Número 5, Janeiro 2014 - State Building and Fragility Monitor

Transcrição

Número 5, Janeiro 2014 - State Building and Fragility Monitor
“China, Coreia e Japão – A instabilidade no
Extremo Oriente ” por Luís Rodrigues
“A securitização dos Estados falhados: a
narrativa da União Europeia no alinhamento internacional” por Ana Paula Brandão
Informédia - Tailândia
Para além dos acontecimentos mais recentes na área do
State Building and Fragility!
Newsletter nº 5 - Janeiro de 2014
Índice
A Equipa
Director Editorial
Editorial
III
Cronologia Fotográfica
IV
Nuno Canas Mendes
Director Executivo
Nuno Ferreira
“China, Coreia e Japão –
A instabilidade no Extremo
Oriente”
(Luís Rodrigues)
VI
Edição e Revisão
Sandra Coelho
“A securitização dos Estados
falhados:
a narrativa da União Europeia
no alinhamento internacional”
(Ana Paula Brandão)
Informédia - Tailândia
X
Colaborador
João Terrenas
XV
Colaborador
Luís Rodrigues
II
Índice & Equipa
Editorial
N
este primeiro número de 2014, o State Building Monitor dá destaque, na Cronologia Fotográfica, aos acontecimentos mais relevantes do mês de Janeiro
nos cinco continentes do mundo (em boa verdade, nos quatro, visto que ninguém dá
atenção ao que se passa na Oceânia… e a este propósito, em breve vamos dar atenção a
este continente e ao espaço do Pacífico Sul numa das nossas próximas edições).
Nos artigos de fundo, o primeiro, de Luís Rodrigues, reflecte sobre as tensões securitárias entre a China, o Japão e a Coreia do Sul, com especial enfoque na disputa pelas
ilhas Senkaku/Diaoyu e na expansão militar chinesa. O segundo, da Prof. Ana Paula
Brandão, da Universidade do Minho, a quem agradecemos a colaboração, sobre a narrativa da União Europeia em torno da securitização dos Estados falhados. A encerrar, a
Informédia seleccionou três comentários especializados sobre a crise na Tailândia.
Por último, chamo a atenção para o reforço da nossa equipa redactorial com a entrada do João Terrenas e do Luís Rodrigues, cujos talentos na investigação vão poder
aqui revelar-se.
Nuno Canas Mendes
III
Editorial
Cronologia Fotográfica
O
novo ano arrancou com dois acontecimentos importantes para a União Europeia. A 1 de Janeiro, a Letónia entrou oficialmente na zona euro. As insti-
tuições europeias consideraram que a adesão foi um sucesso, porém as sondagens parecem dizer o contrário, afirmando que cerca de 60% dos letões desaprovam a adesão.
No mesmo dia, a Grécia assumiu, pela quinta vez, a presidência do Conselho da União
Europeia. O país intervencionado, considerado um dos mais instáveis da UE e que está
mergulhado numa grave crise, irá ocupar o lugar até Julho. Atenas promete levar a cabo uma presidência económica, simples e inovadora.
A 11 de Janeiro, morreu o antigo primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon. Amado
por uns e odiado por outros, Sharon foi, até 2004, considerado um tirano sanguinário,
fruto da perseguição violenta que conduzia contra os palestinianos. Contudo, nesse
ano, inverteu a sua política e anunciou a desocupação dos territórios da Palestina, chegando mesmo a defender o direito dos palestinianos à autodeterminação.
Na República Centro-Africana (RCA), após a demissão do presidente Michel Djotodia, o Conselho Nacional de Transição nomeou Catherine Samba-Panza para presidente
interina. Esta eleição, que marca a estreia de uma mulher neste cargo, parece trazer
uma nova esperança ao País, prometendo uma mudança de política. Veremos como
Panza irá gerir o conflito da RCA. Ainda no continente africano, o presidente da Nigéria,
IV
Cronologia Fotográfica
Goodluck Jonathan, aprovou uma lei que ilegaliza a homossexualidade. Centenas de
indivíduos já foram presos, e poderão vir a cumprir 14 anos de prisão. A ONU e a Amnistia Internacional, já reagiram, afirmando que esta lei se trata de uma clara violação
dos direito humanos.
