lidar com todo o tipo de espíritos, bons e maus,
dos vivos e dos mortos.
Poderíamos perguntar o que realmente se passa com o homem e a mulher de olhar
penetrante. Dominique Zahan, no seu livro “Religion, Spiritualité et Pensée
Africaines”( Payot, 1970, p.39), diz:
“Podemos admitir que, graças a um notável património hereditário ou na sequência
de repetidos exercícios seguidos, o adivinho-intérprete se encontre dotado de um
duplo particularmente rico e acordado. Graças a isto, está sensibilizado às
conjunturas a tal ponto que de alguma maneira ele adquire um dom de dupla vista,
uma aptidão do espírito a se movimentar à vontade no domínio dos significados,
uma particular acuidade no plano do discernimento, da perspicácia e da tomada de
relações entre as coisas…
O adivinho não é apenas um ser dotado de excepcionais poderes de clarividência e
pelas qualidades do seu duplo, ele é a própria mobilidade. Penetra nas coisas e nos
seres, ele é o mundo.
O duplo do “Médium”está voltado para as almas; ele se separa do Adivinho
aquando das suas viagens para tomar contacto com os verdadeiros videntes dos
homens e das coisas, os espíritos( p. 139).
“Graças às suas relações com o além, o Adivinho – mensageiro está mais próximo da
religião e da mística que o seu irmão que age através da inteligência humana”(
p.140).
Por tudo isto que acabamos de dizer, um estudo sério, digo, um diálogo religioso
sério não pode ignorar a existência e o papel do homem e da mulher de olhar
penetrante.
Este é um espaço privilegiado. E se alguém com quem se pode entrar em contacto de
diálogo é certamente o homem e a mulher de olhar penetrante. Como já disse, ele
não adivinha, ele “VÊ”, e geralmente habita no mundo dos espíritos.
INICIAÇÃO TRADICIONAL, UM ESPAÇO ONDE SE MODELA A
PERSONALIDADE DO AFRICANO
Não é sair do nosso assunto entrarmos no mundo da Escola da Iniciação tradicional
Africana.
Já me referi à realidade da permeabilidade e receptividade do Africano em termos
de religião, o que permitiu alguns, como algures dissemos, a vê-los como
“irremediavelmente religiosos”.Num diálogo religioso, o conhecimento da RTA
passa necessariamente pelos espaços iniciáticos que cada povo construiu, porque é lá
que se forja a personalidade dos membros de um grupo.
A dificuldade, como sempre, é encontrar informadores qualificados que nos possam
introduzir nesse mundo de mistérios. Talvez por isso mesmo é que “…Um Africano
adianta muito raramente a curiosidade da pesquisa de um terceiro propondo-lhe
esclarecimentos sobre problemas que ele eventualmente desejasse resolver…
O domínio religioso é, mais do que qualquer outro, tocado por esta atitude( de
reserva), porque lá, por definição, os factos são escondidos e, pela sua natureza, são
mais subtis.
E, no entanto, em África, o que está escondido é mais profundo e mais verdadeiro do
que aquilo que é mais visível…”( Zahan, D. p.87-88).
O Processo iniciático é lento e progressivo porque se trata de “uma transformação
lenta do indivíduo, como uma passagem progressiva da exterioridade para a
interioridade; ela permite ao ser humano de tomar consciência da sua
humanidade…”(p.89).
Trata-se de descer lenta e progressivamente aos infernos, às profundezas do próprio
ser, para a vida espiritual se desenvolver, se aperfeiçoar através de uma meditação
constante. A Iniciação africana se torna assim um processo de longo respiro, uma
confrontação do homem consigo mesmo, para chegar a acordar a vida real e a
aprender a mover-se entre os mil e um laços invisíveis que constitui as relações entre
os seres: Deus, os homens e as coisas.
Se é fácil erguer o mapa das iniciações tradicionais com os seus elementos, actores e
até significados, “ é impossível, no entanto, localizar a própria Iniciação, porque ela
está presente em toda a vida e se afirma como a base espiritual da alma africana”,
diz Zahan, ( p. 90).
Quem vai à Iniciação vai empreender uma viagem para se familiarizar com os
significados do próprio corpo e com o sentido que ele deve dar ao meio ambiente.
Deve aprender a linguagem original das coisas e, por isso mesmo, mais profunda até
chegar ao título de Silatigi, ao estatuto de “aquele que tem o conhecimento das coisas
de pastor e dos mistérios do mato”.
“O conhecimento relativo à estrutura do Mundo representa o objectivo da iniciação
do pastor Peul, da mesma maneira que sobre o plano pessoal, a conquista de si
mesmo( o auto - domínio e domínio da palavra, marca o termo da luta contra si
mesmo em vista do seu próprio aperfeiçoamento ( Zahan, p.96).
