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Resenha
Revista Latinoamericana de Estudos do Trabalho, Ano 16, no 25, 2011, 221-225
Resenha
Travail et rapports sociaux de sexe. Rencontres autour
de Danièle Kergoat.
Resenha de Hélène Y. Meynaud
O livro Travail et rapports sociaux de sexe. Rencontres autour de
Danièle Kergoat vem, de modo oportuno, apresentar o importante itinerário de uma pesquisadora que se engajou profundamente no trabalho de
investigação sem nunca deixar de militar pela causa das mulheres e pela
justiça social. Personalidade calorosa, Danièle Kergoat valoriza as instâncias coletivas que cria ou das quais participa, procurando sempre escutar e valorizar a ideia do outro, dos outros, descobrindo as pepitas no
meio das palavras ou dos escritos, às vezes inacabados, quer provenham
de alguém do mundo acadêmico, quer não. Danièle Kergoat chega a afirmar a coprodução de conceitos com seus doutorandos e doutorandas e
com seus colegas.
A exemplo de Flora Tristan, ou de Angela Davis, sua vida não foi
um longo rio tranquilo, pois tal postura de intelectual engajada em sua
disciplina, e simultaneamente militante social e política, é contestada
pelos “bem-pensantes da academia”, principalmente se tal engajamento
não implica a manutenção da ordem estabelecida, nem o andamento em
direção a um universo mais regressivo. Para Philippe Zarifian, “Danièle
adotou desde o início uma postura crítica. Postura crítica em relação a diversas formas de dominação e de opressão, mas também em relação às
correntes dominantes da sociologia. Danièle introduziu uma linha de demarcação no seio da sociologia.” (Dunezat et al., 2010: 50).
Revista Latinoamericana – 2011 – Ano 16 no 25
1ª Revisão: 11.09.2011 – 2ª Revisão: 18.09.2011
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Revista Latinoamericana de Estudos do Trabalho
Danièle Kergoat nos oferece uma obra em evolução, conceitos
para a compreensão das situações sociais de dominação; instituições
como o laboratório do CNRS, cuja atividade principal consiste nos estu­
dos sobre gênero e relações sociais (o laboratório Gênero, Trabalho e
Mobilidades, equipe do CRESPPA1); uma rede de pesquisa da Associa­
ção Francesa de Sociologia, a RT24 (Réseau Thématique – rede temática
Gênero, Classe, Raça. Relações sociais e construção da alteridade); a
coleção O gênero do mundo, da editora La Dispute, um lugar de expres­
são e de confrontação de pesquisas feministas, cuja ambição é a contri­
buição para a renovação da compreensão das sociedades por meio da
análise das relações entre homens e mulheres; muitos discípulos forma­
dos no curso de seus ensinos universitários e não universitários, etc.
O livro que apresentamos é dividido de maneira um pouco arbitrá­
ria, mas representa, efetivamente, as diferentes problemáticas de sua
obra, alternando e combinando depoimentos e debates teóricos. O livro
comporta nove partes: relações sociais de sexo; divisão sexual do traba­
lho; trabalho e subjetividade; cruzar as disciplinas; além das fronteiras;
movimentos sociais e resistência; transmitir; e, à guisa de epílogo, uma
longa homenagem poética de um colega sociólogo, Jacques Jenny.
Enfim, deve-se assinalar aqui o notável trabalho documental de Françoi­
se Pujol, que estabeleceu uma bibliografia exaustiva, instrumento indis­
pensável para a apreensão do trabalho de Danièle Kergoat.
Este livro, consagrado às pesquisas de Danièle Kergoat, não é uma
longa litania de elogios, mas uma trama vivaz de controvérsias em rela­
ção a uma obra que nos questiona. Cada um/uma indica que uso fez dessa
obra, como ele ou ela se apropria dela, se afasta ou aproveita para avan­
çar nas reflexões, como um ponto de passagem inevitável. Tendo susci­
tado discussões em escala internacional, os principais conceitos que pro­
duziu são a divisão sexual do trabalho e as relações sociais de sexo, e,
mais recentemente, a coextensividade, ou ainda a consubstancialidade
das relações de “raça”, classe e sexo2.
Se a disciplina de origem de Danièle Kergoat é a sociologia, ela
cruzou substancialmente suas ideias com outras epistemologias, fazen­
do a junção com a psicodinâmica do trabalho, fecunda para ambas as par­
tes, ou ainda com os linguistas do trabalho. Seu intercâmbio com a psico­
dinâmica do trabalho conduz à consideração da subjetividade na cons­
trução diferenciada do feminino e do masculino. Segundo Odile Chenal:
“a tradução entre disciplinas e linguagens não era sempre fácil, ao con-
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trário, e demandava imaginação, paciência e uma escuta atenciosa a que
Danièle se dispunha sem contar o tempo.” (Dunezat et al., 2010: 64).
