Violência Jovens Educação Mulheres Reciclagem Música Cotidiano

Transcrição

Violência Jovens Educação Mulheres Reciclagem Música Cotidiano
Violência
Jovens
Educação
Mulheres
Reciclagem
Música
Cotidiano
Meio Ambiente
História
Permanência
COQUE
Editorial
Um novo olhar sobre
o Coque
Comissão editorial
Todo jornalista é comprometido. O que os
distingue uns dos outros é aquilo com o que,
orientados por sua ideologia e ética, comprometem-se. Nesse jornal, nosso compromisso
com a comunidade Coque é bem claro, mas ele
não obliterou nossa visão. Despidos, porém, de
preconceitos, conseguimos enxergar o Coque
na sua complexidade: constatamos seus problemas, mas também suas potencialidades.
Por mais de dois meses, freqüentamos o bairro
e convivemos de perto com jovens ligados ao
Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (Neimfa), ONG que atua há mais de
15 anos na comunidade, parceira na elaboração
desse jornal. Confirmamos o pouco que sabíamos previamente sobre o bairro: sim, o Coque é
um bairro violento. Constatamos o que muitos
não se dão nem ao trabalho de pensar: o Coque
não é tão somente um bairro violento. É também
um lugar com um promissor movimento musical, com experiências sociais singulares, com
um grande histórico de resistência política.
fora do bairro. Apoiados nessas discussões e
nas nossas apurações, propomo-nos a fazer
uma apresentação geral do bairro a partir de
grandes temas que revelam as suas múltiplas
faces. Para entender melhor o Coque, é preciso
buscar as causas e conseqüências perversas da
violência, que tem implicações em toda a vida
da comunidade. É fundamental saber sobre os
jovens e os filhos precoces das suas mãesadolescentes.
É importante lembrar como se deu a ocupação
da área e acompanhar a luta dos moradores
para garantir a posse. É preciso observar como
lidam com a falta de infra-estrutura, com a educação precária, e com o manguezal a partir
do qual o bairro cresceu. É uma questão de
justiça apontar o esforço daqueles que, com
a música, com projetos de formação complementar, reciclagem e geração de renda, tentam
mudar o bairro. Uma visita ao Coque pode desfazer possíveis equívocos.
—
Para elaborar esse jornal, discutimos com seus
moradores sobre a imagem do Coque dentro e
COQUE
Jornal-Laboratório do Curso de Jornalismo
da Universidade Federal de Pernambuco.
6º. Período, 2005.2
Recife, julho/agosto de 2006.
Orientação
Yvana Fechine
Comissão editorial
Ana Carolina Senna
Carolina Vanderlei
João Vale Neto
Luísa Abreu
Mônica Alcântara
Yvana Fechine
Articulação interinstitucional
Ana Carolina Senna(UFPE)
João Vale Neto (UFPE)
Gustavo Neves da Silva (Neimfa)
José Ferreira (Neimfa)
Ridivaldo Procópio da Silva (Neimfa).
Pesquisa
Diego Gouveia
Lucas Lima
Luísa Abreu
Mariana D’Emery
Patrìcia Alves
Projeto
O Coque como
laboratório
Yvana Fechine
Produzido como parte das atividades de uma
disciplina do curso de jornalismo da UFPE,
a proposta do jornal-laboratório é preparar
os estudantes para planejar e produzir uma
publicação, cuja proposta editorial é definida
pela turma. O tema desta edição surgiu de um
pedido de jovens do Coque: queriam ajuda para
fazer um jornal comunitário. O pedido transformou-se em uma proposta que modificou a
própria dinâmica de produção do jornal.
Nesta edição, os alunos trabalharam em grupos compostos também por moradores do
Coque. Em cada grupo, havia três funções e a
responsabilidade de desenvolverem juntos
uma pauta (ou subtema): o repórter redigiria
a reportagem principal; ao que chamamos de
repórter-orientador, cabia escrever um artigo
e, ao mesmo tempo, ajudar o colaborador da
comunidade a produzir seu próprio texto sobre o assunto. As pautas de cada grupo foram
decididas a partir de discussões com os jovens
no Neimfa, ONG que serviu de base nas visitas
ao Coque. Decididos os enfoques, o grupo foi a
campo e, nessa etapa, os moradores da comunidade funcionaram como fontes e como guias.
Levantadas as informações, a segunda etapa
foi a produção dos textos dos colaboradores no
Laboratório de Informática da UFPE. Agora, os
estudantes de jornalismo assumiram o papel de
guias. Trabalhando sobre as idéias e esboços
produzidos pelos jovens do Coque, ajudaram
na adoção de um estilo, na construção do percurso textual, na correção gramatical. Com os
primeiros textos em mãos, começou a dinâmica
de correção e de leituras entre os grupos. Surgiram então muitas sugestões, muitas trocas,
remanejamentos de informações e funções;
três ou quatro versões foram elaboradas até a
última seguir para a publicação. Em todas as
etapas, incluindo a edição, os jovens do Coque
foram ouvidos e opinaram sempre com muita
propriedade.
O resultado é um jornal que funcionou, de
fato, como um grande laboratório, a partir do
qual surgiram importantes discussões sobre
a prática jornalística, sobre os limites de atuação do jornalista e sobre o papel social dos
que optam por essa profissão. O convívio no
Coque também se transformou em um grande
“laboratório social”. Para os jovens da UFPE,
entrar numa comunidade pobre e violenta foi
– na visão de um colaborador perspicaz do
Neimfa – “pedagógico”. E foi mesmo, especialmente em tempos nos quais a classe média se
isola intramuros e o jornalismo se faz cada vez
mais nos “gabinetes”. Para os jovens do Coque,
foi também uma experiência rica: puderam
aprender um pouco sobre o jornalismo, mas
aprenderam bem mais sobre o seu potencial
para construir suas próprias representações
sociais. Para os envolvidos, o jornal foi, antes,
uma prática rara de convívio respeitoso com as
diferenças.
—
Edição
Lucas Lima
Mariana D’Emery
Polyana Targino
Tiago Maciel
Fotografias
Rafael Alves da Silva
Projeto gráfico
Clériston Andrade
Guilherme Luigi
Ilustração
Galo (Coletivo Êxito d’Rua)
Agradecimentos
Ana Andrade, Alexandre Freitas, Ari Cruz, Aurino Lima, Dimas Henrique, Eduardo Duarte, Galo, Guilherme Luigi, Igor
Cabral, Luis Henrique Leal, Nerivanha Bezerra, Virginia
Cavalcanti, Wilma Morais. E, em especial, aos moradores
do Coque e aos voluntários do Neimfa.
Parceiros
Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis
(Neimfa)
Projeto Imaginário Pernambucano - UFPE
Reportagem/Produção de textos
Alissa Farias, Ana Carolina Senna, Carolina Vanderlei,
Cecília Almeida, Conceição Gama, David Diniz, Endie Eloah,
Guilherme Gatis, João Vale Neto, José Juvino Junior, Julia
Veras, Juliana Paes, Julya Vasconcelos, Luisa Abreu e Lima,
Maria Carolina Santos, Mariane Menezes, Mônica Alcântara,
Rodrigo Ferreira, Samara Fernandes, Wagner Sarmento.
Colaboradores da comunidade
Ana Claudia Morais, Carlos Alberto da Silva, Gustavo Neves
da Silva, Joseane Oliveira, José Ferreira, Júnior José da
Silva, Patrícia Maria da Silva, Rafael da Silva Freitas, Ridivaldo Procópio da Silva, Sérgio Souza.
violência
COQUE: um sinônimo de violência?
Por Maria Carolina Santos
Dia 23 de fevereiro. Os moradores da Areinha, na comunidade do Coque, são surpreendidos com tiros disparados sem cerimônia
em plena tarde de sol a pino. Rapidamente,
todas as janelas e portas se fecham. Quinze
minutos depois, enquanto crianças correm
para ver o que aconteceu, a rotina dos moradores volta ao normal. Nem sinal da polícia
que, desde que dois policiais foram mortos
em 2005, realiza na área um policiamento
tão ostensivo quanto ineficiente. Por milagre ou sorte, o alvo dos tiros, João Paulo*,
conseguiu sair ileso dos disparos efetuados
por Cristiano*, membro de uma gangue rival
que luta pelo controle do tráfico de drogas
na região. Hoje na casa dos 20 anos, João e
Cristiano eram amigos na infância e freqüentavam a mesma escola.
A dinâmica do crime que leva dois amigos a
tentarem se matar é uma das facetas mais
cruéis de uma comunidade abandonada pela
sociedade e esquecida pelo Estado. A mesma
violência que quase pôs fim à vida dos jovens,
no entanto, é a única fonte de renda para muitas famílias da localidade, que sobrevivem
graças à ajuda que recebem de parentes envolvidos no tráfico ou em assaltos. Embora
dependam desse dinheiro, as famílias de
adolescentes no crime quase nunca aprovam
essa iniciativa, mas são obrigadas a aceitar.
No Coque, o desemprego beira os 80% e as
condições de vida são desumanas.
Mesmo sofrendo com a miséria, o desemprego
e a falta de saneamento básico e saúde, é a
violência que se destaca quando a mídia fala
sobre o Coque. Maior favela urbana do centro
do Recife, a comunidade fica localizada entre duas ilhas de prosperidade. De um lado,
um dos melhores pólos médicos do Brasil. Do
outro, a Zona Sul classe média. Mesmo assim,
é incomum que moradores dos dois lados entrem na área. O que acontece na comunidade
é visto pelo resto da cidade através da mídia,
que também só vai até lá para cobrir crimes
e homicídios.
Ao longo das últimas quatro décadas a localidade tem freqüentado as páginas policiais
com afinco, seja pelo banditismo social da
década de 1970 ou pelo uso de crianças no
crime. Em 2005, das 93 matérias publicadas
sobre o Coque no Jornal do Commercio, o de
maior circulação em Pernambuco, 78 destacavam a violência. Até mesmo os moradores do
local, ao falar como percebem a violência na
área, citam os meios de comunicação. “Não
podemos ficar na rua depois das 22h, sabemos que aqui é um lugar violento. Escutamos
no rádio e vemos na televisão os crimes que
ocorrem na comunidade. A minha esquina é
como uma televisão, quase todo dia eu vejo
assaltos”, conta a jovem Débora da Silva, de
15 anos.
Para o professor Eduardo Duarte, do Departamento de Comunicação da UFPE, a violência
tem muito espaço na mídia porque desperta
a curiosidade das pessoas. “A imprensa costuma se utilizar da ‘cultura da pinça’, ou seja,
retira o fato do contexto, colocando-o em
uma situação em que tenha mais apelo. A mídia busca o que provoca escândalo, o espetáculo. Por exemplo, quando há alagamento
em São Paulo, os jornais dizem que a cidade
está debaixo d’água quando, na verdade, só
alguns trechos estão alagados. Assim acontece com a violência no Coque, vista de maneira generalizada”, explica.
O repórter Wagner de Oliveira, que hoje trabalha no Diario de Pernambuco, já perdeu a
conta de quantas vezes foi ao Coque fazer
matérias de polícia. Embora a destaque para
a violência seja evidente, o repórter afirma
que não há política editorial para destacar os
crimes. “O destaque é pelo tipo de crime. Por
exemplo, se houver uma morte de um bandido
no Coque e de um turista em outro lugar, a pri-
oridade no jornal é pela morte do turista”, diz.
Mesmo sem intenção, o fetiche da mídia pela
violência no Coque ajudou a transformar a
localidade em sinônimo de violência. Por
tabela, esse estigma atinge os moradores,
prejudicando-os até mesmo para conseguir
emprego. O auxiliar de serviços gerais Carlos
Alberto da Silva, de 22 anos, sofreu na pele
a discriminação. “Já estava tudo quase certo
para eu conseguir um emprego quando eles
pediram meu currículo, onde estava escrito
que eu moro no Coque. Eles nunca mais me
ligaram. Amigos meus haviam dito que havia
esse preconceito, mas eu não havia acreditado”, conta.
Com o escanteamento do Estado e a falta de
preparo da mídia, o bairro se transformou
em um lugar onde violência e pobreza são
associados sem distinção. “No Coque, é como
se todos fôssemos ex-presidiários sem nunca termos cometido crime algum”, sentencia
um líder comunitário do bairro, entrevistado
na tese de doutorado do pedagogo Alexandre
de Freitas.
—
* Os nomes usados são meramente ilustrativos.
03
viol ência
O galeguinho que fez a fama do Coque
Exigimos o respeito da polícia!
Por Maria Carolina Santos
Por Gustavo das Neves Silva
“Galeguinho do Coque não tinha medo, não
tinha. Não tinha medo da Perna Cabeluda...”,
cantava Chico Science, em Da Lama ao Caos,
sobre o bandido que deu fama ao Coque em
meados da década de 1970. A ocupação e
a violência na área surgiram bem antes, na
passagem do século XIX para o século XX,
personificada na figura do capanga. Na época,
para garantir a segurança da exportação
agrária, os donos de engenho contratavam
homens armados para realizar o transporte
da carga do Interior até o Porto do Recife. A
quantidade de bares e prostíbulos presentes
no entorno do Rio Capibaribe logo passaram
a seduzir esses homens, que, com a derrocada do setor açucareiro, foram se fixando
na área que vai do bairro de São José até o
Coque.
A localidade ganhou fama como ponto de desordem e os moradores ficaram conhecidos
como “cocudos”, ou seja, gente de cabeça
dura e pavio curto. No final da década 1960,
o Coque entrou na mídia como um bairro violento, carregando a imagem negativa de que
os moradores protegiam os criminosos. O
principal responsável por esta má reputação
foi o jovem José Everaldo Belo da Silva, nascido na Zona da Mata Sul, que começou a
praticar furtos aos 16 anos na região comercial e portuária do Recife.
Não demorou para que o adolescente, considerado bonito e esperto, alcançasse fama e
fosse procurado pela polícia de quatro estados do Nordeste. Durante quatro anos ele ficou escondido no Coque, ganhando o apelido
que o transformou em personagem lendário
da história policial pernambucana. Ainda
hoje os moradores mais antigos lembram o
dia em que o Galeguinho do Coque assaltou
um caminhão de leite em pó e distribuiu na
comunidade.
Em 1971, ele foi preso e, na cadeia, se
transformou em um homem religioso. Era o
provável fim de uma vida de crimes, mas não
o fim da violência no Coque. Com a prisão do
Galeguinho, o grupo que ele liderava passou a lutar pelo controle da área, dividindo
o local em várias regiões de influência, o que
permanece até hoje. Ao deixar a cadeia, José
Everaldo abriu um pequeno negócio no Alto
do Jordão e se casou. Anos depois foi encontrado morto no município de Moreno, com
uma bíblia ao lado. Ao invés das palavras sagradas, no entanto, o livro era oco e dentro
estava escondido um revólver calibre 38.
—
As maiores vítimas da violência no Coque
Por David Diniz
A pior violência do Coque não é a que transcende os limites da comunidade, e sim a
praticada contra seus próprios moradores.
Na área, a vida vale muito pouco. Grupos de
assaltantes e narcotraficantes dividiram o
local em “territórios” nos quais cada gangue
pratica atividades criminosas livremente
com a condescendência da polícia.
Donas de grande poder dentro de suas áreas
de influência, as gangues cerceiam a liberdade dos moradores. Determinam horários
em que não se pode andar na rua e os obrigam
a conviver com o risco de balas perdidas, oriundas dos constantes tiroteios, em virtude
de suas disputas.
Assaltos e assassinatos acontecem frequentemente, tendo como vítimas os próprios
moradores do Coque. Estes, porém, parecem
não preocupar muito os PMs lotados no
bairro. A polícia, que tem por dever proporcionar segurança também aos que moram no
bairro, além de não fazê-lo, é denunciada por
agredir cidadãos de bem em suas abordagens. Os moradores, acuados pelas gangues
e pelo descaso do poder público, não têm sequer como denunciar.
04
Em uma visita que fiz ao Coque, fui surpreendido, com estouros que vinham de ruas vizinhas. Pensei que se tratava de fogos de artifício, mas eram tiros. O tiroteio entre grupos
rivais que, naquela tarde, causou um visível
constrangimento aos moradores do Coque
que me apresentavam o bairro, revelou apenas uma realidade cruel com a qual eles são
obrigados a lidar cotidianamente.
