Iraque, miragens e ruína

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Iraque, miragens e ruína
Disciplina - História -
Iraque, miragens e ruína
História
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Postado em:23/05/2008
No quinto aniversário da guerra, governo Bush comemora os "êxitos" de sua nova estratégia, e o
declínio das pressões por uma retirada imediata. Mas o preço dos sucessos obtidos é um país
destroçado e dividido e o fim das ilusões sobre o papel "construtivo" dos EUA no Oriente Médio.
Alain Gresh "Enquanto o inimigo ainda oferecia perigo e havia trabalho a fazer, a mobilização
norte-americana e iraquiana obteve resultados que poucos teriam imaginado. [Aplausos] Quando
nos encontramos no ano passado, muitos pensavam que seria impossível conter a violência. Um
ano depois, os ataques terroristas de grande porte, as mortes civis e os massacres sectários
diminuíram. (...) [Antes], a Al-Qaeda tinha conquistado santuários em várias regiões do Iraque e
seus dirigentes propuseram uma saída segura para nossas tropas deixarem o país. Hoje, é a
Al-Qaeda que busca uma saída segura". Foi assim que o presidente George W. Bush discorreu
sobre a guerra no Iraque em seu último discurso perante o Congresso, em 28 de janeiro de 2008.
Ignorar esse pronunciamento é algo tentador. Afinal, este é um governo marcado por enganar a
opinião pública, manipular os fatos e truncar os dados. Um estudo recente confirmou que, no
período entre 11 de setembro de 2001 e o início da guerra, em março de 2003, Bush e seis de seus
colaboradores mais próximos haviam mentido 935 vezes sobre o perigo que o Iraque representava
para os Estados Unidos. [1] Desta vez, contudo, as declarações do hóspede da Casa Branca,
retomadas e amplificadas pela mídia e por certos personalidades norte- americanas, até mesmo do
Partido Democrata, parecem apoiar-se em resultados sólidos. De acordo com um relatório
importante [2], o número de civis iraquianos vítimas de morte violenta caiu de três mil em novembro
de 2006 para 700 em dezembro de 2007. No caso dos soldados da coalizão, o índice reduziu-se de
uma média de cem óbitos por mês, no fim de 2006, para cerca de vinte, um ano depois. O pico
ocorreu em maio de 2007, quando 130 militares faleceram. Os ataques de grande porte, como
carros-bomba e atentados suicidas, também diminuíram de 130, em junho, para 40, em dezembro
de 2007. Mas o número mais surpreendente está relacionado aos confrontos inter-étnicos,
essencialmente entre sunitas e xiitas: em dezembro de 2006, 2200 pessoas foram assassinadas; no
ano seguinte, registraram-se apenas 200 mortes. O sucesso levou o governo a anunciar a retirada
de cinco mil soldados norte-americanos por mês. A volta gradual para casa já começou: até julho, as
tropas devem reduzir seu efetivo de 170 mil para 130 mil. O quadro é bem diferente do visto no final
de 2006, quando a situação no Iraque parecia seriamente comprometida e a pressão da opinião
pública para uma retirada rápida era grande, como confirmou a vitória dos democratas nas eleições
congressuais de novembro. Na época, uma comissão bipartidária dirigida pelo antigo secretário de
Estado do governo Bush pai, James Baker, e por Lee Hamilton, ex-presidente da comissão de
Assuntos Externos da Câmara dos Representantes e parlamentar democrata por 34 anos, julgou de
forma severa a política de Bush filho. Eles propuseram uma mudança de rota, uma retirada
progressiva do exército norte-americano e a abertura de um diálogo com a Síria e o Irã, além de um
posicionamento sobre a questão palestina. Três movimentos principais explicam a redução da
violência: ampliação do contingente dos EUA, trégua unilateral do Exército de Mahdi e surgimento
da milícia mercenária Al-Sahwa. Porém, o presidente recusou-se a ceder. Seguiu por outro caminho,
preconizado por um relatório da fundação de direita American Enterprise Institute. Preparado pelo
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neoconservador Frederick Kagan e pelo general da reserva Jack Keane, o texto intitulado "Choosing
victory: a plan for success in Iraq" ("Escolhendo a vitória: um plano para o sucesso no Iraque"),
recomendava o envio de tropas suplementares e sua concentração na região de Bagdá, a fim de
restabelecer a ordem — o oposto da proposta da comissão Baker-Hamilton. Terá sido a melhor
escolha, como afirmou o presidente Bush em seu discurso? Sem dúvida, a chegada de 30 mil
soldados melhorou a segurança na capital. Muros foram erguidos para separar bairros sunitas e
xiitas e os atritos religiosos diminuíram proporcionalmente ao aumento dos pontos de controle.