A questão da espionagem norte-americana foi dos temas mais debatidos do ano
passado, e a entrada em 2014 não deixou arrefecer a questão. Devido à polémica que o
tema tem gerado, Barack Obama veio garantir que não deixará o incidente das escutas
afectar as relações entre os EUA e a Alemanha, declarando que deu ordens à NSA para
não espiar os líderes dos países aliados. A propósito de relações fragmentadas, Nicolas
Maduro, presidente da Venezuela, afirmou que está disponível para dialogar com os
EUA, a fim de construir uma ligação positiva entre os dois países. Porém, Maduro refere
que embora esteja disposto a reconstruir as relações com Washington, não aceitará
quaisquer ingerências norte-americanas.
O Egipto foi a votos este mês para aprovar o novo projecto constitucional proposto
pelo governo militar de transição. Embora o novo texto tenha sido aprovado com 98%
dos votos, o País parece estar longe de alcançar estabilidade política e paz. Exemplo
disso foi a fraca participação no referendo sobre a constituição, que não alcançou a meta dos 40%. O caso egípcio contrasta com a situação tunisina, que também aprovou um
novo texto constitucional, onde se consolidou o espírito democrático e o consenso alargado entre as partes. Por fim, o último fim-de-semana do mês foi marcante para o conflito sírio: pela primeira vez, o governo da Síria e a oposição irão encontrar-se frente-afrente para negociações de paz, em Genebra. Veremos o desfecho deste encontro, que
ainda perdurará mais alguns dias.
Fontes das Imagens:
Imagem número 1- http://www.numismatica-visual.es/wp-content/uploads/2013/08/2-euroletonia.jpg
Imagem número 2- http://cdn1.spiegel.de/images/image-68610-panoV9free-abcd.jpg
Imagem número 3- http://www.mycybernews.com/wp-content/uploads/2014/01/320.jpg
Imagem número 4- http://media.kansascity.com/smedia/2014/01/21/22/50/17l4J.St.81.jpeg
Imagem número 5- http://cdn.mg.co.za/crop/content/images/2013/12/20/rtx10gsn.jpg/676x380/
Imagem número 6- http://c9.nrostatic.com/sites/default/files/uploaded/pic_giant_111113_SM_TheSecret-Obama.jpg
Imagem número 7- http://www.globalpost.com/sites/default/files/imagecache/gp3_full_article/
nicolas_maduro_hugo_chavez_successor_venezuela.jpg
Imagem número 8- http://pstu.org.br/sites/default/files/imagens/%7BE2ECDF4B-A00D-4638A4A4-C4F3D6C153E0%7D_egito.bmp
Imagem número 9- http://imagens0.publico.pt/imagens.aspx/822230?tp=UH&db=IMAGENS&w=749
V
Cronologia Fotográfica
China, Coreia e Japão – A instabilidade no Extremo Oriente
por Luís Rodrigues,
Estagiário no State Building and Fragility Monitor
O
Oriente, misterioso nas gentes e nos costumes, assume cada vez mais o seu
papel no panorama mundial, e surge novamente em evidência com o “milagre
económico” chinês que tem marcado a última década. Este “milagre” deve-se à edificação de esforços, conduzida por Deng Xiaoping através da famosa máxima que hoje define a China: “Um país, dois sistemas”.
As primeiras chamas da Guerra Fria acabariam por dividir uma península, outrora
unificada. A ideologia e as alianças acabariam por levar a patamares muito distintos os
dois países em que a Coreia se dividiu: de um lado, um decrépito e falido regime com
laivos estalinistas – a Coreia do Norte; de outro lado, uma das nações mais prósperas
do mundo, pertencente ao G-20 e identificada como um dos “Tigres Asiáticos” – a Co-
reia do Sul.