O medo que senti naquela tarde é um medo
que eles sentiriam todas as tardes se a
violência já não fosse, de algum modo, tão
banalizada. Depois, soube que um dos envolvidos no tiroteio, ao tomar conhecimento
que naquela tarde os seus vizinhos estavam
“com visita”, enviou um pedido de desculpas
– imagino que pelo risco que nos impôs.
O pedido foi ainda mais revelador, pois
parece ter confirmado que se a violência for
dirigida contra “os de casa” e ficar “dentro
de casa”, tudo bem.
—
(colaborador)
Como morador do Coque, vejo com frequência
as abordagens policiais na comunidade. Noto
o estilo desrespeitoso e truculento dessas
práticas. Sabemos que a questão da segurança, e o dever da policia de proporcionála, pode exigir algumas vezes o uso da força,
mas, no caso da comunidade, moradores de
bem e malfeitores vêm sendo tratados da
mesma forma.
que ele parasse de bater no rapaz, obtendo
como resposta também um tapa na face.
Posso dar testemunho disso, lembrando que,
em plena hora do almoço, enquanto eu e meus
amigos estávamos na Rua Imperial, indo para
uma reunião de trabalho, fomos abordados
por um policial, que ordenou grosseiramente
que encostássemos em um muro. “Encoste
e ponha a mão na cabeça”, disse ele. De
forma grosseira, ele tomou a carteira de um
dos meus amigos e começou a examiná-la.
Quando o dono da carteira olhou para trás
para ver o que estava sendo feito com ela, o
policial falou em tom de chacota: “Tá olhando
por quê? Aqui só tem dois reais!”.
É inaceitável que nossa comunidade precise
agüentar diariamente tamanho desrespeito.
Gostaria de crer que esse tipo de tratamento
não está relacionado com nossa condição
social e que a policia não vê cada morador
do Coque como um marginal. Mas não dá para
acreditar.
—
Gustavo das Neves Silva, 17 anos ,é estudante do 2º ano do Ensino Médio, aluno
do Curso de Agente de Desenvolvimento
Comunitário e integrante do Núcleo de Articulação e Desenvolvimento Comunitário
(NADC) / Divisão de Comunicação Social da
ONG Neimfa.
Outro dia, quando retornava da escola, presenciei outra abordagem da polícia contrária
aos Direitos Humanos. Vi um morador da
comunidade sendo agredido com um tapa
de um PM. Nesse momento, uma adolescente
que passava no local indignou-se com a atitude, aproximou-se do policial e pediu para
Infelizmente, fatos assim acontecem com
freqüência no Coque. É comum ver pessoas
de boa índole sendo agredidas publicamente,
sem nenhum motivo que justifique tais ações
dos homens fardados, pagos para garantir a
segurança de todos. A nossa, inclusive.
viol ência
Entrevista :
Alexandre Freitas
Violência simbólica: um problema do Coque
Por David Diniz e Maria Carolina Santos
O pedagogo e professor da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), Alexandre
Simão de Freitas, 32 anos, é dono de uma
visão única sobre o Coque. Mesmo sem morar
na comunidade, Alexandre freqüenta o local
quase que diariamente há mais de 15 anos,
desenvolvendo atividades sócio-educativas
no Núcleo Educacional Irmãos Menores de
Francisco de Assis, o Neimfa, como é mais
conhecido. Assim, ao mesmo tempo em que
conhece a rotina e as dificuldades da comunidade, também pode ser capaz de ter um olhar
“de fora”. Em 2005, a comunidade foi tema de
sua tese de doutorado. Na pesquisa, ele estudou o funcionamento das redes sociais no
local, discutindo questões como a violência
e a imagem social do Coque, temas sobre os
quais conversamos na entrevista abaixo.
Como o senhor descreve a violência no
Coque?
Há dois grandes tipos de violência na comunidade. Uma é a mais óbvia, a violência material, revelada principalmente pela falta de
acesso às condições mínimas para a sobrevivência com dignidade. Uma segunda forma
é a violência simbólica. Ao se representar o
Coque como a “morada da morte”, estamos
contribuindo para gerar um estigma social
sobre as pessoas que habitam a comunidade.
Atualmente, esse tipo de violência, uma violência invisível, vem sendo mercantilizada,
fazendo notícias.
Quais as causas da violência na comunidade?
O abismo provocado pelas desigualdades sociais é, sem dúvida, o principal responsável
pelos problemas estruturais que dão margem
à ruptura dos vínculos sociais na localidade.
Há, também, uma desestruturação das redes
familiares. E as próprias mudanças na cultura dos adolescentes e jovens. Temos uma
sociedade que estimula muito o consumo. Os
jovens estão na fase de construção de sua
identidade e a mídia contribui para o espelhamento dessa identidade. Ela dita o que se
veste, o que se calça, e estimula a busca por
esses bens. Todos esses fatores têm culminado com a expansão de um ethos da violência que é apenas sintoma da lógica cultural
vigente.
A violência no Coque é então um fenômeno
ligado aos jovens?
Atualmente sim. A participação dos jovens
como atores, mas, sobretudo, como vítimas
da violência é um fato social. É importante
ressaltar, portanto, que no Coque há menos
de um 1% dos jovens envolvidos com o
crime. No entanto, são eles que vão para a
linha de frente. O problema é encontrado no
que não se vê nos documentários e nas reportagens sobre a participação dos jovens
no crime: os líderes dos grupos criminosos,
os fornecedores das armas, os responsáveis
pelo narcotráfico. Onde estão esses atores?
Por que a presença desses sujeitos não tem
visibilidade nos discursos que se produzem
sobre a violência associada aos jovens da
comunidade?
Em sua tese o senhor coloca que o acesso
às armas é quase irrestrito. Onde eles conseguem essas armas?
É possível obter as armas com quem tem o
direito legítimo de portá-las. Depois disso,
elas circulam e há outras formas de acesso.
Inicialmente, quando os meninos começam
a ser seduzidos pelas redes do crime, os
líderes normalmente emprestam a arma durante um período curto de tempo. Depois ele
diz: “agora você vai comprar a sua”. Essa é
uma das razões de ocorrer tantos assaltos
nas imediações da comunidade, porque os
adolescentes têm que obter dinheiro para
pagar a arma.
Quais as conseqüências dessa violência
para a vida da comunidade?
Em primeiro lugar, há o isolamento provocado pela fama de “comunidade violenta”.
Ao gerar esse tipo de perfil, produz-se uma
estigmatização de quem mora lá, que dificulta inclusive a circulação dessas pessoas em
outros grupos sociais. Muitos moradores ao
procurarem emprego omitem nos currículos
que moram no Coque.
A medida do governo para tentar controlar
a violência no Coque tem sido o policiamento ostensivo na área. O que o senhor
acha disso?
A presença é apenas aparente, ficando concentrada nos arredores da comunidade. A lógica tem sido a de impedir a ação criminosa, e
não a de oferecer outras possibilidades para
os jovens. Atua-se no plano repressivo imediato, o que é importante, mas não resolve
a questão. Eu, que não moro lá, reconheço
imediatamente como está o “clima”, ou seja,
quando as atividades vão iniciar. Como é
que o sistema de segurança, que possui uma
área de inteligência e que está localizado lá
dentro, não consegue reconhecer essas pessoas? Há uma contradição nesse processo de
controle da violência na região.
Há soluções para o problema da violência
no Coque?
A médio e longo prazo, sim. São soluções
de peso que exigem a articulação do setor
público, das associações locais da comunidade e do empresariado que margeia a área.
É preciso redistribuir os recursos públicos,
criando alternativas concretas de inserção
social para as pessoas que vivem no Coque.
Não podem ser apenas programas paleativos,
como se tem feito no âmbito federal e local,
mas programas que promovam efetivamente
empregos e gerem renda formal, resultando
em verdadeira inclusão social.
05
jovens
Retratos da Juventude
Por Cecília Almeida
Uma conversa quase informal, não fosse
pelo gravador encarregado do registro sonoro, para a elaboração de uma reportagem.
O objeto fora levado por dois estudantes de
jornalismo, em sua primeira visita ao bairro
do Coque. Diante deles, outros três jovens,
residentes da comunidade, dividiam a sala.
Dois repórteres, dois entrevistados e um
amigo em comum, para mediá-los. Os universitários sentem-se à vontade, ao perceberem
a eloqüência dos rapazes que iriam entrevistar. Sentem-se próximos deles, parecidos
por terem a mesma faixa etária.
Até que um dos jovens do bairro lembra a
discrepância entre suas realidades: a maior
parte dos seus amigos de infância, hoje, só
pode ser lembrada através dos álbuns de fotografia. Quase todos, conta, estão mortos.
Quem levantou a voz foi Luiz Vicente. De
seus 22 anos, 17 foram vividos dentro do
bairro do Coque. Evangélico, ele faz parte
de uma associação não organizada. Trata-se
da APPC – Amor Pela Comunidade do Coque
–, que desenvolve atividades regulares com
os jovens do local, na tentativa de levantar
a auto-estima dos que participam do grupo.
O segundo jovem é Gleisson Ramos, 20 anos.
Morador do Coque há nove anos, já perdeu
três de seus cinco irmãos. O crime sempre
esteve por perto, afastando-o de seus conhecidos. O rapaz também se juntou à Igreja
06
Evangélica, o que considera ter sido de
grande ajuda para controlar seus impulsos
“vingativos”, como ele coloca.
Os dois contam que é difícil caminhar pela
honestidade num lugar em que o crime
parece ser o caminho natural. As crianças
são apresentadas cedo a esse mundo, e logo
estão realizando pequenos furtos, que tendem a evoluir. Começam, por exemplo, com
uma fruta e, antes de perceberem, estão
roubando o som de um carro. É complicado,
especialmente nessa fase, distinguir o limite
entre o permissível e o “fora da lei”. Luiz e
Gleisson foram bem sucedidos nesse ponto,
afastando-se do crime, ainda procurado por
muitos jovens.
O grande catalisador desse processo, para
Luiz, é a ociosidade. A escola, de má qualidade, não motiva o jovem a estudar. É difícil
praticar esportes, já que até a quadra de
futebol do bairro é de difícil acesso. Assim,
sem garantias de uma formação saudável, a
auto-estima do adolescente diminui.
A maneira mais prática de resgatá-la é através da afirmação de sua identidade diante
de seus conhecidos, o que pode ser um passaporte para a ilegalidade.
A identidade de um indivíduo se estabelece
lentamente, a partir de suas relações com o
meio em que vive. Numa comunidade margi-
nalizada, como o Coque, é difícil ser reconhecido pelo caminho honesto. Isso coloca o
adolescente em um círculo de pressões, onde
ele se torna mais vulnerável às atividades
desonestas, especialmente num local onde
as figuras que representam autoridade são
os criminosos.
Afinal, eles têm as armas, as mulheres, o dinheiro, e, enfim, o ‘respeito’. São eles, também, que ajudam a pagar as contas de familiares ou oferecem proteção contra gangues
ou da polícia. Toda essa boa vontade se torna
uma dívida “moral”: o adolescente sente que
precisa retribuir de alguma forma e acaba
se tornando parte desse mundo. É um engenhoso ciclo que sufoca quem vive na comunidade.
A sociedade isola o bairro, inviabilizando
oportunidades de emprego por conta do
preconceito. Ao mesmo tempo, as pressões
internas da comunidade empurram o jovem
para o crime.
Para aumentar sua força de vontade na escolha pelo caminho “certo”, a dupla faz
questão de citar a religião. Não a religião
evangélica, necessariamente, mas apenas a
existência de uma filosofia de vida, de uma
crença. Luiz chega a afirmar que “tudo que
está no mundo, está na Bíblia”. O jovem também crê que, só de pensar em tomar um bom
caminho, Deus dará condições para que ele
consiga esse objetivo, cedo ou tarde.
Mas essa escolha não é tão simples assim.
No Coque, como na maioria das comunidades
de baixa renda, todas as grandes mudanças
acontecem mais cedo. O primeiro cigarro, a
primeira cerveja, a primeira aventura sexual.
Quando o assunto é sexo, Luiz e Gleisson
silenciam por alguns instantes. Em seguida,
vem a resposta, quase em forma de lamentação: os meninos iniciam a vida sexual assim que têm condições físicas, e as meninas
por volta dos 11 anos.
Crescer em meio a valores tão contraditórios
é uma experiência conturbada. Mas Luiz e
Gleisson se saíram bem e fazem planos. Luiz
pretende organizar sua vida para se inscrever em algum curso de Marketing. Gleisson deseja trabalhar com pedagogia.
Os dois sonham em mostrar para o Recife
que os jovens do Coque também são capazes
de produzir coisas boas. Ressaltam, entretanto, que isso só pode acontecer quando
a sociedade deixar de tratar o bairro como
uma causa perdida. E nisso, com certeza,
eles têm razão.
—
jovens
Em meio às fronteiras invisíveis
Por Júnior José da Silva
Aos seis anos, presenciei o primeiro ato de
violência da minha vida: um rapaz envolvido
com o tráfico de drogas foi morto por um rival na rua em que eu morava. Porém, só aos
11 anos eu passei a ter contato direto com
esse mundo. Passei a ter muitos conhecidos
envolvidos com o mercado ilegal e, nessa
mesma época, surgiram diversas gangues
rivais. Andar armado se tornou normal e a
polícia quase não aparecia. Os tiroteios entre gangues eram constantes. Eu nem me assustava mais.
Ainda aos 11 anos, comecei a fumar maconha,
por curiosidade. Afinal, as coisas mais fáceis
de arrumar no Coque são drogas e armas.
Terminou que eu e meus amigos entramos
no grupo de um cara envolvido com o tráfico
de drogas, enquanto outros amigos meus se
afastaram de mim. Fiquei nessa dos 11 anos
aos 16. O rapaz mais velho tinha a boca-defumo e, como sempre existiu essa rivalidade
entre os grupos e aparentemente eu estava
do lado dele, me envolvi na guerra sem perceber. Eu só falava com esse cara pra fumar.
Fui jurado de morte e, aos 14 anos, passei
a andar armado. Uma noite, estava voltando
para casa e tinha um grupo da gangue rival
me esperando. Eles dispararam alguns tiros,
mas terminei fugindo por um beco e pulando
(colaborador)
as cercas que separavam as casas umas da
outras, até chegar ao meu quintal.
Decidi sair de lá, mas só consegui passar
uma semana fora. Voltei por conta da saudade de casa. Por insistência do meu pai,
ao contrário do que outras pessoas diziam,
continuei no Coque. Passei um tempo trancado em casa, enquanto a comunidade estava
em ebulição. Um grupo estava aniquilando
a gangue que tinha atentado contra mim,
pois esta estava criando muitos problemas
na comunidade. Quando mataram o chefão,
minha mãe me acordou pra contar. Recebi
apoio da família e dos amigos que tinham se
afastado e me livrei das drogas e do pessoal
do tráfico. Ainda assim, permaneço tratando
bem todo mundo. Minha mãe me dizia: “seja
amigo dos bons e dos ruins porque se você
não tiver problemas com ninguém, facilita a
sua liberdade dentro da comunidade”. Tento
seguir esse conselho, mas sem julgar ninguém, consciente que as fronteiras entre os
envolvidos e os não envolvidos com atividades ilegais no Coque é quase invisível.
Principalmente pra quem olha de fora.
—
jovens
População de
anos
de 15 a 22
l é composta
opulação tota
- 12,96% da p
por jovens.
do
mulheres, sen
o
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anos e 62,55%
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18 e 22 anos.
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jovens. Deste
22
1% entre 18 e
17 anos e 54,0
to
Desenvolvimen
Fonte: Atlas do
de 2000.
Recife. Dados
Humano no
Jovens X Educação
De 15 a 17 anos:
- 58,70% estão na escola;
- 87,91% têm menos de
oito anos de estudo;
- 42,88% têm menos de
quatro anos de estudo;
- 12,40 são analfabetos.
De 18 a 24 anos:
Júnior José da Silva tem 23 anos, mora no Coque há 19 e está no quarto ano do magistério.
Há sete anos não tem mais contato como tráfico de drogas.
- 0,82% têm doze anos de
estudo;
- 74,51% têm menos de
oito anos de estudo;
- 26,60% têm menos de
quatro anos de estudo;
- 12,91% são analfabetos
;
- 0,0% tem acesso ao cu
rso superior.