Na introdução da obra, Xavier Dunezat, Jacqueline Heinen, Hele­
na Hirata e Roland Pfefferkorn indicam os pontos fortes do itinerário
teórico e empírico de Danièle Kergoat. Primeiro, o estudo da mobiliza­
ção dos jovens operários em 1968, em particular os operários imigrantes,
contrapondo-se à ideia de que a classe operária seria homogênea, e afir­
mando que a vida extratrabalho tem consequências sobre as atitudes dos
trabalhadores nas mobilizações. A apreensão dessa heterogeneidade de­
semboca na visibilidade dos dois sexos da classe operária3. Danièle
Kergoat demonstra que a centralidade do trabalho não tem a mesma sig­
nificação para os homens e para as mulheres. Sua problematização da
divisão sexual do trabalho leva à criação de uma nova disciplina da so­
ciologia.
Roland Pfefferkorn nos oferece uma definição:
Numa perspectiva dialética, as relações de classe e as relações de sexo
são consideradas por Danièle Kergoat como as relações sociais estrutu­
rantes fundamentais da sociedade. Os atores individuais e coletivos são
pensados ao mesmo tempo como produtos e produtores dessas relações.
As relações de sexo estão, portanto, em permanente transformação, reno­
vadas, reorganizadas pelo capitalismo, mas, inversamente, as relações de
classe são igualmente modeladas e reorganizadas continuamente pelo
patriarcado (Dunezat et al., 2010: 75).
Aplicando seus conceitos ao estudo do tempo de trabalho, Danièle
Kergoat demonstra que o tempo parcial não é uma escolha, e que suas
modalidades de uso têm consequências sobre a articulação entre o traba­
lho assalariado e o trabalho doméstico.
O trabalho militante passa também pelo crivo de suas observa­
ções. Danièle Kergoat entrevista as operárias da fábrica LIP4 em 1973,
para “examinar a vertente feminina”, dirá Marie-France Christofari (Du­
nezat et al., 2010: 188). Ela se interessará pelas enfermeiras e os enfer­
meiros que se manifestaram em 1988 e 1989, sob a palavra de ordem Ni
bonnes, ni connes, ni nonnes (Nem empregadas, nem estúpidas, nem
freiras), e que constituíam, para Danièle Kergoat, um movimento social
sexuado no centro do qual, pela primeira vez, as discussões sobre as fun­
ções sexuadas da direção do movimento não conduziram ao afastamento
das mulheres.
É preciso esperar os anos 2000 para que surjam e se tornem visí­
veis os movimentos sociais de mulheres de origem estrangeira, reais ou
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supostas, como a greve das camareiras da empresa Arcade trabalhando
na cadeia de hotéis ACCOR, em março de 2002, ou as greves das traba­
lhadoras clandestinas sem documentos (“sans-papières”) de 2008 e
2010. Tal é o objeto de uma parte dos trabalhos em curso de Danièle Ker­
goat5. Trabalhos, dentre outros, que ela busca com mais energia ainda
desde que foi nomeada “pesquisadora emérita do CNRS”, e desde que a
família Kergoat cresceu, com a chegada de dois novos membros.
Este livro é um instrumento de referência para aquelas e aqueles
que desejam compreender como as ferramentas de reflexão para pensar e
questionar a dominação das mulheres pelos homens foram criadas, em
particular no mundo do trabalho, e como fazer uso delas.
Tradução de Yumi Garcia dos Santos
(Recebido para publicação em abril de 2011)
(Versão definitiva em julho de 2011)
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NOTAS
1. Sucedendo em 1983 à primeira equipe criada, em 1979, no Centre d’Études
2.
3.
4.
5.
Sociologiques (Centro de Estudos Sociológicos) – CES, por Danièle Kergo­
at, sobre a divisão sexual do trabalho, o Grupo de Estudos sobre a Divisão
Social e Sexual do Trabalho (GEDISST) tornou-se o laboratório Gênero,
Trabalho e Mobilidades (GTM). É, ainda em 2011, o único laboratório do
CNRS cujo principal eixo de pesquisa é a questão do gênero ou relações so­
ciais de sexo.
Remeto aqui ao debate sobre a interseccionalidade no livro coordenado por
Elsa Dorlin, Sexe, race, classe, pour une épistémologie de la domination
(Paris: PUF, 2000), e, em particular, ao artigo de Danièle Kergoat “Dinâmica
e consubstancialidade das relações sociais”, pp. 111-126 (NR: em portu­
guês, Novos Estudos Cebrap, 2010, pp. 93-103).
NR: Cf., no Brasil, a análise similar de Elisabeth Souza-Lobo, cujo livro A
classe operária tem dois sexos acaba de ser publicado numa segunda edição
póstuma pela editora Perseu Abramo, em São Paulo (abril, 2011).
É interessante notar que as palavras das operárias da LIP perpassam o tempo:
é possível escutá-las na exposição fotográfica Photo/femmes/Féminisme:
1860-2010, Galérie des Bibliothèques, no outono de 2010, e são projetadas
em contraponto às reflexões das mulheres imigrantes sindicalistas em luta
no belo filme de Corinne Melis e Christophe Cordier D’égal à égales (De
igual às iguais), Canal Marches, 2011.
Kergoat, Danièle; Miranda, Adelina; Ouali, Nouria. (no prelo, 2011), Visibi­
lidade e mobilizações das mulheres em situação migratória na Europa. Cahi­
ers du Genre, No. 51.
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