Mesmo antes da grande abertura chinesa para o mundo, outro país tinha-se reerguido triunfante dos escombros da guerra, reclamando eventualmente o 2º lugar na
economia mundial - o Japão. Ao país do sol nascente, a devastação da guerra e o terror
nuclear deram origem a uma nova era de prosperidade nunca vista pelos nipónicos.
A história recente tem sido assinalada por incidentes que agitam as memórias, um
pouco por todos estes países. Ainda que qualquer um destes países tenha relações comerciais extensivas entre si, estas parecem perder toda a relevância quando as velhas
feridas de guerra são abertas por episódios que reavivam um espírito colectivo, alimentado por disputas que teimam em não terminar.
O desenvolvimento prodigioso da sua economia parece não ser acompanhado por
melhorias em relações entre estes Estados, minadas por rivalidades e ódios, antigos e
recentes. O Japão acaba por estar no centro da desconfiança, tanto da China como da
Coreia do Sul. A História afigura-se como a melhor explicação para o sucedido. A antipatia sino-japonesa já é longa, e a mais recente e mais profunda ferida está enraizada
na ocupação japonesa de grande parte da China durante a Segunda Guerra Mundial.
Assegurada não raras vezes de forma brutal, foi algo que deixou profundas cicatrizes na
memória colectiva dos chineses.
No final da Segunda Guerra, um grupo de ilhas, chamadas Senkaku em japonês e
Diaoyu em chinês, controladas pelo Japão desde 1895, foi colocada sob administração
VI
Artigo 1 - A instabilidade no Extremo Oriente
norte-americana. No ano de 1972, a administração norte-americana cessou, tendo o Ja-
pão assumido o cargo das ilhas. Este incidente foi algo que provocou descontentamento
na China, que no mesmo ano reclamou a posse das ilhas por si chamadas Diaoyu. Anteriormente as ilhas pertenciam a um empresário japonês, Koga Tatshushiro, cujo filho,
Zenji Koga, acabaria por vender à família Kurihara. Volvidos 30 anos, a 11 de Setembro
de 2012, o governo japonês comprou o pequeno grupo de ilhas, efectivamente nacionalizando-as. Pequim reagiu energeticamente através do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, clamando que “a China não irá deixar a sua soberania territorial ser violada”.
1 2
No dia 23 de Novembro de 2013, a China estabeleceu uma “Air Defence Identification
Zone” que incluiu as ilhas, e requeria que a força aérea entrasse na zona e submetesse
informação via rádio, deste modo reafirmando a sua soberania sobre as ilhas.3
Porém, a ADIZ chinesa também incluiu um rochedo reclamado pela Coreia do Sul,
levando à preocupação do Japão e dos seus aliados de longa data, Estados Unidos da
América, que acabaria por enviar aviões B52 não armados para atravessar a ADIZ, sem
cumprir com os requisitos chineses. O secretário de Defesa dos Estados Unidos, Chuck
Hagel, referiu a obrigação assumida em tratado de proteger o Japão em caso de ataque,
e o embaixador americano no Japão referiu a que a ADIZ chinesa serve apenas para
“aumentar tensões na região”.4
Torna-se incerto se a China antecipou a acção norte-americana, ou mesmo se pretendeu que tal sucedesse, mas recuar na sua intenção seria um golpe fatal para as suas aspirações em relação à soberania sobre as ilhas. Outro factor delicado é a antipatia
generalizada a que o Japão é sujeito em território chinês, qualquer demonstração de
fraqueza seria recebida com enorme hostilidade pela população. Do mesmo modo, o Japão não pode ceder, a soberania sobre as ilhas é uma questão de orgulho nacional. O
peso dos nacionalistas no Japão poderia fazer cair qualquer governo que cedesse a
pressões chinesas.