Cerca de cem mil blocos de concreto, cravados nas vias de circulação de Bagdá e suas redondezas,
levaram à redução dos atentados. Dois outros elementos também favoreceram a diminuição da
violência no Iraque. O primeiro foi o cessar-fogo unilateral decretado por Moktada Al-Sadr em agosto
de 2007 [3]. Seu Exército de Mahdi é a mais poderosa milícia do país e representa os xiitas mais
pobres. Movido por um forte nacionalismo, uma desconfiança persistente em relação aos dirigentes
iranianos e uma inabalável hostilidade à presença norte-americana, esse cessar-fogo é
extremamente instável, uma vez que os objetivos de Moktada Al-Sadr e os dos Estados Unidos são
contraditórios. O outro fator determinante na redução dos ataques foi a aproximação entre a
comunidade sunita e os Estados Unidos. Intensificada no primeiro semestre de 2007, essa aliança
comporta duas faces: por um lado, os norte-americanos deram apoio financeiro para a união das
tribos; por outro, concluíram acordos com grupos de resistência a ocupação. O movimento, batizado
por alguns de Al-Sahwa (Despertar) e que Washington chama de maneira esdrúxula de “concerned
local citizens” (cidadãos locais preocupados), agrupa cerca de 60 mil homens armados. Diversas
razões os unificam. A primeira e principal delas é a rejeição à Al-Qaeda, ao seu extremismo e sua
vontade de impor um Estado islâmico de rigor exacerbado e pretensões mundiais. A segunda é o
contrapeso ao “perigo xiita” que a aliança tática com os Estados Unidos representa. Finalmente, o
dinheiro é um poderoso estimulante para os chefes das tribos. Ao menos por enquanto, a calma é
precária. Baseia-se em "limpezas religiosas" e na construção de muros. Muitos dos aliados
circunstanciais dos EUA rejeitam sua permanência duradoura no país. Os resultados dessa
"reviravolta" são visíveis, como relata o jornalista Patrick Cockburn: a cidade de Fallujah, "onde
muitos edifícios estão em ruínas desde que foi tomada de assalto pelos marines, em novembro de
2004, está bem mais pacífica do que há seis meses. Os combatentes da Al-Qaeda que a
dominaram foram embora, ou procuram não chamar a atenção [4]". A união insólita, porém, continua
frágil: as organizações de resistência associadas aos Estados Unidos são profundamente hostis ao
projeto norte-americano e a qualquer presença permanente de suas tropas. Além disso, essas
milícias sunitas opõem-se às forças de segurança e ao governo central, dominados por xiitas, como
mostra a multiplicação de confrontos entre os grupos armados "aliados" e a polícia iraquiana [5].
Outra conseqüência do pacto entre os Estados Unidos e os sunitas foi o esfacelamento da
autoridade. Não há nenhum poder central para "aproveitar" os sucessos norte-americanos. A
"limpeza religiosa", via construção de muros e combate a Al-Qaeda, foi acelerada em várias regiões,
entre as quais a capital Bagdá. Isso contribuiu para a redução dos confrontos inter-religiosos — mas
não trouxe uma estabilidade maior, no plano regional ou local. Nenhuma das três grandes
"comunidades", xiita, sunita e kurda, representa um conjunto homogêneo. O Curdistão mantém sua
"autonomia", mas fica profundamente dividido entre a zona controlada pelo Partido Democrático do
Curdistão (PDK) e a área sob hegemonia da União Patriótica do Curdistão (UPK), ambas
contestadas pela ascensão de grupos islâmicos. No sul, é grande a rivalidade entre o Exército de
Mahdi e o Conselho Supremo Islâmico do Iraque, de Abdel Aziz Al-Hakim. As milícias que mantêm a
"ordem" nessa região funcionam de acordo com uma lógica predadora, em prejuízo da população. A
autoridade do governo central fica, portanto, reduzida à "zona verde" de Bagdá, imensa fortaleza
protegida pelos marines. Para favorecer a reintegração dos sunitas, os Estados Unidos