Fonte: Atlas do Desenvo
lvimento Humano no Recif
e. Dados de
2000.
Através do Espelho
Por Rodrigo Almeida
No Coque, aos seis anos, algumas crianças
já estão trabalhando vendendo pipoca e
picolé na estação Joana Bezerra. Provavelmente já cruzamos uma ou dez ou dez
milhões de vezes com diversas delas e
nunca nos demos conta de suas existências. Nessa mesma idade, eu estava sendo
alfabetizado e não me sentia invisível aos
olhos estranhos.
ganharam ao menos um filho. Eu acabava
de entrar no ensino médio, nenhuma amiga
minha estava grávida e aos 17 anos passava no vestibular de Jornalismo. Enquanto
isso, quantos no Coque tiveram acesso ao
ensino superior? Provavelmente dez dentro de uma realidade que abriga 48 mil,
segundo Aurino Lima, um dos fundadores
do Neimfa.
Na comunidade, aos 11 anos, algumas dessas mesmas crianças fumaram maconha,
tiveram a primeira experiência sexual e
outras tantas já estão envolvidas no tráfico. Eu entrava na quinta-série e despertava para as possibilidades do meu corpo.
Por volta dos 14, 15 anos, os jovens da
comunidade, provavelmente, já tiveram
acesso a uma arma e muitas garotas já
A expectativa de vida desses jovens, segundo eles mesmos, era de 20 e poucos
anos. Exatamente a minha idade atual.
Não há dúvida, que existe um momento
crucial em nossas vidas, onde nossos caminhos se distanciam por completo.Por
esse ângulo fica clara a lacuna social que
nos separa, e, ao mesmo tempo, evidencia-
se a intriga sobre o laço que nos une. Nossas trajetórias eventualmente se cruzam,
eventualmente se tocam, mas quase sempre terminam em situações díspares. Tanto
no Coque quanto no Espinheiro, na Torre ou
em qualquer outro bairro de classe média
é normal que jovens subam em árvores de
terrenos vizinhos para pegar frutas. Mas,
provavelmente, nem no Espinheiro nem
na Torre esses mesmos jovens estarão na
seqüência juntando dinheiro para comprar
uma arma e planejando um assalto maior.
Tanto no Coque quanto no Espinheiro é
normal que uma parte dos jovens fume
maconha duas ou três vezes por semana,
mesmo que seus pais ignorem.
tráfico prontos para matar ou morrer por
uma boca-de-fumo.
Nossas trajetórias eventualmente se espelham. A rebeldia se espelha. A curiosidade
e os hormônios se espelham. A juventude
em si, e da forma que for, se espelha. Já a
experiência de vida nos diferencia e mostra que vivemos dilemas semelhantes em
mundos bem distintos. As conseqüências
só podiam ser diferentes. A nossa juventude se complementa, une duas extremidades distantes, e converge fatalmente
para uma semelhança. E, por um segundo,
ainda somos iguais.
No entanto, em nenhum dos dois bairros
esses mesmos jovens se tornarão filhos do
07
educação
De educação e vidas
As histórias pessoais por trás dos problemas educacionais da comunidade do Coque
Por Carolina Vanderlei e Julya Vasconcelos
Márcio tem dez anos e mora no Coque desde
que nasceu. É negro e cultiva os cabelos
pintados de loiro no alto da cabeça. É uma
dessas crianças de fôlego alucinante, muito
embora pareça até tranqüilo à primeira
vista. Não sabe ler ou escrever, e está fora
da escola desde o ano passado, segundo ele,
porque lhes roubavam o lápis e a borracha, e
a diretora “não queria saber”.
Apesar de não estar na escola, Márcio sonha
seguir uma profissão: integrar o exército
para “treinar e prender ‘os ladrões errados’”.
Perguntado se haveria uma segunda opção,
ele responde com um surpreendente “professor de teatro”. A falta de conexão no raciocínio de Márcio, entre educação e realização
profissional, parece ser algo aferido pela
comunidade. Apenas 18% dos jovens acreditam que a educação pode ajudar no alcance
de um emprego.
Aparentando ter algo em torno dos 50 anos,
a mãe de Márcio, Jacilene Francisca Rocha,
tem somente 38. A casa, de muro azul desbotado e um portão improvisado, abriga
ainda uma neta, Valeska, de 4 anos, e seu
marido, Valdomiro, 32, padrasto de Márcio.
Jacilene não sabe sequer escrever o próp-
08
rio nome, e muito menos identificar a linha
de um ônibus: “eu quero pegar um ônibus e
não posso, porque não sei ler. É ruim, né?
Aí eu não saio pra canto ne-nhum”. Já Valdomiro sabe o mínimo para, pelo menos, se
locomover pela cidade, mas confessa o seguinte: “eu não sei é juntar as letras, ler um
pouquinho eu sei. Estudei até a 3ª série”.
Ambos, quando questionados sobre seus
sonhos, apesar do cons-trangimento visível
em falar do assunto, assumem que gostariam
de ser cantores: Jacilene de brega, Valdomiro
de pagode. Quando alguém pergunta aos pais
ou a Márcio quando ele voltará para o colégio, nenhum deles parece muito preocupado.
A escola não é, para eles, uma necessidade.
A educação formal
Márcio não é o único a desvincular seu futuro
da educação formal. Segundo Aurino Lima,
psicólogo e co-fundador do Neimfa (Núcleo
Educacional Irmãos Menores de Francisco
de Assis), os moradores do Coque não vêem
a educação como forma de ascensão social,
sobretudo porque dentro da própria comunidade não há exemplos que comprovem
e estimulem esse pensamento. “De forma
geral, os rapazes daqui conseguem aumen-
tar seu poder aquisitivo através do crime,
e as mulheres casando-se ou entrando para
a prostituição”, comenta. Segundo o Atlas
de Desenvolvimento Humano do Recife, em
2000, apenas 5,4% dos adolescentes do
Coque estavam cursando o Ensino Médio.
Apesar dos graves problemas que o bairro
enfrenta com a educação, certos exem-plos
de dedicação são louváveis. É o caso de
Marilene, diretora da Escola Estadual Nossa
Senhora do Carmo. Mesmo com a amargura de
quem vive num lugar perdido no mapa da cidade, e principalmente no mapa da educação,
Marilene mantém um espírito empreendedor
e conta que briga para manter a escola de pé.
Na realidade, o colégio da dona Marilene não
passa de uma pequena casinha na Realeza
(uma das muitas regiões em que se divide
o bairro), onde, para se locomover de uma
sala de aula para o banheiro, é inevitável
não invadir as salas das outras turmas. No
intervalo, os alunos sentam e lancham em
um estreito corredor de pouco mais de 1,50m
de largura. Um feijão cheiroso está sendo
cozinhado enquanto a diretora nos mostra
as dependências. A estrutura física do prédio é precária, mas percebe-se uma atmosfera acolhedora. Marilene nos diz que, além
de alunos, outras pessoas da comunidade,
na hora da merenda, se colocam em fila na
porta do colégio, e que ela alimenta a todos,
até que a panela esvazie. Fala também que,
quando encerram os estudos, muitos ex-alunos entram no crime. Não há o depois da escola. A educação, nas poucas vezes em que é
iniciada, se interrompe na saída do colégio.
A história de Márcio se entrecruza com
a de Lígia
A cerca de vinte minutos da casa de Márcio
e na mesma região da escola da Dona Marilene, mora Lívia, ex-aluna do Costa Porto e
da Nossa Senhora do Carmo (ambas escolas
da região). Ela vive no Coque, como Márcio,
desde que nasceu. Filha de mãe ajudante
de merendeira e semi-analfabeta “que sabe
apenas ler e escrever o nome”, e de pai
mecânico, que cursou até a quarta-série,
Lívia já teve que traba-lhar cuidando de um
casal de idosos para ajudar nas despesas da
casa. Quase todas as amigas de infância da
estudante são mães e tiveram de interromper os estudos, antes mesmo do término do
ensino fundamental. Nenhuma delas almeja
o ingresso na Universidade. Lígia, porém, é
uma rara exceção.
educação
A educação informal como saída
Por Carolina Vanderlei e Julya Vasconcelos
Numa comunidade em que há tantos problemas na educação formal, existe uma
movimentação natural que tenta suprir essa
carência e encaminha seus projetos através
da educação informal. Neste âmbito, destaca-se o Neimfa, criado em 1987. Nascido sob
uma ideologia religiosa, é uma instituição
que trabalha os valores espirituais, no sentido mais amplo da palavra: religião, educação, ética, intervenção social, bem-estar.
Foi transformada em uma Organização nãogovernamental em 1998, quando começou a
desenvolver projetos de repercussão social
mais ampla.
Trabalhar a educação e a formação numa
concepção diferenciada é o mote da entidade, que oferece diversas oficinas e cursos.
Dentre eles, o Cores do Coque (reciclagem),
Assistência à gestantes (existente desde
1987), Formação de valores humanos e cultura de paz (cerca de 120 jovens e 250 crianças) e o Grupo de Formação de Educadores
Holísticos (criado há dois anos e meio, e com
duração de cinco anos).
Segundo Gustavo, 17 anos, que faz parte do
curso de Agentes de Desenvolvimento Comu-
nitário, o Neimfa trabalha “de acordo com as
demandas da comunidade”, e se pauta pela
necessidade de “formação para jovens, para
que possam ser desenvolvidas intervenções
na comunidade, e até mesmo fora do Coque”.
Ele explica que o diferencial do núcleo é esse:
proliferar essas informações. Conta que o
acesso livre à casa é de grande importância
na relação que se estabelece entre o jovem
do Coque e a Organização não-governamental: “Nós temos uma liberdade muito grande
e podemos freqüentar a casa sempre. Os professores sempre estão aqui e há uma cumplicidade entre nós”.
Em média 450 pessoas são atendidas pelo
Neimfa e 90% dos que trabalham na casa são
voluntários. Em dezembro do ano passado,
foram contabilizados 82 voluntários e cinco
funcionários.
—
Participar, uma condição necessária!
Por Gustavo das Neves Silva
A jovem de 19 anos, de sorriso aberto e pele
morena, ultrapassou barreiras impostas
pela sua condição social e foi aprovada no
vestibular da Universidade de Pernambuco
(UPE) para o curso de Ciências Biológicas.
Perguntada se sente orgulho de si mesma,
ela responde com um enca-bulado e sincero
“sim”. E tem motivos. De acordo com Aurino,
dos 48 mil habitantes do Coque, estima-se
que, no máximo, dez estejam cursando o ensino superior.
Motivada, Lígia entrou em um cursinho prévestibular gratuito e resolveu agora prestar
concurso para Serviço Social na UFPE. Ela
tentará seguir a profissão pela qual se
apaixonou quando participou da Ong CasaMenina-Mulher, que trabalha com jovens e
crianças do bairro dos Coelhos e proximidades. “Eu comecei a observar o trabalho da
assistente social com os meninos de rua e
aquilo me tocou”. Foi na ONG que ela percebeu a importância da educação. “As pessoas,
em geral, não enxergam que a educação é um
patrimônio, que a escola deve ser respeitada
e cuidada. Falta a consciência da importância do que a gente pode conseguir através
dela”.
Para Lívia, o que impede os jovens de progredirem por meio da educação não é apenas
a falta de um ensino público de qualidade.
Faltam também aos habitantes do Coque autoconfiança e alguém que lhes mostre que é
possível chegar lá. “Uma amiga minha contou
que, quando a professora falou que queria
ver todos os alunos presentes na universidade, a risada foi geral. Todos sabem o peso
de morar no Coque, do preconceito que a
gente encontra lá fora. Daí, ela falou de mim.
Todo mundo ficou em silêncio. Quem sabe não
surgiu neles uma esperança”.
—
Li no site de uma escola a seguinte frase: “A
educação não transforma o mundo, a educação transforma as pessoas, e as pessoas
transformam o mundo”. Isso me fez refletir
profundamente sobre o papel da educação
na minha própria vida, pois vejo nela a oportunidade de conseguir uma transformação
pessoal e social. Devo essa visão e parte da
minha formação à minhas experiências no
Neimfa.
No núcleo, a educação é vista como uma
“ação” política, o que ultrapassa a idéia de
educação apenas como uma formação “escolar”. Foi esse paradigma que me proporcionou
uma consciência de mundo, senso crítico,
além de um desejo de mudança e a crença de
que o ponto de partida para a constituição de
uma sociedade, verdadeiramente democrática em seu sentido mais amplo e respeitador
dos Direitos Humanos, está na participação e
no exercício consciente de seus direitos de
cidadania.
Essa formação possibilitou ainda uma alteração significativa na minha forma de ser e
agir, e de me preocupar com a transformação
do meu bairro. Tenho me dedicado ao máximo
à desmistificação da imagem negativa do
Coque, à percepção perversa que a sociedade possui sobre nossa comunidade. Hoje,
acredito que tudo é possível, até mesmo um
(colaborador)
outro Brasil é possível, desde que se invista
na educação dos jovens.
—
Gustavo das Neves Silva é estudante do
2º ano do Ensino Médio, aluno do Curso de
Agente de Desenvolvimento Comunitário
e integrante do Núcleo de Articulação e
Desenvolvimento Comunitário (NADC) /
Divisão de Comunicação Social da ONG
Neimfa.
Educação no Coque
- Taxa de analfabetismo
em 1991:
33% da população.
Em 2000: 20% da populaç
ão;
- Tempo médio de anos es
tudados
1991: 3,1 anos.
Em 2000: 3,9 anos.
Fonte: Atlas do Desenvol
vimento Humano
no Recife. Dados de 2000
.
09
mulheres
As meninas-mães do Coque
A submissão como regra
Por Alissa Farias e Samara Fernandes
O calor das 15 horas não intimida o grupo.
Cerca de 20 meninos, com pés no chão e cabelos descoloridos, correm num vai-e-vem
pelas ruas do bairro. É sexta-feira, véspera
de Carnaval, e os garotos com bombas de
cano às mãos riem à toa com a água retirada do esgoto a céu aberto escorrendo por
seus corpos miúdos. Enquanto isso, algumas
meninas estão sentadas na calçada e, com
os olhos apertados pela luz do sol, tentam
observar todo o mela-mela. Um outro grupo
prefere o futebol às brincadeiras momescas
e se diverte ao discutir se a bola saiu ou não
pela linha de fundo. Caminhando por algumas
ruas, garotas se revezam na arte de fazer
trancinhas nos cabelos e prendê-las com
elásticos coloridos.
Não tem importância o dia e o caminho escolhidos para percorrer o Coque, as muitas
crianças sempre estão lá, descalças, brincando. Elas aparecem do onde menos se espera, são muitas e iguais: tamanho, roupa,
cabelos, modo de andar, falar, olhar, sorrir. É
mínima a quantidade de pessoas mais velhas
a acompanhá-las. Uma ou outra adolescente
de 15 anos parece cuidar de uma infinidade
de meninos. Quase sempre dão liberdade, e,
de longe, sem muito o que fazer, jogam conversa fora. São elas as meninas-mães dessa
comunidade que, de acordo com o Atlas de
Desenvolvimento Humano do Recife, apre-
senta a maior proporção de genitoras entre
15 e 17 anos, já que 30,21% das mulheres
nessa faixa etária têm pelo menos um filho.
Atraídas pela boa condição financeira e o respeito que os rapazes impõem na comunidade,
muitas meninas se envolvem, desde cedo,
com os jovens ligados ao tráfico. A partir daí,
passam a dar e receber apoio, tornando-se
suas companheiras. Mas para esses jovens
não é interessante apenas uma mulher, pois
quanto mais tiverem, maior seu prestígio. Em
paralelo ao relacionamento com a namorada,
costumam então existir as amantes.
Das relações instáveis surgem os filhos,
e eles conferem alguns dos privilégios à
mulher diante do parceiro, mas dificilmente
trazem responsabilidades. As crianças não
modificam a vida dos jovens pais. Geralmente
são as avós que acabam por criá-las
O problema da gravidez precoce no Coque
agravou-se há cerca de três anos. Mas há
18 anos as dificuldades enfrentadas pelas
futuras mães da comunidade já preocupava
Dona Luíza Margarida. Foi quando ela criou
o projeto Gestantes do Coque, tríade da personificação de Deus – beleza, graça e prosperidade. Ao longo desses anos, a iniciativa
foi adquirindo um outro perfil em função da
nova realidade no bairro e, hoje, discute as
transformações na vida das meninas com a
maternidade. Em um ano, três a quatro turmas passam pela sala do projeto no Neimfa
(Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis).