No meio de toda a tensão, no dia 26 de Dezembro de 2013, o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, visitou o santuário Yasukuni onde estão consagrados variados criminosos de guerra japoneses, uma acção que inflamou a opinião pública sul-coreana e
chinesa, e obteve reacções a nível político. Apesar de Abe se ter oferecido para um encontro com os líderes chineses e sul coreanos, nada disto conseguiu atenuar os efeitos
da sua visita ao santuário, demonstrando que as feridas de guerra estão, ainda hoje,
bem presentes nas relações no extremo oriente.5
6
A disputa de território não se cinge à China e ao Japão, a Coreia do Sul reclama as
ilhas Dokdo (em coreano), que os japoneses chamam de Takeshima. Estas ilhas são
controladas pela Coreia do Sul, mas reclamadas pelo Japão.
VII
Artigo 1 - A instabilidade no Extremo Oriente
Para piorar a já de si tensa situação, os tribunais sul-coreanos iniciaram um pro-
cesso de contestação face aos acordos conseguidos em 1965, relativos a compensações
concedidas a coreanos submetidos a trabalho escravo durante a ocupação japonesa,
bem como, a mulheres “de conforto” para os soldados nipónicos. À data, apenas parte
da compensação atribuída atingiu as vítimas, tendo a maioria sido desviada pelo governo militarista sul-coreano para financiar infra-estruturas.7
A acção da China torna-se cada vez mais expressiva, tem igualmente disputas com
as Filipinas, Vietname e Indonésia sobre ilhas situadas no Mar do Sul da China, elevando a sua agressividade para outro nível ao construir estruturas permanentes em algumas dessas ilhas. Em Dezembro de 2013, retirou-se de uma tentativa de resolução
da questão territorial da ONU, relativo ao caso com as Filipinas, tornando-se o primeiro
caso em que um Estado-membro tomou uma medida deste calibre. Destaque-se ainda
que a China é um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.8
O investimento militar chinês alertou a região. Embora a China defenda que os
fins do seu armamento são pacíficos, a eclosão de um conflito com os EUA (que detêm
diversos tratados de defesa na região), por mais pequeno que seja, poderia levar ao ris-
co de um confronto militar entre os dois países. No dia 5 de Dezembro uma embarcação
norte-americana, USS Cowpens, quase embateu no Liaoning chinês, mostrando que um
acidente ou um cálculo falhado poderá precipitar um conflito.9
Se as tensões que actualmente ocorrem no Extremo Oriente se passassem na Europa, existiram várias instituições para que as partes pudessem negociar uma solução
pacífica. Mesmo o continente africano, nem sempre elogiado pelos seus processos de
paz, encontrou na União Africana um meio eficaz de mediar conflitos. Porém, nada disto existe no Extremo Oriente, onde os países acabam por ter de resolver os seus proble-
mas de maneira bilateral, sem o apoio de uma estrutura institucional. Esta situação
permite que os países mais fortes exerçam o seu domínio com relativa facilidade.
A situação actual nesta região possui semelhanças notórias relativamente à Europa de 1914. Uma potência emergente, a Alemanha, sendo a China neste caso, ressentida de humilhações passadas e reclamando um lugar mais influente na região, planeia
reverter o status quo, afirmando-se. A potência estabelecida, a França, neste caso o Japão, procura manter a sua posição, enquanto teme o que poderia acontecer num mundo governado pela potência emergente. A superpotência da época, o Reino Unido, agora
Estados Unidos da América, espera que estas questões possam ser resolvidas sem a
sua intervenção directa.
As hipóteses de um conflito a larga escala na região não parecem ser muito prováveis, mas perante a potencial magnitude da situação, a prudência urge que todos os inVIII
Artigo 1 - A instabilidade no Extremo Oriente
cidentes que possam conduzir ao conflito sejam evitados. Os efeitos cumulativos de um
possível conflito armado deverão servir como factor de dissuasão suficientemente eficaz
para evitar que este longo e detalhado foco de tensão se resolva pela via das armas.