pressionaram as autoridades iraquianas e, em fevereiro, o Parlamento promulgou três leis. A
primeira se refere à "desbaatização" – termo usado para designar o afastamento do poder dos
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apoiadores de Saddam Hussein, que integravam o partido Baas –, imposta pelo pró-cônsul
americano Paul Bremer logo após a "libertação" em 2003 [6] e agora considerada nociva pelo
governo Bush. A segunda prevê uma anistia parcial para dezenas de milhares de prisioneiros, em
sua grande maioria sunitas. A terceira lei fixa as prerrogativas dos poderes locais e da eleição que
acontecerá em 1º de outubro desse ano. O pleito pode devolver aos sunitas um papel de destaque
nas regiões onde são majoritários, ou em zonas mistas. Claro, vale lembrar que em janeiro de 2005
eles boicotaram a apuração dos votos. Mas quem está ganhando no Iraque? A população
certamente não. Calcular o custo humano da guerra é impossível, mas é significativo que nenhum
esforço sério tenha sido feito até agora para tentar contabilizar os mortos iraquianos. Sabemos
exatamente o número de soldados norte-americanos que tombaram em combate. Sobre os outros
mortos, estamos reduzidos às estimativas, que convergem para um único ponto: o tamanho do
desastre. Estima-se que até 1 milhão de iraquianos morreu. Os cortes de luz são freqüentes e 70%
não têm acesso direto à água. Mas "se a TV não fala mais da guerra, parece que ela não está
acontecendo" Um relatório recente da empresa britânica Opinion Research Business (ORB) afirma,
baseado em entrevistas com 2414 adultos, que 20% deles perderam pelo menos uma pessoa em
seus lares e estima em 1 milhão as mortes provocadas direta ou indiretamente pela guerra, entre 19
de março de 2003 e o verão de 2007. Um outro estudo, desenvolvido pela universidade Johns
Hopkins e publicado na revista científica Lancet, em outubro de 2007, concluiu que 650 mil pessoas
morreram no conflito. Já a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou, em um comunicado de
9 de janeiro de 2008, a morte violenta de 151 mil iraquianos entre o início da guerra e junho de
2006. Uma diferença considerável. À deterioração da segurança soma-se a degeneração do
cotidiano. Além da produção de petróleo não superar o nível anterior à guerra, há cortes de
eletricidade várias horas por dia, 70% da população não têm acesso direto à água potável e os
hospitais não têm remédios nem médicos, já que a maioria emigrou. O número de refugiados e
deslocados chegou a quatro milhões. É o maior desastre regional desde a guerra do Afeganistão
dos anos 1980. E quem estará disposto a escutar o sofrimento desses iraquianos? Como relata
Michael Massing, no New York Review of Books, o grupo de mídia americano McClatchy instalou
uma agência em Bagdá e criou um blog, "Inside Iraq" (“Dentro do Iraque”), para dar voz aos
cidadãos comuns. Ou seja, iraquianos pelos quais a imprensa norte-americana não se interessa
realmente [7]. Ainda mais porque a diminuição das mortes de soldados acarretou uma redução da
cobertura da guerra pela mídia dos Estados Unidos, o que reforça a idéia da "vitória": se a televisão
não fala mais da guerra, parece que ela não está acontecendo. De acordo com a responsável pela
agência McClatchy em Bagdá, Leila Fadel, "os norte-americanos acreditam que seus soldados
agem pelo bem, mas os iraquianos não enxergam dessa forma. Vêem que eles estão lá para
defender seus próprios interesses, que é melhor não se aproximar para não ser abatido. São
pessoas que dirigem do lado errado das ruas e param o trânsito quando bem entendem". Um dos
participantes do blog "Inside Iraq" relata a invasão de uma escola pelos soldados norte-americanos,
contando que uma criança atirou-lhes uma pedra e foi surrada. Por que a criança jogou a pedra?