O primeiro grupo desse ano reúne 22
gestantes. Muitas já são mães: garotas de 16
anos que esperam o segundo filho, quando
o primeiro ainda nem completou o segundo
ano de vida. De acordo com uma das monitoras do projeto, essa turma é um pouco mais
experiente; a anterior tinha como mascote
uma garota de 12 anos, com sete meses de
gestação. O encontro inicial busca respostas para as perguntas: “O que significa estar grávida?”, “O que mudou em minha vida
com a gestação?”. Silêncio predomina por
instantes, mas algumas respostas começam
a brotar e revelam a imaturidade, o desinteresse pelo planejamento familiar e formas
de prevenção. Logo, a conversa que se inicia
com uma tímida fala a respeito dos filhos
chegarem por “vontade de Deus”, vira uma
discussão sobre assumir as responsabilidades por seus atos, o controle sobre o próprio corpo, a condição da mulher.
provocou olhares de indignação e conformismo. Os de indignação partiram das orientadoras do curso e de algumas vítimas, que,
quando apanharam, deram o troco na mesma
moeda, demonstrando sua altivez: “posso
até apanhar, mas também vou pra cima dele;
apanhada não fico”, garantiu uma delas.
Os olhares de conformismo vieram da maioria das gestantes, que em qualquer momento
esconderam o temor de perder a vida pelas
mãos daquele que já foi sinônimo de proteção. O silêncio cúmplice da submissão contrasta com a algazarra das brincadeiras de
criança bem parecidas com aquelas que lhes
divertiam não faz muito tempo.
—
No Neimfa, jovens gestantes têm acompanhamento.
A violência dos jovens contra as companheiras é outro problema sério na comunidade. A
fala de uma das meninas é reveladora: “quem
aqui nunca apanhou do marido?”. A indagação
Gravidez
- Recife ocupa o segundo lugar entre as capitais nordestinas em proporção
de adolescentes de 15 a 17 anos com filhos: 8,13% em 2000. A maior taxa é a
de Maceió (10,49%).
- O bairro de Ilha Joana Bezerra e a Zeis Coque formam a Unidade de
Desenvolvimento Humano (UDH) que tem maior proporção de mães com 15 a
17 anos: 30,21% das mulheres nessa faixa etária têm pelo menos um filho.
Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Recife. Dados de 2000.
Aposta nas exceções
Por Patrícia Maria da Silva
O fato de morar no Coque já gera preconceitos e esses são redobrados para com as mulheres, que ainda convivem com a violência
doméstica e são consideradas inferiores.
Por quê? Porque há o pensamento machista de
que a mulher foi feita para estar com a barriga no fogão, pronta para servir seu marido,
a qualquer hora, e nunca se interessar pelos
“assuntos de homem”. Enfim, precisa ser “um
bicho que deve sempre depender dele, e que
10
(colaboradora)
nunca deve ser maior do que o homem”.
Mas, com esforço e conscientização, pode
se mudar essa visão de submissão que, no
Coque, é agravada pela gravidez precoce.
Uma prova dessa mudança entre as mulheres é S.M.G., 17 anos, moradora do Coque,
que cursa o segundo ano do Ensino Médio no
Colégio Sizernando Silveira. Para ela, ser
mulher está além do físico: “é se valorizar,
ter amor próprio, gostar de você e nunca se
colocar para baixo; ser autêntica”. Ela vai
de encontro com a visão majoritária da sua
comunidade ao afirmar que ser mulher é “ser
independente, mesmo que se tenha um marido em casa. É não ter que pedir nada a ele.
Fazer o que quiser e quando quiser. É ter uma
visão ampla do mundo e ter seus próprios
projetos de vida. É ter uma beleza interna e
externa”.
—
Patrícia Maria da Silva Santos, moradora do
Coque, é estudante de Magistério e educadora
social da ONG Neimfa. Também atua, há cinco
anos, no Orçamento Participativo junto à
Prefeitura da Cidade do Recife.
Cor do Coque
Papel, cor e cidadania
Por Julia Veras
São bloquinhos, cadernos, porta-incensos,
objetos graciosos que poderiam estar à
venda em qualquer magazine. O que os diferencia de quaisquer outros encontrados
em lojas da cidade é a história e as pessoas que estão por trás desses produtos. O
nome da marca, Cor do Coque, dá uma pista
de sua origem. Eles são fabricados em uma
unidade produtiva alojada no Neimfa (Núcleo
Educacional Irmãos Menores de Francisco de
Assis), instituição não-governamental encravada no Coque, um dos bairros de menor
índice de desenvolvimento urbano do Recife
(0,632, número similar ao de países como o
Gabão, na África).
Os produtos à base de papel reciclado são
elaborados por jovens da comunidade. A unidade produtiva, orientada pela estudante e
moradora da comunidade, Joseane Oliveira,
já é conhecida por algumas pessoas, graças
à exposição dos trabalhos em stand da
Fenneart, uma feira nacional de negócios
do artesanato. Foi nesse evento, há quatro anos, que o grupo, dando seus primeiros
passos, conseguiu um maior destaque na cidade.
As raízes do projeto, no entanto, são ainda
mais antigas e remontam o ano de 1998. Na
época, o Neimfa oferecia dois cursos, o de
atendimento ao cliente e o de reciclagem, no
qual Joseane, adolescente ainda, se matriculou. Aos poucos, o curso se transformou em
projeto, até que em 2003 foi consolidada a
idéia de montar uma unidade produtiva. Assim nasceu o “Artesão da Cidadania”, primeiro nome do grupo. Em 2005, em busca de um
resultado mais bem-elaborado, procuraram
a ajuda do Centro de Design de Pernambuco.
Alguns voluntários da instituição passaram
a oferecer assessoria para as meninas. Foram aperfeiçoados vários aspectos, desde a
qualidade dos produtos até a criação de um
nome e de uma logomarca. Surgiu então o
Cor do Coque, que ajuda pessoas do bairro a
transformar o que deveria ir para o lixo em
beleza e esperança de uma fonte de renda.
O projeto funciona em duas frentes. De manhã
é oferecido um curso que dá noções básicas
sobre manuseio de papel. Para os jovens que
participam, são oferecidas gratuitamente
aulas de informática e português. Os alunos
que se destacam nessa fase são convidados
a fazer parte da unidade produtiva, da qual
atualmente fazem parte cerca de 20 pessoas,
entre 13 e 28 anos. Até hoje, muitos já passaram por lá, mas a evasão é grande.
Alguns saem porque, apesar de serem
muito jovens, já constituíram família. Out-
Um projeto de vida
Por Joseane Oliveira
É gratificante ser uma das integrantes da
unidade produtiva Cor do Coque. Há diversos
motivos para isso. Um deles é o cuidado com
o meio ambiente, pois de algum modo estamos contribuindo para diminuir as agressões
à natureza através da reciclagem, reduzindo
o acúmulo de lixo e doenças.
Existe também a questão do trabalho social,
que tenta diminuir a inserção dos jovens na
criminalidade, mostrando uma perspectiva
de melhoria de vida. Além disso, queremos
mostrar que ao contrário do que a sociedade pensa, a comunidade do Coque não é
um bairro de marginais. Para que isso seja
verdade, 100% da população deveria estar
na criminalidade, o que não acontece. O que
não podemos permitir é que a grande maioria
da população pague por isso.
ros acabam desistindo já que, ao entrar,
acreditavam que poderiam obter sustento
financeiro imediato a partir da atividade, o
que ainda não é possível. “Sem opção, muitas pessoas acham que vão ganhar dinheiro
aqui, mas a realidade que encontram não é
bem assim. Mesmo quando estivemos na Fenneart, não conseguimos sequer tirar o dinheiro do stand. São muitos custos”, comenta
Joseane.
Dificuldades
Os produtos fabricados pela unidade atendem a um requisito cada dia mais valorizado:
são politicamente corretos, uma vez que
partem do princípio da reciclagem, transformando papel usado em capas bloquinhos e
caixas de presentes. No entanto, ainda não
conseguiram alçar o mercado como deveriam,
e o principal motivo é o preconceito. “Muita
gente se interessa pelo nosso trabalho,
pedem encomendas, mas com a condição de
não pisar no bairro. Então é preciso que nós
mesmos façamos as entregas, e de ônibus”,
explica Joseane.
Para tentar evitar esse tipo de problema, o
grupo espera concretizar o antigo desejo de
ter uma loja própria. O lugar almejado seria
no centro da cidade, próximo do Mercado de
São José. Outra conquista que elas esperam
obter é um melhor maquinário, como uma picotadeira (que faz as minúsculas perfurações
que permitem arrancar a folha de papel do
bloco sem dificuldades) ou um cortador (espécie de guilhotina que recorta o material).
Atualmente, o grupo precisa pagar a terceiros para lapidar os detalhes, visto que
eles agregam qualidade ao produto final.
Diante de tantos sonhos, uma melhoria já
foi alcançada: a sala que eles ocupavam na
ONG foi reformada recentemente. Ficou mais
ampla e ganhou uma cobertura de cerâmica,
garantindo um bom ambiente de trabalho.
Hoje, quando questionada a respeito dos
planos para o Cor do Coque, a resposta de
Joseane vai além de simplesmente garantir
uma renda sustentável para o grupo. “Espero que assim que alcancemos algumas
melhorias, possamos também ajudar a pagar
algumas das contas do Neimfa.
Com isso, poderemos também ajudar a manter projetos que auxiliem a transformar
ou, ao menos, melhorar a vida das pessoas
daqui, e a imagem que as pessoas têm do
Coque”.
—
Em busca da dignidade
(colaboradora)
Um outro motivo é o financeiro. Vemos uma
oportunidade de geração de renda que nos
ajude nos trabalhos sociais do Neimfa, assim como na renda dos integrantes do Cor
do Coque. Para isso, precisamos de um maior
suporte dos órgãos competentes no sentido
de incentivar a população a adquirir produtos reciclados tanto pela contribuição social
quanto pela questão ambiental.
—
Joseane Oliveira é moradora do Coque, estudante
universitária e voluntária da ONG Neimfa.
Com 28 anos, Vânia Soares está há quatro no
grupo. Ao responder à questão de por que
entrar no projeto, ela é enfática: “Se não
tivesse aqui dentro, o que estaria fazendo lá
fora? Aqui, antes de tudo, aprendi a ser melhor como pessoa, a ser uma cidadã. A fazer
um trabalho”. Essa é a resposta dada por
quase todos os jovens do projeto.
que o projeto vai além até mesmo da vontade do retorno financeiro. Embora ainda não
tenham lucro, ganharam - e muito – em respeito, tanto em relação a si mesmos, quanto
aos outros. No entanto, a expectativa é que
a longo prazo o projeto ajude a melhorar a
renda das famílias da comunidade, cujos responsáveis, em sua maioria, sobrevivem com
apenas R$199,40 mensais.
Antes de simplesmente elaborar produtos de
material reciclado, os meninos ganham autoestima, a certeza de que são muito mais do
que apenas as notícias violentas veiculadas
nos meios de comunicação. “Queremos mostrar que podemos ir além do que a maioria
das pessoas acha que somos. O Coque tem o
que oferecer” comenta Gutemberg de Lima,
15 anos, um dos sete homens que fazem
parte do projeto. Nessas falas, fica claro
[ J.V. ]
das pessoas
Renda: 33,3%
a per capita de
possuem rend
até R$ 37,75.
ano no
to Hum
Desenvolvimen
Fonte: Atlas do
de 2000.
Recife. Dados
11
música
Rock para mudar o Coque
Por Guilherme Gatis
O ano é 1986 e o disco Cabeça Dinossauro,
dos Titãs, estoura nas rádios com músicas
como Homem Primata e Polícia. No Coque,
adolescentes se inspiram pelas críticas e
sarcasmo dos Titãs e resolvem criar um
grupo para fazer playbacks das músicas. Um
desses jovens é Alexandro Roberto, com 14
anos na época. Os Titânicos de Afogados,
como gostavam de ser conhecidos para evitar problemas de preconceito com o Coque,
começam a se apresentar em bairros de
periferia.
Em uma das apresentações dos Titânicos o
equipamento de som falhou. Para tentar contornar o problema, Alexandre prontamente
improvisa jogos de palavras, ladainhas que
misturavam letras em português com termos
desconexos em inglês e palavras inventadas.
Shivaprulouro. A platéia gosta e surge daí a
motivação para criar. Ele assume o apelido
de infância, Xicharro, e se torna uma figura
fundamental para a movimentação cultural
do bairro.
Salto para 2000. Xicharro está no palco com
outra figura importante para as bandas de
rock do Coque, o guitarrista Sérgio Souza.
Junto a mais três amigos, eles são os Bastardos Infames e fazem a primeira apresentação
de Rock da história do bairro. É o festival
Coque em Rock, que em sua primeira edição
contou com a presença de bandas de outras
12
comunidades, como Afogados e Areias. A
falta de apoio político fez com que o festival terminasse em 2001. Um ano depois, os
Bastardos terminaram. O único evento que
valoriza os roqueiros do bairro é o Cinzas do
Rock, que ocorre desde 2003 na quarta-feira
de cinzas com o apoio da Prefeitura e de lideranças comunitárias.
Do embrião dos Bastardos surgiram três
bandas que hoje são a base da cena do
bairro: “Matéria Bruta”, “Província Rebelde” e “Xicharro e seus amigos Cabras Safados”. Juntam-se a elas outros grupos como
o “Dragon Ranger”, de metal, e as bandas
punk “Blasfêmia” e “Porcos”, que surgiram
a partir da oportunidade aberta pelos pioneiros. Talvez seja mais exato dizer que o
“Matéria Bruta” encabeça, hoje, a cena do
Coque. O grupo, liderado por Sérgio, já tocou
em outros bairros e no festival Pátio do Rock,
no Pátio de São Pedro, além de uma apresentação no programa de TV Sopa Diária.
A banda busca o caminho da profissionalização e da movimentação social. Eles têm a
ambição de, a partir da música, modificar a
comunidade. Para tanto foi criado junto com
outras bandas o movimento “Arrebentando
Barreiras”. A iniciativa pretende usar a
música como forma de conscientização popular, com apresentações de graça e palestras
sobre temas como sexualidade e drogas.
Outro nome importante para a para a formação da cena do Coque é Almir Alves, líder
do “Província Rebelde”. No início, Almir ia
apenas para alguns ensaios e não sabia tocar, mas foi aprendendo guitarra apenas observando os amigos e com o tempo fundou a
banda, em que tocou outro articulador cultural da comunidade, José Ferreira (também
conhecido como Israel). O conjunto foi importante nas mobilizações idealizadas pelo “Arrebentando Bareiras”, mas uma fatalidade
empacou o movimento. A prisão de Almir, em
2005, por porte ilegal de arma, foi um baque
para os músicos e minguou as iniciativas do
“Arrebentando Barreiras”. Xicharro conta
que Almir procurou uma arma por temer a
violência contra um de seus cunhados, mas
que nunca usou o revólver. Era apenas para
se sentir mais seguro.
Aparentemente, Xicharro parece estar desalinhado com a mobilização das outras bandas. Ele diz que, apesar de ter ajudado a
fundar a cena cultural, foi esquecido pelos
grupos que surgiram depois. Por isso, criou
um outro movimento, os “Excluídos”, que
juntou algumas pessoas que se sentiram
preteridas pelo “Arrebentando Barreiras”.
Mas ele garante que a intenção não é se postar contra e sim declarar abertamente que
foi deixado de lado. Sérgio não entende essa
postura. Garante que todos foram chamados
diversas vezes, mas não compareceram a
nenhuma das reuniões e que essa exclusão é
totalmente voluntária.
Diante do impasse, é complicado tentar avaliar quem está com a razão. O que vale são as
impressões. De um lado está um grupo de jovens que procuram modificar a realidade do
Coque a partir da música, de forma aplicada
e comprometida. Do outro está Xicharro, com
ressentimentos por se sentir de fora de um
movimento que ele ajudou a criar justamente
no momento em que ele aparenta ter mais
força.