1-
http://www.historytoday.com/joyman-lee/senkakudiaoyu-islands-conflict
http://www.washingtonpost.com/world/asia_pacific/japan-says-it-will-purchase-disputed-islandsfrom-private-owner-in-step-likely-to-anger-china/2012/09/10/75b0ad1a-fb2e-11e1-98c6ec0a0a93f8eb_story.html
2-
3-
http://www.economist.com/news/asia/21594355-china-creates-adiz-fish-hai-handed
4-
http://news.yahoo.com/u-affirms-support-japan-islands-dispute-china-064310746--sector.html
5-
http://www.bbc.co.uk/news/world-asia-25517205
http://articles.timesofindia.indiatimes.com/2014-01-19/rest-of-world/46346019_1_japan-pm-shinzoabe-east-china-sea-summit-meeting
6-
7-
http://www.theguardian.com/world/2013/jul/11/south-korea-court-japan
8-
http://www.theguardian.com/world/2013/dec/06/china-territorial-dispute-philippines
9-
http://www.bbc.co.uk/news/world-asia-25426245
IX
Artigo 1 - A instabilidade no Extremo Oriente
A securitização dos Estados falhados: a narrativa da União Europeia
no alinhamento internacional
por Ana Paula Brandão,
Professora de Relações Internacionais na Universidade do Minho
A
narrativa internacional
do pós-Guerra Fria, amplificada pela resposta aos
ataques de 11 de Setembro de 2001 e subsequentes, evidencia uma tendência
securitizadora associada a dinâmicas co-constitutivas da designada aborda-
gem holística (comprehensive approach): alargamento (segurança multissectorial) e
aprofundamento (segurança multinível), nexos securitários (interno-externo, segurançadesenvolvimento2, pobreza-conflito, civil-militar, público-privado), internalização da segurança externa e externalização da segurança interna. Um dos efeitos da comprehensive approach traduz-se na clivagem Norte-Sul reconstruída em termos de segurança/
insegurança: a ‘periferia de instabilidade e insegurança’ (pobreza, conflito, fragilização
estadual, nexo interameaças) que, segundo o discurso, ameaça o ‘centro de estabilidade
e segurança’. Distanciada a probabilidade de ameaças clássicas, leia-se a agressão por
parte de um Estado vizinho, as lideranças ocidentais reconstroem o discurso securitário
assente na proximidade globalizada de um periferia insegura e imprevisível. A preocupação centra-se na externalização dos efeitos da instabilidade e conflitualidade internas
no limite traduzida na ‘proximidade’ da insegurança geograficamente distante e/ou na
ameaça de uma periferia desgovernada3, terreno fértil para ameaças transnacionais4.
A actorness da União Europeia começou por expressar-se no plano económico e só
mais tarde no plano securitário. Volvidas décadas de actuação nas áreas do comércio,
do desenvolvimento e da ajuda humanitária, a explicitação do actor de segurança deuse com a entrada em vigor do Tratado da União Europeia que consagrou a cooperação
no domínio quer da segurança externa (Política Externa e de Segurança Comum) quer
da segurança interna (cooperação policial e judiciária em matéria penal). Ainda que
obedecendo a uma matriz fragmentada, a coordenação entre os primeiro e segundo pilares
(interpilarização)
começou
por
emergir
associada
ao
nexo
segurança/
desenvolvimento, no domínio específico da prevenção de conflitos. No pós 11 de Setembro, a muldimensionalidade da ameaça terrorista justificou o recurso a instrumentos
dos três pilares (transpilarização), reforçando a necessidade do já há muito reclamado
fim da estrutura fragmentada, tal como viria a acontecer, pelo menos formalmente, com
a revisão de Lisboa.