Apesar da diversidade de esquemas iniciáticos, o processo iniciático está destinado a
introduzir o iniciando aos seus próprios mistérios e aos mistérios do Universo.
Através dos mitos, ritos e símbolos o homem entra no processo simbólico-real da
Morte e Ressurreição da passagem do “homem velho”ao “homem novo”, pronto a
assumir as responsabilidades que a sociedade lhe quer confiar.
As experiências simbólicas do retorno ao seio materno, os encontros inesperados e
terrificantes com as máscaras, símbolos dos Antepassados, a entrada no bosque
sagrado, os duros exercícios físicos, não podem deixar o iniciando continuar o
mesmo ; eles conduzem o homem que se deixa moldar pelas práticas iniciáticas
chegar a ser dotado de qualidades particulares: alguém que particularmente se
possui a si mesmo, sempre “acordado”, `docilmente estável no registro dos homens e
mulheres amadurecidos.
O mundo iniciático é essencialmente um mundo de encontro com o sagrado, de
descida de si mesmo às profundezas do próprio ser.
É nos Ritos de Iniciação que se molda o “ubunthu”, o ser humano negro-africano.
Por isso mesmo, um diálogo interreligioso com a RTA deve interessar-se com a visão
que o homem negro-Africano tem de si mesmo.
O MUNTHU, UM SER RELACIONAL
Não é fácil saber o que o Africano pensa de si mesmo. E sendo a RTA uma religião
da oralidade, não temos textos sagrados que nos permitam decifrar a imagem que o
Homem negro-Africano faz de si mesmo.
Mas pelo facto de a religião e a cultura se interligarem em África, é uma
oportunidade para, ainda que às apalpadelas, buscarmos a imagem do munthu na
cultura que faz de si mesmo.
Os mitos da criação do homem podem revelar-nos o lugar do munthu perante o seu
Ser Supremo.
A Liturgia dos Antepassados ( Ritos e Orações) são outro espaço de pesquisa que
nos podem elucidar acerca do estatuto do ser humano em África.
As Iniciações tradicionais estão destinadas a fazer nascer o homem como ser
humano, munthu, de um determinado povo de África. Assim, uma aprofundada
análise dos Ensinamentos prodigalizados durante as Iniciações africanas, ainda que
através de mitos e ritos e símbolos, pode ajudar-nos a ver o estatuto do ser humano.
Mas também as reacções práticas do dia a dia são muito reveladoras dos valores em
que uma determinada sociedade acredita. Assim, o munthu acredita que a vida é
sagrada, daí o horror pelo aborto na Sociedade tradicional africana. Mas esse
horror está enraizado na crença de que os Antepassados reencarnam na criança que
nasce.
O munthu acredita também que a dignidade é um valor a defender. Um munthu tem
de viver com dignidade, segundo os valores que recebeu no decurso iniciático. Seria
vergonha desrespeitar tais valores.
O munthu é alguém que está consciente de que ele é ele por causa dos outros. A
relação harmoniosa com os outros deve ser o ideal de uma Sociedade em África, daí
a feitiçaria constituir uma atitude abominável; Por isso mesmo é que toda a atitude
de egoísmo e isolamento são suspeitos de serem indicativos de feitiçaria.
CONCLUSÃO
Neste breve trabalho tentei dizer que é possível e necessário o diálogo com a RTA.
Tal diálogo passa necessariamente pelo conhecimento da cultura africana, cultura
que tem espaços e pessoas que constituem o mosaico cultural africano.
Tal diálogo não pode deixar de favorecer e impulsionar o inadiável processo de
Inculturação em curso.
Ezequiel Pedro Gwembe, SJ
Centro de Nazaré, Junho de 2005
Bibliografia Sumária
ZAHAN, Dominique, Religoin, Spiritualité et Pensée Africaines, Payot, Paris, 1970
LANGA, Adriano, Questões Cristãs à Religião Tradicional Africana (
Moçambique), Editorial Franciscana, Braga, 1984.
AAVV. Réincarnation et Vie Mystique en Afrique Noire, Colloque de Strasburg(
16-18 1963) , !965.
TSANGU MAKUMBA, Marie Viviane, Pour une Introduction à l’Africanologie, Une
contribution à la psichologie culturelle de la néoafricanité, Editions Universitaires
Fribourg Suisse, 1994
Pontificium Consilium Pró Dialogo inter Religiones, l’Évangile de Jesus-Christ et la
Rencontre dês Religions Traditionelles, Actes du Colloque Théologique, Abidjan,
Côte d’Ivoire Juillet- Août, 1996 in Pró Dialogo, n.94, 1997/1

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