A conversa fácil e o ar de malandro de Xicharro pode indicar que ele não se compromete como deveria com o movimento, mas
pensar assim é fazer um julgamento precipitado. Basta ele empunhar o violão para
perceber que todos ao seu lado sabem cantar
suas músicas.
Tanto Xicharro quanto Sérgio, cada um a seu
modo, tem carisma e força para estimular,
com suas canções, uma transformação social.
_
música
Superando as
dificuldades
Coque é rock
Por Guilherme Gatis
Por Sérgio Souza
Como manter uma banda de rock no Coque?
As dificuldades são grandes e incluem desde
a problemática para comprar instrumentos
até o aparelho de som e onde ensaiar. Dimas,
vocalista da banda de metal melódico Dragon
Ranger, faz conservatório junto com Renato,
baterista, e sempre que precisam ensaiar
vão para algum estúdio fora da localidade.
“No Coque tudo é mais difícil. Aprendemos
a tocar fora da localidade e sempre ensaiamos em estúdios no centro da cidade, pois
é difícil ensaiar dentro da comunidade”, explica o músico.
Se o Coque fosse música, com certeza, seria
rock. Foi do rock que surgiu a iniciativa de
mostrar para as pessoas a face artística
da comunidade. Antes, nenhum grupo ou
movimento cultural havia pensado em
divulgar a parte boa do Coque, mostrar que
lá não existe somente o que se vê nos jornais
e na televisão.
Para driblar as adversidades, alguns músicos se juntaram para comprar o aparelho
de som que viabiliza todos os ensaios. “Foi
muito sacrifício, mas fizemos uma vaquinha
e conseguimos comprar as caixas e amplificadores. Agora não precisamos sair do
bairro para ensaiar”, se entusiasma Sérgio,
do Matéria Bruta.
A formação musical também é complicada.
Sérgio sabe disso e tenta contribuir para
modificar essa realidade. Junto com Procópio, ele idealizou um projeto para dar aulas
de violão e baixo acústico para as crianças
do Neimfa (Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis), ONG que atua no
Coque.
—
Eu vejo no rock um ótimo veículo para
protestar contra as desigualdades que vivo
em minha comunidade, e foi no ano de 2000
que, junto com amigos revoltados com a
situação decadente em que se encontrava a
cultura local, resolvemos fundar a primeira
banda, os Bastardos Infames, e o primeiro
evento de rock do bairro, o Coque em Rock
(nome que particularmente não gosto porque
se parece muito com Rock in Rio).
O primeiro Coque em Rock foi sensacional!
Neste evento tocaram bandas de Boa Viagem,
Areias, Afogados, Ibura, mas a banda principal
foi mesmo o grupo da comunidade. O público
não era muito, em torno de 300 pessoas, a
maioria do próprio bairro e que nunca tinha
presenciado um evento de rock.
Esta foi a primeira vez que subi ao palco.
Naquela noite, tocamos Green Day, Nirvana
e composições nossas. O primeiro impacto
foi a incerteza de como seríamos recebidos
pelo público e a expectativa era se seríamos
(colaborador)
aceitos, ou não, pelo fato de nossas músicas,
já no início, terem um sentido crítico.
O sentimento que movia a banda era o
não-contentamento com as injustiças que
aconteciam dentro e para com o bairro. O que
ocorria, e ainda ocorre, é a forma repressiva
como a polícia trabalha, a falta de interesse
dos líderes comunitários em mudar a imagem
do Coque e também a ausência de políticas
públicas eficazes que contribuam para a
mudança do contexto do bairro e de outras
tantas comunidades.
Após minha saída dos Bastardos Infames, em
2001, passei dois anos estudando música e,
em 2003, junto com um amigo, resolvi fundar
o Matéria Bruta, que tem como objetivo
fazer um rock pesado com letras poéticas e
críticas. A formação da banda já mudou várias
vezes, mas continuo na batalha difundindo
nossas ideologias, pois não somos rebeldes
sem causa. Temos uma questão profunda e
seriíssima para resolver: mudar a imagem do
nosso bairro.
que cercam o Coque e que não permitem que
nada de bom saia ou entre na comunidade.
Somos jovens e adultos organizados para
quebrar os tijolos destes muros invisíveis,
ou seja, promover os grupos locais para que
o espaço do palco e público das bandas sejam
aproveitados para uma conscientização
sobre temas importantes.
Aos 17 anos eu já tinha uma concepção de
como a sociedade vê o nosso bairro e isso me
impulsionou a lutar contra as injustiças que
promovem a desigualdade e a discriminação.
A única arma com que eu posso contar nessa
batalha é a música, pois é nela que expresso
minha opiniões e sentimentos. Eu sei que é
com o rock que eu mudo o Coque.
—
Sérgio Silva de Souza tem 23 anos, mora no Coque
desde que nasceu e a partir dos 17 anos começou
a compor.
Depois do primeiro Coque em Rock, o
sentimento de revolta se espalhou e outros
jovens se engajaram na causa, fundando,
então, um movimento organizado de
conscientização e divulgação do cenário
musical do bairro: o Arrebentando Barreiras.
O nome é uma referência aos muros invisíveis
13
música
Uma transformação cantada
“Hoje não tem novela!”
Por Juliana Paes
Por Carolina Senna
“Por me deixar respirar, por me deixar existir, Deus
lhe pague” (Chico Buarque)
“A cidade não pára, a cidade só cresce. O de cima
sobe e o de baixo desce”
(Chico Sciente)
A música não pode ser dissociada do contexto cultural. Para entender o sentido de
transformação evocado pelos versos de
Chico Buarque, de Chico Science ou da banda Matéria Bruta é necessário mergulhar
no universo dos autores. A canção de Chico
Buarquea, Deus lhe pague, foi composta
em 1971, durante o período negro da ditadura, o governo Médici. Era o apelo irônico
do povo oprimido. Já em A Cidade, de 1994,
o contexto era outro. Chico Science e Nação
Zumbi, gravando o primeiro CD, faziam com
que os pernambucanos revalorizassem a sua
a própria cultura. Era o início do Manguebeat,
movimento musical que elevou a auto-estima
recifense, assim como chamou atenção dos
jovens para as injustiças de dentro da nossa
cidade.
E foi exatamente a insatisfação com as
desigualdades sociais que motivou adolescentes do Coque a cantar para conscientizar
a própria comunidade. “Não somos rebeldes
sem causa” – diz Sérgio Souza, vocalista do
Matéria Bruta, uma das bandas do lugar – “É
pra nossa comunidade que fazemos música,
para que as pessoas não fiquem acomodadas.
Queremos divulgar o nosso trabalho e
mostrar que é possível mudar o Coque”. É
impressionante como os meninos do rock
têm consciência do canal de comunicação
que lhes é aberto pela música, um caminho
oposto ao da criminalidade que estigmatizou
o Coque. Eles sabem que, mais que mudar as
manchetes dos jornais, é preciso que as pessoas não se submetam aos abusos nem aos
bandidos nem dos policiais. Com ensaios,
os grupos de rock convidam seus vizinhos a
resgatar a dignidade.
O anúncio ao microfone prepara toda a vizinhança. É dia de ensaio dos roqueiros na
Rua Catalão, no Coque. A bateria, guardada
durante a semana na varanda, foi montada
na rua, junto aos amplificadores aos quais
estão ligados o baixo, as duas guitarras e o
microfone.
Em frente à casa de Procópio, baixista, quem
ensaia é a banda Matéria Bruta, que tem Sérgio no vocal e na guitarra solo, Neuber na
guitarra base e Rico na bateria. Por vezes
são aplicados, ensaiam sério, treinam os arranjos das músicas próprias. Outras vezes
curtem um som, tocam um cover e tiram uma
onda. Vários amigos sempre aparecem. Alguns são de outras bandas, e chegam para
dar uma palhinha.
Eles apostam na música como um meio de
transformação pessoal e, depois, de transformação social. Guitarras, baixos, bateria
como instrumentos de inclusão social. Assim
como o grito de abaixo a ditadura e a retomada da valorização das raízes pernambucanas,
a transformação do Coque pode começar pela
música, pela cabeça de garotos que, mais que
gostar do estilo musical, sentem-se como
responsáveis por essa mudança.
—
Na Catalão, as casas são conjugadas e apertadinhas, ou seja, todos escutam o ensaio. Mas cada um parece entretido com
suas próprias atividades: meninos correm
para cima e para baixo. Os moradores, pelas
calçadas, em frente às suas casas, seguem
conversando normalmente. Dois policiais
fazem guarda na esquina. O jogo de futebol
segue animado, e só pára quando passa uma
carroça ou eventualmente um carro.
Em algum momento do ensaio, se faz uma
“vaquinha” e alguém sai para comprar o
combustível: uma Pitú, um refrigerante e
um pedaço de queijo coalho. É o rock etílico
da Catalão, animado, compondo um dia de
sábado na comunidade do Coque.
—
Bandas de rock do Coque
Província Rebelde
Matéria Bruta
Xicharro e seus amigos cabras safados
Porcos
Dragon Rage
Blasfêmia
Maracatu Atômico do Coque
Bastardos Infames
Ampliando o movimento
Por Guilherme Gatis
O Rock é a base para a mudança. É a trilha sonora para a mobilização social. É também uma
língua universal, que pode ser usada como
senha para o intercâmbio de experiências e
vivëncias entre diferentes comunidades.
É com essa certeza que os músicos do Coque
sobem o Alto José do Pinho, em Casa Amarela, para ouvir Canibal, líder do “Devotos” e
figura importante na transformação social
que aconteceu naquele bairro.
Assim como o Coque, a comunidade de Casa
Amarela já foi conhecida pela violência.
“Antes eu marcava com as pessoas fora do
Alto para encontrar com elas. Hoje eu sei que
posso chamar as pessoas, que elas podem
subir que não vão ter qualquer problema”,
comenta o músico. A mudança aconteceu com
a união das bandas e com a mobilização de
toda a comunidade.
O encontro com Canibal foi proposto, como
parte do processo de produção dessa reportagem, objetivando tentar entender um processo que deu certo no Alto Zé do Pinho e que
pode ser frutífero também no Coque. Nesse
Música como Manifesto
Música como Saída
A malandragem de Xicharro fica evidente quando ele pega o violão. Em meio a uma música e
outra, explica a história da canção. Sempre faz
questão de pontuar também o sucesso que elas
fazem na comunidade. De velhos a crianças,
todos sabem cantar, todos chegam perto e
entoam um verso. Ele diz que não gosta de ensaiar, que é no palco que ele mostra sua verdadeira força. Cantando ele se desviou do caminho
mais fácil, a criminalidade. Xicharro explica
que é muito simples conseguir uma arma no
Coque. Armas e drogas, basta querer. Não foram poucas as oportunidades que ele teve de
seguir para o caminho do crime, mas sentia que
a música era maior. Recentemente invadiram
seu barraco e roubaram o aparelho de DVD.
Ele sabe quem foi. Sabe que é fácil pegar uma
14
sentido, a boa vontade do músico, que prometeu não ficar apenas na conversa, foi um
incentivo a mais para as bandas que tentam
criar uma cena musical ainda sufocada pelo
viaduto Joana Bezerra. Canibal disse que vai
ajudar as bandas do bairro com projetos de
música. E foi enfático: “O mais difícil não é
ser necessário, é fazer com que todos sejam
necessários. A comunidade precisa ter essa
consciência e a força da cena musical é o
caminho mais fácil de atingir essa meta”.
—
arma e tirar satisfações. “Mas não vale a pena.
Todos nós sofremos com esse tipo de violência, mas responder com mais violência não é o
caminho. Por isso fiz essa música. Ela retrata
a dura realidade da cidade. Começa falando do
Recife, das coisas boas da cidade, depois vem
pro Coque, comenta a truculência da polícia,
no caso em que uma senhora foi atingida por
uma bala perdida. Já tenho todo o clipe dessa
música na minha cabeça, seria interessante se
pudéssemos trabalhar com vídeo depois, para
filmar. Começa com as pontes, o Recife Antigo,
depois corta para a estação, para a Vila. Quer
ouvir?”. (GG)
“Não sou condenado a ser quem você quer
Mentir para mim mesmo, me deixar trair
Não sou condenado a não poder viver
Ver o meu tempo se acabando e você sorrir
Não sou condenado a ser quem você quer
Te realizar com minha derrota, perder a razão
Não sou condenado a não poder não ser
Mais um escravo de uma sala de televisão”
“Estou cansado de tragar minha vida
Me tornar um suicida antes de me matar
Cheirar a morte e embarcar na desgraça
Implicar com minha sorte, não parar de errar
Estou tentando não morrer aos poucos...”
Trecho da música Pequeno Inferno,
de Sérgio Silva de Souza
“Ele parecia dormir
mas estava morto
a sua alma no inferno
seu corpo no necrotério
crivado de bala
e no chão da favela
a família acendia velas
com lágrimas nos olhos
faziam oração
meu deus, meu deus
alivia minha dor, alivia minha dor
e quem matou
esta vivo, olhando pra ele
sorrindo pra mim...”
Trecho da música Drama, de Xicharro
cotidiano
Uma visita ao Coque
Geografia, imagens, impressões
Por Carolina Senna
Ao entrar no Coque pela primeira vez, lembrei do medo que sentia ao passar pelas proximidades do bairro toda vez que cruzava o
viaduto Joana Bezerra, pois no imaginário do
Recife, a comunidade é apenas perigo. Mas as
impressoes apos uma visita atenta sao ricas
e surpreendentes.
O Coque é extenso – toca a Avenida Sul, a Casa
da Cultura, o Cabanga e a ponte nova do Derby,
margeia a maré, toca a linha do metrô, a Rua
Imperial e a Avenida Agamenon Magalhães.
São cerca de 140 hectares para mais de 40
mil habitantes. A comunidade é dividida
pelos moradores em localidades, como se
fossem pequenos bairros. Tem a Vila, situada
perto da Estação Joana Bezerra; a Realeza,
para o lado da Rua Imperial; a Areinha, perto
da maré; além da “Boca” ou “Favela da Vila”,
Rua da Zuada e Rua do Campo, Favela do
Papelão, Curva do S, onde se vive da coleta
de lixo para reciclagem, Avenida Cabo Eutrópolis, principal via dentro do Coque, Vila
da Areinha e Cabanga, perto da Avenida Sul.
Tem ainda o “Outro Lado da Estação”, a Vila
do Motorista e a Rua Azul, localidades que
não pude visitar porque lá meus guias não
tinham conhecidos.
Nas andanças pelo Coque estive sempre com
Procópio, que mora na Vila, e José Ferreira,
que mora na Areinha, ambos com 22 anos.
A Vila é parte mais próxima da Agamenon
Magalhães, bem em oposição ao Fórum. De
‘vilas’ são chamadas todas as localidades
cujas construções foram providenciadas pela
prefeitura ou pelo governo — mas ‘A Vila’
mesmo é apenas uma. A rua de acesso ao
Neimfa , ONG que serviu de base para nosso
trabalho, margeia o canal a ceu aberto na
entrada da Vila. À esquerda da rua estão distribuídas casas conjugadas perto do canal.
Cruzando uma ponte sobre ele, chegamos à
Rua Catalão, onde alguns jovens roqueiros
se reúnem toda semana.
Se acompanharmos o canal, as casas dão lugar a estábulos que abrigam burros e cavalos. Curzamos uma praça sempre cheia de
crianças brincando. Bem perto, duas escolas
do Coque, a Costa Porto e a Josué de Castro.
Ao fundo, no horizonte, o Hospital Esperança. A praça tem escorrego de concreto,
pilares que já serviram de suporte para balanço, bancos e outras estruturas feitas para
brincar. Mas está completamente depredada.
Os balanços foram roubados, assim como
os refletores. “E você pensa que essa praça
é velha?” — Procópio me perguntou, e logo
acrescentou que não fazia mais de três anos
que ela existia.
Os meninos que me guiavam sabiam quem
tinha roubado os balanços. Quase sempre
os “criminosos” são amigos de infância,
conhecidos ou parentes, em algum grau, de
todos os outros moradores do Coque. Lidar
com isso é difícil. Se, por um lado, é imprescindível fazer distinção entre aqueles que
se envolveram no crime e aqueles que não,
reforçando as responsabilidades e as escolhas individuais, por outro lado, é necessário
reconhecer que essas escolhas são, em muitos casos, ditadas por um contexto social
perverso. Ferreira sintetiza a questão ao
afirmar: “nada justifica o mal, mas eu acho
que tudo tem uma causa”.