Esta
evolução
tem
sido
acompanhada
X
por
uma
narrativa
de
actorness
Artigo 2 - A securitização dos Estados falhados
“forçosamente global” (Conselho Europeu 2003, 1), entendida em termos quer de alcan-
ce geográfico quer de abordagem política, ambos justificados pelo contexto da globalização, pela oportunidade e responsabilidade acrescida da UE nesse contexto e pela necessidade de fazer face às vulnerabilidades, riscos e ameaças que o mesmo potencia:
“Numa era de globalização, as ameaças longínquas podem ser tão preocupantes como
as que estão próximas de nós” (Conselho Europeu 2003, 6). De notar que também concorrem para a abordagem holística outros factores, menos declarados, relacionados
com dinâmicas históricas e institucionais internas, designadamente a possibilidade de
a UE utilizar know-how, instrumentos e recursos de áreas políticas historicamente consolidadas em prol do domínio da segurança, bem como a influência e interesses da Comissão que tem vantagem acumulada nessas áreas e no entendimento amplo e
‘civilista’ da segurança. A narrativa da abordagem holística5 e dos nexos securitários,
designadamente os nexos segurança/desenvolvimento e segurança interna/externa,
tem sido extensiva ao fenómeno da fragilidade estadual.
A UE comunga do entendimento internacional do fenómeno em termos de défice de
governação6 (Hout 2010): “O conceito de fragilidade refere-se a estruturas débeis ou em
desagregação e a situações em que o contracto social é rompido devido à incapacidade
ou à falta de vontade do Estado de assumir as suas funções de base, cumprir as suas
obrigações e responsabilidades no que diz respeito à prestação de serviços, gestão de
recursos, Estado de Direito, acesso equitativo ao poder, segurança da população e protecção e promoção dos direitos e liberdades dos cidadãos” (Comissão Europeia 2007, 5).
Subscrevendo os compromissos internacionais relativos aos Estados frágeis e matérias
relacionadas7, a UE partilha da ‘whole-of-government approach’8 (European Commission 2008, 1), para a qual é considerada particularmente vocacionada porque dotada de
“uma aptidão única para combinar, de uma forma coerente, políticas e instrumentos
que vão desde a diplomacia, a segurança e a defesa até ao financiamento, ao comércio,
ao desenvolvimento e à justiça”9 (Conselho Europeu 2013, 3). Assim, uma panóplia de
organismos e instrumentos10 são utilizados na prevenção e resposta à fragilidade estadual, tendo sido seleccionados, durante a presidência portuguesa, seis estados piloto11,
entre os quais Guiné-Bissau e Timor-Leste, para testar a abordagem holística definida
em 2007 (Council of the EU 2007).
Apesar das potencialidades da União, que a distinguem da maior parte das agências e organizações internacionais de cooperação (European University Institute 2009,
124), a sua actuação em prol da ‘resiliência’ estadual tem evidenciado fragilidades, designadamente: défice de coordenação interna (interinstitucional, interpolíticas e interníveis)
e externa, e
ineficácia dos sistemas de alerta precoce (European Parliament
XI
Artigo 2 - Repensar a Cooperação Internacional
2013); abordagem tecnocrática incidindo sobre a reforma das instituições públicas em
detrimento da acção sobre as causas profundas da fragilidade (Hout 2010; Castillejo
2011); lentidão, inflexibilidade e inadequação dos instrumentos europeus (Castillejo
2011); falta de clarificação operacional face a objectivos ambiciosos (Briscoe 2008). O
facto de se aguardar ainda pela finalização do plano de acção em matéria de segurança,
fragilidade e desenvolvimento, solicitado pelo Conselho em 2007, é sintomático das debilidades europeias.
Para lá do racional humanitário e económico, no pós-11 de Setembro intensificouse o racional securitário da narrativa europeia na justificativa de resposta às situações
de fragilidade. Ao imperativo humanitário de luta contra a pobreza global e de defesa
dos direitos fundamentais das pessoas pobres e vulneráveis, que “são as mais afectadas em situações de fragilidade” (Comissão Europeia 2007), amplifica-se a preocupação
com a externalização do espiral de “ameaças dinâmicas” (Conselho Europeu 2003, 7)
conexas propiciado pela falta de controlo interno dos Estados frágeis. O fracasso12 dos
Estados é considerado “um fenómeno alarmante que mina a governação à escala global
e contribui para a instabilidade regional” (Conselho Europeu 2003, 4), pelo que é incluí-
do na lista das principais ameaças ao espaço europeu, e ainda percepcionado como um
factor potenciador de outras ameaças, tais como o terrorismo13, a criminalidade organizada (Conselho Europeu 2003 e 2010), “a imigração ilegal e, mais recentemente, a pirataria” (Conselho Europeu 2008, 1).