"Eram soldados estrangeiros. Vivemos sob ocupação". Esse sentimento é amplamente
compartilhado pelos iraquianos, confirma Leila Fadel: "todos com quem falei pensam assim. Não
têm poder em seu próprio país". Bush espera atar as mãos de seu sucessor. Mas os êxitos de
Barack Obama, candidato hostil à manutenção da presença de tropas no Iraque, mostram que o
presidente não está certo de ser bem-sucedido. Alguns meses após a invasão do Iraque pelos
Estados Unidos, o jornalista Jean François Revel escreveu: "existe uma atitude xenófoba
generalizada entre os iraquianos, como em qualquer país árabe. Visa todos os ocidentais. Estamos
frente a um povo incapaz de governar a si próprio e que também não quer que os outros o façam
[8]". Este eminente representante da direita bem-pensante, já falecido, indignava-se que os
iraquianos não tivessem recebido com flores seus "libertadores". Os próprios dirigentes
norte-americanos foram os primeiros a ficar espantados. Apesar do ódio a Saddam Hussein, eram
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incapazes de compreender os sentimentos nacionalistas e a recusa a qualquer nova forma de
colonialismo. Repulsa essa enraizada em uma dolorosa história e na memória da longa ocupação
britânica. A Casa Branca não ouviu os iraquianos em 2003. Estará pronta a fazê-lo agora? Não há
como saber. Os sucessos obtidos pelos Estados Unidos no Iraque nesses últimos meses, por mais
parciais que sejam, permitiram a diminuição da pressão da opinião pública norte-americana pela
retirada das tropas e enfraqueceram as críticas internacionais. Mas essa trégua não levou o
presidente Bush a mudar sua estratégia, muito pelo contrário. O mandato que as Nações Unidas
haviam finalmente concedido às forças da coalizão – norte-americanas, na realidade [9] – em 2004,
um ano depois da guerra, encerra-se em dezembro. A Casa Branca não deseja renová-lo e procura
substituí-lo por um acordo bilateral. Tanto que as negociações com Bagdá devem ser concluídas
antes de julho. Reina certa confusão sobre a natureza desse entendimento: o Senado quer usar seu
direito de ratificar tal texto, mas a Casa Branca retruca que o acordo não deve prever explicitamente
uma participação norte-americana na defesa do Iraque ou a construção de bases permanentes, o
que tornaria desnecessária a votação dos senadores. Ao sancionar um orçamento recorde de
Defesa, com 515 bilhões de dólares previstos para o ano fiscal de 2008 e US$ 575 bilhões para
2009, o próprio governo Bush “esclareceu" que não se sentia obrigado, pelas restrições previstas
em tal texto, a deixar de gastar dinheiro para estacionar permanentemente bases militares no Iraque
[10]. Além disso, com dificuldades em fazer com que o Parlamento iraquiano vote uma lei para
estabelecer a privatização do petróleo, os Estados Unidos incitam o governo de Bagdá a passar por
cima da oposição dos deputados e implantá-la sem voto [11]. Porém, a nacionalização da Iraq
Petroleum Company, em 1972 era — e ainda é — um dos grandes motivos de orgulho dos
iraquianos, qualquer que seja sua etnia ou religião. O principal sucesso de George W. Bush será,
enfim, o de ter transformado o debate dentro dos Estados Unidos: em 2006, o fracasso parecia
inevitável e hoje alguns se alegram em acreditar na vitória. O presidente espera assim atar as mãos
de seu sucessor e levá-lo a seguir o mesmo caminho, que, no entanto, é sem saída. Os êxitos de
Barack Obama, candidato hostil à manutenção da presença de tropas norte-americanas no Iraque,
mostram que, mesmo no plano interno, Bush não está certo de ser bem-sucedido. [1] Charles Lewis
and Mark Reading-Smith, "False prestense", The Center for Public Integrity. Ler também as oito
matérias do dossiê especial do Le Monde Diplomatique, "Cinco anos de ’Guerra ao Terrorismo’", de
setembro de 2006 (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8). [2] Anthony H. Cordesman, The evolving security situation in
Iraq: the continuing need for strategic patience, Washington, The Center for Strategic and
International Studies, 21 de janeiro de 2008. [3] As razões que levaram Moktada Al-Sadr a esse
cessar-fogo estão expostas em "Iraq’s Civil War, the Sadrists and the Surge", Bruxelas, International
Crisis Group, 7 de fevereiro de 2008. [4] Patrick Cockburn, "Return to Fallujah", Counterpunch, 28 de
janeiro de 2008. [5] "Awakening Agonistes", Abu Aadwark, o blog de Marc Lynch. [6] Na época, o
vice-presidente Tariq Al-Hashimi, sunita, recusou-se a ratificar o texto, que poderia permitir a
expulsão dos membros mais antigos do Baas da máquina do Estado. [7] "As Iraqis see it", The New
York Review of Books, 17 de janeiro de 2008. [8] Le Figaro, 8 de setembro de 2003. [9] As tropas de
outros países aliados aos EUA passaram de cerca de 50 mil, em 2003, para atuais 10 mil [10] Ray
McGovern, "The iniquities and inequalities of war", Couterpunch, 1º de fevereiro de 2008. [11] "Iraq
pushes ahead with oil plans", Financial Times, 6 de fevereiro de 2008. Fonte: http://diplo.uol.com.br
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