Mais adiante, na Areinha, Ferreira foi guia
não só para mim, como também para Procópio, que raramente vai para ‘aquelas bandas’.
Ele explica o pro-blema: “na Areinha tem
um grupinho, na Vila tem outro, na Realeza
tem mais um grupinho, e são antagônicos”.
Quando perguntei se esse antagonismo é
generalizado, ele negou: “a questão da rivalidade é uma questão criminal mesmo: brigam
por droga, por quem rouba mais”. Ferreira
esclarece que as tensões são sazonais, já
que a configuração desses grupos se altera
freqüentemente, pois o tempo de vida ou
de permanência no Coque para as pessoas
ligadas ao crime é muito curto. “Se naquela
época tiver uma pessoa ali que não esteja respeitando ninguém, então você evita passar
naquele local”, explica Ferreira.
A Areinha é a ‘invasão’ mais recente no
Coque. Seu Henrique, um dos primeiros
moradores desta parte que avança sobre a
maré, veio assim que a draga passou. Como
ele, vieram muitos outros, que melhoraram o
aterro e se organizaram aos poucos. Hoje, a
Areinha já é uma faixa extensa. O lugar tem
esse nome porque o chão é de areia mesmo,
da maré. Ainda hoje podem ser vistas muitas
conchinhas pelo chão. No início da ocupação
do terreno, a maior parte dos moradores vivia da pesca e da coleta de crustáceos. “Essa
rua antes ficava cheia de casca de sururu”,
lembra seu Henrique. Hoje a maré poluída
serve mais como lugar de brincadeira para
as crianças.
Um dos desafios que exigiu grande paciência
dos primeiros moradores foi uma praga de
bicho de pé. Seu Henrique disse rindo que,
ao meio dia, com o calor, os bichos pulavam
do chão, fervilhando. Brincadeiras à parte,
houve mesmo, segundo ele, casos extremos
de pessoas que ‘aleijaram’, ou que se mudaram por causa dos bichos. Uns dizem que a
solução foi água com sal ou que foi cloro;
outros dizem que foi simplesmente o tempo.
Na Areinha, por ser invasão, cada um tem a
casa que construiu, no terreno que conquistou. O resultado é uma maior variedade nos
tamanhos, formas e disposição no terreno.
Em geral, as casas são um pouco maiores que
as das vilas e os terrenos, mais arejados,
com quintal e terraço e algumas árvores. A
disposição irregular das casas impõe irregularidade também às ruas. O resultado é um
emaranhado de becos e passagens estreitas.
evangélicas, de todas as denominações. E
também muitas casas lotéricas. O trabalho
se via em toda parte: a barraca de acarajé,
a Kombi de transporte escolar particular, as
mesinhas para vender coxinha e salgados, as
bicicletas e carroças de levar água mi-neral, gás ou frutas, e pequenos comércios ou
serviços, como padaria, casas de consertos
em geral, cabeleireiros ou vendas de picolé.
Os moradores fazem seus próprios serviços
de construção ou infra-estrutura, como consertar seu telhado ou abrir uma vala para
seu esgoto escorrer. Mas algumas interferências do poder público puderam ser percebidas em uma visita – recapeamento de ruas,
serviço de limpeza, casas construídas pela
Prefeitura para reacomodação de moradores
de palafitas. Mas a relação com o Poder no
Coque é muito delicada, mediada por lideranças comunitárias que muitas vezes estao
envolvidas disputas e conflito de territorio
de influencia.
À frente de algumas casas, era impressionante a quantidade de gente sentada nas
calçadas. Eram pessoas jogando bingo! O
lazer favorito no fim de semana é a praia e,
de preferência, uma à qual possam ir a pé.
Como disse Ferreira: “o Pina é Coque!”.
Dentro da comunidade, meninos jogam futebol ou bola-de-gude, e rodam peão; meninas
jogam dama e famílias inteiras jogam dominó
na rua. Clubes e bares também não faltam e
música se escuta sempre, especialmente nos
fins de semana.
O Coque é isso, e muito mais – nada muito
diferente de outros bairros pobres, nada
além de um retrato dessa cidade-paradoxo
chamada Recife.
—
Em todo o percurso, havia muitas igrejas
15
cotidiano
Cabe mais um?
Por Conceição Gama
O Coque é um mosaico de realidades e pessoas. Se, de um lado, existe na comunidade
gente com renda suficiente para comprar um
carro, do outro, há aqueles que não têm sequer um espaço decente onde morar.
Esse é o caso de Seu Deca, que mora há 28
anos na Areinha com a esposa, Dona Joana.
Além do casal, na pequena casa vivem mais
26 pessoas, entre filhos, noras, genros e
netos, E tem mais um chegando: Cirlene, 15
anos, casada há dois, está esperando seu
primeiro filho.
Dona Joana também ajuda, catando papel
e garrafas para vender. Antes de morar na
Areinha, Seu Deca vivia com a família na Rua
Azul. “Essa casa aqui tem mais espaço. Lá,
era muito apertado”, afirmou para surpresa
de quem tem outra experiência com a divisão
do espaço.
A família de Seu Deca é um exemplo da vida
dura, mas decente, da maioria da gente do
Coque. que luta para sobreviver com dignidade.
—
Para sustentar a família, Seu Deca conta com
aposentadoria de apenas um salário mínimo
e faz bicos como pedreiro. “Também pesco,
cheguei da maré nesse instante”, conta.
O esconderijo chamado Coque
Por Ridivaldo Procópio da Silva
O Coque, pode-se dizer, é um bom lugar para
se esconder. Lá você se esconde de quase
tudo e usa quase tudo para se esconder. A
própria história da povoação do bairro já carrega essa característica de esconderijo. Na
década de 70, durante o crescimento populacional mais intenso, as pessoas precisavam
de abrigo e tinham como alternativa a comunidade. Mas essa fama pegou mesmo com a
história do Galeguinho do Coque, criminoso
que não era da área, mas estava sempre lá
para se esconder da polícia. Criou-se assim
um mito em torno da comunidade, de “acobertar bandidos”.
Esse mito criou um preconceito, e hoje as
pessoas que moram no Coque, e que nunca
praticaram nenhum crime, acabam sendo
tratadas como bandidos. Para poder conseguir emprego, muitos deles precisam colocar
nos currículos ou dizer que moram em outros
lugares.
[Topo] Seu Deca vive na comunidade da Areinha há 28 anos. [Acima] O cotidiano do Coque.
Com esse preconceito, a comunidade fica
isolada, e isso ajuda a esconder os seus verdadeiros problemas. Não aparecem os reais
responsáveis pela situação ou os reais interessados em que ela se mantenha como está,
ou mesmo piore, pois isso daria um motivo
para a comunidade ser deslocada para outros
lugares, o mais distante possível da elite do
Recife.
Para os moradores, resta se esconder no
trabalho, e ninguém de lá trabalha por satisfação pessoal. No Coque, o “trabalho” (bicos)
esconde a falta de trabalho (o desemprego).
16
(colaborador)
A maioria é obrigada a fazer o que aparecer
e não tem a chance de seguir seus sonhos.
Os evangélicos fogem “do mundo”. Outros
se escondem no lazer, nos jogos, no futebol,
para fugir das más condições de moradia,
“incondições” das escolas (para onde as crianças só vão para brincar e comer), falta de
perspectivas, etc., etc., etc.
Até mesmo aqueles que percebem esse esconde-esconde não têm como deixar de fugir.
Não fogem de suas realidades, mas sim dos
mecanismos de opressão e da submissão.
Os grupos culturais ou artísticos do Coque
tentam encarar a realidade e criar novas
condições, o que se pode chamar de fugindo
para se impor frente à situação. Esses grupos
usam a arte para denunciar, de algum modo,
tudo aquilo que se esconde no Coque e tudo
aquilo que escondem sobre o Coque.
Ridivaldo Procópio da Silva, 22 anos, é
Agente de Desenvolvimento Comunitário
da ONG Neimfa e aluno do curso de Formação Política da ONG Etapas. É também
baixista da banda Matéria Bruta do Coque,
onde mora desde que nasceu.
meio-ambient e
Falta de saneamento básico: a grande vilã
Potencial
desperdiçado
Por Mariane Menezes
O Coque já foi mangue. A necessidade de
moradia da população provocou sucessivos
aterramentos, e a conseqüência foi a diminuição considerável da área. O que restou
lembra aos moradores de hoje a beleza e a
generosidade do ecossistema. Mesmo lutando para sobreviver aos elevados índices
de poluição, o mangue ainda oferta ao bairro
um cheiro saudável de maresia, a vegetação
ribeirinha composta por árvores de frutas
tropicais, o solo fértil e o espetáculo singular de pequeninos caranguejos, os chiés.
– alguns conseguem renda extra.
O mangue vive um paradoxo. Ao mesmo tempo em que os moradores desenvolvem com
ele uma relação amistosa, também agridem.
Tomam banho, mas despejam esgoto. Tiram
peixes e crustáceos, mas colocam lixo. O que
poderia ser uma piscina natural se transformou em depósito de detritos caseiros, mas
também de resíduos industriais – suspeitase que fábricas de sabão e borracha despejem os restos de seus trabalhos nas águas.
Embora esteja poluído, o mangue do Coque
é espaço de aproveitamento comercial, ainda que por poucos. Através das pescarias e
viveiros – construídos com simplicidade, através do cercamento de um pedaço de água
Recuperar o mangue do Coque não é uma
tarefa complicada. O professor Zanon ensina: “O processo é bem simples. É só espalhar
as flores e esperar a maré encher”. Segundo
Passavante, a técnica só se encarece quando a mão-de-obra é paga, o que não seria
necessário no caso do Coque. “A população
poderia fazer isso”, sugere.
—
Entretanto, os habitantes, ao poluírem o
mangue, deixam de tirar proveito de todas
as suas potencialidades. De acordo com o
oceanógrafo Zanon Passavante, professor da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
um mangue sujo tem muito de sua capacidade
alimentícia enfraquecida. Ele, de acordo com
o professor, ainda protege contra a invasão
da maré: “é como se fosse uma barreira”, esclarece.
O problema da poluição ambiental no Coque
– que tem no mangue sua principal vítima
– reflete os graves problemas de infra-estrutura do bairro. Logo na entrada da Vila
(próximo à Estação Joana Bezerra), uma das
principais localidades do bairro, há, por exemplo, um enorme canal improvisado pelos
próprios moradores, que funciona como um
verdadeiro esgoto a céu aberto. Sobre ele,
há uma grande quantidade de palafitas, o
que dificulta a limpeza do lixo que ali também é despejado.
A falta de saneamento básico na maioria das
localidades do Coque é agravada pela coleta
limitada de lixo. Além de se amontoar no
mangue, entulhos são acumulados nas ruas,
especialmente nas mais estreitas. A coleta
é feita todos os dias, mas se limita às vias
principais, como a Rua da Zoada, e aos bairros próximos ao Fórum Rodolfo Aureliano e
ao viaduto Joana Bezerra. Segundo o Atlas de
Desenvolvimento Humano no Recife (2005),
apenas 10,44% dos moradores vivem em
residências sem serviço de coleta. Entretanto, os índices não se confirmam pelo que se
vê ao andar pelo bairro.
A coleta na Areinha, segundo Elziene
Fechine, é realizada por carrocinhas de três
em três dias. A moradora é sincera a ponto
de assumir sua responsabilidade – assim
como a de outros moradores – pela situação
crítica. “Eu admito que jogo lixo no canal. O
coletor funciona, mas é mais fácil jogar ao
lado. Existia um cesto de lixo em cada rua,
mas até o cesto roubaram”. Rafael Freitas,
líder comunitário, atribui o comportamento
“à falta de educação ambiental e de higiene
da populaçao”.
grave problema é a dificuldade para se obter
água encanada. Segundo dados do Atlas do
Desenvolvimento, 31,1% dos residentes não
recebem o serviço em seus domicílios.
Entretanto a realidade denunciada pelas
pessoas é diferente, as reclamações e queixas são unânimes. Elziene diz que o líquido
“chega enlameado”. Além disso, há a dificuldade diária em conseguir água.
João Boulitreau, vice-gerente regional da
Compesa, explica que a empresa não está
autorizada a abastecer ou sanear as áreas
que não sejam legalizadas, como a maioria
das localidades do Coque. “Para o Ministério
Público, estender serviços a loteamentos irregulares é estimular a ocupação, e dá de um
a quatro anos de cadeia”, justifica. De acordo
com o vice-gerente, a água chega ao bairro
em intervalos idênticos ao que acontece no
Grande-Recife – dia sim, dia não, “mas o
abastecimento só contempla quem está regularizado”, contrabalança.
Quanto à salubridade, Boulitreau é incisivo.
“As pessoas dizem que a água está barrenta,
quando o que acontece é um processo muito
comum de oxidação do ferro. Como a água
não vai todos os dias, o cloro oxida o ferro,
transformando-o de líquido em sólido, daí o
aspecto de lama.
Se o motivo não for esse, suponho que o
abastecimento em questão seja ilegal, por
isso, mal-feito e prejudicial à qualidade da
água”.
[ M.M. ]
—
Nesse contexto, em que as múltiplas
agressões ambientais estão diretamente relacionadas a carências de toda ordem, outro
17
meio-ambiente
Saudades do mangue limpo
Coque em Números
Por Carlos Alberto da Silva
Água
- O percentual de domicílios com água encanada em bairros
como Graças e Derby é de 99,45%. Já no Coque o percentual
é de 68,9%.
Saneamento
- Menos de 1% da área do Coque possui saneamento básico.
Apenas duas ruas são saneadas: a rua da Regência e a
Desembargador Guerra Barreto.
Coleta de lixo
- O Coque ocupa a 55ª. posição entre os bairros atendidos
pela coleta de lixo da Prefeitura: 89,56% dos moradores
dispõem do serviço.
Saúde
- Seis equipes do Programa Saúde da Família atuam na
comunidade. Com um total de 22 profissionais: seis médicos,
seis enfermeiros, seis auxiliares de enfermagem, dois
dentistas e dois auxiliares de dentista.
Fontes: Compesa, Emlurb e Secretaria de Saúde do Estado.
Educação ambiental conscientiza jovens
Por Endie Eloah
No Coque, existe uma possibilidade concreta
de preservação ambiental: a Escola Municipal Novo Mangue. Um lugar em que a tarefa
de casa dos 385 alunos não se resume aos
livros didáticos, envolvendo os cuidados
com a natureza. A vice-diretora da escola,
Maria Aparecida, tem consciência que as iniciativas da Novo Mangue não são suficientes
para reverter o quadro atual de degradação
do mangue. Segundo Aparecida, o problema
começa com a falta de iniciativa da própria
comunidade. A reciclagem, proposta pela
escola, com o material plástico retirado do
ecossistema, por exemplo, é considerado pelos pais de vários alunos como um trabalho
menor.
O projeto da Escola Mangue começou em
2000, quando o local, às margens do manguezal, foi comprado pela Prefeitura do Recife.
No pátio externo, os mangues mais raros e
em processo de extinção são cultivados isoladamente. No interior das salas, os alunos
produzem mini-jardins e têm o dever de
18
mantê-los saudáveis.
Entre 2004 e 2005, numa parceria públicaprivada firmada com a Fundação Philips, a escola capacitou professores para desenvolver
atividades voltadas para conscientização e
sensibilização com o meio ambiente.
Apesar dos sucessos da sua atuação, a Novo
Mangue sobrevive com dificuldades. Seus
administradores, não raro, têm que tirar do
próprio bolso a renda complementar. Mesmo
assim, a escola trabalha na educação ambiental por acreditar que a melhor saída para
os problemas de poluição enfrentados pela
comunidade está além da coleta e do saneamento. Dependem também, de um trabalho
de educação, principalmente com as novas
gerações.
Assim que me alistei no exército, vivi uma
experiência marcante. Ao desbravar uma
floresta paulista em 2001, encontrei uma
situação terrível: uma grande área desmatada. No lugar de pau-brasil, encontrei
tocos de árvores. Constrangido, procurei as
autoridades e fiz uma denúncia anônima.
Descobrimos que as árvores estavam sendo
exportadas ilegalmente para os Estados Unidos e para a China. A empresa responsável
teve que pagar multa e replantar a área desmatada.