Ainda que as prioridades da agenda europeia tenham sido alteradas em contexto
de crise, o efeito da dinâmica securitizadora persiste. Nas palavras do Secretário-Geral
adjunto para as Questões Interinstitucionais do Serviço Europeu para a Acção Externa,
a segurança “é um investimento para a estabilidade” e a sua inclusão “como um objec-
tivo no quadro pós-2015 é um elemento essencial para o desenvolvimento” (apud Koczij
2013, 8 e 9). Esta inflexão tem contribuído para um maior envolvimento da UE no Estados frágeis e nos Estados (regiões e sectores) “órfãos de ajuda”, mas sem favorecer o
tratamento das causas profundas da fragilidade estadual e obedecendo a um racional
securitário de clivagem que contraria a natureza normativa do actor europeu.
XII
Artigo 2 - A securitização dos Estados falhados
1-
Vide Klingebiel, 2006; Chadler, 2007.
A título exemplificativo, de referir o projeto do Pentágono relativo às ‘áreas desgovernadas’ e respetivo
relatório final (Lamb 2008).
2-
“Every threat to international security today enlarges the risk of other threats. (…)The ability of nonState actors to traffic in nuclear material and technology is aided by ineffective State control of borders
and transit through weak States.” (United Nations 2004, 19) International terrorist groups prey on weak
States for sanctuary. (…) Poverty, infectious disease, environmental degradation and war feed one another in a deadly cycle.” (id. 20) “Civil war, disease and poverty increase the likelihood of State collapse
and facilitate the spread of organized crime, thus also increasing the risk of terrorism and proliferation
due to weak States and weak collective capacity to exercise the rule of law.” (id., 21) “In what ways does
fragility matter? Fragile states matter because they are home to a growing share of the world’s poor. They
are also more susceptible to instability, with potential regional and global consequences. Crisis and conflict prevention are more cost-efficient than engaging after the damage has been done.” (OECD 2012,35)
3-
4-
Também designada de ‘global’, ‘integral’ ou ‘interdisciplinar’.
De acordo com a Comissão, os elementos da fragilidade podem abarcar as nove áreas dos “perfis da
governação”, (European Commission 2008): 1. governação política/democrática; 2. governação política/
Estado de Direito; 3. controlo da corrupção; 4. eficácia governamental; 5. Governação económica; 6. Segurança interna e externa; 7. governação social; 8. contexto internacional e regional; 9. qualidade da
parceria [SEC (2009) 58 final, p. 6].
5-
DAC guidelines on conflict, peace and development cooperation (1997); DAC guidelines on helping prevention violent conflict (2001); DAC guidelines on SSR and governance (2005); Declaração de Paris sobre
a Eficácia da Ajuda (2005); DAC guidelines on whole of government approach to fragile states (2006);
DAC Handbook on Security System Reform (2007); DAC Principles for good international engagement in
fragile states and situations (2007); Agenda de Accra para a Ação (2008).
6-
7-
Adaptada para ‘whole-of-EU approach’ (European Commission 2008, 3).
“Já existe um quadro estratégico para fazer face às diversas dimensões da fragilidade. O Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento proporciona orientações para uma resposta abrangente à problemática
da fragilidade. Insere-se num quadro mais vasto de acções externas que deve ser activado na sua totalidade para que a União possa reagir às situações de fragilidade de forma atempada e coerente. Este quadro inclui a Estratégia Europeia de Segurança, o programa da UE para a prevenção dos conflitos violentos, a Política Europeia de Vizinhança, o quadro estratégico para a Interligação entre Ajuda de Emergência, Reabilitação e Desenvolvimento, o Consenso em matéria de Ajuda Humanitária e a abordagem da
UE no âmbito da governação e do desenvolvimento.” (Comissão Europeia 2007, 5).