Eu transfiro esta situação para o lugar onde
moro: o Coque. A depredação ambiental se
estende à comunidade, através da poluição
do mangue e das ruas. O número de árvores
desmatadas se compara à quantidade de pessoas que jogam lixo no mangue. A responsabilidade não pode ser creditada apenas às
autoridades, pois as pessoas sabem que o
ecossistema é importante para o equilíbrio
ambiental. Entretanto, é mais prático jogar
o lixo na beira da maré do que esperar pela
coleta, até porque a freqüência dos caminhões vive mudando.
Por isso, sinto-me deslocado quando falo
para não poluir. E o que me desmotiva a
continuar reclamando é escutar piadinhas e
ironias. As pessoas dizem que não tem jeito,
afinal, atitudes isoladas, como a minha, não
(colaborador)
mudam uma situação total. É um bom argumento, que às vezes me faz pensar em parar
minhas tentativas de conscientização. Mas
não vou, porque acredito que essa é a única
maneira de transformar a cabeça de alguém.
É justo reivindicar uma solução do poder
público para o lixo e falta de saneamento,
mas também precisamos fazer esforços para
preservar.
Quando vejo o mangue tão sujo, penso que
todos nós poderíamos utilizá-lo muito melhor, aproveitando a água, pescando, construindo viveiros, como faziam os primeiros
moradores. Só de imaginar é um estímulo.
Modificar o ambiente no Coque custa um esforço que vale a pena. Porque não há melhoria na qualidade de vida sem se viver em paz
com o meio ambiente.
—
Carlos Alberto da Silva, 23 anos, é estudante do 2º
ano do Ensino Médio e aluno do Curso de Agente
de Desenvolvimento Comunitário da Neimfa.
histórico
Capim, palha de côco e candeeiro
Por João Vale Neto e Wagner Sarmento
“Capim, palha de coco e candeeiro”, apontou
a senhora de 67 anos olhando para fora de
sua casa, como quem revê a paisagem alagadiça e anfíbia que encontrou quando chegou no Coque, há mais de cinqüenta anos. As
pessoas precisavam subir em um bote para ir
à Madalena e aos outros bairros porque eram
reféns do Capibaribe.
de maneira precária em seus barracos. Ione
Maria José da Silva, a Dona Zezé, que vive no
bairro há 45 anos, relembra que “o Coque era
como Brasília Teimosa, com aquelas tantas
casas de palafitas. Eu aluguei um quartinho
aqui e fui ficando. Mas quando deu a primeira
cheia, eu corri com meus filhos pra eles não
morrerem afogados”.
É de se imaginar Dona Marion, que na época
ainda não havia ganhado esse apelido e
chamava-se Isabel Marili, embrenhando-se
por dentro do capim e do manguezal, fincando
as primeiras tábuas e cobrindo com palhas o
barraco em que morou inicialmente. Tudo
isso com uma luz fraca de candeeiro, pois a
noite escura era cúmplice da ocupação. Da
mesma forma que o barraco de Dona Marion,
ergueram-se depois muitos outros, incluindo
os da primeira rua, a Cabo Eutrópio, e das
áreas conhecidas como Vila, Realeza, Areinha... Todos abrigavam gente que emigrou
do Agreste e da Zona da Mata. Eram famílias
que chegavam ao Recife em busca de moradia
e encontravam ali uma área fértil para a materialização dos seus sonhos, uma vez que
aterros sucessivos haviam destruído parcialmente o mangue da região para encobrir
o lixo ali despejado.
A história do bairro foi construída com muitos momentos de sofrimento e luta como o
de Dona Zezé. Um outro símbolo da determinação em ocupar a área é Miro de Oliveira,
filho de dona Marion. Ele era um jovem que
não esperou a promessa de moradia por parte
dos políticos e resolveu por conta própria
carregar tábuas em um carrinho de mão para
construir barracos e garantir a ocupação da
praia. Hoje, ele é uma das referências na
ocupação da Areinha, uma das áreas mais ignoradas pelo poder público. “Olhe, meu filho
morreu no sábado de carnaval do ano passado. Ele era muito doente. Mas ele fez muito
pela melhoria da gente daqui. Aquelas casinhas da Areinha era ele quem fazia, a troco
de nada”, conta Dona Marion, segurando um
porta-retrato com a foto do filho que morreu
aos 33 anos, em decorrência do vírus da HIV.
A história do “Finado Miro” é apenas uma entre várias que confirmam a vocação histórica
do Coque para a resistência.
“Ninguém tem idéia de como era o Coque. Era
tudo praia. A gente veio e tinha que passar
numa ponte estreita para não cair no rio.
Era um lixo só e as prefeituras foram jogando areia. Isso tudo aqui um dia foi aterro,
ganhado da maré”, reporta Dona Paulina,
58 anos, uma antiga moradora, que sorri
bastante quando o assunto é a memória da
comunidade.
Cristalizou-se então, no imaginário do bairro, um sentimento de constante luta contra
a maré, que tantas vezes ameaçou tomar
de volta as praias que lhe foram roubadas.
Agora, porém, ao invés de caranguejos, essas praias estão cheias de famílias, morando
O passado no qual o bairro está inserido é
rico também em exemplos de luta. Foi ali
onde as tropas republicanas combateram
as forças monarquistas de Dom Pedro I, na
Confederação do Equador, cujo líder, o Frei
Caneca, foi fuzilado em 1835 no Forte das
Cinco Pontas.
Em 1935, novo choque político: o segmento
recifense da Intentona Comunista, liderado
por Gregório Bezerra, fez da região um dos
palcos de seus combates em prol da implantação de um regime de esquerda no Brasil.
A esperança nas transformações parece ser,
até hoje, uma outra histórica vocação do lugar; do contrário, poucos teriam superado as
dificuldades dos primeiros anos da ocupação:
“A gente só tinha um chafariz aqui, então
todo mundo corria para lá para apanhar
água”, conta Dona Marion. Juntamente com
ela, também outros senhores, que hoje oferecem suas memórias em testemunho, carregaram muita água em baldes de ferro para
estabelecer suas raízes no bairro.
Apesar dos graves problemas de infra-estrutura do Coque, os moradores mais antigos
reconhecem o que já conquistaram. Dona
Paulina, por exemplo, pondera que “agora
a gente tem escola, tem rua asfaltada, tem
muita coisa boa”. De fato, nos últimos vinte
anos, o Coque assistiu a um processo que
envolveu a pavimentação e drenagem das
ruas, transformação de muitas das casas
de tábua para alvenaria, abertura viária e
esgotamento sanitário, além da construção
de dois colégios. Entretanto, a melhoria não
contemplou toda a comunidade, pois, embora
boa parte da população que margeia a maré
já tenha sido transposta para áreas mais
urbanizadas, a necessidade de garantir um
teto próprio impulsiona novas investidas
em direção ao mangue. Surgem assim os
contrastes e as visões contraditórias sobre
o Coque entre os seus próprios moradores.
Por um lado, os moradores mais antigos
que, com sua luta, conquistaram asfalto,
luz e água encanada, expressão um carinho
extraordinário pelo lugar onde vivem. Por
outro, os que ocuparam mais recentemente
a região revelam um misto de desencanto e
desconfiança em relação ao que podem ainda
conquistar dos poderes públicos.
Como quem teima, tantos anos depois, em
manter a esperança, os mais velhos fazem
questão de registrar seu sentimento pelo
Coque: “Não existe lugar melhor que esse, só
se aparecer outro igual.
A vizinhança aqui é amiga, todo mundo gosta
de todo mundo e briga com todo mundo, e
assim a gente vai levando a vida”, diz Seu
Melquidesec Alves da Silva, o Seu Deda, 69
anos, com a serenidade que o tempo lhe
trouxe.
De fato, quem ajudou a construir a comunidade, como ele, sente o desejo de dividir com
os outros um certo orgulho contido de “ser
do Coque”. Faz questão também de dividir
com os moradores mais jovens momentos importantes para a memória do bairro, como a
passagem do então presidente João Baptista
Figuerêdo, que visitou a rua Cabo Eutrópolis
nos idos de 1980.
Lá, cercado de líderes comunitários e dos
moradores, “ele disse que todos nós que
habitamos aqui, quem botasse um bolo de
barro no terreno, esse era o proprietário”
relembra Seu Deda.
A promessa do presidente se perdeu em
meio as dificuldades que os moradores ainda
enfrentam pela regulamentação da posse
do lugar que ocupam. Seu Deda, como muitos outros, ainda sonha com o dia em que a
promessa se cumpra e que, além de donos de
fato, sejam também donos de direito.
Entre os candeeiros de sua memória, Dona
Marion se despede das lembranças segurando, emocionada, a foto das netas nas mãos.
As filhas do Finado Miro hoje vendem bijuterias no bairro de Afogados.
No retrato ao canto da sala, o pai das moças
observa o bairro que ajudou a construir e imagina quantas são as lutas ainda necessárias
para que os outros moradores do Recife percebam no Coque um lugar digno de atenção e
reconhecimento.
—
19
histórico
História de união
Por Rafael da Silva Freitas
Há 60 anos, retirantes da região rural de
Pernambuco migraram em busca de melhorias financeiras para uma vila de pescadores
perto do centro da cidade. Essas pessoas
criaram raízes e vínculos, e daí veio o surgimento dessa comunidade, chamada Coque,
cercada de mistérios sobre a criação do seu
próprio nome.
Uma das histórias que ouvi quando era criança conta que, em meados de 1950, existia
um pequeno bar pertencente a um senhor
chamado Coque e alguns trabalhadores em
horário de almoço iam ao local para brincar,
conversar, descontrair e descansar, apreciando uma boa cachaça. Nos fins de semana,
eles se encontravam sempre com a idéia de
visitar o bar do seu Coque. Falam também
que, antigamente, existia uma carvoaria e o
nome veio da melhor parte do carvão, cook.
Outra hipótese diz que a origem vem dos coqueiros que existiam em grande abundância
na região.
(colaborador)
rentes versões. Os moradores buscam descobrir a verdadeira cara da comunidade. É muito
complicado encontrar essa face uma vez que
ela é descaracterizada pela mídia, tornando
difícil saber qual é o real sentido de viver
no bairro. No entanto, nossa gente ainda vê
aqui um lugar bonito onde nasceram, criaram
seus filhos e vão criar seus netos. Para mim,
o Coque é mesmo esse espírito de união que
deu origem ao bairro, quando os migrantes
vieram para cá, juntaram-se aos pescadores
e imaginaram uma forma concreta de realizar
seus sonhos.
—
Rafael da Silva Freitas, 16 anos, nasceu e cresceu
no Coque. É estudante do 2º ano do Ensino Médio
e aluno do Curso de Agente de Desenvolvimento
Comunitário da ONG Neimfa.
Mas não é só no nome que o Coque tem dife-
Cook? Coke? Coque?
Coque = cuca
Coque = cascudo
Coque = tipo de penteado feminino
Coque = carvão sem forma definida.
Fonte: Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
A memória da maré
Por João Vale Neto
A primeira vez que fui ao Coque deixei o motorista do ônibus assustado. Não sabia onde
descer e pedi informação. O moço respondeu:
Para o Coque? Você tem certeza que é para
lá? Para lá mesmo, respondi. Meses depois,
a certeza já me permitia andar pelo bairro e
conversar com os idosos. Chegávamos assim:
“Vamos fazer um jornal para falar da comunidade. O que aconteceu de bom aqui?” Então,
lentamente, eles começavam a desenterrar
seu passado e nos surpreender com uma real
inundação.
Navegamos por suas memórias, até que encontramos histórias iguais à maré que os
rodeia: fértil e generosa. Gente forte como
Dona Marion ou seu Edivaldo, que sustenta
a família com muita luta e trabalho lá dentro
da Areinha; gente engraçada, de riso fácil,
como seu Deda e muita gente amorosa e bem
educada como Dona Zezé e Dona Paulina, que
construíram uma história de trabalho social
e ajuda comunitária dentro do grupo.
Fico me perguntando o porquê dessas
memórias não serem valorizadas como deveriam. Parece até que estão sendo aterradas
20
pelo preconceito. Diversas vezes já escutei:
“Lembra de levar colete para ir ao Coque...”,
ou coisas parecidas. Se eu não tivesse conhecido esses antigos moradores e suas
lembranças de luta, seria talvez difícil reconhecer o valor da história Coque.
Resta só saber se existe, de fato, espaço e interesse em reportar essas vidas que parecem
flutuar no tempo sem que ninguém dê conta
delas. A gente do Coque, no fim das contas,
não é nem um pouco diferente daquela boa
passagem de Macbeth:
– Paz, te peço. Ouso fazer tudo o que faz um
homem; quem fizer mais, é que deixou de sêlo.
O resto... Bem, depois da discriminação e do
descaso...
O resto não é nada mais, nada menos do que
um rótulo frio e desumano sobre a memória
da maré.
—
permanência
Moradores vivem sob o medo da expulsão.
Por José Juvino, Luísa Abreu e Mônica Alcântara
Situado entre os bairros de São José e Afogados e distante 2,5 km do centro do Recife e
3,5 km de Boa Viagem, o Coque está perto
de tudo. Os serviços públicos e privados da
metrópole (como hospitais, parques, escolas, etc.) deveriam ser, portanto, partes integrantes da vida dos moradores. Porém, tal
privilégio geográfico não se traduz em vantagem social ou desenvolvimento humano.
Ao contrário, a localização, hoje tão valorizada, chega a constituir uma ameaça. Os moradores vivem constantemente com medo de
serem expulsos do lugar.
Valdemir Amaro, 48 anos, conhecido como
Charque, avalia que existem muitas razões
para esse temor. Presidente do Grupão,
entidade popular do Coque de luta pelos direitos de habitação, ele mora na comunidade
desde que nasceu. Extremamente politizado
e consciente dos problemas do bairro, Valdemir acredita que o Coque é vítima de um
processo de “expulsão branca”, silenciosa.
Não é difícil perceber os vários elementos
que amparam essa teoria. Para isso bastaria
olhar o desenvolvimento do mapa local. Nos
últimos dez anos, o surgimento da Estação
de Joana Bezerra, da Associação de Apoio à
Criança Deficiente (AACD) e do Fórum Thomas de Aquino empurraram o Coque cada
vez mais em direção ao mangue. Os novos
empreendimentos provocaram a saída de
moradores para outras localidades dentro
do próprio bairro sem a garantia sequer de
uma indenização.
Esse é o caso, por exemplo, de seu José Francisco da Silva Filho, 68 anos, mais conhecido
com Seu Deca. Ele morava na Rua Azul, na linha onde hoje fica a AACD. Saiu de lá sem ser
indenizado e foi construir sua casa na Areinha, que à época ainda era um manguezal.
Junto com ele moram mais 28 pessoas, en-
tre filhos, netos e genros. A casa é pequena
e fica à beira da maré, onde Seu Deca ainda
pesca. Ele passou dois anos fora, mas não
pensa em deixar mais o lugar. “Fiquei com
saudades e voltei. O Coque é muito melhor
que os outros cantos. Eu construí tudo que
tenho aqui”. Como o Seu Deca, existem muitos outros moradores que gostam do lugar,
que têm sua história pessoal intimamente
ligada a do bairro, mas que vivem constantemente atormentados pela perspectiva de
serem expulsos da área.
a comunidade do Coque é uma ameaça, o que
reforça ainda mais o medo de expulsão entre
os moradores.
ca, João Figueiredo, que realizou um comício
no bairro com a finalidade de “oficializar”
sua inclusão no Plano de Desenvolvimento
da cidade do Recife.
Direito à terra: uma luta antiga
Para a maioria que vive no Coque, em função
dos interesses de ocupação de empreendimentos imobiliários e de algumas empresas,
há uma deliberada “demonização” do bairro
na cobertura policial. Na visão de moradores
como Charque, a imagem negativa do bairro
veiculada pela mídia funciona, de algum
modo, como cúmplice dessas estratégias
veladas de “expulsão branca”, pois respalda
ações que buscam confinar a comunidade nas
localidades de menor valor imobiliário dentro da Ilha Joana Bezerra. Um exemplo claro
disso é a medida anunciada pelo Pólo Médico
da Ilha do Leite.
As ameaças à permanência da população
no Coque são quase tão antigas quanto a
ocupação da área. O surgimento do bairro remonta ao final do século XIX com a ocupação
de alagados e mangues pelos mocambeiros,
ex-escravos e pescadores. Na época, essa
região depositava o carvão que era utilizado no Gasômetro, na Usina Termoelétrica
e na Estação de Trens do Recife existentes
na área. Foi justamente esse carvão, chamado “cook”, que deu origem ao nome da
localidade. Os conflitos pela posse da terra surgiram no início do século XX, com a
ocupação de áreas próximas às margens do
rio Capibaribe. Nesse período, começaram a
aparecer os proprietários da região, entre
eles o Barão Correia de Araújo, reclamando
a posse da terra. A população foi, por diversas vezes, expulsa da área, mas a resistência
era intensa, o que acabou acarretando várias
mortes.
Com o intuito de coibir os assaltos e aumentar
a segurança pública na área, com respaldo da
Prefeitura, o Sindicato dos Hospitais Particulares do Estado de Pernambuco (SindHosp)
está investindo R$ 30 mil na construção de
um gradil de 2,50 metros de altura no entorno do Rio Capibaribe e área de mangue,
por baixo do viaduto João Paulo II. O trecho
em questão é considerado um território de
vulnerabilidade visual para a Polícia Militar,
uma vez que é utilizado por assaltantes para
promover fugas e surpreender os transeuntes na área. Apesar do objetivo de frustrar
esse tipo de ação criminosa, o gradil revela
que, para os freqüentadores do pólo Médico,
A partir da década de 40, com as migrações
do Agreste e Zona da Mata para o Recife, o
local se adensou, surgindo, então, novos
proprietários exigindo a reintegração de
posse. Diante do acirramento dos conflitos
nos terrenos, o Governo Federal, através do
Ministério da Fazenda, firmou um contrato
de aforamento com o município, garantindo
o repasse de 134 hectares de terra que delimitam a Ilha Joana Bezerra à população.
Em 1978, a União cedia as terras, de forma
a possibilitar a regularização fundiária, sob
a condição de que fosse realizada a urbanização de toda a área. O processo teve início
com a visita do então Presidente da Repúbli-
Apesar da pressão do Governo Federal, o
município não realizou nada em um ano.
Para acelerar as ações prometidas, a comunidade se mobilizou. Fez um levantamento
das condições de infra-estrutura da região
e conseguiu que, em 1979, o então prefeito
Gustavo Krause editasse um projeto de lei no
Diário Oficial da União, no qual estava constando o prazo de cinco anos para a completa
urbanização da área e a doação de títulos de
propriedade para 12 mil pessoas. A medida
ocasionou a migração de moradores de outras áreas para a localidade, resultando no
surgimento de mais focos de tensão, como a
favela da Realeza.
Nesse mesmo período, o Supremo Tribunal
Federal (STF) embargou o processo de doação
dos títulos de propriedade, diante de uma
ação de reintegração de posse impetrada por
Iraquitan Bezerra Leite, proprietário de dois
terços dos terrenos da área.
A Prefeitura chegou a propor aos moradores
permutar a desapropriação com imóveis do
município, mas os movimentos populares
resistiram. Devido à falta de perspectiva
quanto à posse da terra, os moradores, assessorados pela Comissão de Justiça e Paz,
mobilizaram-se para exigir a edificação de
equipamentos urbanos na localidade na
tentativa de fortalecer a resistência e conservação da comunidade.
Finalmente, em 1983 é votada e sancionada a
lei de nº 14.511/83 – Lei de Uso e Ocupação
do Solo do Recife – que reconheceu e institucionalizou os assentamentos habitacion-
21
permanência
O Coque para quem vive no Coque
Por José Ferreira
Assim como muita gente na comunidade do
Coque, vivo com uma grande interrogação:
até quando o Coque será de quem vive no
Coque? Será que o setor imobiliário não tem
interesse em ocupar a área? Será que os moradores não correm o risco de expulsão?
Acho que essas perguntas que me faço são
bastante parecidas com as que os integrantes do chamado Grupão, que reúne lideranças
do bairro, faziam há 20 anos. Naquela época,
a estratégia para expulsar os moradores do
Coque era mais explícita. A elite não aceitava que os pobres ocupassem uma área tão
nobre: uma área praticamente central, bem
próxima de praias e hospitais, além de vizinha de uma das principais avenidas do Recife, a Agamenon Magalhães. O tamanho da
área ocupada por essa comunidade também
desperta cobiça.
ais de baixa renda, classificando 27 áreas,
incluindo o Coque, como Zeis (Zona Especial
de Interesse Social) com o objetivo de promover a regularização fundiária, ações de
urbanização e sua integração à estrutura
urbana. Concomitantemente, o município
baixava o decreto de lei expropriatório da
área pertencente a Bezerra Leite.
Apesar disso, até hoje, não há registro da
entrega de nenhum título de posse aos moradores do Coque, o que tem contribuído
para o medo recorrente de expulsão entre
as famílias locais. Soma-se a isso o fato do
decreto de lei expropriatório da área pertencente a Bezerra Leite, que gerou dois processos judiciais, ainda não ter sido concluído.
Os herdeiros do antigo proprietário até o
momento não chegaram a um acordo quanto
às indenizações.
Apesar de tudo, o Coque resiste. Convivendo com o medo de expulsão e lutando para
manter o direito à moradia, a comunidade
expõe o problema de habitação vivido em
muitas outras periferias da cidade. O Coque
(r)existe, apesar de todos.
—
Diante dessa área tão valorizada, começaram a aparecer muitos “donos”, reivindicando
a posse de terrenos com a intenção de construir suas empresas. Felizmente, a comunidade, com a ajuda do Grupão, conseguiu se
organizar, resistiu e lutou até que a área foi
decretada Zeis. Mas, será que por ser Zeis a
permanência da comunidade está completamente assegurada? Por que até hoje ninguém
recebeu seus títulos de posse? Por não ter
esses títulos, a comunidade até hoje tem
medo de perder o que lhe pertence historicamente.
Será que esse medo que os moradores do
Coque demonstram de ser expulsos – ou futuramente “indenizados” – não tem fundamento, como dizem alguns? Será que vamos
conseguir resistir às novas estratégias de
pressão? Será que hoje a grande estratégia
não é o descaso e a divulgação de uma imagem ruim da comunidade?
A meu ver, a mais nova e cruel estratégia de
pressão sobre os moradores do Coque é o
abandono da comunidade por parte dos poderes públicos. Um abandono que gera muitos
problemas sociais, sendo o principal deles
a violência. Uma violência que gera o preconceito; um preconceito que gera a desvalorização da comunidade; desvalorização que
faz até quem mora dentro do Coque duvidar
do seu valor. E será que uma comunidade tão
sem valor merece estar numa área de tanto
valor?
É por isso que os moradores do Coque precisam acreditar e mostrar todo o seu valor.
Essa deve ser uma nova estratégia de luta
da comunidade. Mas, para que o próprio
morador do Coque possa se valorizar e ser
valorizado pelos outros, é preciso que ele
tenha as mesmas oportunidades dos outros,
que tenha acesso ao menos à educação e ao
emprego.
—
José Ferreira, 22 anos, é trabalhador informal e
estudante do 2º ano do Ensino Médio. É também
aluno do Curso de Agente de Desenvolvimento
Comunitário da ONG Neimfa.
Zeis favorece, mas não soluciona problemas
Por José Juvino, Luísa Abreu e Mônica Alcântara
O reconhecimento do Coque como Zeis, em
1983, tinha o objetivo de estabelecer para
os moradores da área instrumentos legais
de acesso ao solo e a benefícios urbanos. Em
outras palavras, a lei propunha a promoção
da regularização jurídica, bem como a sua
integração à estrutura da cidade com a perspectiva de implantação de infra-estrutura
e serviços urbanos, no resgate da cidadania
e da qualidade de vida da população beneficiária.
Com o Plano de Regularização das Zeis
(Prezeis), criado em 1987, foram institucionalizados mecanismos de gestão participativa na condução de projetos de recuperação
urbana e regularização, como, por exemplo,
a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU).
Este recente instrumento jurídico – que tem
validade de 50 anos, podendo ser renovado
– permite transferir para o morador das Zeis
o direito real de uso da terra, ou seja, o direito de permanecer na área pública ocupada,
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(colaborador)
desde que não alterada a finalidade para a
qual a concessão foi dada.
No entanto, além de não haver registro da
entrega de nenhum CDRU aos moradores do
Coque até hoje, as ações de urbanização previstas para as Zeis não chegaram a constituir uma mudança significativa para o Coque.
O bairro tem sido pouco beneficiado no que
diz respeito às prioridades da comunidade
– sobretudo saneamento e lazer – necessidades expostas nas plenárias do Orçamento
Participativo (instrumento previsto pelo
Prezeis para a participação das lideranças
comunitárias na elaboração dos vários projetos de intervenção urbanística das Zeis).
Medidas como o tratamento do canal que
corta a comunidade, na rua Ibiporã, que é
transmite várias doenças, sempre foram
adiadas, por falta de recursos – já que seria
necessário deslocar e indenizar as famílias
que ocupam a sua margem.
Além disso, dentre as obras realizadas desde
2001 pela Prefeitura do Recife (PCR), apenas
uma é referente ao lazer – o campo de futebol da avenida Martin Luther King, que se
encontra em péssimo estado atualmente.
Informações da PCR dão conta de que R$
12,6 milhões já foram investidos na área nos
últimos cinco anos, sobretudo em obras de
infra-estrutura.
Porém, os investimentos nem sempre contemplaram diretamente os interesses da
comunidade. A obra do Complexo Viário
Joana Bezerra que, sozinha, custou cerca de
R$ 8 milhões, por exemplo, é uma ação prioritariamente direcionada aos que não vivem
no Coque.
—
permanência
Entrevista :
Luciano Siqueira
Permanência garantida por lei
A regularização fundiária no Coque é uma
reivindicação histórica dos moradores do
Coque. Nos últimos dez anos, a crescente
valorização imobiliária da área aumentou
ainda mais o medo de expulsão entre seus
moradores. O vice-prefeito Luciano Siqueira,
que trabalhou como médico no Coque entre
os anos de 1981 e 1982, assegurou, no entanto, que a permanência da população está
garantida por lei, e a lei será cumprida nessa
gestão. Luciano Siqueira recebeu em seu
gabinete os estudantes do curso de jornalismo da UFPE e jovens moradores do Coque
para uma entrevista, na qual também falou
sobre as formas de combate à violência no
bairro.
Os moradores do Coque afirmam temer
ser expulsos da área em função da especulação imobiliária. A PCR já sofreu algum
tipo de pressão de setores interessados
nessa desocupação?
Eu desconheço e saberia se houvesse. Pela
arrumação de funcionamento do governo, e
por uma relação de grande confiança mútua,
nesses cinco anos de convivência, quando
surge esse tipo de pressão, ou conflitos dessa ordem, a porta de entrada é no meu gabinete. O Recife, porém, enfrenta um problema
sério: nós somos um milhão e meio de habitantes acomodados em apenas 220 quilômetros quadrados. Por isso, há historicamente
alguns conflitos de interesse entre os empreendedores econômicos e a população
mais pobre em torno do uso e da ocupação do
solo. A lei da Zeis foi uma grande conquista
da população mais pobre porque deteve em
muitas áreas o processo de desocupação.
Esse assunto é, no entanto, motivo de tensão permanente e é compreensível essa preocupação da população. Se você chegar em
Brasília Teimosa ainda hoje, com toda aquela
estabilidade conquistada, as pessoas ainda
se sentem inseguras. Seja lá ou no Coque,
isso tem a ver também com a falta de cla-
reza das informações que circulam no meio
da comunidade, mas não há esse risco.
O Coque vem sendo tratado de modo compatível com a condição de Zeis?
A condição de Zeis é uma lei específica que dá
garantias à população, preserva o direito dos
moradores em áreas cobiçadas por grandes
empreendimentos para eles não saírem dali.
Se, porventura, houver qualquer tentativa
de intervenção na área estável do Coque, a
população está protegida pela lei e na nossa
gestão ela será cumprida.
“Se houver qualquer tentativa
de intervenção, a população
está protegida pela lei.”
O que o senhor achou da decisão do Pólo
Médico de cercar a área para se isolar do
Coque?
O pólo médico se queixa bastante que há
muito assalto ali. Você troca, por exemplo,
a luz e logo ela é roubada. Outro dia, fui a
uma consulta no Hospital Português e o
médico que me atendeu disse: “Rapaz, olha,
é um pedido pessoal, a gente só sai daqui
em comboio; quando termina o trabalho,
sai uma fila de carro porque, se não, é assaltado em baixo do viaduto. Troca aquelas
lâmpadas.” Eu disse: “Rapaz, a gente troca
quase toda semana.” Aí ele perguntou: “Por
que não bota a Guarda Municipal ali?” Eu
respondi: “ Não resolve também.” Então, há
realmente uma pressão nesse sentido. Em
relação a essa proposta do Governo do Estado de colocar câmaras e o gradeado, cabia
à Prefeitura apenas autorizar ou não. O prefeito João Paulo considerou que não devia
desautorizar, contanto que se preservassem
os acessos à população. Acho, porém, que es-
sas medidas são de alcance muito precário,
além de terem um simbolismo negativo, que
é de um apartheid na cidade. Na prática, não
se conhece resultados consistentes a médio
e longo prazo.
O que a PCR tem feito para combater a violência em comunidades como o Coque?
Existe, há cerca de dois anos, um consórcio
metropolitano de prevenção à violência, envolvendo o Governo do Estado, o Governo
Federal, as 14 prefeituras da área metropolitana e uma série de outras entidades. Eu
presido esse consórcio, cujas ações se dão
com base em conceitos atualizados sobre
segurança urbana. Segurança, no período do
Regime Militar, era segurança para proteger
o Estado das ameaças que eram os cidadãos
insatisfeitos com o governo autoritário.
Com a redemocratização da América Latina,
esse tema está sendo discutido com base
no conceito de “Segurança Cidadã”, cujo objetivo final é a segurança do cidadão, e não
a defesa do Estado. Nessa concepção, toda
ênfase está na prevenção, embora se considere que a repressão ao chamado crime
organizado é necessária. Infelizmente, o
que predomina ainda em algumas instâncias
governamentais é essa visão policialesca.
nar o banco do povo e outros programas da
Prefeitura a essas áreas. Quais são os nossos defeitos? A falta de integração dessas
ações governamentais para que elas possam dar melhores resultados e a falta de um
sistema de avaliação dos resultados. Várias
prefeituras já avaliam essas ações – programas de distribuição de renda, de geração de
emprego, de integração da juventude, melhoria do padrão educacional, etc. – e estão
comprovando que prevenção dá resultado.
Quem é o cidadão, de fato, do que é chamado “Segurança Cidadã”?
O Recife é uma cidade com aparência de vaca
malhada do ponto de vista da distribuição da
criminalidade, é tudo muito misturado. Quando você verifica os dez principais bolsões de
violência criminal, eles se distribuem de maneira mais ou menos equilibrada na cidade.
Na parte que toca ao poder público municipal, cuja atribuição não é combater bandido,
nem prender ninguém, mas sim ajudar com
a prevenção, o foco é a população como um
todo, mas priorizando a juventude no direcionamento das nossas ações preventivas.
Na sua visão, o que o Coque representa
para o Recife?
“ O Coque é uma das áreas
de maior tradição de luta na
cidade do Recife. “
O Coque é uma das áreas de assentamento
subnormal de maior tradição de luta na cidade do Recife.
—
Nesses cinco anos de gestão, no entanto, nós
desenvolvemos quase 50 programas que, ao
juízo da Unesco e das instituições que estudam o fenômeno da violência urbana, são
ações que ajudam a diminuir a violência e a
criminalidade. Fazemos inclusive o mapeamento dos bolsões de violência na cidade,
mas não divulgamos à imprensa porque isso
afeta, por exemplo, a auto-estima da comunidade. Por que fazemos isso? Para direcio-
Participaram da entrevista: Ana Carolina Senna,
Gustavo Neves da Silva, João do Vale Neto, Luís
Henrique Leal,Mônica Alcântara, Rafael Alves da
Silva, Ridivaldo Procópio da Silva, Yvana Fechine.
Colaboração: José Juvino, Isabel Sougarret.
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