8-
9-
Para uma descrição detalhada, vide Parlamento Europeu 2013, 16-21.
10-
Burundi, Guiné-Bissau, Haiti, Iémen, Serra Leoa, Timor-Leste.
Embora predomine o uso do termo ‘fragilidade’ (dos Estados), os documentos oficiais da UE também
utilizam ‘colapso’, ‘fracasso’ e ‘degenerescência’.
11-
Na última comunicação relativa à prevenção da radicalização , a Comissão recomenda que a UE e os
seus Estados-Membros promovam “ iniciativas em países terceiros, com especial ênfase nos países frágeis ou afetados por conflitos, países em transição ou países caracterizados por uma governação deficiente” (Comissão europeia 2013, 12), e compromete-se “[I]ntegrar estratégias de prevenção da radicalização
e do extremismo violento em instrumentos tradicionais de cooperação para o desenvolvimento, especialmente em Estados frágeis vulneráveis ao extremismo violento” (id. 13). Na comunicação conjunta com a
Alta Representante, em texto destacado: “Terrorist organisations will strive to exploit post-conflict or fragile states. In particular, poorly governed areas can prove to be a breeding ground for terrorist recruitment. For example, the activities of Al-Shabaab – which is formally aligned with Al Qaeda – have destabilised Somalia, and severely hindered regional development. Terrorist organisations can act to transmit
the terrorist threat directly back into the EU.” (European Commission e High Representative 2013, 9)
12-
XIII Artigo 2 - A securitização dos Estados falhados
Referências Bibliográficas
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Castillejo, Clare 2011. “Improving European Policy towards Fragile States”. Policy Brief (95). Madrid: FRIDE.
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XIV Artigo 2 - A securitização dos Estados falhados
Informédia
“A Informação via multimédia!”
Tailândia
N
esta edição, procurámos trazer até aos nossos leitores várias análises (de especialistas e analistas, como de costume) acerca da actual crise política na
Tailândia, com possíveis eleições à vista, de um lado, e o perigo de uma escalada da violência (concluída com um golpe de Estado), por outro.
Mantendo a tradição, trazemos três vídeos sobre a matéria. O primeiro, do Stratfor
(a que acrescentámos uma transcrição feita pelo The Manila Times), é uma análise de
Omar Lamrani, o analista militar do Stratfor, guiada por Rodger Baker, Vice Presidente
do Stratfor para análises no leste asiático. Esta análise procura analisar os mais recentes acontecimentos e as possibilidades que se abrem para o futuro. O segundo vídeo, da
CNBC, traz-nos a visão de Simon Cox, Editor económico para a Ásia do The Economist,
sobre as divisões internas na Tailândia e como elas influenciam/irão influenciar o futuro do País, incluindo na sua vertente económica. O terceiro vídeo, da Link TV, é protagonizado por Mark Schneider do International Crisis Group, analisa a possibilidade da
situação se tornar num conflito puramente violento e as probabilidades de violar os
conceitos democráticos e a Constituição, demonstradas por ambas as partes.
1- The Latest on Thailand's Political Crisis — http://www.stratfor.com/sample/
video/conversation-latest-thailands-political-crisis
/
http://manilatimes.net/
conversation-the-latest-on-thailands-political-crisis/70635/
2- Is Thailand's political unity under threat? — http://video.cnbc.com/gallery/?
video=3000239129#
3- Can Thailand's Political Crisis be Solved Peacefully? — http://www.linktv.org/
video/9277/can-thailands-political-crisis-be-solved-peacefully
“The Latest on Thailand's Political Crisis is republished with permission of Stratfor.”
XV
Informédia - Tailândia

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